DOSSIÊ

Narrativas savantes construindo os territórios dos povos tradicionais no semiárido alagoano1

Savant narratives building the territory of the traditional people in the semi-arid region from the alagoas state

Maria Ester Ferreira da Silva Viegas
Univ. Federal de Alagoas, Brasil

Percursos

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN-e: 1984-7246

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 22, núm. 48, 2021

revistapercursos.faed@udesc.br

Recepção: 30 Outubro 2020

Aprovação: 25 Fevereiro 2021



DOI: https://doi.org/10.5965/1984724622482021128

Resumo: A discussão em questão tem como referência obrigatória O narrador, de Walter Benjamin e as narrativas orais que colaboraram na construção dos territórios dos povos indígenas Xukuru-Kariri, na cidade de Palmeira dos Índios (AL). Benjamim busca o valor da história que anda de boca em boca resgatando a primazia da alteridade no processo de constituição da eticidade, procurando o lugar fundamental que o ser humano deve ocupar num tempo histórico que se caracteriza pela crescente valorização das relações fundadas na alienação e reificação dos indivíduos. O exercício de cultivar a memória dentre os povos tradicionais agrega principalmente a função de educar, além de aglutinar informações, experiências, tempos pretéritos que, quando rebuscados, deram origem à recuperação do antigo território (outrora ocupado), também usado nos exercícios das atividades cotidianas, dos rituais funerários, das correrias contra os invasores, contra a seca, contra a fome. Falar em narrativa histórica e memória dos esquecidos é invocar a presença de um passado que não pode ser retomado em sua totalidade, é apelar pelo encontro face a face com o Outro que se constitui como um ser eminentemente distinto do eu. O ressurgimento da narrativa histórica e da memória dos esquecidos passa necessariamente pela escuta do passado apresentado pelo Outro. No decorrer deste texto, vamos apresentar a face deste Outro, que tem sido esquecido, no contexto de uma sociedade que valoriza apenas o tempo presente e o Eu cartesiano.

Palavras-chave: Território, Memória, Índios do Nordeste, Geografia.

Abstract: The current discussion has as mandatory reference Walter Benjamin as the Narrator and the oral narratives that collaborate in constructing Xukuru-Kariri indigenous people's territory in Palmeira dos Índios (AL). Benjamin seeks the value in the history that orally lives to rescue the alterity's importance in the ethics constitution process, seeking the real place that the human being must occupy in a historical period characterized by the growing valorization of relations founded on the alienation and reification of individuals. The exercise of cultivating the memory among the traditional people aggregates mainly the function of educating, besides agglutinating information, experiences, past times which when rummaged gave origin to the recuperation of the old territory (once occupied), also used in the exercises from everyday tasks, from funeral rituals, from runaways from invaders, from drought, from hunger. Talking in a historical narrative and memory of the forgotten is the invocation of a past, which one cannot retake in its totality; it is to appeal to the meetup face to face with the other, which constitutes itself as the eminently distinct being of the Self. It is the resurgence of the historical narrative and the forgotten is memory, which passes necessarily by hearing the past presented by the other. Throughout this text, we will present this Other's face, forgotten in the context of a society that values the present time and the cartesian Self solely.

Keywords: Territory, Memory, Native indians in the Northeast region from Brazil, Geography.

INTRODUÇÃO

Contar uma história sempre foi a arte de contá-la de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. (BENJAMIM, 1996, p. 201)

Dentro do processo de reconhecimento étnico da Fundação Nacional do Índio (Funai), as narrativas funcionam como um elemento aglutinador da unidade grupal relacionada a uma origem comum baseada nos laços de parentesco. A reconstrução do antigo território do povo Xukuru-Kariri em Palmeira dos Índios; dos quilombolas da Tabacaria em Palmeira dos Índios; dos povos quilombolas da Vila Pau d’Arco e Carrasco em Arapiraca; dos povos indígenas Karapotó em São Sebastião; dos Kariri Xocós em Porto Real do Colégio; os Aconã, de Traipu; Geripancó, Karuazú e Katoquim, de Pariconha; Kalankó, de Água Branca; Karapotó, de São Sebastião; Koiupanká, de Inhapi; Tingui-Botó, de Feira Grande; e Wassu-Cocal, de Joaquim Gomes; e de demais povos quilombolas e indígenas que não foram citados, passaram necessariamente pela memória dos mais velhos. Esses velhos que exatamente vivem à margem de uma sociedade capitalista, na qual só existe aquele que produz. O presente artigo procura discutir a importância das narrativas como um instrumento na reconstrução e recuperação dos territórios dos povos tradicionais no semiárido alagoano. O recorte metodológico será feito na abordagem das narrativas savantes do povo Xukuru-Kariri da cidade de Palmeira dos Índios.

Dentre os denominados povos tradicionais2, por diferentes motivos, a capacidade de ouvir e de escutar o outro ainda resiste. A narrativa é exercida nas diferentes atividades; enquanto se prepara o roçado, enquanto se colhem na mata frutas e sementes para o artesanato, quando estão sentados no terreiro da casa fabricando as peças de artesanato. É assim que, durante a fabricação das peças, o artesão da vida se une ao artesão da fala se constituindo na figura do narrador, tão esquecida nos tempos presentes em que a tecnologia destrói o rico celeiro da cultura oral e em que “ouvir” o outro é essencial para que assim se mantenham vivas as tradições, as histórias do tempo passado. Essa é, de certa maneira, uma explicação do presente que, por ser presente, não exclui o passado, mas antes tenta identificá-lo no presente: se foi uma boa experiência, deixar-se repetir; e se não, deve-se refazê-la para não ter que sofrer outra vez. O exercício de cultivar a memória dentre os povos tradicionais agrega principalmente a função de educar, além de aglutinar informações, experiências, tempos pretéritos que, quando rebuscados, dão origem à recuperação do antigo território, outrora ocupado, usado nos exercícios das atividades cotidianas, dos rituais funerários, das correrias contra os invasores, contra a seca, contra a fome.

Quando se resolve trabalhar na intenção de reconstruir um acontecimento histórico que depende da relação da memória com o esquecimento e do viés que essa reconstrução toma a partir da problematização cujo lugar é o presente, a interpretação se torna, segundo Ariés, “um ensaio de reconstrução histórica relacionado a um problema inicial, a uma diferença entre o ontem e o hoje, que estava na origem da pesquisa e continua a orientá-la” (ARIÉS, 1989, p. 237). Diante dessa afirmativa, conclui-se que é com o olhar no presente que a reconstrução histórica do antigo território do povo XukuruKariri (tomada como recorte metodológico e espacial no espaço teórico que este artigo permite) é realizada, sendo também o presente o lugar da construção da problematização que orienta a reconstrução histórica e que a história não é um desenrolar contínuo dos fatos.

Os mais velhos são os guardiões da lembrança, como afirma Ecléa Bosi (2001). São eles que, dentro das comunidades mais simples, testificam um tempo que explica e constitui o hoje, muitas vezes não compreendido por muitos, porque não ouviram a outra história, a história dos esquecidos, oprimidos, a história silenciada. Eles vieram antes. Têm a experiência, têm o repouso. O adulto e a criança em suas atividades não se ocupam do passado; para eles a memória é fuga, arte, lazer, contemplação. Para o velho homem que já viveu, há vida ao lembrar o passado (SILVA, 2010). Ele não descansa, mas antes trabalha na função própria do lembrar. Trabalha para ser memória da família, do grupo, da instituição da sociedade (BOSI, 2001). Uma conceituação importante é a de memória coletiva, que é elaborada no interior e na conjunção de múltiplos agrupamentos que apenas retêm do passado o que convêm à sua representação do presente. Essa perspectiva permite perceber na história os momentos do “não dito”, dos silenciamentos, dos esquecimentos necessários. Pode também “potencializar os aspectos de durabilidade e de continuidade de uma memória comum de funções positivas de coesão social” (CARDOSO, 2001, p. 26).

AS NARRATIVAS SILENCIADAS E A RECONSTRUÇÃO TERRITORIAL

A memória social habita no seio de sua comunidade. Por meio dos escritos de Benjamim em O narrador, pode-se assinalar que existe hoje uma inegável pobreza no campo das relações comunitárias. A atitude positiva de Benjamin em relação à narrativa aparece na sua obra, na medida em que mostra a distinção entre ela e a informação. A narrativa distingue-se da informação, porque, afirma Benjamim, “não se reduz ao instante em que era nova”, muito menos pretende ser uma explicação dos acontecimentos. A narrativa é polissêmica, não se exaure no momento em que é contada, mas conserva “coesa a sua força e é capaz de desdobramento mesmo depois de passado muito tempo” (BENJAMIM, 1996, p. 204).

A narrativa é comparada por Benjamim “aos grãos de semente que, durante milênios hermeticamente fechados nas câmaras das pirâmides, conservaram até hoje sua força de germinação” (BENJAMIM, 1996, p. 204). A narrativa guarda dentro de si uma capacidade fantástica de renovação; é uma obra aberta que pode ser interpretada de diferentes formas. A narrativa tende para o fim, porque, afirma Benjamim, “o lado épico da verdade, a sabedoria, está agonizando” (BENJAMIM, 1996, p. 201). A ação moral do conselho se evapora com a emergência do modo de vida burguês e com a guerra imperialista entre os povos que põem fim ao mundo da experiência, Benjamim alerta:

Nada seria mais tolo que ver nele um ‘sintoma de decadência’, ou uma ‘característica moderna’, na verdade esse processo que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo é um processo quem vem de longe, tendo se desenvolvido com a evolução das forças produtivas. (BENJAMIM, 1996, p. 201)

Essa pobreza de experiências é resultante do advento da sociedade industrial, na qual o predomínio da linguagem instrumental sobre as experiências comunicáveis contribuiu para a morte da capacidade de os indivíduos ouvirem e contarem a sua própria história. Aliada ao aspecto do fim da narrativa, está também a intenção da cultura contemporânea em estabelecer o primado do presente em relação ao passado, de maneira que a vivência se sobrepõe à experiência, em um contexto de uma cultura centrada no presente. No entanto, a despeito de todas essas considerações, a narrativa subsiste e leva, no caso do povo Xukuru-Kariri, à reconfiguração de um passado esquecido que não é exatamente aquele passado tal como foi e que, ao ressurgir no presente é outro passado, que traz na mediação do simbólico os intervalos silenciosos de uma história negada.

Nesse sentido, o exercício da narrativa é o exercício de voltar ao passado. Não se narra o presente; ele existe por si só. A narrativa é o exercício da memória. Onde esta memória habita? “Habita na lembrança”, responde um morador da comunidade indígena. Essa capacidade de tecer o presente com os fios do passado é exemplificada na sua pessoa, quando entra na mata e começa a identificar as diferentes árvores que estão no caminho que leva até o açude, hoje lugar de recreação e contemplação daqueles que vivem ali e também dos que visitam. Antes, o açude era a nascente que abastecia de água a cidade de Palmeira dos Índios. Já dentro da mata, a moradora passa a identificar as árvores que dão frutos: bananeiras, pés de cajus, acerola, manga, jenipapo; as que dão sementes para o artesanato: sapucaia, periquiti, olho de pombo, olho de cigana, santa Maria, olho de boi, taquarinha, gravatá; as que servem de remédio: aroeira (antibiótico para coceira, sinusite, banhos para mulher), sapé (chá para icterícia), camará (dor de barriga) etc.

Os povos indígenas por sua própria condição histórica são guardiões da narrativa, pois a condição de excluídos do processo de inclusão social, por meio da ideia de constituição do Estado-nação, levou-os a exercitar a narrativa como uma forma de aprendizado e fixação das experiências, sejam elas individuais ou grupais. Por força da complexa situação em relação à posse de suas terras, os índios do Nordeste têm como eixo central de suas narrativas a problemática do território, seja na luta pela reconquista da terra, seja pela sabedoria adquirida com a natureza. As narrativas, tanto as míticas quanto as históricas, nos falam do grupo e de suas tentativas na organização do seu povo em torno da terra.

Existe também a narrativa do sagrado. Esta não pode ser revelada para as pessoas não índias. É o caso do ritual do Ouricuri3, momento religioso do povo Xukuru-Kariri, no qual, lá dentro no coração da mata, praticam os seus rituais numa perfeita comunhão com seus ancestrais. Até as crianças bem pequenas sabem que o que acontece na mata não pode ser falado a ninguém. Essa regra não está escrita em lugar algum, mas subsiste na força da narrativa, pois elas servem, na verdade, às mais variadas finalidades, porque “clara ou oculta, ela carrega consigo sua utilidade. Esta pode consistir ora numa lição de moral, ora numa indicação prática, ora num ditado ou norma de vida” (BENJAMIM, 1983, p. 59).

Nessa perspectiva que faz do presente o lugar da reconstrução de uma problematização, Cardoso (2001) nos aponta que “esta problematização deve ser construída a partir da diferença entre temporalidades históricas, produzindo o questionamento que orienta esta reconstrução” (CARDOSO, 2001, p. 16). O que nos permite colocar a problemática do reconhecimento do antigo território do povo XukuruKariri como um exercício claro dessa possibilidade de as narrativas, silenciadas pelo poder do capital no processo de construção do território nacional, serem agora reveladas dentro de uma perspectiva benjaminiana, segundo a qual a relação entre memória e história é problematizada mais diretamente.

O acontecimento histórico pode ser reconstruído a partir da noção de “pontos de concentração”, que se constituem em atualizações temporais (CARDOSO, 2001, p. 20). Em Benjamim, “a história é objeto de uma construção, cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras” (BENJAMIM, 1985, p. 229). Para Benjamim, o surgimento do passado no presente transforma este passado e este presente e, tanto um quanto o outro, são objetos de construção para o historiador, quando retirados do fluxo desse tempo vazio e homogêneo. Na esteira dessa análise, a Geografia se imbrica na tentativa de entender que esses “lugares de memória” se realizam pelo descongelamento de um espaço inominado; lugares que antes eram caracterizados por um “passado anacrônico” e hoje se constituem como “lugares de luta e resistência”.

No campo religioso, os Xukuru-Kariri preservam o culto sagrado do Ouricuri e dançam o Toré. O que acontece no ritual não é permitido revelar. De acordo com o relatório antropológico emitido pela antropóloga Siglia Zambrotti Dória4, o universo mágico-religioso do grupo Xukuru-Kariri, apesar de apresentar um elevado grau de integração na sociedade envolvente, pratica, como a grande maioria dos povos indígenas do Nordeste, o toré, antes apenas atuado pelos praiás ou iniciados nas regiões nas quais se originou, passou a representar um dos critérios de indianidade de cada grupo nordestino e atualmente é dançado como uma dança de terreiro. Seus ritos religiosos são principalmente rituais de cura que sintetizam o conhecimento que têm de plantas e animais, assim como a mediação de seres sobrenaturais que habitam o território é essencial para o sucesso de algum empreendimento prático, como a caça, por exemplo.

Esses índios retomam algumas tradições dos antigos, mas o que se percebe é que existe uma grande influência da religião católica, um forte sincretismo religioso no grupo tanto pelo Catolicismo, quanto por culto de origem afro, o que pode ser exemplificado pela Fazenda Canto, onde a presença de outras religiões é muito forte.

O grupo Xukuru-Kariri de Palmeira dos Índios, em decorrência do processo de miscigenação imposto pelo colonizador tem, atualmente, descaracterizados seus hábitos e costumes tradicionais, fato que ocorreu praticamente com todos os índios do Nordeste brasileiro, não significando, portanto, que tenham sofrido processo de assimilação da sociedade envolvente. Apesar de perderem sua cultura ancestral, conservam traços dela, cultuando novos valores de um universo próprio que os caracteriza como índios.

O que ficou evidenciado é que muitos dos representantes da sociedade envolvente adotam pejorativamente a palavra caboclo, no sentido de discriminar os índios miscigenados, principalmente no Nordeste brasileiro, alegando que “caboclo” não é índio, enfatizando o caráter etnocêntrico e a postura preconceituosa assumida pelos não índios na relação mantida com os povos indígenas.

Edwin Reesink afirma:

O resultado do processo das imposições da sociedade envolvente e as resistências das sociedades indígenas, pode ser observado particularmente nos grupos indígenas no Nordeste. Para o entendimento do processo há duas categorias chaves: índio e caboclo. A importância das duas categorias resulta de um fenômeno recentemente observado, ou seja, que os “caboclos” estão assumindo cada vez mais a identidade “índios” como identidade necessária para a garantia dos seus direitos legais [...]. (REESINK, 1983, p. 121)

A categoria cabocla expressa o índio aculturado e miscigenado que, talvez por ter se submetido à vontade dos poderosos ao longo do processo de aculturação, tenha sofrido menor perseguição do que aqueles mais resistentes. Até pouco tempo, e mesmo em alguns casos ainda hoje, os índios aceitaram a categoria caboclo como autodefesa. Mesmo assim, o caboclo não deixa de ser considerado “descendente de índio”, e sujeito ao preconceito. (REESINK, 1983, p. 130)

Apesar de pertencerem a uma categoria mais geral, que os remete a uma identificação com os demais índios brasileiros, fazem parte de uma sociedade de classes que no âmbito regional os caracteriza como camponeses ou proletários rurais. Nem por isso deixam de ser índios. São índios que lutam cotidianamente contra os valores impostos pelo sistema capitalista, em que para o capitalista a terra é objeto de lucro e, para os povos indígenas, é a condição única de sobrevivência, é terra de uso, terra de trabalho e não de comércio. Todorov, a respeito da perda de alguns elementos culturais, afirma que “o indivíduo não vive uma tragédia ao perder a cultura de origem quando adquire outra; constitui nossa humanidade o fato de ter uma língua, mas não o de ter determinada língua” (TODOROV, 1999, p. 25).

Em 2004, os Xukuru-Kariri estavam alojados em seis pontos estratégicos: Mata da Cafurna, Amaro, Fazenda Canto, Capela, Boqueirão e Coité (ver Figura 1). No processo de identificação do antigo território para elaboração do memorial indígena das terras dos seus ancestrais, a narrativa funcionou como argumento da presença dos povos indígenas na cidade de Palmeira dos Índios. É claro que junto à memória e à narrativa dos velhos aliaram-se os diferentes sítios arqueológicos encontrados e a documentação existente, que serviram para corroborar o discurso dos antigos sobre a ocupação das terras indígenas pelo branco invasor, legitimando assim todo um processo de memória grupal guardada a ferro e fogo na lembrança daqueles que não sabiam que um dia as suas memórias serviriam de instrumento de libertação de seu povo.

Localização das aldeias do povo XucuruKariri em Palmeira dos Índios Fonte Elaborado pela autora em trabalho de campo 2004
Figura 1
Localização das aldeias do povo XucuruKariri em Palmeira dos Índios Fonte Elaborado pela autora em trabalho de campo 2004
Fonte: Elaborado pela autora em trabalho de campo (2004).

Segundo Viegas (2019), atualmente o povo Xukuru-Kariri está alojado em oito pontos estratégicos: Mata da Cafurna, Amaro, Fazenda Canto, Capela, Boqueirão, Macacos, Coité e Aldeia Monte Alegre. Esse ponto da Aldeia Monte Alegre foi resultante do movimento dos índios desaldeados liderados pelo então índio Chiquinho Xukuru, que reacendeu a questão, tanto localmente quanto nacionalmente, fazendo com que a Funai retomasse a demarcação das terras do povo Xukuru-Kariri que parecia estar esquecida dentro da pesada e burocratizada máquina do Estado brasileiro. Silva (2019) afirma que as aldeias continuam se levantando, agora são dez aldeias, oito foram reconhecidas: Fazenda Canto, Boqueirão, Serra do Capela, Coité, Cafurna de Baixo, Serra do Amaro, Riacho Fundo e Mata da Cafurna e duas em processo de reconquista e reconhecimento: Fazenda Jarra (ou sítio Jarra) e Fazenda Monte Alegre.

A construção da atual territorialidade Xukuru-Kariri sucedeu-se à semelhança dos demais povos indígenas, no confronto com a colonização do Brasil e, posteriormente, com a construção do chamado Estado-nação brasileiro. A própria ocupação da hoje cidade de Palmeira dos Índios deu-se como consequência do processo de (des) territorialização dos povos Xukuru (Pernambuco) e Kariri (Sergipe), e de outros índios oriundos do Terço de Domingos Jorge Velho em expedição de extermínio ao Quilombo dos Palmares em terras alagoanas. O depoimento a seguir expressa a representação que os Xukuru-Kariri fazem desses deslocamentos forçados pela violência colonial: “Antes isto aqui tudo era nosso, desde há muitos tempos atrás, mais aí chegou o homem branco e empurrou nóis e hoje nóis vivemos assim, né? Tudo apertado, mas confiante de retomar nossas terras” (SILVA, 2004, p. 92).

O território ocupado por eles está muito aquém da área que por direito histórico lhes pertence. Na Figura 2, o espaço coberto de cor lilás é o que denominei de acantonamento, numa referência ao emprensamento citado no parágrafo acima. A forma hexagonal em verde é, segundo a memória deles, o território ao qual eles têm direito. Os índios Xukuru-Kariri estão espalhados por diversos pontos da cidade de Palmeira dos Índios0. Os pontos mais frequentados pela população local e pelos turistas e alguns poucos estudiosos que chegam até a cidade são: a Mata da Cafurna e a Fazenda Canto (ver Figura 1).

Acantonamento do povo XucuruKariri nas serras da cidade de Palmeira dos Índios Fonte Elaborado pela autora em trabalho de campo 2004
Figura 2
Acantonamento do povo XucuruKariri nas serras da cidade de Palmeira dos Índios Fonte Elaborado pela autora em trabalho de campo 2004
Fonte: Elaborado pela autora em trabalho de campo (2004)

A Cafurna (ver Figura 3), como é comumente chamada, localiza-se fora da cidade, distando cerca de oito quilômetros do centro de Palmeira dos Índios. Em termos de acessibilidade, apresenta uma situação melhor do que a Fazenda Canto, haja vista que existe uma oferta maior de transporte alternativo. O acesso à Fazenda Canto é realizado por transporte alternativo (moto-táxi) que cobra um preço extorsivo por viagem: R$ 5,00 em dias de verão, e R$ 10,00 no inverno (valores de 2004). Para a Cafurna, existem as chamadas caminhonetes somente no primeiro horário; depois, a única alternativa é esperar pelo caminhão dos estudantes, se houver lugar (o que dificilmente acontece). Caso contrário, existe a opção da caminhada descendo a Serra do Candará (682m).

Cartograma da aldeia da mata da Cafurna Fonte Elaborado pela autora 2004
Figura 3
Cartograma da aldeia da mata da Cafurna Fonte Elaborado pela autora 2004
Fonte: Elaborado pela autora (2004).

Aqueles que têm uma rotina diária de exercícios gastarão apenas duas horas por um caminho de terra vermelha batida, muito arborizado, com um cheiro doce de frutas no ar e um vento seco e quente que dá a impressão de que a terra está parada, de que não existe mais movimento. Outra opção é a descida pelo Alto do Cruzeiro, a qual é muito íngreme e o tempo gasto no percurso é de 30 a 45 minutos. A descida pelo Alto do Cruzeiro vai dar exatamente ao lado da Catedral da Cidade que também está incluída na área reclamada pelos índios.

Em visitas regulares à Mata da Cafurna e à Fazenda Canto, foi observado que a atividade agrícola predomina no grupo, sendo mandioca, milho, feijão e verduras os produtos normalmente cultivados. Os dois primeiros são a base de sua dieta. O gado encontrado na área não chega a caracterizar a prática de uma atividade voltada para a pecuária, pois somente uma ou duas famílias possuem em média uma vaca, um bezerro ou um boi. O artesanato que pode ser encontrado entre os Xukuru-Kariri é fraco, predominando a confecção de colares, pulseiras, brincos, anéis, arcos e flexas, miniaturas de ocas, cachimbos, tacapes, etc., com matéria-prima extraída da própria mata, como: sementes, ossos, madeira, frutos, penas de pavão e de outras aves. Tais produtos não estão incluídos entre os comercializáveis, que integram a feira semanal, realizada aos sábados em Palmeira dos Índios. Nela, os Xukuru-Kariri vendem principalmente verduras e legumes. A integração da comunidade indígena com a população regional é intensa, podendo-se observar o mesmo com relação aos Fulni-ô, grupo indígena com o qual os Xukuru-Kariri mantêm relacionamento mais estreito.

Todo o grupo Xukuru-Kariri habitava a Fazenda Canto em Palmeira dos Índios (AL). Com o surgimento de divergências internas e uma série de conflitos entre membros da família Celestino, uma parte da comunidade, com 15 famílias, foi transferida para a Mata da Cafurna (1985), área florestal preservada ecologicamente e onde se encontra o Ouricuri, local sagrado, reservado ao culto religioso.

A narrativa e documentos escritos apontam que grande parte das terras da cidade de Palmeira dos Índios pertence aos índios Xukuru-Kariri, que sempre foram calados e espoliados pela violência do processo de expansão do capitalismo e que hoje, graças à memória dos velhos, permite a constituição de uma outra história. A narrativa como recordação de outros tempos - tempos de liberdade, de fome, de sede, de seca e de perambulação pelas franjas das cidades e de trabalho mal pago nas fazendas locais - permite um outro saber sobre o território em disputa.

Nesse aspecto, convém chamar à lembrança as palavras do pensador alemão da escola de Frankfurt, Walter Benjamim, acerca da memória no seu texto O narrador, em que ele invoca a primazia da oralidade na comunidade e procura resgatar o valor da história que anda de boca em boca, fazendo assim emergir a história silenciada em meio ao processo de reificação que marca a sociedade capitalista.

Hoje, a forma mais visível pela qual se dá essa nova visão é a política de demarcação das terras indígenas. O processo demarcatório levou o povo Xukuru-Kariri de Palmeira dos Índios a uma intensa participação e, paralelamente, a uma (re) afirmação étnica que, durante séculos de contato com a sociedade envolvente, estava em um processo de negação, haja vista a grande violência impetrada pelo Estado sobre os povos indígenas para o esbulho de suas terras. Ao longo do processo de disputa pela terra, nos momentos de tensão e conflito, emergiram várias representações sobre terra, cidadania, nacionalidade.

A situação de disputa colocou às claras o conflito latente entre os Xukuru-Kariri e a sociedade palmeirense. As diferenças cresceram. Não ficaram dúvidas de que a fronteiras étnicas existiam e que a identidade Xukuru-Kariri é uma identidade territorial, considerando a importância que o território assume no processo de identificação XukuruKariri. Assim, o território é sinônimo de terra para os Xukuru-Kariri e ela tem um referencial cultural muito forte. É da terra que o povo Xukuru-Kariri retira seus elementos culturais, de onde extrai os elementos de sua etnicidade, que vão sendo reconstruídos permanentemente e que servem para a sedimentação de uma categoria étnica que se identifica como índio e é identificado por outros como se constituísse uma categoria diferençável de outras categorias do mesmo tipo (BARTH, 2011)

A legitimidade do ser índio é dada pelo Outro. A garantia de sua identidade é a sua comunidade, o seu grupo, o seu povo: “Todos na minha aldeia me conhecem. Se você chegar lá e perguntar lá quem eu sou, todos vão dizer: É Maninha, índia Xukuru-Kariri. Eu cresci na aldeia. Todos sabem quem eu sou!” (XUCURU, 2004).

Por esse caminho, Barth (2011) alerta que a questão principal na identificação de um grupo étnico está relacionada à fronteira étnica que o define. Em um primeiro momento, a sua identidade é garantida pela existência do Outro que o aceita; num segundo momento, ela é reforçada por aquele que o excluí. Estas fronteiras são resultantes de uma história de profundo confronto que traz consigo uma série de transformações, nas quais o fenômeno da invisibilidade étnica se fez necessário para que, assim, pudessem sobreviver fisicamente enquanto aguardavam um “tempo melhor”, no qual as forças da morte não acarretassem, além da morte étnica, a morte física. E é nessas fronteiras que toda a contradição do capitalismo se faz visível e na superação dessas contradições encontra-se o povo indígena Xukuru-Kariri que, após uma história de profundo confronto, traz consigo uma série de transformações internas à organização, relativas à sua cultura originária e às tradições, mas que não acarretaram a perda de identidade, pois mesmo tendo adotado a maior parte dos costumes em geral da sociedade envolvente, eles se veem como índios pertencentes ao povo Xukuru-Kariri.

A capacidade e a força da narrativa estão testificadas no documento5 de identificação de demarcação. O Grupo de Trabalho (GT) juntamente às pessoas mais velhas da comunidade, conhecedoras de todo o território indígena, que passaram a estudar os limites de suas terras (ainda em mãos de posseiros).

O trabalho de identificação foi acompanhado pelos índios, com visita de reconhecimento da área, cuja figura assemelha-se ao formato de um polígono de 12 lados. A distância de cada vértice para o canto da figura é de uma légua. Nota-se também que o centro desta figura está muito próximo da Igreja Matriz da cidade de Palmeira dos Índios, confirmando o que diz a doação da terra feita aos índios, tendo como peão central a Igreja Matriz de Palmeira dos Índios. Na conclusão dos trabalhos, pode-se verificar que os territórios tradicionais desses índios estão gravados na memória tribal, passados de geração em geração, e nas informações das pessoas não índias, residentes nas localidades vizinhas, que confirmaram ser essas terras pertencentes aos índios.

Na identificação dos pontos tradicionais do território Xukuru-Kariri, nem sempre foi possível acompanhar o perímetro delimitado e apresentado no mapa e memorial descritivo da área, tendo em vista as dificuldades encontradas, tais como falta de estradas, matas fechadas e região de difícil acesso. Esses pontos identificados estão destacados numa planta de parte do município de Palmeira dos Índios.

A descrição dos 12 pontos de localizações geográficas (ver Figura 4) para o estabelecimento da demarcação das suas terras é resultado da força intrínseca da narrativa, na qual cada ponto é identificado como se fosse uma volta ao passado, passado que não vivenciou materialmente, mas por meio da história contada pelos antigos que se faz presente e é identificada como se vivenciada fosse, pelos que ali estão presentes.

Mapa da área do território tradicional do povo Xukuru-Kariri de Palmeira dos Índios - Alagoas
Figura 4
Mapa da área do território tradicional do povo Xukuru-Kariri de Palmeira dos Índios - Alagoas
Fonte: Elaborado pela autora em pesquisa documental (2004).

Onde se lê:

Ponto nº 01. Salgado ou Salgadinho - Saindo da Fazenda Canto e seguindo pela Estrada Velha que vai para Quebrangulo. Nesse local, existe vestígio de um pau-ferro que foi derrubado. Essa árvore caída encontra-se do lado esquerdo da referida estrada que vai para Quebrangulo.

Ponto nº 02. Açude Buenos Aires - Seguindo a estrada de Quebrangulo na direção do local denominado Buenos Aires, até chegar ao açude desse mesmo nome.

Ponto nº 03. Panelas do Vital - Deslocando-se do Açude de Buenos Aires, cruzando a rodagem e acompanhando a estrada que vai para Coruripe e Poço da Onça até chegar na localidade conhecida como Panelas do Vital. Lá, quase à beira da estrada dentro da propriedade ocupada pelo Sr. Noel, encontra-se um marco, um pau-ferro que foi cortado, restando apenas, uma parte do seu tronco.

Ponto nº 04. Lagoa do Moreira - Da Panela do Vital, afastando-se na direção do Campo da Aviação da cidade de Palmeira, nas imediações das localidades de Igaci, Lagoa Canafístula e Bem-te-vi, segue estrada passando por um grupo escolar chamado Ana Emília Rocha. Segundo relato indígena, neste local era a aldeia indígena da família Pedro. Do grupo escolar, acompanha o caminho da direita até um povoado denominado Moreira. Nesse lugar, há uma lagoa com o mesmo nome, que seca no verão. Fora dito pelos índios que na Lagoa do Moreira moravam índios daquela região, também seus parentes.

Ponto nº 05. Alto Vermelho - Do trecho entre a Lagoa do Moreira e o Alto Vermelho, encontra-se o Sítio Guedes, que pertence ao Major Joaquim da Rocha Guedes e Ana Rocha Guedes, sua esposa. Nessas proximidades, encontram-se as lagoas do Uruçu e do Rancho. No caminho da Lagoa do Rancho, encontra-se a Lagoa de Pedra, que conforme informações indígenas e também do Museu Xukuru de Palmeira, foi encontrada em Sítio Arqueológico. Passando pela Ponte do Rio Guedes, chega-se até o Alto Vermelho. Nesse local, à beira da estrada, há vestígios de que existe um pau d’Arco, derrubado há algum tempo, restando apenas uma saliência no terreno, dando a ideia de um buraco, hoje coberto por capim. Essa informação foi confirmada por família não indígena, residente no lugar.

Ponto nº 06. Para ter acesso ao local, foi necessário passar pela Lagoa do Rancho, Lagoa do Veado, um povoado conhecido como Canafístula de Cima e um posto fiscal do lado direito da estrada. Os índios não têm lembrança de marco indígena, apesar de serem terras indígenas.

Ponto nº 07. Pedra do Ugo ou Riacho Fundo - Para ter acesso ao Riacho Fundo, segue-se por Palmeira de Fora. Essa localidade encontra-se próximo de Canafístula. Perto dali, na Serra do Boqueirão, os índios apanhavam o barro para confeccionar potes e panelas. Hoje no Povoado Riacho Fundo, as mulheres daquele lugar são louceiras, fazem panelas e potes de barro.

Ponto nº 08. Lagoa da Teresa - Para se chegar à Lagoa da Teresa, o acesso é pela Serra do Amaro, passando pela Serra do Caranguejo (esta última foi um terreiro indígena, local de danças) até chegar a um pau-ferro (marco indígena), localizado nas proximidades da Lagoa da Teresa. Dali, seguindo as informações dos índios, fomos até um lugar denominado Amaro. Ali em frente existe uma venda e estão as casas do Sr. Paulo e do Sr. Elísio. Por trás das casas, encontramos um pau-ferro derrubado em parte.

Ponto nº 09. Pedra Montada - Entre a Lagoa da Tereza e as imediações da Pedra Montada, localizava-se a Serra do Goiti, Sítio Arqueológico onde foram feitas algumas escavações. Entre elas, uma executada por Carlos Estevão em 1938, e outra recente, com a participação de uma equipe da Funai e técnicos da UFPE, na qual foram descobertas urnas funerárias (igaçabas) e ossos humanos. Ali era um cemitério indígena. Além da Serra do Goiti, a Serra do Candará, também denominada Serra do Macaco, é sítio arqueológico e foi outro cemitério indígena. Na Serra do Candará, moravam índios das famílias Xukuru que vieram de Pernambuco. Na chamada Serra do Macaco, viviam os familiares do pajé Miguel Celestino. Lá estava situado o terreiro de dança Maria Redonda. Nas proximidades da Pedra Grande na Serra do Candará, há mais de um Sítio Arqueológico, de onde já foram desenterrados objetos que pertencem aos índios daquela região. Encontra-se nesse trecho também a chamada Serra do Leitão, que foi moradia do Sr. Antônio Leitão. Hoje, neste local, habitam seus familiares que são índios.

Ponto nº 10. Baixa da Areia - Da Pedra Montada se percorreu uma estrada de difícil acesso até chegarmos à Baixa da Areia, até o Ponto 01, onde se encerra a identificação da área.

Ponto nº 11. Limite norte da Fazenda Canto.

Ponto nº 12. Limite leste da Fazenda Canto.

De acordo com o Processo 015/89 (página 56), diante da conclusão da identificação da área indígena de Palmeira dos Índios existem duas propostas em relação às terras identificadas. A primeira é defendida por Manuel Celestino da Silva (líder da Fazenda Canto) e a segunda defendida por Antonio Celestino da Silva (Mata da Cafurna). Com relação ao primeiro grupo, está proposto que toda área delimitada se torne Patrimônio Indígena e que a prefeitura não mais receba todo o Imposto Territorial daquelas propriedades inseridas na Área Indígena (AI), que passaria a ser dos indígenas. Existe, entretanto, uma proposta (que é defendida por Antonio Celestino), de acordo com o órgão responsável (Funai) e as entidades competentes, na qual uma percentagem dessa verba seria então transferida para os indígenas. Alegam que situação semelhante acontece com a cidade de Águas Belas em Pernambuco, onde as pessoas não indígenas, que por ventura ultrapassaram os limites concordados entre eles e aquela cidade para fixarem moradia, pagam aos Fulni-ô “o chão da casa”, como é conhecido o acordo existente naquela localidade.

A comunidade indígena Xukuru-Kariri tem interesse em desapropriar as propriedades que ultrapassarem 20 hectares, após ser confirmado o seu direito à terra; a cidade de Palmeira dos Índios deverá ficar intocável, podendo se expandir. Pretendem que sejam desapropriadas as glebas que se limitam com a Mata da Cafurna e a Fazenda Canto já regularizada. Com relação a algumas ocupações de lotes localizados no meio urbano, que fazem parte do território indígena, eles lhes pagariam o imposto territorial, donos da terra por direito. Os lotes inferiores a dez tarefas de terra não pagariam nem aos indígenas, nem à prefeitura da cidade de Palmeira dos Índios. Por meio de um acordo entre a comunidade indígena e a Funai, a administração dos bens da comunidade por parte da fundação seria feita de maneira que houvesse uma melhoria na qualidade de vida dos indígenas, aliviando a dependência total deles em relação à Funai (essas considerações foram levantadas à época da pesquisa de campo em 2004).

Atualmente, mediante a demarcação de suas terras, os povos Xukuru-Kariri reafirmam a sua identidade negada e destroem não só o discurso da historiografia oficial como também a geografia dos professores, a geografia comprometida com os poderes constituídos; a geografia tradicional e positivista que entende o espaço como sinônimo de área e que servia apenas para localizar os fatos.

No texto O Narrador, Walter Benjamim (1996) anuncia a morte da atividade de narrar ensejada pela emergência da modernidade. A causa principal da decadência da narrativa, segundo o autor, está associada especialmente à desvalorização da experiência (Erfahrung). Na vida moderna, ela está representada pelo mundo fabril e pelo crescimento das cidades, colaborando para a morte de um estilo de vida pautado nas relações artesanais, em que os homens teciam e fiavam sem olhar para o relógio. O mundo da oralidade que sustentava o mundo feudal é substituído pelo da escrita; a experiência é substituída pela vivência. Apesar da ofensiva burguesa, invadindo todas as esferas da vida, na modernidade e pós-modernidade, a cosmovisão indígena está ainda pautada na narrativa, seja como evento efetivamente transcorrido no tempo, seja como evento resultante da força da imaginação sustentada nas lendas e estórias, apanágio de uma tradição fundada basicamente na oralidade e não na escrita.

Na esteira de Benjamin, Cardoso entende que a cultura contemporânea é dominada pela prevalência de uma linguagem comunicacional privada de qualquer estatuto metafórico e ficcional. É por isso que nessa cultura - do eterno presente6- a literatura ficcional é a única que consegue problematizar a própria impossibilidade da narrativa, que pode problematizar o fim da possibilidade de se contar uma história. Essa impossibilidade está bem posta no relato de Beatriz Sarlo do romance de Fogwil, Los Pichiciegos7 (SARLO, 1997, apud CARDOSO, 2001, p. 249-250).

É mister destacar que foi a ausência da escrita cartorial no interior da cultura indígena que possibilitou ao colonizador, além da sua descomunal força bélica, o movimento violento de conquista das suas terras. A narrativa é uma história que provoca mudança e interage com o outro que está ouvindo, ela tem uma força capaz de construir outras narrativas que outrora foram silenciadas dentro do processo brutal da colonização. Essa força foi posta em evidência quando o povo Xukuru-Kariri resolveu contar uma outra história, uma história de luta e resistência pelos tempos em que teve de se “esconder na massa da população” como uma forma de sobrevivência física, já que por decreto foram “mortos” em 1872.

Partindo do eixo paradigmático que entende a realidade como uma coisa dinâmica e não estática, assiste-se hoje à narrativa dos dominados mostrar a sua força, à proporção que colabora no movimento de luta pelo resgate das terras expropriadas pela escrita do dominador. É nessa perspectiva que se inscreve o sentido da terra na cultura indígena. A concepção de território dos povos indígenas remete a uma noção de domínio espaçoafetivo em que a espacialidade não está subordinada à forma jurídico-política. Até há bem pouco tempo, eles não tinham a noção de um domínio exclusivo sobre um espaço contínuo. A sua história sempre foi marcada por uma intensa mobilidade seja por questões inerentes ao seu modo de vida, seja como fuga diante de inimigos poderosos. Por outro lado, o contato com os brancos fez com que os povos indígenas tivessem uma nova forma de concepção de territorialidade marcada pela noção jurídico-política que envolve a presença do Estado Nacional como o garantidor de seu território e, consequentemente, de sua sobrevivência.

À GUISA DE CONCLUSÃO

A memória objetivada se constituiu em território quando os povos tradicionais reconstruíram o antigo território por meio de suas lembranças. Partilhando as suas memórias, recordam as lutas pela sobrevivência, as lutas pela permanência na terra, e quando as suas lembranças encontram eco, elas se tornam fortes e tomam densidade criando formas e organizações espaciais que remontam aos antigos como o uso comunal da terra, característico das áreas indígenas, das áreas de quilombo, fundo de pasto etc.

A memória é, antes de tudo, o meio para se chegar ao passado. As lembranças estão em diferentes camadas da memória escavada. Logo, ela é descoberta, é retomada no ato da escavação no presente. E nesse presente, então, podem se expressar as experiências inertes ou propositalmente silenciadas em tempos pretéritos. Torna-se, portanto, possível conhecer as experiências históricas de um grupo social pesquisando as suas memórias. A memória é, então, uma construção coletiva, que serve para afirmar e fortalecer uma identidade comum, em um trabalho de “enquadramento da memória” que se nutre de referências e acontecimentos históricos, reinterpretando constantemente o passado em razão das disputas atuais e futuras.

A narrativa e os documentos escritos apontaram que grande parte das terras da cidade de Palmeira dos Índios pertencia aos índios Xukuru-Kariri, que sempre foram calados e espoliados pela violência do processo de expansão do capitalismo e que hoje, graças à memória dos velhos, permite a constituição de outra história. A narrativa como recordação de outros tempos - tempos de liberdade, de fome, de sede, de seca e de perambulação pelas franjas das cidades e de trabalho mal pago nas fazendas locais - permite outro saber sobre o território em disputa. É preciso que façamos um grande esforço de recuperação das narrativas dos povos tradicionais, dos ribeirinhos, dos quilombolas, dos indígenas, das marisqueiras; é preciso recuperar essa capacidade de intercambiar experiências, para continuarmos vivos, pois o homem é a sua própria narrativa, é a nossa humanidade que está em jogo.

Neste aspecto, convém chamar a lembrança às palavras do pensador alemão da escola de Frankfurt, Walter Benjamim, acerca da memória no seu texto O narrador, em que ele invoca a primazia da oralidade na comunidade e procura resgatar o valor da história que anda de boca em boca, fazendo assim emergir outras narrativas em meio ao processo de reificação que marca a sociedade capitalista.

REFERÊNCIAS

ARIÉS, Philippe. A história existencial. O tempo da história. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.

BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. São Paulo: Ed Unesp, 2011.

BENJAMIM, Walter. Experiência e pobreza. In: BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. 1. p.114-119.

BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996.

BENJAMIM, Walter. O narrador de Lescov: textos escolhidos. São Paulo: abril Cultural, 1983.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

BRASIL. Decreto 6.040 de 7 de fevereiro de 2007. Institui a política nacional de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais. Brasília: PNPCT, 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2007/decreto/d6040.htm. Acesso em: 04 fev. 2021.

CARDOSO, Irene. A narrativa silenciada. In: CARDOSO, Irene; SILVEIRA, Paulo. (org.).Utopia e mal-estar na cultura: perspectivas psicanalistas. São Paulo: Hucitec: Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, 1997.

CARDOSO, Irene. Para uma crítica do presente. São Paulo: Ed. 34, 2001.

FUNAI. Processo de nº015/89. 3ª Suer. Recife: [s.n.], 1989. p. 46-50.

REESINK, Edwin Boudewijn. Índio ou caboclo: notas sobre a identidade étnica dos índios do Nordeste. Universitas, Salvador, n. 32, p. 121-137, 1983.

ROUANET, Sergio Paulo. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamim. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981.

SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 1997.

SILVA, Amanda Maria Antero da. Xukuru-Kariri: protagonismo indígena em Palmeira dos Índios/AL (1979-2013). 2019. Dissertação (Mestrado em História) - Centro de Humanidades, Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2019.

SILVA, Maria Ester Ferreira da. A desterritorialização do povo Xucuru-Kariri e o processo de demarcação de terras indígenas no município de Palmeiras dos Índios. 2004. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal de Sergipe, Aracaju, 2004.

SILVA, Maria Ester Ferreira da. Território, poder e as múltiplas territorialidades nas terras indígenas e de pretos: narrativa e memória como mediação na construção do território dos povos tradicionais. 2010. Tese (Doutorado em Geografia) - Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal de Sergipe, Aracaju, 2010. Disponível em: https://ri.ufs.br/jspui/handle/riufs/5461. Acesso em: 20/10/2020.

TODOROV, Tzetan. O homem desenraizado. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1999.

VIEGAS, Maria Ester Ferreira da Silva. Terra Indígena Xukuru-Kariri: avanços e recuos. Diversitas Journal, Santana do Ipanema, v. 4, n. 3, p. 848-867, 2019.

XUKURU, Maninha. Liderança Indígena Xukuru-Kariri (in memoriam). Fala na abertura da I Semana de Geo-História Indígena da Funesa-ESPI. Palmeira dos Índios: Fundação Estadual de Ensino Superior de Palmeira dos Índios, 2004x.

Notas

1 Grande parte da discussão feita neste artigo foi derivida de minha dissertação de mestrato intitulada "A desterritorialização do povo Xucuru-Kariri e o processo de demarcação de terras indígenas no município de Palmeiras dos Índios", em 2004, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade Federal de Sergipe, Aracaju, e de minha tese de doutorado "Território, poder e as múltiplas territorialidades nas terras indígenas e de pretos: narrativa e memória como mediação na construção do território dos povos tadicionais em 2010", também defendia no Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade Federal de Sergipe, Aracaju.
2 O Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), no seu artigo 3º, reza que são considerados Povos e Comunidades Tradicionais grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição; e que Territórios Tradicionais são: os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações (BRASIL, 2007).
3 Segundo depoimento em pesquisas de campo, é o ritual do Ouricuri que dá sentido à terra, à família, à identidade, à chefia, enquanto princípio organizador. Durante a pesquisa, sempre me posicionei de maneira discreta com relação ao ritual, porque me foi antecipado por uma índia Xukuru-Kariri que o Ouricuri é um ritual sagrado: “ele é o nosso segredo”. Baseados nesse segredo, eles estruturam a vida da comunidade, tendo plena consciência de que esse segredo, sagrado, misterioso, é o único reduto da vida deles que a sociedade nacional não pode dominar. Essa reserva com relação ao ritual do Ouricuri nos coloca na condição de pobreza de informação que não corresponde à magnitude do significado do Ouricuri na sobrevivência étnica dos povos indígenas do Nordeste. Denomina-se Ouricuri o complexo ritual e o local onde se realiza. É praticado por vários grupos do Nordeste. O corpo ritual do Ouricuri se constitui num conjunto de cantos e danças. Dentre os Kariri-Xocó (povo indígena de Porto Real do Colégio), durante o ritual do Ouricuri é utilizada também a ingestão da jurema, infusão feita de entrecasca da raiz desta árvore, posta a macerar com vinho. O clímax do ritual é o transe resultante do uso da jurema. Nesse estado, os participantes dizem romper barreiras entre passado, presente e futuro numa comunhão com seus ancestrais e suas divindades. Existe trabalho publicado dedicado diretamente aos Kariri-Xocó que são as teses de doutorado, citadas na bibliografia desta pesquisa, de Vera Lucia Calheiros Mata e de Clarice Novaes Mota, As Juremas told us, que focaliza o uso das plantas medicinais, apresentada na Universidade do Texas em 1987. No Brasil, está presente na coletânea Xamanismo no Brasil, organizado por Jean Langdon, intitulada no artigo Sob as ordens da Jurema.
4 Resumo do Relatório de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Xucuru-Kariri. Referência: Processo FUNAI/3ª SUER Nº 015/89. Denominação: Terra Indígena Xucuru-Kariri. Localização: município de Palmeira dos Índios, Estado de Alagoas. Superfície: 7.073 ha. Perímetro 48 km. Sociedade Indígena: Xucuru-Kariri. População: 1.337 habitantes em 2006. Identificação e delimitação: Grupo técnico de identificação e delimitação (Portaria FUNAI nº 1.121/PRES de 23 de agosto de 2006) coordenado pela antropóloga Siglia Zambrotti Doria. In: www.normasbrasil.com.br. Acesso em: 06 fev. 2021.
5 O documento referente faz parte do memorial indígena constante no Processo de nº 015/89, páginas 4650. 3ª Suer. Funai - Recife/Pernambuco. O relatório atual ainda não estava disponível, segundo informação da Funai-Alagoas, no ano em que foi construída a informação.
6 No puro presente não há lugar para a narrativa de uma história. Na vivência reduzida à relação com o imediato e com o existente, a autoconservação sem temporalidade, sem configuração do passado e do futuro, a possibilidade de narrar a própria história sequer se coloca como questão. Na ausência de uma história a qual se referir, na “facticidade bruta do existente”, a cultura se reduz a uma “comunidade prática” caracterizada pela miséria simbólica. Nela, os seus personagens sofrem os efeitos do que lhes acontece, mas não percebem a origem daquilo que lhes acontece. Embora hábeis para lidar com os efeitos imediatos, não podem se constituir numa comunidade simbólica, porque são incapazes de se ancorar em alguma história constitutiva de si próprios. Essa incapacidade é também, consequentemente, a de narrar esta história (ROUANET, 1981 apud CARDOSO, 1997, p. 259).
7 Os pichis formam uma colônia de sobreviventes da qual desaparecem todos os valores, exceto aqueles que podem reverter em ações que possam conservar a vida [...]. Os pichis parecem, à primeira vista, uma tribo. Contudo, à diferença das tribos, seu laço é efêmero: durará até a morte de cada um deles e não perdurará além da morte, exceto na voz do pichi que relembra (para o escritor que transcreve essa voz imaginária). Eles foram unidos temporariamente, não por uma identidade, mas por uma necessidade; não compartilham uma memória anterior à do início da invasão das Malvinas [...]. Assim, a tribo pichi definiu um novo território, a colônia subterrânea onde se refugiavam para sobreviver e onde os valores se organizam em função desta única missão social: a de conservar a vida [...]. Os pichis carecem de futuro, caminham para a morte e, por isso mesmo, só podem raciocinar em termos de estratégia de sobrevivência [...]. Seu tempo é puro presente: e sem temporalidade não há configuração do passado, compreensão do presente, nem projeto [...] (SARLO, 1997a apud CARDOSO, 2001, p. 249). A partir da leitura do relato da narrativa e da interpretação que se dá a ela é impossível deixar de lado a reflexão de Benjamim sobre a Primeira Guerra Mundial onde ele coloca que “os combatentes tinham voltado da guerra silenciosos e mais pobres em experiência comunicável e não mais ricos” (BENJAMIM, 1985, p. 198). A pobreza em experiências comunicáveis é o resultado da vida reduzida à pura estratégia de sobrevivência, ao estado de “comunidade prática” dos pichis. O estado da “comunidade prática” produz então a “miséria simbólica”, pela ausência de uma história à qual se remeter.
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
HMTL gerado a partir de XML JATS4R