DOSSIÊ
Impacto das mudanças climáticas no contexto do patrimônio cultural de cidades europeias e brasileiras: breve panorama de estudos sobre o tema entre 2000 e 2020
Impact of climate changes in the context of the cultural heritage of European and Brazilian cities: brief overview of studies on the subject between 2000 and 2020
Percursos
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN-e: 1984-7246
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 22, núm. 49, 2021
Recepção: 30 Novembro 2020
Aprovação: 08 Junho 2021
Resumo: A adaptação ao fenômeno das mudanças climáticas é uma questão de grande importância no atual contexto de políticas públicas voltadas ao planejamento urbano das cidades. Em se tratando de sítios de valor histórico-cultural e de bens pertencentes ao patrimônio cultural, o efeito das mudanças climáticas pode acarretar um grande desafio para a garantia da sua conservação. Assim, o presente artigo tem como objetivo apresentar uma revisão narrativa da literatura de artigos científicos e bibliografia de referência sobre o tema do impacto das mudanças climáticas no âmbito patrimonial, comparando criticamente o caso brasileiro com o contexto internacional, sobretudo europeu. Estipulou-se como delimitação temporal o período das duas últimas décadas, entre 2000 e 2020, cinco anos após a primeira conferência mundial sobre o clima da ONU (Organização das Nações Unidas), com a consolidação do compromisso climático e a ampliação de países signatários. A metodologia aplicada é a revisão bibliográfica e compilação dos dados obtidos das publicações, fazendo uso da análise críticacomparativa. Como resultado, espera-se contribuir com o estado da arte sobre a temática, refletindo sobre os aspectos necessários para avançar no campo na esfera brasileira.
Palavras-chave: mudanças climáticas, patrimônio cultural, cidades, preservação, revisão de literatura.
Abstract: Adapting to the phenomenon of climate change is a matter of great importance in the current context of public policies aimed at urban planning in cities. When it comes to sites of historical and cultural value and assets belonging to cultural heritage, the effect of climate change can pose a major challenge to ensuring their conservation. Thus, this paper aims to present a narrative review of the literature of scientific papers and reference bibliography on the theme of the impact of climate change in the heritage field, critically comparing the Brazilian case with the international context, especially in Europe. The period of the last two decades, between 2000 and 2020, was stipulated as a temporal delimitation, five years after UN’s first conference on the climate, with the consolidation of the climate commitment and the increase of signatory countries. The applied methodology is the bibliographic review and compilation of data obtained from the publications, making use of critical-comparative analysis. As a result, it is expected to contribute to the state of the art on the subject, reflecting on the aspects necessary to advance in the field in the Brazilian sphere.
Keywords: climate changes, cultural heritage, cities, preservation, literature review.
1 INTRODUÇÃO
Em 1972, quando a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural foi adotada pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), a ameaça dos fenômenos climáticos não era tão claramente percebida pela comunidade internacional. O objetivo principal da Convenção era garantir a efetiva preservação de lugares excepcionais no mundo, compartilhando-os com as gerações futuras. Atingir essa meta, entretanto, é cada vez mais um desafio perante as adaptações do ambiente às mudanças climáticas, que consequentemente, ameaçam a proteção dos sítios do Patrimônio Mundial localizados nesses ambientes em constante modificação.
A importância da abordagem integrada da preservação ambiental e do desenvolvimento sustentável foi apropriada na Convenção da UNESCO para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial em 2003, discutindo a importância da preservação da diversidade cultural e a inter-relação entre o patrimônio mundial tangível e intangível.
Entre os esforços internacionais que tratam sobre o tema das mudanças climáticas, destaca-se a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), de 1992, o Protocolo de Quioto, de 1997, e mais recentemente, o acordo de Paris, em 2015. Neste último, reconhecendo que as mudanças climáticas representam uma ameaça urgente e potencialmente irreversível para as sociedades humanas e para o planeta, o compromisso legal dos países com a mitigação dos efeitos às mudanças climáticas deverá ser desenvolvido no âmbito de cada um dos Estados-Partes, cada qual refletindo sua parcela de responsabilidade.
Também no âmbito da Agenda de 2030 (ONU, 2015) para o desenvolvimento sustentável, em seu objetivo 11: “Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”, e especificamente no que trata a meta específica 11.4: “Fortalecer esforços para proteger e salvaguardar o patrimônio cultural e natural do mundo”, e tendo em vista o impacto da mudança do clima sobre as áreas urbanas históricas, percebe-se a necessidade urgente da proposição de estratégias locais e globais para proteger e promover a gestão desses territórios.
Na esfera nacional, a salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro está prevista no artigo 216 da Constituição Federal brasileira (1988), no qual o patrimônio cultural brasileiro tem sua definição como:
os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 1988)
É fato que o patrimônio cultural brasileiro está sofrendo cada dia mais a influência prejudicial das mudanças climáticas, que ocorrem de modo acelerado. Devido a isso, foi criado recentemente o Comitê de Mudanças Climáticas e Patrimônio no ICOMOS Brasil. O ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios) é uma organização global associada à UNESCO com a missão de promover a conservação e a valorização de monumentos, centros urbanos e sítios. O Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, após a reforma dos seus estatutos, em 1995, é caracterizado como uma organização não governamental, sem fins lucrativos, que age em nome dos interesses públicos (ICOMOS/BRASIL, 2015).
Assim, o presente estudo tem como objetivo apresentar uma revisão narrativa da literatura de artigos científicos e bibliografia de referência sobre o tema do impacto das mudanças climáticas no âmbito patrimonial, comparando criticamente o caso de cidades brasileiras com o contexto internacional, sobretudo de cidades europeias. O estudo surgiu da necessidade de aprofundar os conhecimentos e reunir referencial teórico a partir dos temas patrimônio cultural, cidades e mudanças climáticas.
A metodologia utilizada foi o levantamento bibliográfico, por meio de busca eletrônica, com base em material já elaborado em fontes secundárias de livros e bancos de dados eletrônicos, a partir das bases de dados Scielo, Periódicos Capes e Google Acadêmico, além dos portais do ICOMOS e da UNESCO. Foi escolhido como recorte temporal o período das duas últimas décadas, entre 2000 e 2020, cinco anos após a primeira conferência mundial sobre o clima da ONU (Organização das Nações Unidas), com a consolidação do compromisso climático e a ampliação de países signatários. Da pesquisa, foram encontrados 30 artigos relacionados ao tema, dos quais 18 foram selecionados para compor a amostra; entre eles, nove estudos brasileiros e nove internacionais. Foram excluídos artigos que não se adequaram ao tema proposto, que abordavam parcialmente o tema e não a exata relação entre patrimônio cultural, cidades e mudanças climáticas. Os artigos internacionais foram selecionados a partir da relação do estudo com o assunto abordado, independentemente se compostos por autores brasileiros.
Os termos (palavras-chave) utilizados para a busca refinada foram os seguintes: mudanças climáticas e patrimônio cultural, mudanças climáticas e cidades; alterações climáticas e patrimônio cultural; clima e patrimônio cultural; conservação de bens culturais e mudanças climáticas; mudanças climáticas e análise de risco para sítios históricos; mitigação de impacto de mudanças climáticas e patrimônio cultural; eventos climáticos e patrimônio cultural, paisagens culturais e mudanças climáticas. Os termos e frases foram buscados na língua portuguesa e inglesa, com uso da expressão AND, localizando mais de um termo na mesma referência. A partir da busca, alguns dos trabalhos foram selecionados como mais significativos para a amostra temática. Estes estão listados nos quadros 1 e 2.
Os materiais encontrados foram sistematizados em fichas de leitura, analisados e distribuídos em duas categorias: “Interface entre as mudanças climáticas e o patrimônio no mundo” e “Apresentação de estudos brasileiros sobre o tema”.
Tanto a literatura nacional, quanto a internacional encontrada sobre o tema de mudanças climáticas e o patrimônio cultural, evidenciam que as pesquisas na área são recentes, em sua maioria publicadas entre 2010 e 2020.
2 INTERFACE ENTRE AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS E O PATRIMÔNIO NO MUNDO
A criação do ICOMOS é de suma importância no enfrentamento das questões globais que acarretam problemas à preservação dos monumentos. As mudanças climáticas trazem ainda maiores desafios nessa esfera. A partir da intensificação de tais processos, no final do século XX foram desenvolvidas metas e ações de proteção do patrimônio mundial, por iniciativa da UNESCO. Entre as diversas missões da UNESCO, está incentivar os países a aderirem à proteção do seu patrimônio, a partir da construção de uma política pública abrangente, em que a população também se sinta motivada a ajudar em sua preservação, além de fornecer assistência emergencial quando necessário (ZANIRATO; RIBEIRO, 2014).
Criado em 2007, o grupo de trabalho Mudança Climática e Patrimônio, do Conselho Internacional de Monumentos e sítios (ICOMOS, 2019), não se limita ao escopo do Patrimônio Mundial, levando em consideração todos os tipos de patrimônio (construído, móvel, paisagístico, intangível) e variações nas abordagens em diferentes culturas e crenças. Em consonância com a estrutura organizacional do Acordo de Paris, foi dividido em quatro equipes temáticas: 1) Mitigação / Eficiência Energética; (2) Adaptação; (3) Perdas e danos; (4) Objetivos elevados / Comunicação / Pesquisa.
Como um dos desafios globais mais significativos, a gestão da mudança climática para a conservação e salvaguarda do patrimônio, o Comitê do Patrimônio Mundial (UNESCO, 2006) aponta três ações a serem tomadas:
a. ações preventivas de monitoramento, relatórios e mitigação dos efeitos da mudança climática por meio de decisões em uma variedade de níveis: individual, comunitária, institucional e corporativa;
b. ações corretivas: adaptação à realidade de mudanças climáticas por meio de estratégias globais e regionais e planos de manejo locais;
c. compartilhando conhecimento: incluindo melhores práticas, pesquisas, comunicação, apoio público e político, educação e treinamento, capacitação, redes de trabalho etc.
O Comitê aponta que toda a estratégia deve ser alcançável, abordar uma variedade de níveis; vincular o apoio a outras iniciativas; facilitar o compartilhamento de conhecimento e experiência; abordar a implementação prática e revisar os recursos disponíveis; e incluir ações de curto, médio e longo prazo.
Para além do Comitê do Patrimônio Mundial e do Grupo de Trabalho Mudança Climática e Patrimônio (ICOMOS), majoritariamente no âmbito europeu, muitos estudos estão sendo desenvolvidos a partir da relação da influência das mudanças climáticas no patrimônio. Como exemplo, o projeto NOAH'S ARK (2007), citado por Zanirato (2010), de Bolonha, que investigou eventos climáticos e a degradação dos materiais de construção e estruturas que compreenderam os principais materiais construtivos utilizados nas edificações históricas no continente europeu, como o mármore, o arenito e a pedra calcária. O projeto teve como produto a publicação do Atlas da Vulnerabilidade do Patrimônio Cultural Europeu, servindo de guia para intervenções no patrimônio edificado na União Europeia.
Outro estudo realizado no continente europeu aponta que as mudanças climáticas acabam afetando negativamente a cidade de Londres, ocasionando inundações rotineiras do rio Tâmisa (COLETTE, 2007). Segundo o autor, essa ação é consequência de marés altas e tempestades causadas por uma alta pressão no Mar Norte. Dessa maneira, o patrimônio costeiro do rio está em constante perigo, além de que, se ações de mitigação não forem pensadas, futuramente construções históricas poderão sofrer catástrofes.
Colette (2007) destaca que medidas já haviam sido tomadas anteriormente devido ao aumento das marés, sendo projetadas barreiras que, teoricamente, seriam usadas até três vezes ao ano, porém, devido à mudança acelerada do clima, o número de usos dessas barreiras por ano aumentou consideravelmente. Dentre as consequências imediatas dessas inundações, cita o desenvolvimento de micro-organismos (bolores e fungos) nas paredes das construções.
Caso semelhante ocorre com Veneza, como trata o autor:
No que diz respeito às projeções futuras, de acordo com os cenários moderados de mudança climática, a perda de altitude líquida projetada para Veneza chegará a 54 cm em 2100. Consequentemente, se nada for feito, Veneza poderá ser inundada diariamente. (COLETTE, 2007, p. 72)
Já Bonazza (2018), a partir do contexto italiano, relata que entre os fatores que mais deterioram o patrimônio cultural estão as alterações de temperatura, chuvas e ventos fortes e períodos extensos de seca. Aponta que em ações pós-desastres, ou seja, logo após o patrimônio sofrer algum dano provocado por eventos da natureza, é importante saber atuar no momento de reparação. Isso porque em alguns casos, ações não indicadas prejudicam ainda mais esse patrimônio. Problemas comuns relatados são recursos inadequados ou inferiores ao esperado, entraves burocráticos e situações que apresentam risco à segurança da equipe de resgate. Bonazza (2018) indica estratégias de adaptação utilizadas na Itália onde foram propostos meios para frear as consequências das mudanças climáticas, desenvolvendo documentos e relatórios de vulnerabilidade de construções históricas, sugerindo ações de melhorias. Dentre algumas formas de prevenir perdas históricas, considera o monitoramento uma ferramenta fundamental.
Em casos de cidades e monumentos do patrimônio cultural, Colette (2009) observou que construções históricas são mais porosas, e que as pesadas fundações destas absorvem água do ambiente e causam efeitos maléficos de erosão e corrosão da sua estrutura. Fatores que podem ser acelerados quando as mudanças climáticas ocorrem de maneira inesperada, alterando os teores de umidade e favorecendo o surgimento de rachaduras profundas.
Em outro estudo, Collete (2007) cita o exemplo da cidade de Praga que sofre inundações constantes (2m acima do solo) que afetam vários de seus edifícios históricos, muitos dos quais não resistiram e desabaram. Uma cidade no interior do país, Cesky Krumlov, perdeu catastroficamente mais de 100 edificações de valor cultural do período gótico, as quais ficaram submersas em 4m de profundidade.
Como exemplo oposto, aponta o fenômeno da desertificação que ocorre na região de Timbuktu - Mali, acometendo as importantes mesquitas do país; o avanço da areia gerou grande preocupação na década de 1990, partindo de uma observação na qual aproximadamente 1m de areia era acumulado nas paredes das construções (COLLETE, 2007). O estudo ainda evidencia que a temperatura vem aumentando consideravelmente, em torno de 1,4° C, outrossim, a quantidade de chuva pode diminuir, o que ocasiona o aumento dos períodos de seca, de maneira que a desertificação será cada vez mais drástica.
De forma geral, Colette (2009) resume que as mudanças climáticas estão ligadas a efeitos de inundações, deslizamentos de terra, erosão, desertificação, salinidade, acréscimo ou diminuição de temperatura drasticamente; são todos fatores que mudam fisicamente a estrutura de prédios históricos, ocasionando rachaduras, presença de organismos degradadores, entre outros.
A partir do estudo de caso da Torre del Oro em Sevilha, na Espanha, Huertos et al., (2006) apontam que devido a sua construção ser localizada próxima a um rio, a umidade é um fator de risco na sua conservação. Ademais, a construção sofreu várias ações humanas, sendo utilizada e adaptada para abrigar diferentes atividades da comunidade (escritórios, museu, capela, mercado etc.), passando por processos de restauração de baixa qualidade. Os mesmos autores apontam que entre os principais fatores climáticos que acarretam danos nos monumentos estão os agentes contaminantes nas proximidades do terreno e o clima do local. Esses agentes podem acarretar danos e interferir negativamente na estrutura da obra, na composição química e nas propriedades mecânicas dos materiais de construção; podem diminuir a resistência a intempéries dessas edificações, aumentar a porosidade das paredes, impactar no conforto térmico, além de afetar a estética do edifício histórico.
Com a finalidade de mapear as consequências das mudanças climáticas no patrimônio inglês, a University College London (Centre for Sustainable Heritage) desenvolveu um amplo relatório, a partir de questionários, reuniões e oficinas com especialistas de diversas áreas, autoridades e conselheiros. Dividindo as estratégias de adaptação para sítios arqueológicos, prédios históricos e parques e jardins, o estudo inclui uma série de mapas de demonstração de risco para o leste e noroeste da Inglaterra, comparando a suscetibilidade de patrimônios locais. Uma conclusão que o estudo apresenta é a necessidade de simplificar as práticas atuais de gerenciamento e manutenção dos ambientes históricos (CASSAR; PENDER, 2003).
Dentre alguns casos analisados por Korka (2018), está a cidade medieval de Rodes (Grécia), a qual faz parte do Patrimônio Mundial da UNESCO desde 1988. O autor aponta alguns fatores que influenciaram negativamente na preservação da cidade histórica:
[...]fatores naturais de degradação (atmosfera marinha, decadência do sal, umidade crescente) fatores de degradação induzidos pelo homem (turismo, poluição atmosférica devido ao tráfego e aumento da temperatura e da umidade), a suscetibilidade dos materiais de construção locais (arenito poroso) e um sistema de planejamento de desenvolvimento urbano ineficiente (problemas de estabilidade de edifícios, instalações subterrâneas, etc.). (KORKA, 2018, p. 5)
Assim, foram desenvolvidos projetos de monitoramento das áreas mais críticas do local, com a proposição de técnicas de reparo adequadas, além de dar maior visibilidade a estratégias sustentáveis. Apesar do distanciamento geográfico e de contextos materiais e socioculturais bastante distintos, pode-se indicar que essas soluções vão ao encontro, ainda que timidamente, de alguns estudos brasileiros que tratam sobre a importância do monitoramento de áreas de risco e modelagem prevendo cenários futuros, e que serão apresentados sumariamente no próximo item.
Como apontado por diversos autores, de modo amplo, a problemática abordada revela especificidades e a urgência em se tematizar a questão do patrimônio face às mudanças climáticas, visto que essas alterações incidem diretamente em danos ao patrimônio cultural mundial, de diferentes formas. Dos estudos internacionais apresentados, verificou-se que o escopo da maioria trata de patrimônios mundiais listados na UNESCO em contextos europeus. A exceção, por se tratar de contexto latinoamericano, é o estudo internacional apresentado por Zanirato (2010), com a criação do Projeto de Estudo e de Prevenção dos Desastres Ligados aos Terrenos Instáveis (PROEPTI) que tratou de identificar a vulnerabilidade de Cuzco, traçar um mapa de risco e definir ações de antecipação preventiva. A autora reflete que no caso de Cuzco, as recomendações do PROEPTI não foram seguidas, tendo em vista a necessidade econômica de manter a exploração turística ao patrimônio cultural.
Além disso, a maioria dos estudos são direcionados a edificações de valor histórico-cultural, ou seja, se limitam à escala do edifício, quando muito, englobam sítios históricos tombados, e em contextos predominantemente urbanos e turísticos. Foram poucos os trabalhos que abordaram o patrimônio móvel, arqueológico, paisagístico e intangível, por exemplo. Também há carência de estudos que tratem do patrimônio vernacular e originário de comunidades autóctones, construídos em madeira e terra, por exemplo, altamente suscetíveis às variações climáticas. Além disso, verificou-se que as áreas do conhecimento predominantes no campo são a geografia, arquitetura, urbanismo e antropologia.
Essa breve revisão de literatura apresentou a discussão no contexto internacional, contudo, pretende-se confrontá-lo com o estado da arte no contexto nacional, identificando possíveis lacunas do conhecimento na área e evidenciando pontos de aproximação e de distanciamento com relação aos estudos estrangeiros.
3 APRESENTAÇÃO DE ESTUDOS BRASILEIROS SOBRE O TEMA
Dos estudos brasileiros encontrados, quando não tratam do tema de forma generalista, abrangendo o país, prevalecem estudos concentrados na região sudeste, especialmente São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Esse fato pode ser explicado pela localização dos pesquisadores e universidades envolvidos com a temática nessas regiões. Apresentamos sumariamente algumas discussões levantadas por esses estudos nacionais.
Levantando o caso de Minas Gerais, Zanirato e Ribeiro (2014) analisam em seu trabalho as consequências das mudanças climáticas no patrimônio cultural mineiro. Introduzindo o tema das mudanças climáticas no Brasil a partir de dados dos relatórios do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) de 2007 e 2014, a autora cita os maiores impactos dos efeitos climáticas no país como: o aumento no nível do mar que afetará áreas costeiras; o aumento da erosão do solo; a diminuição da oferta de água nas áreas áridas e semiáridas, que no caso brasileiro atingiria os estados do Nordeste e o aumento na precipitação, que ocorreria nos estados do Sudeste.
As ocorrências de problemas nas localidades próximas a Ouro Preto (MG) não são novidade, pois segundo Zanirato e Ribeiro (2014), desde o início das construções nos séculos XVI e XVII, as casas já careciam de proteção contra desastres, como deslizamentos de terra, visto que era necessário erguer muros de contenção próximos às residências. Como a mineração era o foco da economia local, as construções geralmente eram próximas aos rios, o que perante o agravamento do cenário de chuvas e inundações trazia fragilidades de conservação dessas edificações, colocando-as em risco de deslizamentos e desmoronamentos. A autora relata:
Os escorregamentos são atribuídos em boa parte às práticas inadequadas de construção, tais como cortes impróprios nos taludes, ocupação de antigos depósitos de mineração, deposição inadequada de lixo e resíduos de construção, esgoto e águas servidas sem canalizações, baixa qualidade das construções residenciais, entre outros. (ZANIRATO E RIBEIRO, 2014, p. 41)
Por meio de Zanirato e Ribeiro (2014), percebemos que para além dos eventos catastróficos e que acometem o patrimônio cultural ocasionados pelas mudanças climáticas, as práticas inadequadas, como ações humanas sobre os sítios e a falta de compromisso ambiental, trazem consequências trágicas à vida humana e à preservação do patrimônio.
Como expõe a autora, houve uma sucessão de eventos de deslizamentos de terra e desabamentos na região, registrados a partir de 1814. Nos anos de 1978 e 1979, por exemplo, ocorreram deslocamentos de volumes de terra consideráveis na região, chegando a aproximadamente 100 mil metros cúbicos, colocando em risco as edificações coloniais. Perante o problema, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (IPHAN) produziu relatórios sobre as intervenções ocorridas e recomendações de ações para contenção de encostas. Outros eventos similares são apontados pela autora nos anos de 1989, 1997 e 2012.
Analisando como as mudanças climáticas se refletiram no Rio de Janeiro, Coelho (2014) evidencia, a partir de uma pesquisa bibliográfica, que diante da velocidade dessas mudanças, os eventos tendem a se tornar mais danosos, fragilizando o patrimônio cultural. As consequências mais nocivas estão ligadas a razões de alteração de ciclos de chuvas, processos químicos além de interferência biológica, fatores esses que podem prejudicar acervos arqueológicos, o patrimônio cultural edificado e construções litorâneas. Alguns dos problemas observados pela autora estão relacionados com o aumento da umidade que afetam obras históricas. Como indicado também em estudos internacionais, esse processo incide diretamente sobre as edificações de valor histórico cultural, pois estas, muitas vezes, possuem fundações pesadas e se estruturam a partir de constituição orgânica, tais como madeira e fibras vegetais, que são mais suscetíveis à degradação promovida pelas intempéries e severidades climáticas, de um modo geral.
Coelho (2014) aponta o aumento da temperatura e acréscimo de radiação ultravioleta como fenômenos que podem agravar os desafios de preservação do acervo arquitetônico. O clima tropical brasileiro naturalmente favorece a biodeterioração, o que leva a considerar que o aumento das temperaturas e as mudanças nas dinâmicas hídricas, podem ocasionar ainda maiores patologias construtivas às edificações.
Para além das alterações físicas ocasionadas pelos eventos climáticos, assim como Zanirato e Ribeiro (2014), Coelho (2014) também aborda as ações humanas, como a relação da comunidade com o patrimônio cultural como importante agente de manutenção e conservação do Bem. Tendo em vista as complexas relações entre aspectos naturais, culturais e sociais do patrimônio, a dinâmica da comunidade com o patrimônio e a relação imaterial que perpassa a esfera material é de grande importância para o compartilhamento de conhecimento intergeracional, como o saber-fazer.
Refletindo sobre o desafio da manutenção dos povos e culturas tradicionais no território, a autora escreve que "a estabilidade do patrimônio cultural está relacionada às interações com o ambiente ao seu redor” (COELHO, 2014, p. 97).
Como também apontado pela bibliografia internacional, fenômenos como elevação do nível do mar, desertificação, inundações, entre outros, podem obrigar a migração de populações, ocasionando a separação de comunidades e abandono de propriedades, com a eventual perda de rituais ou aspectos imateriais relacionados à memória e ao conhecimento tradicional (UNESCO, 2007).
No âmbito geral, aportada em documentos internacionais, a autora ainda apresenta uma síntese dos indicadores de mudanças climáticas e esclarece seus efeitos no patrimônio cultural. Eventos climáticos relacionados à umidade podem afetar, por exemplo, sítios arqueológicos e paredes porosas de prédios históricos. Além disso, os sais presentes nas chuvas, que alteram seu pH, também podem prejudicar pinturas, estruturas, entre outros componentes construtivos das obras. Esses fatores em conjunto, somados às irregularidades do regime hídrico, também podem acentuar processos erosivos no solo, intensificar ações biológicas nas arquiteturas, bem como promover a corrosão, quebra e/ou rachaduras de materiais e superfícies.
O aumento da temperatura global, um segundo indicador de mudança climática elencado por Coelho (2014), pode impactar nas fachadas de edifícios históricos e acentuar o degelo de zonas glaciais, aumentando o nível do mar e abalando sítios costeiros. Outro fator ao qual se deve ater, segundo a autora, é para a contenção de usos e até mesmo estratégias de climatização inapropriadas para a arquitetura, que podem repercutir em variações drásticas da temperatura interna das edificações, sensibilizando sua estrutura.
A elevação do nível do mar, atrelada ao aumento da temperatura, também é um indicador designado por Coelho (2014). Ela afeta primordialmente áreas costeiras, provocando alagamentos e podendo levar ao colapso das edificações, o que em ambos os casos pode se desdobrar para a evacuação das comunidades tradicionais.
Os ventos, também são detalhados na sequência de indicadores de Coelho (2014). Estes, quando muito fortes, podem ser prejudiciais em regiões áridas, levando até mesmo a tempestades de areia que podem soterrar, inclusive edificações e sítios históricos. Os ventos também podem enfraquecer a estrutura de obras, seja pelo impacto que promovem, seja pelos minerais que transportam e que podem deteriorar materiais. Nessa mesma linha temática, Coelho (2014) ainda chama atenção para o processo de desertificação, que diminui a oferta de água nos lençóis freáticos, acarreta a erosão do solo e se desenvolve paralelamente ao aumento da temperatura, todos esses processos que podem levar ao abandono do território.
Conforme aponta Coelho (2014), países de clima tropical estão mais propensos a enfrentar o problema da biodeterioração. Em sua dissertação de mestrado, Andrade (2016) aprofunda o tema a partir do estudo das ações causadas por agentes biológicos nas estruturas de patrimônio do Vale Histórico Paulista. O autor evidencia que os cupins são os que mais deterioram os materiais naturais como a madeira. Nas edificações pertencentes ao seu estudo, a madeira é amplamente utilizada nas edificações históricas, por isso o agravamento dos processos biológicos se torna ainda mais nocivo perante o contexto de mudanças climáticas. Isso ocorre porque os isópteros e outros microorganismos como xilófagos e fungos, além de deteriorar diversos materiais, encontram ambiente adequado ao seu desenvolvimento diante de circunstâncias como aumento da temperatura e do teor de umidade. Isso pode levar a perdas estruturais profundas com o decorrer do tempo, ou ainda a perdas estéticas, que não são menos importantes, pois colocam em risco registros de uma história descrita através de uma ornamentação ou pintura.
O autor destaca também outros fatores que podem levar danos às construções, como descreve:
[...] já foram enumerados a erosão física e química associada com as precipitações e/ou aumento de poluentes químicos no ar, como SO2; a eflorescência de sais solúveis em paredes de materiais porosos; os desgastes mecânicos a ciclos de umidificação/desumidificação ou aquecimento/congelamento - sem contar com os desastres de grandes proporções, como enchentes, deslizamentos, incêndios relacionados com incidência de raios, também decorrentes de alterações climáticas. (ANDRADE, 2016, p. 37)
Comparando com estudos na Inglaterra, Andrade (2016) comenta que, no início do século XXI, o aumento da temperatura pode ser relacionado com o aumento de insetos danosos ao patrimônio edificado. A partir de dados obtidos do Museu da Arte Sacra de Salvador (BA), Andrade (2016) chama atenção para os diferentes tipos de cupins, que se associam a ambientes diferenciados, como os cupins-de-madeira-seca, cupins de solo e cupins arborícolas. O impacto das mudanças climáticas pode favorecer a reprodução dessas diferentes espécies.
Como já indicado por Zanirato e Ribeiro (2014), devido à sua extensão territorial, no Brasil, os eventos extremos ocorrem de diferentes modos em suas regiões, sendo um grande problema para a conservação de edifícios, principalmente os históricos (KLUG; MARENGO; LUEDEMANN, 2016). Segundo projeções de Klug, Marengo e Luedmann (2016), na região Sul, a vulnerabilidade se dá em relação a enxurradas, enchentes e alagamentos. Já no Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e na Amazônia as projeções mostram que um maior número de cidades pode ser vulnerável a secas no futuro. Como as maiores cidades brasileiras se encontram na faixa litorânea, a tendência de aumento dos eventos extremos de chuva evidencia altos níveis de vulnerabilidade a enchentes e movimentos de massa.
Nobre et al. (2011) expõem dados da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) que demonstram como futuramente a cidade pode se comportar com o crescimento populacional acelerado, registrando que alterações climáticas serão visíveis e impactarão a região como um todo, uma vez que a metrópole não conta com infraestrutura, tampouco com um plano de gestão, adequado a esses eventos climáticos. O autor evidencia que “[...] intervenções desconexas com intensa verticalização, compactação e impermeabilização do solo, supressão de vegetação e cursos d’água” (NOBRE et al., 2011, p. 236) são ações que não só impactam no meio ambiente, mas também diminuem a sua capacidade de resiliência face aos impactos das mudanças climáticas. Os autores relatam a importância da ampliação da capacidade de modelagem e de uma rede de monitoramento climático e dos seus impactos para fins de planejamento urbano e regional, o que vai ao encontro do que também apontam pesquisas internacionais, como a de Korka (2018), analisando o caso da Grécia. Nesse sentido, Zanirato e Ribeiro (2014) também apontam a criação do Modelo Brasileiro do Sistema Terrestre (BESM) como uma alternativa aos modelos desenvolvidos em outros países, porque se foca na escala regional do Brasil.
É bastante preocupante que duas grandes metrópoles brasileiras, tanto Rio de Janeiro quanto São Paulo, não tenham um planejamento orientado à mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, mas esse fato é explicado segundo os dados apresentados por Ribeiro (2008). De acordo com o autor, quando da época de seu trabalho, havia pouca informação disponível sobre o conhecimento das mudanças climáticas no Brasil. Além disso, os riscos eram mostrados a partir de incertezas e indeterminações, ou seja, havia poucos estudos que demonstrassem evidências de que há a possibilidade de ocorrerem desastres devido a alterações climáticas. Porém, conforme Zanirato e Ribeiro (2014) bem ponderam, ao concluir o estudo de caso em Ouro Preto,
Esperar por uma comprovação científica inquestionável dos riscos, tanto aos edifícios quanto aos habitantes de Ouro Preto, antes de empreender ações preventivas pode levar a danos sérios e irreversíveis ao patrimônio, à economia e à saúde e bem-estar humanos. (ZANIRATO E RIBEIRO, 2014)
Ainda nesse quesito, a autora considera que o risco é socialmente criado e que a vulnerabilidade resulta da incapacidade em administrar eventos que levem à degradação social e ambiental. Pensando na realidade brasileira, é inegável que o alto déficit habitacional e a desigualdade social são fatores que aumentam ainda mais a vulnerabilidade ambiental. Como também pontua Ribeiro (2008), nos grandes centros brasileiros, perante a falta de políticas habitacionais e de planejamento governamental, é frequente a urbanização elevada da população de baixa renda em áreas de risco, como fundos de vale, encostas e margens de cursos hídricos.
Para além dos problemas de ocupação já conhecidos nos centros urbanos brasileiros, Ribeiro (2008) também toca em um ponto comum às reflexões de outros autores: o aumento da temperatura pode acarretar a presença de insetos nos centros urbanos e no aumento de chuvas intensas, que implicam em riscos elevados para a preservação do patrimônio. Também chama atenção para o perigo do aumento do nível do mar, o qual pode afetar diversas construções costeiras, como palafitas ou até mesmo indústrias na região litorânea de São Paulo, por exemplo. Por fim, o autor propõe a necessidade de se trabalhar medidas de arborização e verdejamento urbano, como uma forma de amenizar esses problemas.
Tais estratégias de arborização urbana também são apresentadas por Medeiros e Afonso (2007), identificadas como uma ação eficiente na gestão de alguns impactos promovidos pelas mudanças climáticas. Analisando os alagamentos na cidade histórica de Laguna, em Santa Catarina, os autores apontaram que o uso de infraestrutura verde nos espaços públicos da cidade era uma ótima oportunidade de drenar a água concentrada em dias de chuva. Além disso, poderia favorecer a construção de uma paisagem mais convidativa e diminuir pequenos traços de poluição na região.
Retomando a discussão e ampliando para a esfera imaterial do patrimônio, como apontaram também Zanirato e Ribeiro (2014) e Coelho (2014), Campos (2017) pontua que as alterações climáticas causam deterioração nos bens culturais e patrimoniais mais vulneráveis, o que levará a grandes perdas na perpetuação do conhecimento. A autora indica que o patrimônio cultural pode sensibilizar a sociedade para os impactos e riscos das alterações climáticas, bem como contribuir para a reflexão acerca da diversidade cultural, da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos.
Apesar disso, Campos (2017) afirma que há poucas ações do órgão institucional responsável pela salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro para tratar das questões relacionadas aos impactos das alterações climáticas. A autora cita três eventos recentes no Brasil que causaram estragos no patrimônio cultural: em 2010, quando chuvas torrenciais destruíram o centro histórico de São Luiz do Paraitinga; em 2011, quando fortes chuvas ameaçaram o centro histórico de Goiânia (GO) e a documentação histórica da UNB (DF); e no ano de 2016, quando um tornado destruiu o Museu de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul.
Para além de planos de gestão de risco, instrumentos mais comuns aplicados por gestores no Brasil, por meio de planos de avaliação e intervenção dos fatores de risco de cada região, tendo em vista a imprevisibilidade, Campos (2017) considera que é necessário identificar as principais vulnerabilidades do patrimônio cultural brasileiro nas diferentes tipologias, visando o perfil de cada bem quanto instrumento de adaptação, mitigação ou resiliência. Seja na preservação dos aspectos paisagísticos, contribuindo na mitigação dos efeitos climáticos, na transmissão do saber-fazer tradicional, auxiliando na construção da resiliência para um futuro mais sustentável, ou ainda, no uso do patrimônio construído e de sítios arqueológicos como parâmetro de adaptação às alterações climáticas, como mecanismo de agrupar e compartilhar informações sobre práticas de monitoramento aplicadas e testadas em contextos distintos.
A partir da área do conhecimento do turismo, Paula (2019) aponta os principais impactos causados pelas mudanças climáticas que podem afetar o setor no Brasil, uma atividade econômica que frequentemente se associa ao patrimônio cultural. Nesse caso, chama-se atenção para a necessidade de refrigeração ou aquecimento de ambientes; erosões costeiras que prejudicam construções próximas; desertificação; incêndios; inundações; perdas de sítios arqueológicos, entre outros aspectos. Paula (2019) relaciona essas circunstâncias ao aumento de temperatura, elevação do nível do mar, baixa precipitação em alguns pontos e alta em outros, além da poluição do ar. Destaca-se ainda que os custos para reparar os sítios históricos ou edificações após os estragos são altos, afetando o turismo de uma região e, consequentemente, até mesmo a viabilidade de conservação de prédios históricos locais.
Paula (2019) indica que algumas agências fiscalizadoras no Brasil estão aptas a averiguar as condições climáticas e seus impactos no meio ambiente. Para além, grande importância tem a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) e o Plano Nacional sobre Mudança do Clima, que conferem diretrizes para a supervisão dos impactos e licenciamentos ambientais, manutenção dos meios naturais, incentivo ao uso de tecnologias que beneficiem o ambiente, entre outros aspectos.
Também como pontua Klug et al. (2016), há organizações brasileiras responsáveis pela observação e orientação quanto a fenômenos relacionados ao processo de mudanças climáticas como: O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), criado por volta de 2011 e ao qual cabe inspecionar e desenvolver maneiras de alarme para evitar desastres naturais e possíveis mortes; O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe/MCTI), que tem por incumbência averiguar os parâmetros de mudanças climáticas no Brasil e o Ministério do Meio Ambiente (MMA), que confere visibilidade ao Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA).
O que se pode inferir desse contexto é que, de algum modo, as políticas de preservação talvez tenham que se alinhar ao aparato normativo e legal relacionado ao meio ambiente e às mudanças climáticas, promovendo o fortalecimento mútuo de ambas as políticas setoriais.
Assim, Klug et al. (2016) enfatizam a participação das entidades governamentais pequenas de cada região, ou seja, os próprios municípios ao desenvolverem políticas estão tendo um alcance maior e mais objetivo na conservação de patrimônio. Isso ocorre pela necessidade de compreender que se torna muito mais fácil encontrar formas de diminuir a vulnerabilidade dessas construções históricas, do que correr atrás dos prejuízos sequentes. Como descrevem os autores:
[...] processo de planejamento urbano participativo, gestão democrática, moradia adequada, serviços de saneamento básico, além de um sistema viário de qualidade e serviços de proteção e defesa civil, são inerentemente mais resilientes à maioria dos impactos das mudanças do clima. (KLUG; MARENGO; LUEDEMANN, 2016, p. 12)
O que foi possível verificar dessa breve revisão de literatura do tema Patrimônio e mudanças climáticas no Brasil é que as pesquisas podem envolver diferentes escalas de abrangência, desde a arquitetônica - do edifício de valor histórico-cultural, até a escala regional, abrangendo a totalidade da cidade. Esse campo envolve múltiplas áreas do conhecimento, ainda que tenhamos encontrado mais estudos das áreas da geografia, arquitetura, urbanismo e antropologia, como já referimos também na bibliografia internacional. Por essa razão, percebe-se que é necessário avançar no campo a partir da transdisciplinaridade, com um diálogo maior entre os campos do saber. Por vezes, há uma recorrência temática, como por exemplo a ênfase nos fenômenos climáticos e nos agentes biológicos, que foram objeto de vários trabalhos. No que tange aos bens edificados, assim como nos estudos internacionais, os bens imóveis tombados, de valor reconhecido pelo Estado, e localizados nos grandes centros urbanos são ainda os mais estudados, porém muitos trabalhos tratam do tema de forma ampla, buscando abranger a totalidade de uma cidade, por exemplo. Como já apontado, há predominância de estudos na região Sudeste, o que denota uma lacuna do conhecimento nas demais regiões do país. Em se tratando de cidades de porte médio, ou pequenas cidades, ou ainda do meio rural, praticamente não encontramos trabalhos que tratam da temática.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base na revisão de literatura sobre o tema do impacto das mudanças climáticas no âmbito patrimonial, entre os anos de 2000 e 2020, na comparação do caso brasileiro com o internacional, foi possível compreender que há pontos de aproximação, por exemplo quanto a considerar as medidas necessárias para gestão do patrimônio frente à necessidade de adaptação às mudanças climáticas: seja na elaboração de planos de gestão, no fomento de pesquisas; na gestão da informação, comunicação e construção de apoio público e político; na avaliação de vulnerabilidade a partir de estratégias de modelagem; adaptação e mitigação e no monitoramento e gestão adaptativa. As pesquisas enfatizam a necessidade de buscar respostas de gestão do patrimônio na esfera nacional e regional, requerendo o fortalecimento das redes existentes e parcerias com outros órgãos e grupos de trabalho que tratam da questão climática.
Outro ponto em comum é o entendimento e a urgência da adoção de ações preventivas e adaptativas aos sítios dotados de bens edificados de valor patrimonial, nas áreas urbanas históricas, estudando métodos para a conciliação da preservação com a necessidade de adaptação das edificações históricas, pela exposição aos fenômenos decorrentes da variabilidade climática, embora essa preocupação, muitas vezes, apresentada nos estudos e relatórios, se detenha a casos de edificações ou sítios tombados em nível nacional ou listados como de excepcional valor pela UNESCO.
Por isso, entende-se que é necessário avançar no campo, principalmente a cobrir regiões não pertencentes aos grandes centros, de pequeno e médio porte, também em contextos rurais. Além disso, há carência de pesquisas nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul do país. Percebemos que os estudos brasileiros abarcam mais frequentemente a problemática também no que tange ao patrimônio imaterial, em comparação com os trabalhos internacionais, com uma concepção mais abrangente de patrimônio, evocando seus valores sociais, e não puramente histórico-artístico. A preservação das culturas tradicionais e a relação da comunidade com o patrimônio cultural foram levantadas por alguns autores brasileiros como importantes agentes de manutenção e conservação do Bem.
Tendo em vista a realidade econômica e sociocultural latino-americana, a atividade turística é apontada, ao mesmo tempo, como importante ao fomento econômico, e como uma ameaça à conservação do patrimônio quando se torna um turismo de massa, predatório.
Alguns trabalhos brasileiros avançaram ao tratar do patrimônio construído em madeira, com foco na particularidade tipológica e construtiva regional, em que foi apontada a ameaça da biodeterioração, tendo em vista o clima tropical do país. Ainda assim, da mesma forma como no campo de estudos europeus, é preciso estudar mais amplamente o patrimônio menor- vernacular, em diferentes contextos e realidades.
Embora este levantamento bibliográfico tenha almejado comparar estudos europeus e brasileiros, entende-se que é importante analisar trabalhos em contextos mais próximos à realidade brasileira, principalmente no contexto latino-americano, tendo em vista que a vulnerabilidade ambiental está diretamente relacionada com a social.
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