CONTÍNUA
Novo Ensino Médio de Santa Catarina: organização curricular, implicações e sentidos formativos
New High School in Santa Catarina: curricular organization, implications and formative meanings
Percursos
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN-e: 1984-7246
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 23, núm. 53, 2022
Recepção: 18 Junho 2022
Aprovação: 18 Outubro 2022
Resumo: Com a aprovação da nova Lei do Ensino Médio (Lei 13.415/17), e da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCC), em 2018, os entes federativos se viram compelidos a construir ou reformular os seus currículos e propostas pedagógicas para essa etapa da Educação Básica. Em Santa Catarina esse processo de implementação do Novo Ensino Médio (NEM) na rede pública estadual se deu por meio do documento intitulado Currículo Base do Território Catarinense do Ensino Médio (CBTCEM). Assim, a partir de análise documental e bibliográfica, o objetivo deste texto é analisar o Novo Ensino Médio da rede pública de ensino de Santa Catarina e as suas possíveis implicações para os processos formativos juvenis. O NEM catarinense é composto pela Formação Geral Básica, que está alinhada à BNCC, e pela Parte Flexível, a qual é composta por Projeto de Vida, Segunda Língua Estrangeira, Componentes Curriculares Eletivos e Trilhas de Aprofundamento. Além dessa nova estrutura, outras mudanças envolvem a ampliação da carga horária, a possibilidade de parceria com outras instituições (inclusive empresariais) e de atividades a distância, trabalho pedagógico interdisciplinar pautado em competências e habilidades e formação técnica e profissional. A priori, é possível inferir que as alterações realizadas no currículo do Ensino Médio, ainda que possam ser atrativas, estão alinhadas às recomendações de organismos internacionais multilaterais, podendo limitar o acesso ao conhecimento geral e direcionar a formação da juventude para vieses pragmáticos e meritocráticos.
Palavras-chave: reforma do ensino médio, Santa Catarina, currículo base do território catarinense.
Abstract: With the approval of the new Secondary Education Law (Law 13.415/17), and the National Common Curriculum Base for Secondary Education (BNCC), in 2018, federative entities found themselves compelled to build or reformulate their curricula and pedagogical proposals for this purpose. stage of Basic Education. In Santa Catarina, this process of implementing the New High School (NEM) in the state public network took place through the document entitled Base Curriculum of the Santa Catarina High School Territory (CBTCEM). Thus, based on documental and bibliographic analysis, the objective of this text is to analyze the New High School in Santa Catarina's public school system and its possible implications for youth training processes. The Santa Catarina NEM is composed of the Basic General Training, which is aligned with the BNCC, and the Flexible Part, which is composed of a Life Project, Second Foreign Language, Elective Curriculum Components and Deepening Paths. In addition to this new structure, other changes involve the expansion of the workload, the possibility of partnership with other institutions (including business) and distance activities, interdisciplinary pedagogical work based on skills and abilities and technical and professional training. A priori, it is possible to infer that the changes made to the high school curriculum, although they may be attractive, are in line with the recommendations of multilateral international organizations, which may limit access to general knowledge and direct the training of youth to pragmatic and meritocratic biases.
Keywords: high school reform, Santa Catarina, base curriculum of the Santa Catarina territory.
Considerações iniciais
A deposição da presidente Dilma Rousseff por meio de um golpe e, por conseguinte, o avanço do governo de Michel Temer (2016-2018), abriu espaços para as reformas e o desmonte da discussão pública sobre as políticas curriculares. No que se refere ao Ensino Médio, ele vem passando por acirrada disputa quanto às suas finalidades desde a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), em 1996 (SILVA, 2018), e as constantes costuras em sua estrutura estão relacionadas à ausência de consenso do que se quer para o país para essa etapa da Educação Básica (KRAWCZYK; FERRETTI, 2017). Logo após a LDBEN ter sido sancionada, o Conselho Nacional de Educação deu início à produção das Diretrizes Curriculares Nacionais e, desde então, as tentativas de reformulação do currículo do Ensino Médio têm sido diversas (SILVA, 2015).
Em uma conjuntura ainda mais recente, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2018, e a Lei 13.415/2017, conhecida como Reforma do Ensino Médio, são duas balizas que precisam ser problematizadas. Esses dois documentos têm gerado inúmeras discussões entre pesquisadores, profissionais da educação e estudantes, além de debates e impasses dentro das próprias escolas, a exemplo das ocupações estudantis ocorridas em 2016.
A BNCC é “um documento normativo que define o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica” e “deverá nortear a formulação dos currículos dos sistemas e das redes escolares de todo o Brasil, indicando as competências e habilidades que se espera que todos os estudantes desenvolvam ao longo da escolaridade” (BRASIL, 2022).
Assim, é a partir da BNCC que os sistemas de ensino devem reorganizar seus currículos e propostas pedagógicas. Parte dos currículos escolares deve ser destinado à BNCC, que estabelecerá formação geral comum a todos os estudantes, a qual antes eram destinadas 2.400 horas em todo o Ensino Médio e agora passa a ser reduzida a um máximo de 1.800 horas, não tendo sido definido um mínimo. Além dos currículos escolares, por consequência, a BNCC também influencia os materiais didáticos, a formação inicial (Licenciaturas) e continuada dos professores e os exames nacionais, como o ENEM.
A primeira versão do documento foi disponibilizada em setembro de 2015; a segunda versão em maio de 2016; e a terceira, em abril de 2017, porém contemplava apenas a Educação Infantil e Ensino Fundamental (BRASIL, [20--]). Apenas em abril do ano seguinte foi entregue ao Conselho Nacional de Educação a terceira versão que incluía o Ensino Médio (BRASIL, [20--]). Nesse momento, parece haver uma ruptura sobre a formulação conceitual da Educação Básica tratada na LDBEN/1996, tendo em vista que o Ensino Médio teve uma elaboração e análise à parte das demais etapas.
Uma das alterações mais evidentes propostas na BNCC é a organização do Ensino Médio em quatro áreas do conhecimento a fim de proporcionar maior relação entre os conhecimentos a partir da interdisciplinaridade. Nesse novo arranjo, essa etapa de ensino está organizada em Linguagens e suas Tecnologias (Arte, Educação Física, Língua Inglesa e Língua Portuguesa), Matemática e suas Tecnologias (Matemática), Ciências da Natureza e suas Tecnologias (Biologia, Física e Química) e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (Filosofia, Geografia, História e Sociologia) (BRASIL, 2018a).
Contudo, apenas os componentes curriculares Língua Portuguesa e Matemática são obrigatórios de 1ª a 3º série e, Língua Inglesa, em algum momento da formação, o que compromete sobremaneira a formação ampla dos estudantes. A não obrigatoriedade de todos os componentes curriculares nos três anos dessa etapa contribui para a formação cada vez mais precária da juventude da classe trabalhadora e frequentadora da escola pública.
No que se refere à Reforma do Ensino Médio, dentre as justificativas presentes na Exposição de Motivos nº 00084/2016/MEC, da Medida Provisória nº 746/2016 que lhe deu origem, estavam o elevado número de jovens fora da escola, o baixo desempenho dos estudantes em Matemática e Língua Portuguesa, além do “currículo extenso, superficial e fragmentado, que não dialoga com a juventude, com o setor produtivo e tampouco com as demandas do século XXI” (BRASIL, 2016).
Nesse sentido, a flexibilização do currículo, que supostamente tornará essa etapa de formação mais atrativa e diminuirá os altos índices de evasão e repetência, seria a solução para os problemas dessa etapa formativa. Entretanto, é no mínimo equivocado atribuir os problemas dessa etapa da Educação Básica à organização curricular. Além de negar as questões objetivas e subjetivas de vida dos jovens, desconsidera as complexidades educacional e social envoltas na etapa, responsabilizando a organização curricular pela trajetória estudantil e ignorando que as escolas não possuem condições básicas de funcionamento necessárias nem sequer para o exercício do trabalho docente (KRAWCZYK; FERRETTI, 2017).
Em conformidade com as alterações provocadas pela Reforma do Ensino Médio na LDBEN, que em seu artigo 24 estabelecia a carga horária mínima anual de 800 horas, a jornada escolar terá de ser ampliada de forma progressiva no Ensino Médio para 1.400 horas. Isso posto, os sistemas de ensino tinham o prazo máximo de cinco anos, a partir de 2 de março de 2017, para oferecer pelo menos 1.000 horas anuais de carga horária (BRASIL, 2017). Dessa forma, o início do ano letivo de 2022 foi o último prazo para implementação da carga horária mínima no 1º ano da etapa de ensino.
Dos documentos exarados pelo Conselho Estadual de Educação (CEE) de Santa Catarina que tratam das orientações sobre o Novo Ensino Médio catarinense, temos a Resolução CEE/SC nº 093, de 14 de dezembro de 2020, a Resolução CEE/SC n 004, de 09 de março de 2021, e ainda, o Parecer CEE/SC nº 040 que trata da Resolução anterior. No primeiro documento são dispostos o cronograma e as normas complementares para a implementação das alterações estabelecidas pela Reforma do Ensino Médio para o Sistema Estadual de Educação de Santa Catarina, além de outras providências. O segundo documento, institui e orienta a implementação do Currículo Base do Território Catarinense do Ensino Médio (CBTCEM). Já o Parecer aprovado traz alguns aspectos sobre a construção e estrutura do CBTCEM, sobre os parâmetros obrigatórios estabelecidos por leis ou normas, além de recomendações para a SED e para as instituições de ensino.
Assim, acolhendo a política curricular nacional, o CBTCEM é o documento de referência para a adequação dos currículos e projetos pedagógicos das escolas de Ensino Médio da rede pública estadual de Santa Catarina, delineando o currículo em conformidade com a Reforma do Ensino Médio, com as atualizações das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e com a BNCC. Na apresentação do CBTCEM disposta nas páginas iniciais do documento, escrita pelo Secretário de Estado da Educação de Santa Catarina, Luiz Fernando Cardoso, é anunciado que se acredita que “este documento sirva para romper com anos de desinteresse de grande parte dos estudantes, fator que contribui significativamente para os altos índices de abandono escolar e a baixa proficiência, que demarcam, historicamente, a realidade do Ensino Médio no Brasil” (SANTA CATARINA, 2020a, p. 20).
Quanto à sua estruturação, o CBTCEM foi organizado em quatro cadernos. O Caderno 1 trata das disposições gerais do CBTCEM; o Caderno 2, da formação geral básica; o Caderno 3, das Trilhas de Aprofundamento e; o Caderno 4, dos Componentes Curriculares Eletivos, sendo que esses dois últimos compõem a chamada parte flexível do currículo. O Caderno 5 está em construção e abordará a Trilha de Aprofundamento da Educação Profissional e Tecnológica.
A construção desse currículo contou com a participação de mais de 300 profissionais da Rede Estadual de Ensino (SANTA CATARINA, 2020a), tendo sido 254 professores colaboradores, 27 professores da Equipe ProBNCC, 30 profissionais da equipe da SED, além de 20 consultores externos (SANTA CATARINA, 2022). A construção do documento ocorreu alinhada à União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme/SC), à União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime/SC), à Federação Catarinense de Municípios (Fecam/SC), ao Conselho Estadual de Educação (CEE/SC) e à Secretaria de Estado da Educação (SED/SC) (SANTA CATARINA, 2020a), entidades que recebem a coautoria do CBTCEM.
O Estado catarinense já tem um considerável histórico quando se trata de currículo. Em 1988, iniciou uma construção coletiva que resultou, em 1991, na publicação da primeira Proposta Curricular de Santa Catarina (PCSC) e, desde então, duas outras versões do documento já foram publicadas, uma em 1998 e outra em 2014, a qual teve a participação de mais de oito mil educadores (SANTA CATARINA, 2015). Todavia, com a aprovação da BNCC, foi preciso ajustar a Proposta Curricular estadual com o novo documento nacional, surgindo, assim, em 2019, o Currículo Base da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do Território Catarinense e, em 2020, o Currículo Base do Território Catarinense do Ensino Médio.
Para Thiesen (2021), ainda que o CBTC tenha tentado acolher alguns dos conceitos da PCSC, ao reafirmar também conceitos de racionalidade instrumental presentes na BNCC, acaba por produzir o desaparecimento dos princípios e fundamentos da PCSC (THIESEN, 2021). Embora esse esforço tenha sido feito, a reprodução das competências e habilidades da BNCC no documento estadual simboliza perda em termos de autonomia curricular (THIESEN, 2021).
Feitas essas considerações iniciais, é necessário compreender como esse documento organiza o Novo Ensino Médio de Santa Catarina e o que propõe para os estudantes. Assim sendo, o objetivo deste artigo é explicitar a nova estrutura curricular do Ensino Médio público da rede estadual de Santa Catarina por meio da análise do CBTCEM e de documentos relacionados e discutir as suas possíveis implicações para os estudantes.
A organização curricular do Novo Ensino Médio em Santa Catarina
Neste momento, destacamos os principais elementos do NEM catarinense, tais como: a documentação envolvida, os diversos aspectos relacionados à carga horária e à organização e composição da Formação Geral Básica e dos chamados Itinerários Formativos, dentre outras características.
Conforme cronograma estabelecido pelo Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina na Resolução CEE/SC nº 093, de 14 de dezembro de 2020, que definiu os prazos necessários para a adequação dos currículos, das propostas pedagógicas e dos regimentos das instituições ou redes de ensino à legislação vigente, todas as instituições do Sistema Estadual de Ensino de Santa Catarina tinham até o início do ano letivo de 2022 para a implementação dos novos currículos no 1º ano (SANTA CATARINA, 2020d). Já o prazo para tal no 2º ano do Ensino Médio é o início do ano letivo de 2023 e para o 3º ano, 2024 (SANTA CATARINA, 2020d).
Vale destacar que a implementação das mudanças em Santa Catarina começou ainda em 2020 com a adesão dos novos currículos por 120 unidades escolares, denominadas escolas-piloto, por meio da Portaria MEC nº 649/2018, que institui o Programa de Apoio ao Novo Ensino Médio. Nessas escolas, ações de flexibilização nas 1ª séries foram feitas possibilitando o início do processo de mudanças no Ensino Médio catarinense. As experiências dessas 120 escolas forneceram subsídios para a construção do Novo Ensino Médio da Rede Estadual de Ensino.
Para fins de contabilização da carga horária, diversas atividades poderão ser consideradas, inclusive aquelas realizadas fora da escola. Todas as atividades com intencionalidade pedagógica sejam aulas, cursos, estágios, oficinas, aprendizagem profissional ou quaisquer outras orientadas por docentes devidamente habilitados, podem ser consideradas parte da carga horária do Ensino Médio, sejam elas realizadas na forma presencial ou a distância (BRASIL, 2018b).
Além disso, os sistemas de ensino poderão ofertar atividades por meio de educação a distância. Conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 2018b), tanto na formação geral básica quanto nos itinerários formativos, mas preferencialmente nestes, até 20% da carga horária total pode ser ministrada dessa forma. Para o ensino noturno, a critério da instituição, essa porcentagem pode chegar a até 30%.
A nova estrutura do Ensino Médio é em razão de alterações na LDBEN, por força da Lei nº 13.415/17, que estabelece que o currículo dessa etapa de ensino deve ser composto pela BNCC e por itinerários formativos, a fim de substituir o “modelo único de currículo” por um “modelo diversificado e flexível” (BRASIL, 2018a, p. 468). Assim, no Novo Ensino Médio, os novos currículos devem ser compostos por uma parte de Formação Geral Básica, pautada na BNCC, e uma parte denominada Itinerários Formativos, que constituirá a chamada parte flexível.
De acordo com as DNCEM a formação geral básica é
[...] o conjunto de competências e habilidades das áreas de conhecimento previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que aprofundam e consolidam as aprendizagens essenciais do ensino fundamental, a compreensão de problemas complexos e a reflexão sobre soluções para eles. (BRASIL, 2018, art.6, Item II)
Por seu turno, as DCNEM definem os itinerários formativos como
[...] cada conjunto de unidades curriculares ofertadas pelas instituições e redes de ensino que possibilitam ao estudante aprofundar seus conhecimentos e se preparar para o prosseguimento de estudos ou para o mundo do trabalho de forma a contribuir para a construção de soluções de problemas específicos da sociedade. (BRASIL, 2018, art. 6, Item II)
Logo, a Formação Geral Básica deve estar alinhada à BNCC e, portanto, os currículos e propostas pedagógicas devem garantir o desenvolvimento de competências e habilidades, assegurando as aprendizagens por ela estabelecidas (BRASIL, 2018a), sendo dedicadas no máximo 1.800 horas a essa parte da formação. Aos Itinerários Formativos, parte responsável pela ‘flexibilização’ do currículo, destinada ao aprofundamento e ampliação das aprendizagens em uma ou mais áreas do conhecimento e/ou na formação técnica e profissional, devem ser dedicados no mínimo 1.200 horas do currículo.
Para todas as escolas da Rede Estadual de Ensino do estado de Santa Catarina, a distribuição da carga horária da Formação Geral Básica (conteúdos referentes à BNCC) deve ser a mesma, sendo permitido, de acordo com as matrizes curriculares disponibilizadas pela Secretaria Estadual de Educação de Santa Catarina (SED/SC), aumentar a carga horária apenas da Parte Flexível. Assim, no Caderno 1 do CBTCEM, que oferece as disposições gerais do currículo, a SED/SC disponibilizou três matrizes para o Novo Ensino Médio, sendo elas: Matriz A, Matriz B e Matriz C. As cargas horárias totais entre elas são diferentes e ampliam-se da Matriz A em direção à C, sendo que em todas elas a carga horária referente à Formação Geral Básica é a mesma e o que varia é a carga horária destinada aos itinerários formativos. A Formação Geral Básica compreende 800 horas anuais para a 1ª série, 480 horas anuais para a 2ª e 480 horas anuais para a 3ª série em todas as três matrizes possíveis, totalizando, então, 1.760 horas anuais das 1.800 horas permitidas para conteúdos referentes à BNCC.
Nos itinerários formativos da Matriz A (Tabela 1), a 1ª série acomoda 200 horas anuais e a 2ª e 3ª séries 520 horas anuais cada uma, totalizando 1.240 horas totais das 1.200 horas mínimas. Assim, considerando a Formação Geral Básica mais os Itinerários Formativos, a Matriz A compreende carga horária total, ao longo dos três anos do EM, de 3.000 horas, o mínimo exigido pela Lei. Nos itinerários da Matriz B (Tabela 2), a 1ª série acomoda 320 horas anuais, enquanto a 2ª e 3ª séries, 640 horas anuais cada, totalizando 1.600 horas. Assim, a Matriz B atinge 3.360 horas totais somadas a Formação Geral Básica e os Itinerários Formativos. Já na terceira opção, a Matriz C (Tabela 3), a 1ª série contém 608 horas anuais e a 2ª e 3ª séries, 928 horas anuais cada, somando uma carga horária total de itinerários de 2.464 horas. Portanto, 4.224 horas totais.
Ainda que o CBTCEM não traga em seu documento a matriz para o Novo Ensino Médio noturno, ela pode ser conferida em outros documentos e apresentações disponibilizadas pela SED/SC ou mesmo na página de dúvidas do site do Novo Ensino Médio. No novo modelo, o turno da noite continuará com 25 aulas semanais, ou seja, cinco aulas por dia, mas para atender a legislação que exige o aumento de carga horária, passará a ser composto por quatro séries, e não mais três como anteriormente.
Assim, a carga horária total para cada ano será de 750 horas, totalizando as 3.000 horas no decorrer do Ensino Médio. De Formação Geral Básica, os alunos terão 570 horas na 1ª série, 360 horas na 2ª série e 390 horas nas 3ª e 4ª séries. De Itinerários Formativos, serão 180 horas na 1ª série, 390 horas na 2ª série e 360 horas nas 3ª e 4ª séries. Assim, ao todo, serão 1.710 horas dedicadas à Formação Geral Básica e 1.290 horas dedicadas aos Itinerários Formativos. As distribuições da parte comum e da parte flexível para essa matriz podem ser vistas na tabela 4.
Uma das alterações mais evidentes provocadas pela BNCC é a organização do trabalho pedagógico em quatro áreas do conhecimento. Apesar de não excluir necessariamente as disciplinas, os estudos e práticas dessa parte do currículo devem ser abordados de modo contextualizado e interdisciplinar (BRASIL, 2018b). Assim, no estado de Santa Catarina, apesar de cumprir a organização por áreas do conhecimento como definida pela BNCC, também se optou por uma disposição que mantenha a carga horária específica para cada componente curricular que integra as diferentes áreas do conhecimento (SANTA CATARINA, 2020b). Desse modo, no que concerne à predisposição das cargas horárias dos componentes curriculares referentes à Formação Geral Básica, durante todo o Ensino Médio, nas matrizes A, B e C, Matemática contribui com 224 horas e Língua Portuguesa e Inglês com 192 horas cada. Todas as demais disciplinas (Arte, Biologia, Educação Física, Filosofia, Física, Geografia, História, Química e Sociologia) contribuem com 128 horas cada ao longo do EM. Essa distribuição é diferente para o Ensino Médio noturno, matriz D, na qual, ao longo dos quatro anos, Língua Portuguesa e Matemática dispõem de 210 horas; Arte, Biologia, Física, Química e História, 150 horas; Filosofia, Sociologia, Geografia e Inglês, 120 horas; e Educação Física, que ficou sem aulas nas 3ª e 4ª séries, 60 horas.
Quanto aos Itinerários Formativos, a parte flexível do currículo, eles poderão ser feitos por oferta própria ou por parcerias entre a SED/SC e outras instituições, sejam elas públicas ou privadas (SANTA CATARINA, 2020d). Essas parcerias, inclusive com instituições de ensino superior, devem ser firmadas por meio de convênio, no qual devem constar as responsabilidades de cada instituição e o atendimento ao estudante em termos pedagógicos e operacionais (SANTA CATARINA, 2020d).
As DCNEM (2018) determinam que “os sistemas de ensino devem garantir a oferta de mais de um itinerário formativo em cada município, em áreas distintas [...]” e, portanto, a SED/SC deve assegurar a mesma. Considerando que 57% dos municípios de Santa Catarina possuem apenas uma escola de EM é orientado que nesses municípios sejam ofertados os itinerários formativos integrados entre áreas do conhecimento, para favorecer as escolhas de acordo com o projeto de vida dos estudantes (SANTA CATARINA, 2020a).
Nas escolas da Rede de Ensino do estado de Santa Catarina, os Itinerários Formativos são compostos por: Segunda Língua Estrangeira, Projeto de Vida, Componentes Curriculares Eletivos e Trilhas de Aprofundamento. Além da Língua Inglesa de caráter obrigatório da Formação Geral Básica, uma segunda língua estrangeira será oferecida como parte dos Itinerários Formativos considerando a disponibilidade de profissionais para tal. As opções são: espanhol, alemão e italiano.
O Itinerário Projeto de Vida, constituído em Santa Catarina como um componente curricular obrigatório que deverá ser cursado nos três anos do EM, se caracteriza como um espaço para o desenvolvimento de competências socioemocionais e para a ampliação das dimensões pessoal, cidadã e profissional, devendo o trabalho pedagógico priorizar o desenvolvimento dos aspectos cognitivo, emocional, físico, social e cultural dos estudantes (SANTA CATARINA, 2020a). Dessa forma, o Projeto de Vida busca “desenvolver o autoconhecimento, a autonomia, a tomada de decisão e a atribuição de sentido à existência, de modo planejado e consciente, com vistas ao desenvolvimento integral” (SANTA CATARINA, 2020a, p. 63). O trabalho desenvolvido nesse componente pode ser realizado por todos os professores, independentemente da área de conhecimento em que estão habilitados. Todavia, é destacado no “Perfil do professor” a importância de um perfil “resiliente, flexível, empático, aberto ao diálogo” (SANTA CATARINA, 2020a, p. 70).
Para subsidiar o planejamento e as atividades das escolas na oferta do Projeto de Vida, a SED e o Instituto Iungo, organização sem fins lucrativos criada em 2020, elaboraram um documento chamado Roteiros pedagógicos do componente Projeto de Vida. O documento foi disponibilizado em fevereiro de 2022 e é composto por 15 roteiros baseados nas Sugestões de unidades temáticas do Caderno 1 do CBTCEM (Quadro 1).
Os Componentes Curriculares Eletivos objetivam a diversificação das aprendizagens e são ofertados a partir da 1ª série de modo semestral; assim, os estudantes cursarão dois componentes ao longo do ano, totalizando seis durante o trajeto do Ensino Médio. A SED/SC, mais uma vez em parceria com o Instituto Iungo, elaborou um Portfólio de Componentes Curriculares Eletivos, o qual compõe o Caderno 4 do CBTCEM. A construção desse documento tem origem em sugestões feitas pelas escolas-piloto a partir das suas experiências como pioneiras do Novo Ensino Médio (SANTA CATARINA, 2020c). Esse Portfólio, destinado às escolas, é formado por 25 roteiros pedagógicos agrupados por áreas do conhecimento ou em uma das duas áreas de concentração, Ciência e Tecnologia e Componentes Integradores (Quadro 2) (SANTA CATARINA, 2020c).
As Trilhas de Aprofundamento têm como finalidade aprofundar as aprendizagens e, assim, são o componente da parte flexível com maior carga horária, somando de 640 a 960 horas totais do currículo, a depender da matriz proposta. A oferta desse componente é feita de modo semestral para os estudantes da 2ª e 3ª séries e também da 4ª série para o período noturno. As Trilhas de Aprofundamento, que compõem o Caderno 3 do CBTCEM, podem contemplar uma área do conhecimento (Quadro 3), integrar diferentes áreas (Quadro 4) ou, ainda, ser de educação técnica e profissional. De acordo com o Caderno 1 do CBTCEM, as escolas devem “consultar os estudantes acerca de quais trilhas desejam cursar ao longo do ano letivo e, a partir das opções mais indicadas e das possibilidades da escola, organizar a oferta” (SANTA CATARINA, 2020a, p. 86).
As Trilhas de Aprofundamento da formação técnica e profissional podem ser compostas por cursos técnicos, por cursos de qualificação profissional ou, simultaneamente, por curso técnico e de qualificação profissional, sendo que todas as formas podem ser ofertadas com ou sem parcerias (SANTA CATARINA, 2020a). A prática profissional nesse itinerário formativo é definida como desenvolvimento de oportunidades às/aos estudantes para a vivência de situações profissionais reais, sendo esperada a inclusão de vivências práticas de trabalho no setor produtivo ou em ambientes de simulação (SANTA CATARINA, 2020a).
Tanto os Componentes Curriculares Eletivos quanto as Trilhas de Aprofundamento são de escolha dos estudantes e suas ofertas serão de modo semestral e pautadas nos portfólios disponibilizados pela SED, os quais serão atualizados pela SED periodicamente, em princípio a cada três anos (SANTA CATARINA, 2020a). A unidade escolar deverá definir quais Componentes e Trilhas serão ofertadas a partir dos interesses demonstrados pelos estudantes no ato da matrícula, quando deverão indicar quais sãos os Componentes Curriculares Eletivos e as Trilhas de Aprofundamento de seus interesses, e com base na disponibilidade de oferta e de vagas na mesma (SANTA CATARINA, 2020a).
Os efeitos formativos do Novo Ensino Médio para a juventude catarinense
Compreendidas as principais transformações no Ensino Médio, cabe-nos agora analisar como essas mudanças poderão impactar os processos de escolarização da juventude das escolas públicas catarinenses, desde as consequências das mudanças na carga horária, os conteúdos sobre empreendedorismo e projeto de vida, os interesses do empresariado nesse processo de reorientação curricular, e o desigual acesso ao conhecimento entre escolas públicas e privadas.
Ao tratar da recontextualização da BNCC no território catarinense, Thiesen (2021) aponta que, assim como em nível nacional, em Santa Catarina também há um alinhamento à racionalidade de discursos globais reformistas. Diante de um cenário de fortalecimento dos “movimentos pela internacionalização da educação e dos currículos, especialmente os de fundo econômico, que veem a educação mais como um espaço potente e promissor de mercado” (THIESEN, 2021, p. 3), a manifestação de discursos de racionalidade internacionalizante nos textos de políticas curriculares da Educação Básica tem se feito presente.
Silva, Martini e Possamai (2021), ao tratarem da implementação do Novo Ensino Médio nas escolas-piloto catarinenses, também mencionam questões similares que podem ser estendidas para as demais escolas do Novo Ensino Médio. De acordo com as autoras, o discurso de que o processo foi feito a várias mãos esconderia a real intenção da atuação dos parceiros que, em suas análises, intencionam interferir na formação dos jovens com uma proposta educativa que se alinha aos interesses do empresariado, por meio da interferência na elaboração dos currículos e na formação de professores (SILVA; MARTINI; POSSAMAI, 2021).
Além do mais, o portfólio de Componentes Curriculares Eletivos que compõe o Caderno 4 do CBTCEM foi construído pela SED/SC em parceria com o Instituto Iungo que, além da construção do mesmo, também foi responsável pela criação dos roteiros do componente Projeto de Vida e pela formação de professores, coordenadores, diretores e vice-diretores das escolas catarinenses, além de gestores das coordenadorias regionais da rede (IUNGO, 2022b). Esse instituto foi formado em 2020 e possui como mantenedores o Movimento Bem Maior e o Instituto MRV, ambos mantenedores também do Todos pela Educação. Alguns consultores pedagógicos do instituto, além de possuírem vínculos anteriores com a Fundação Lemann e com o Instituto Ayrton Senna, também são proprietários ou colaboradores de empresas que fornecem serviços e produtos educacionais e/ou são do setor de educação a distância (SILVA; MARTINI; POSSAMAI, 2021). Além disso, o Instituto Iungo faz formação para professores e gestores escolares, elabora material didático e pedagógico, pesquisas sobre a atuação docente e sobre inovação em educação e informações e debates em educação (IUNGO, 2022a).
Consideradas essas questões e entendendo a formação de professores como um espaço de disputas, as autoras Silva, Martini e Possamai levantam questões pertinentes sobre essa parceria entre a SED/SC e o Instituto Iungo, sendo elas:
[...] por que esta instituição privada, criada em 2020, foi a escolhida pela SED/SC como assessoria técnica para conduzir a formação continuada dos professores das escolas Rede Estadual que implementam o Novo Ensino Médio? Quais foram os critérios para optar por uma instituição privada praticamente desconhecida no campo da formação de formadores? Quais motivações têm as instituições privadas na oferta gratuita de formação continuada dos trabalhadores da educação? (SILVA; MARTINI; POSSAMAI, 2021, p. 75)
Ora, ao mesmo tempo em que a Reforma do Ensino Médio estava sendo aprovada, também estava a reforma trabalhista e a PEC do Teto de Gastos Públicos, e a possibilidade de implementação das escolas cívico-militares e do homeschooling no país. Desse modo, a proposta de flexibilização curricular do Ensino Médio surge em conjunto com a virada conservadora na política e na economia e não pode ser pensada fora do contexto político de flexibilização e desregulamentação das conquistas sociais (KRAWCZYK; FERRETTI, 2017):
O termo flexibilização é muito tentador porque remete, na fantasia das pessoas, à autonomia, livre escolha, espaço de criatividade e inovação. Mas flexibilização pode ser também desregulamentação, precarização, instabilidade da proteção contra a concentração da riqueza material e de conhecimento, permitindo a exacerbação dos processos de exclusão e desigualdade social. (KRAWCZYK; FERRETTI, 2017, p. 36)
No que diz respeito à complementação da carga horária na modalidade a distância - em que 20% do curso diurno e até 30% do curso noturno podem ser realizadas dessa forma - acabam por reproduzir ainda mais as desigualdades educacionais. Além disso, para garantir a oferta de diferentes itinerários também há a possibilidade de parcerias, seja com instituições de ensino superior ou com outras instituições não necessariamente públicas.
Ademais, a organização do tempo escolar excede as questões de ensino e aprendizagem e regula dimensões muito mais amplas da vida da juventude (CAVALIERE, 2002 e da sociedade em geral. A mudança no tempo escolar significa também uma mudança em outros tempos, tais como o tempo da família, o tempo do adolescente, o tempo na vida social e laboral do jovem, dentre outros dos quais o jovem estudante compartilha (KRAWCZYCK, 2014). Assim, o tempo escolar envolve vários interesses e forças que atuam sobre ele, de modo que a dimensão cultural juvenil impossibilita lidar com o tempo de maneira administrativa ou burocrática. O tempo escolar não é simples ajustamento técnico, mas uma ação com consequências político-culturais de vasta abrangência (CAVALIERE, 2002; CAVALIERE, 2007).
A narrativa do empreendedorismo, por seu turno, está muito presente no Novo Ensino Médio catarinense, inclusive como um dos Componentes Curriculares Eletivos. Com conceito originado da economia e expandido para outros setores, o empreendedorismo está vinculado ao mercado produtivo e à imagem de inovação, sucesso e transformação da própria vida, sendo o ato de empreender uma alternativa para o desemprego e uma promessa para o sucesso. Para Peroni, Caetano e Valim (2021, p. 8), “[…] o empreendedorismo tem representado uma estratégia ideológica que sustenta o projeto de sociedade defendido pelos grupos hegemônicos representantes do capital que legitimam o mercado como solução para os problemas sociais” e ainda que “[...] em uma sociedade de classes, em que os empregos não são para todos, o empreendedorismo integra o discurso ideológico e meritocrático utilizado para levar as pessoas a aceitarem as relações sociais vigente sem questioná-las”.
Outra dimensão importante a ser considerada é a das competências apresentadas na BNCC e que, portanto, devem ser seguidas pelas escolas catarinenses. As proposições do modelo de competências têm ênfase na subjetividade, no modo de ser, e estão apontadas para a capacidade adaptativa, interessando mais o desenvolvimento da flexibilidade e da adaptação dos sujeitos a novas situações e contribuindo para a formação de certa concepção de sujeito e de autonomia (MACHADO, 1998b).
Na compreensão de Machado,
A visão pragmática e utilitarista de competência traz sérias implicações para os objetivos educacionais, pois pressupõe a implementação da pedagogia da adaptação e do ajustamento à lógica mercantil, que vê o sujeito do trabalho como um simples valor de troca. Qualificar para o trabalho, nestes termos, é reduzir os espíritos à sociabilidade do capital, é reificar os seres humanos, tomá-los como simples instrumentos, com o objetivo supremo de naturalizar e perenizar o sistema social dominante. (MACHADO, 1998a, p. 28)
Não obstante, associado às dez competências gerais da BNCC, as quais por sua vez estão correlacionadas com as de caráter socioemocional, está o componente Projeto de Vida (SANTA CATARINA, 2020a). No que diz respeito a esse componente, além de ter se tornado um itinerário formativo de caráter obrigatório nos três anos do Ensino Médio, com um documento elaborado exclusivamente para esse componente, a carga horária destinada a ele foi bem significativa. No EM diurno, estão instituídas 192 horas, a mesma que Língua Portuguesa, por exemplo; já no EM noturno, 150 horas, carga igual ou superior a muitas das outras disciplinas ofertadas.
Alves e de Oliveira (2020) apontam a influência de organismos internacionais e do campo econômico, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), na definição das políticas curriculares no país e, nesse caso específico, suas recomendações sobre os chamados ‘projetos de vida’ e que, por isso, cabe certa cautela com a expressão. Para as autoras, na aproximação do campo econômico com o educacional, termos originários da educação tendem a perder suas identidades progressistas e cederem lugar a um sentido mais voltado para linhas do campo econômico, como é o caso do projeto de vida. A visão de educação presente no campo econômico é de viés utilitarista e objetiva a formação do trabalhador, o lucro e o desenvolvimento do país:
[...] a elaboração do projeto de vida pode ser compreendida como exercício necessário de cidadania e vida digna, mas não como algo que se proponha a garantir êxito educacional e sucesso profissional sem considerar as condições materiais e subjetivas que constituem as vidas das juventudes no ensino médio. As escolhas singulares não são tão individuais, e os problemas sociais e econômicos atingem os jovens de diferentes formas. (ALVES; DE OLIVEIRA, 2020, p. 32)
Ademais, a formação comum, que não exige um mínimo, mas apenas um máximo de 1.800 horas, é reduzida em tempo e conteúdo nesse contexto. Ainda que tenha se favorecido determinadas disciplinas, Santa Catarina manteve quase o máximo permitido por Lei. Antes, eram dedicadas 2.400 horas à formação geral do estudante, entretanto, no estado agora serão dedicadas 1.760 horas; para o Ensino Médio noturno, 1.710 horas. Desse modo, no tempo reservado à Formação Geral Básica há uma diferença de 50 horas entre o Ensino Médio diurno e noturno, ou seja, uma redução ainda maior da formação geral para esses estudantes, já evidenciando uma distinção inicial dada a esses dois períodos. Outrossim, há grande diferenciação entre as cargas horárias destinadas às disciplinas, com especial ênfase em Matemática, Língua Portuguesa e Inglês. Assim, apesar de princípios da educação integral serem destacados no CBTCEM, em uma retomada de termos/conceitos da PCSC, essa composição do currículo segue sentido bastante contrário ao da educação integral, a qual prevê uma formação ampla dos sujeitos nas suas diferentes dimensões.
Também não é possível ignorar a imensa desigualdade que devasta o país e desconsiderar que esse novo currículo tem peso negativo muito maior sobre as escolas públicas do que sobre as escolas privadas. Em grande parte, os estudantes da escola pública têm nesse espaço o seu único meio de acesso para uma formação completa, enquanto que estudantes de escolas particulares têm, senão nesse mesmo espaço, outros meios de acesso à formação cultural e artística, intercâmbios, práticas que possibilitem seu desenvolvimento corporal etc. (GARCIA; CZERNISZ, 2017). Similarmente, a precariedade de preparação dos itinerários, que não garantem as mesmas opções formativas para todos, pois a oferta está sujeita às condições da escola, pode acentuar ainda mais a discrepância de oportunidades.
Na Primeira Reunião Técnica, encontro realizado na cidade de Chapecó/SC, em 2019, para discutir o planejamento do Novo Ensino Médio nas escolas-piloto, os gestores educacionais foram orientados a fazerem um mapeamento das demandas da Educação Profissional através da aproximação com entidades comerciais e industriais do município e de escolas técnicas e universidades/faculdades da região (SANTA CATARINA, 2019; SILVA; MARTINI; POSSAMAI, 2021). Na mesma apresentação da reunião, foram apresentados os “setores portadores de futuro para indústria catarinense 2022” (SANTA CATARINA, 2019, p. 33). Para Silva, Martini e Possamai (2021, p. 65), essa indicação manifesta a “influência do empresariado catarinense na implementação da reforma e a intenção de utilizar o aparato estatal para formação de mão de obra para o setor privado”.
As parcerias entre as escolas e o setor produtivo "confirmam o interesse do setor privado nessa etapa educativa como possibilidade de formar na escola pública a mão de obra necessária ao setor produtivo” (GARCIA; CZERNISZ, 2017, p. 573). Para Garcia e Czernisz (2017, p. 581) o “ensino médio tem sido visado pelo empresariado que busca na formação do trabalhador o apoio para implementação do processo de trabalho” e que, então, “defende uma formação mínima que lhe garanta a perpetuação da mão de obra que atenda os interesses do setor produtivo em contraposição à formação integral”.
Ainda, Krawczyk e Ferretti (2017) alertam para inclinações de perspectiva economicista e também para o risco de se reproduzir “a preconceituosa velha ideia de que os pobres necessitam de um diploma profissional porque precisam e querem entrar rapidamente no mercado de trabalho” (KRAWCZYCK; FERRETTI, 2017, p. 39). Incentivos à formação técnica e profissional podem reverberar em formações precárias e ingressos aligeirados no mercado de trabalho. Moll (2017) atenta para o fato de que a inserção prematura e precária ao mundo do trabalho, além da estrutura e organização interna do trabalho escolar, são razões que agravam a exclusão escolar na medida em que progridem a idade e o nível de escolaridade dos estudantes. Assim, o avanço na escolaridade está diretamente ligado às condições de vida da população e à execução de políticas públicas que garantam condições de acesso e permanência na escola” (MOLL, 2017, p. 66).
Segundo Moura e Lima Filho (2017), o estabelecimento do itinerário ‘educação técnica e profissional’ evidencia a dualidade estrutural educacional que encaminha “aos trabalhadores mais empobrecidos processos educacionais pobres, caracterizados pela redução e instrumentalidade de conteúdos direcionados para aspectos meramente do fazer, em detrimento dos conhecimentos de base científico-tecnológica e sócio-histórica” (MOURA; LIMA FILHO, p. 124, 2017). As características dessa educação técnica e profissional ofertada indicam o propósito de tornar o caminho para o mercado de trabalho mais prático, operacional e rápido (MOURA; LIMA FILHO, 2017). Considerando ainda a viabilidade de pessoas com “notório saber” de alguma especialidade técnicoprofissional e sem qualquer formação pedagógica também lecionarem nesse itinerário, podemos esperar limitados processos pedagógicos na parte flexível do currículo, escancarando a desvalorização e a identidade do trabalho docente.
Considerações finais
Apesar do discurso apregoado pelo estado de Santa Catarina sobre o Novo Ensino Médio com destaques ao protagonismo juvenil, a multiplicidade de escolhas, projetos de vida e profissionalização, concretamente isso oculta as inconsistências desse projeto. Assim como a Reforma do Ensino Médio e a BNCC, o Novo Ensino Médio catarinense induz a resolução das vidas dos jovens em função do currículo e ignora as muitas outras dimensões da vida humana na sociedade e, portanto, na escola e na vida dos estudantes.
Ainda que o Novo Ensino Médio em um primeiro momento possa parecer realmente mais atrativo para os jovens, flexibilizando a formação, os espaços e as relações, dando algumas possibilidades de escolha, não lhes dá, efetivamente, nenhuma garantia formativa. Tudo fica sujeito às condições de oferta das escolas. Sobre a sua nova organização, prioriza determinados conhecimentos em detrimento de outros, como os focados pelas avaliações em larga escala, afiançando a formação de seus jovens a empresas privadas e ao ensino a distância, acrescentando um ano para a finalização dos estudantes do período noturno, o que pode trazer consequências nefastas para seus processos de escolarização, ignorando as condições concretas de trabalho dos professores. Essa reorganização curricular limita o acesso ao conhecimento, e ao não garantir critérios obrigatórios de oferta para todos os estudantes, permite o acesso desigual ao conhecimento, negando o direito à formação básica comum.
Para além disso, há uma confluência de aspectos que expressam o comprometimento da educação catarinense com a racionalidade privatista, desde os componentes curriculares até as parcerias realizadas, e não com a educação emancipatória e integral. Por fim, o Novo Ensino Médio catarinense não destoa do que é visto no cenário nacional. Ele está alinhado às políticas internacionais do currículo, ao setor produtivo, à lógica das competências, à meritocracia, à individualidade, ao empreendedorismo, à flexibilidade, ao ajustamento da formação dos jovens ao atual modelo socioeconômico, pautado na exploração e nas desigualdades. Compactua com a lógica empresarial, fornecendo uma formação pragmática, precoce e imediatista, mantendo a perversa dualidade estrutural educacional.
O currículo escolar, especialmente o do Ensino Médio, está revestido de interesses, sejam eles explícitos ou não. Esse breve artigo representa um primeiro esforço de análise do que é este ‘Novo’ Ensino Médio de Santa Catarina e daquilo que está sendo proposto para a juventude da escola pública. Ainda precisaremos de mais tempo para entender e investigar como essas mudanças vão, de fato, se concretizar/desdobrar no chão das escolas e quais impactos formativos produzirão em médio e longo prazos. Todavia, as evidências denotam que tal projeto de reorientação curricular reprisa velhas e conhecidas dualidades formativas no âmbito da Educação Básica e não o ‘novo’ propagandístico marcado por uma conjuntura histórica de retrocessos sociais, políticos e educacionais.
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