Resumo: A permanência e a popularização da memória da Terra para a formação cidadã e humana da atual e das futuras gerações são imprescindíveis. Elas podem se dar através da constituição e conservação dos patrimônios naturais, construídos ao longo de milhões de anos por meio da constante dinâmica terrestre e dos processos endógenos e exógenos a eles associados. Nesse contexto, o objetivo deste manuscrito é analisar o conceito de Geopatrimônio, através da (re)construção do conceito mater de patrimônio e da discussão de formas e espaços de aplicabilidade. O roteiro metodológico desenvolvido é de abordagem qualitativa, compartimentado em um embasamento teóricoconceitual, centrado no Geopatrimônio e áreas afins, e em um contingente técnico-científico, subdividido em etapas interrelacionadas de gabinete (levantamentos e análises dos materiais), campo (levantamento de dados primários e análise empíricas) e laboratório (elaboração dos materiais não textuais - quadros e mapas). Resgatar e compreender a abordagem no meio acadêmico e sua aplicação com a sociedade civil desse importante, mas ainda pouco difundido, conceito das geociências, se apresenta como algo significativo e relevante. E é nesse sentido que este trabalho busca avançar com os estudos e iniciativas voltadas ao geopatrimônio, de modo a contribuir com as discussões acerca do conceito, das abordagens metodológicas e de suas possíveis aplicações.
Palavras-chave: patrimônio,memória da terra,geodiversidade,geoconservação,geoparques.
Abstract: The permanence and popularization of the Earth's memory for the citizen and human formation of current and future generations, through the constitution and conservation of natural heritage, built over millions of years through constant terrestrial dynamics and endogenous and exogenous processes associated with them, they are essential. In this context, the objective of this manuscript is to analyze the concept of Geoheritage, through the (re)construction of the mater concept of heritage and the discussion of forms and spaces of applicability. The methodological script developed has a qualitative approach, compartmentalized in a theoretical-conceptual basis, centered on Geoheritage and related areas, and in a technical-scientific contingent, subdivided into interrelated stages of cabinet (surveys and analysis of materials), field (primary data collection and empirical analysis) and laboratory (preparation of non-textual materials – charts and maps). Rescue and understand the approach in the academic environment and its application with civil society of this important, but still not very widespread, concept of geosciences, presents itself as something significant and relevant. And it is in this sense that this work seeks to advance studies and initiatives aimed at geoheritage, to contribute to discussions about the concept, methodological approaches and their possible applications.
Keywords: heritage, memory of the earth, geodiversity, geoconservation, geoparks.
DOSSIÊ
Geopatrimônio: por quê? Para quê? Para quem?
Geoheritage: why? For what? For whom?
Recepção: 03 Dezembro 2021
Aprovação: 10 Junho 2022
Introdução
A Terra, formada há aproximadamente 4,6 Ga (giga anni), se configura como um planeta dinâmico, movido por processos que a mantêm em um contexto de modificações ao longo de milhões de anos, o tempo geológico, o tempo do planeta, onde decorre a história do planeta. Os resultados desses processos de construção, evolução e transformação estão associados aos mais diversos elementos relacionados à geodiversidade do planeta, a citar: fatores tectônicos, climáticos e hidrográficos, dentre vários outros.
A história dos elementos formados ao longo da história da Terra correspondem, à luz do presente, à sua memória. Memória essa que se descortina no nosso cotidiano através das inovações científicas, das vivências nos espaços de ensino, da curiosidade das pessoas que se permitem questionar: “Por quê? Para quê? Para quem?” para as coisas do planeta que habitam.
Os elementos dessa memória nos possibilitam viver e nos desenvolver enquanto sociedade. No entanto, como toda memória, para se efetivar, ela necessita ser lembrada, valorizada, resguardada e repassada pelas gerações, de modo que, a partir do passado da Terra, se possa entender o presente e planejar e constituir um futuro. As memórias estão associadas à herança, e herança está associada ao patrimônio. Logo, ao associar tais conceitos ao planeta Terra, entender-se-á que a Terra apresenta uma herança, que segundo a Declaração Internacional dos Direitos à Memória da Terra, trata-se de uma herança passível de ser lida e decifrada1.
A permanência e a popularização da memória da Terra para a formação cidadã e humana da atual e das futuras gerações, através da constituição e conservação dos patrimônios naturais são imprescindíveis. Construídos ao longo de milhões de anos por meio da constante dinâmica terrestre e dos processos endógenos e exógenos a ela associados, os patrimônios naturais apresentam particularidades e relevâncias, as quais demandam estudos teóricos e práticos particularizados.
Nesse contexto e considerando as contribuições teóricas da UNESCO (1972), Prats (1998), Brocx e Semeniuk (2007), Borba (2011), Borba e Sell (2018), Iphan (2021); o objetivo deste manuscrito é analisar o conceito de Geopatrimônio, através da (re)construção do conceito mater de patrimônio e da discussão de formas de aplicabilidade.
Materiais e métodos
O roteiro metodológico desenvolvido para buscar esse objetivo foi de abordagem qualitativa, compartimentado em um embasamento teórico-conceitual, centrado no Geopatrimônio e áreas afins, e em um contingente técnico-científico, subdividido em etapas inter-relacionadas de gabinete, campo e laboratório.
Em gabinete realizaram-se levantamentos bibliográfico e documental de materiais publicados em periódicos nacionais e internacionais, livros, capítulos e títulos legais relacionados e vigentes, que tratam das temáticas relacionadas ao geopatrimônio. Posteriormente, ainda em gabinete, foram analisados de forma conjunta e sistemática os dados dos levantamentos feitos (com ênfase na revisão da literatura), dos trabalhos de campo e dos materiais analisados em laboratório.
Na etapa de levantamento bibliográfico foram consultados periódicos nas áreas de Geociências, Geografia, Ciências Ambientais, História, Ciências Sociais e áreas afins, por meio dos descritores presentes no título e nas palavras-chave deste artigo (sem delimitação temporal), ao passo que a maioria dos materiais está disponibilizada nas plataformas: Periódicos CAPES, SciELO, Google Scholar, além do Research Gate. A Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD-IBICT) também foi consultada.
O arcabouço conceitual e o referencial teórico-metodológico apreendidos foram problematizados sob diferentes realidades e contextos naturais da geodiversidade, a partir da realização de levantamentos de campo, feitos pelos(as) autores(as) em diversos momentos e com diferentes objetivos, versando direta e indiretamente acerca do geopatrimônio de países da Europa, berço do conceito de geoparques, e, sobretudo, do Brasil e sua região Nordeste, com ênfase nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Bahia, cujas análises foram construídas em outras pesquisas, mas que serviram como uma valiosa base para a construção da discussão feita neste manuscrito.
Resultados e discussão
Por que patrimonializar? A construção do conceito de patrimônio
Ao longo do tempo e, especialmente, no século XX, o conceito de patrimônio se modificou bastante de sua ideia original, quando era tido como o conjunto de bens herdados dos antepassados, entendido como propriedade de um indivíduo ou família (NUNEZ, 2017). Vindo do latim patrimonium, herança de família (CHOAY, 2006), a ideia de patrimônio sofreu alterações significativas a partir da formulação dos conceitos de monumento, patrimônio histórico e bem cultural (NUNEZ, 2017).
Etimologicamente, a noção de patrimônio vem da concepção de herança paterna, cujo termo em línguas românicas se refere à propriedade herdada do pai ou dos antepassados (PELEGRINI, 2006). Os alemães utilizam Denkmalpflege - “o cuidado dos monumentos, daquilo que nos faz pensar”, e os ingleses adotaram Heritage, com significado restrito “àquilo que foi ou pode ser herdado”, que, em decorrência do mesmo processo de generalização que afetou as línguas românicas e o uso decorrente da expressão patrimonium, também passou a ser usado como uma referência aos monumentos herdados das gerações anteriores, estabelecendo ainda, uma relação com a expressão moneo, que em latim significa “levar a pensar”, vinculando as concepções de patrimônio às de lembrança e de memória (FUNARI; CARVALHO, 2011, p. 02).
A partir do século XIX, o nacionalismo europeu passou a perceber os monumentos como monumentos nacionais, identificados como herança comum e propriedade coletiva, cujo valor histórico os tornou testemunho das virtudes e da identidade dos povos, caracterizados como o elemento básico integrador entre patrimônio e herança comum, em que o valor de antiguidade adquiriu maior evidência do que o valor artístico (NUNEZ, 2017).
Na obra O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem (1903), Alois Riegl, historiador da arte, discorre que os monumentos são portadores de valores quando observados no tempo: valor utilitário ou de uso, valor de arte, valor de novidade e valor relativo. Expõe ainda que, no sentido mais original do termo, o monumento é uma obra criada pelo homem com o objetivo de manter algumas ações humanas presentes na consciência das gerações futuras. Alves (2018) apresenta que, ao colocar a diferença entre o passado e o presente nos diferentes contextos sociais, históricos e culturais, Riegl trouxe uma nova dimensão às questões anteriormente existentes em torno da intervenção dos monumentos no século XIX.
Segundo Chuva (2012), as práticas de atribuição de valor e significados aos bens materiais tomaram novas proporções no século XIX, quando a construção de um patrimônio foi articulada à formação dos Estados Nacionais. Nesse sentido, em diferentes países, constitui-se um sentimento de pertencimento ao grupo-nação, promovendo uma identificação generalizada a partir de referências, ícones ou marcas as quais eram atribuídos valores. Dessa maneira, Marília Cecília Fonseca (2005) expõe que o dispositivo ideológico do patrimônio estava amparado na ideia de nação, assim como sua preservação veio a assegurar-se no âmbito do Estado Nacional.
De um discurso patrimonial relacionado aos grandes monumentos artísticos do passado, interpretados como fatos destacados de uma civilização, avançou-se para uma concepção do patrimônio entendido como o conjunto dos bens culturais, referente às identidades coletivas. Nesse sentido, as diversas paisagens, arquiteturas, tradições, gastronomias, expressões de arte, documentos e sítios arqueológicos passaram a ser reconhecidos e valorizados pelas comunidades e organismos governamentais nas esferas local, estadual, nacional ou internacional (ZANIRATO; RIBEIRO, 2006).
Ao abordar o conceito de patrimônio como herança coletiva (PRATS, 1998), a referência é feita aos bens de propriedade coletiva, usufruídos socialmente e, no caso do Brasil, um direito constitucional (NUNEZ, 2017). Nesse contexto, entende-se por patrimônio cultural tudo aquilo que socialmente se considera merecedor de conservação, independentemente de sua função utilitária, envolvendo também o que habitualmente se identifica como patrimônio natural, uma vez que se refere aos elementos e conjuntos naturais culturalmente selecionados (PRATS, 1998).
A Carta de Atenas, produzida em 1931, foi o primeiro documento de caráter internacional a dispor sobre a proteção dos bens de interesse histórico e artístico, tornando-se um marco na história da salvaguarda do Patrimônio Histórico Mundial, definindo o patrimônio como representação das gerações passadas e, portanto, merecedor de cuidado (IPHAN, 2021). Nas décadas de 1930 e 1940, os primeiros órgãos internacionais responsáveis pela preservação do patrimônio determinaram o próprio entendimento do termo à cultura material, considerada de excepcional valor histórico ou artístico e representativa de uma época ou de um grupo social (FUNARI; PELEGRINI, 2006).
Esse preceito fez parte das discussões sobre o tema no Brasil e acabou influenciando as decisões do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)2, além da implementação do Decreto-lei nº. 25/1937, que se tornou um instrumento jurídico capital para a política preservacionista, ainda em vigor nos dias atuais (FUNARI; PELEGRINI, 2006). O SPHAN foi criado em 1937, vinculado ao Ministério da Educação e Saúde Pública, conduzido por Gustavo Capanema, sendo o primeiro órgão federal a desenvolver políticas de preservação do patrimônio nacional e também para organizar pesquisas de identificação e registro da cultura brasileira (FUNARI; PELEGRINI, 2006; NEVES, 2017).
A mudança da noção de patrimônio teve dois importantes marcos temporais, representados por diretores do Órgão Federal recém-criado. Na gestão de Rodrigo Melo Franco dá-se a construção e consolidação do conceito de patrimônio histórico e artístico nacional e do próprio SPHAN, num período em que o patrimônio nacional era representado pelo barroco mineiro de Ouro Preto (MG) e o valor estético era premissa para o tombamento. Na administração de Aloísio Magalhães percebe-se uma maior abrangência do conceito de patrimônio com o alargamento da noção de bem cultural, que fora utilizado por Rodrigo Melo como sinônimo de bem patrimonial. Aloísio Magalhães entendia que patrimônio, produção artística e manifestações populares faziam parte do universo de bens culturais (NEVES, 2017).
Em 1972, as Nações Unidas promoveram a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (UNESCO, 1972), que gerou um texto normativo subdividindo os sítios a serem salvaguardados como patrimônio mundial entre as categorias do patrimônio natural e do patrimônio cultural, sendo o primeiro tutelado pela International Union for Conservation of Nature (IUCN), e o segundo pelo International Councilon Monuments and Sites (ICOMOS), ambas as organizações filiadas à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO (FACHINI; CARVALHO, 2018).
Nas décadas seguintes, a noção de patrimônio cultural se ampliou para outras categorias, passando a incluir o patrimônio intangível (UNESCO, 2003), promovendo aproximações das diferentes categorias de patrimônio, em convergência e diálogo na relação entre cultura e natureza no âmbito patrimonial, envolvendo bens naturais, histórico-culturais e arqueológicos (FACHINI; CARVALHO, 2018). No Brasil, a partir do Decreto 3551/2000, a reflexão sobre o tema concentrou-se na conceituação de uma nova dimensão, o patrimônio imaterial, abarcando um conjunto de formas culturais, abrindo o campo para novas configurações de gestão do patrimônio (NUNEZ, 2017).
Historicamente tratadas por intermédio de uma série de diferenciações e mediadas por interpretações que, de certa forma, tendem a antagonizar, as relações entre natureza e cultura buscam em última instância, memorar as singularidades da capacidade humana frente às dinâmicas da natureza, adquirindo um sentido particular no desenvolvimento da sociedade (PELEGRINE, 2006). Nesse sentido, o valor cultural da geodiversidade revela-se nas inúmeras relações que existem entre a sociedade e o mundo natural que a rodeia, no qual ela está inserida e ao qual ela pertence (MOCHIUTTI et al., 2012). Os vestígios fósseis, os minerais, o relevo e as rochas que correspondem ao interesse de estudo da Geologia e da Geomorfologia são, também, elementos da herança patrimonial, que registram a história da evolução da Terra, podendo ser tratados e comunicados pela Museologia (RUCHKYS, 2009).
Por sua vez, o trabalho com a temática do patrimônio cultural e natural e a gestão das unidades de conservação no Brasil acontece em mais de uma instituição. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) apreende um conjunto de tipologias com diferentes funções, missões e regras para gestão dos recursos naturais e para a presença humana, enquanto o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) regula o patrimônio cultural, e os dois órgão juntos, instituem a chancela do patrimônio mundial pela UNESCO dentro do território nacional (FACHINI; CARVALHO, 2018).
Ao tratar do patrimônio, Harisson (2015, p. 309) ratifica que não se trata somente de um processo passivo e simples de preservar coisas do passado no presente, mas de “um processo ativo que agrupa uma série de objetos, lugares e práticas selecionadas como espelho do presente, associado a um conjunto específico de valores, que se deseja levar para o futuro”. Os conhecimentos culturais sobre a história e o ambiente constituem importantes riquezas e valores humanos que muito podem colaborar para o desenvolvimento endógeno e sustentável (FACHINI; CARVALHO, 2018; VARINE, 2012).
Embora a definição de patrimônio cultural busque contemplar as mais diversas formas de expressão dos bens da humanidade, tradicionalmente o referido conceito continua a ser tratado de maneira fragmentada, associado às distintas áreas do conhecimento científico que o definem como patrimônio cultural, natural, paisagístico, arqueológico e assim por diante. Contudo, nos últimos anos do século XX e início do século XXI, surgiram leituras que buscaram inter-relacionar essas áreas e que, independentemente das suas respectivas categorias, todo o patrimônio se configura e se engendra mediante suas relações com a cultura e o meio (PELEGRINI, 2006).
Percebe-se dessa forma, que o patrimônio, portanto, não se trata de uma herança congelada, de um legado ancorado na história e guardado em museus, pelo contrário, o patrimônio é o passado que se faz presente, é o espaço carregado de significados, da natureza e da cultura, que conduz para a construção das identidades na atualidade, “é o instrumento mais forte que temos para construir uma direção de futuro que seja coletiva e sustentável” (PADOIN et al., 2021, p. 13).
Para que patrimonializar? O advento do geopatrimônio
Em meio aos impactos negativos e consequentes discussões ambientais, crescentes entre as décadas de 1960 e 1970, emerge, em um cenário de preocupação com o futuro do planeta, o conceito do desenvolvimento sustentável. O termo ora proposto foi apresentado como uma estratégia de se promover o desenvolvimento econômico com base na minimização dos impactos ambientais, de modo a garantir a esta e às gerações futuras, o direito de usufruir de um planeta saudável e equilibrado (BRUNDTLAND, 1987).
Ainda em 1977, Roderick Nash escreveu o artigo: Do Rocks Have Rights? Thoughts on Environmental Ethics (NASH, 1977), e destacou a menor preocupação em conservar os elementos abióticos do planeta, em comparação aos seres vivos. O autor fez uma discussão no que tange, por exemplo, aos direitos, ética e “valor intrínseco” voltados para os elementos vivos e não vivos. Assim como Zimmerman (1985), que também contribuiu com a discussão de uma sociedade menos antropocêntrica e de ampliação dos direitos dos não humanos, incluindo, consequentemente, os elementos abióticos. Para o autor, aprender a morar apropriadamente na Terra se configura na maneira moral mais urgente da atualidade (ZIMMERMAN, 1985).
Diante dos avanços das demandas ambientais, a partir da década de 1990, viu-se a crescente necessidade de se desenvolverem estratégias de conservação mais direcionadas aos elementos abióticos do planeta, e em um contraponto ao conceito de biodiversidade, pesquisadores na área de Geociências apresentaram conceitos para a geodiversidade. Esta é apresentada, de modo geral, como a diversidade de elementos não vivos da Terra, bem como seus processos e dinâmicas (SHARPLES, 1993; ERIKSTAD, 1994; WIEDENBEIN, 1994; STANLEY, 2002; GRAY, 2004; KOLOSWKI, 2004; BRILHA 2005).
Stanley (2002) apresentou a Geodiversidade como a variedade de ambientes geológicos, bem como o conjunto de processos e fenômenos terrestres que originam as paisagens, rochas, minerais, fósseis, solos e outros depósitos superficiais que constituem o suporte para a vida no planeta. Destacou que a Geodiversidade apresenta ainda uma ligação entre pessoas, paisagens e suas culturas, através da interação com a biodiversidade. O autor, em consonância ao que foi apresentado no Relatório “Nosso futuro comum” (BRUNDTLAND, 1987), destacou a importância em se desfrutar da geodiversidade e dos recursos finitos do planeta, objetivando uma forma de desenvolvimento sustentável, com garantias de acesso às gerações atuais e futuras.
A geodiversidade foi determinante no que diz respeito à evolução dos seres humanos. Isso é posto, por exemplo, nas grandes divisões de nossos avanços enquanto sociedade, quando tivemos na pré-história a idade da pedra polida, idade da pedra lascada e idade dos metais, todas associadas a elementos da geodiversidade que proporcionaram o avanço das civilizações com novas técnicas e possibilidades de sobrevivência. Nesse contexto, Brilha (2005) ressaltou que a geodiversidade é determinante para a evolução da civilização, ao citar a disponibilidade de alimento e abrigos, as condições climáticas e materiais para as construções.
Nesse sentido, diante da grandeza de elementos representada pela geodiversidade e pela sua relevância enquanto elementos diretamente ligados aos “serviços ecossistêmicos” (GRAY; GORDON; BROWN, 2013), ecoa a pergunta: o que conservar? Quais desses elementos, utilizados como recursos naturais em todos os níveis de nossa sociedade, poderão ser garantidos às futuras gerações?
Assim, a partir do conceito de patrimônio, em sua forma ampla, e já historicamente consolidado e trabalhado do ponto de vista teórico e prático, associado à preocupação com os elementos não vivos, suas dinâmicas e processos que compõem e decorrem da estrutura natural da Terra, representados pela geodiversidade, emerge o conceito de Patrimônio Geológico/Geopatrimônio e a busca em conservá-lo, desenvolvendo, por conseguinte, diferentes estratégias de geoconservação (SHARPLES, 1993; CENDRERO UCEDA, 1996, 2000; GRAY, 2004; BRILHA, 2005; BROCX; SEMENIUK 2007; PENA REIS; HENRIQUES, 2009; FUERTES-GUTIÉRREZ; FERNÁNDEZ-MARTÍNEZ, 2010).
Sharples (1993) destacou como princípios para a geoconservação a abordagem sistêmica, o foco na significância, representatividade, função, vulnerabilidade, além da relevância ecológica e científica dos elementos da geodiversidade. Nesse sentido, é importante destacar que tais elementos, considerados como patrimônio da Terra, necessitam, após pesquisas teórico-metodológicas apropriadas, que lhes sejam aplicadas estratégias de geoconservação.
Assim, a esse “Patrimônio da Terra” em sua vertente abiótica, foi apresentado na Europa, o conceito em inglês de “Geoheritage”. O conceito surgiu igualmente com a geodiversidade, os geossítios, bem como a geoconservação e refere-se, segundo Brilha (2005), à parcela da geodiversidade que apresenta um valor diferenciado dos demais, que se sobrepõe à média da geodiversidade de seu entorno.
No Brasil, o conceito se difundiu inicialmente como “patrimônio geológico” (Geological heritage), nomeclatura já utilizada em Portugal e disseminada na obra de Brilha (2005). Isso posto, ganhou força talvez, pelo perfil inicial dos pesquisadores dessa temática serem, em sua maioria, geólogos(as), e a CPRM (Serviço Geológico do Brasil) ter sido o órgão de grande relevância e pioneirismo quanto às pesquisas em geodiversidade no país. Assim, com os avanços nas pesquisas, o número crescente de profissionais trabalhando na área (a destacar as/os geógrafas/os) e, por conseguinte, maior popularização dos termos; o conceito de Geopatrimônio tem se difundido e consolidado, tendo sido, por exemplo, tema de um dos Grupos de Trabalhos (GT) do Encontro Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia - ENANPEGE, realizado em outubro de 2021.
Borba (2011) apresentou uma discussão acerca do conceito de geopatrimônio e da interpretação mais ampliada que ele proporciona. Conceituando-o como “a herança outorgada a esta e às futuras gerações pela evolução do planeta Terra, a qual é digna de valorização e conservação” (BORBA, 2011, p. 7). Ainda nessa perspectiva, Steinke e Vieira (2021) destacam o caráter integrador do geopatrimônio, baseado na interpretação do mesmo, como base para a compreensão dos processos responsáveis pela evolução da Terra.
Ainda nesse sentido, Borba e Sell (2018) reforçam a relevância do geopatrimônio: “fomado por materiais, feições, processos ou relações, deixadas como herança ou memória, pela evolução dos processos abióticos do planeta Terra, à humanidade e, em especial, às comunidades em cujo território de vida tais elementos ocorrem” (BORBA; SELL, 2018, p 14).Guimarães (2021) destacou a relação direta do geopatrimônio com as Ciências da Terra, em suas vertentes geológicas e geográficas, mas naturalmente com fortes interações biológicas, históricas e arqueológicas (Figura 1). E nesse sentido, enquanto patrimônio da Terra, o geopatrimônio se configura também como patrimônio da humanidade, logo, carecendo de maior divulgação para garantias de conservação para esta e para as próximas gerações.
Assim, nesse rico contexto conceitual, o presente trabalho adota o conceito de Geopatrimônio enquanto o conjunto de elementos abióticos de valor excepcional, decorrente das dinâmicas e processos terrestres, parte significativa da memória da Terra. Quanto aos demais termos associados ao geopatrimônio que vêm sendo desenvolvidos, estes podem ser aplicados de modo mais particular, sendo voltados para objetivos específicos e ressaltando elementos da geodiversidade, suas especificidades e valores associados. Por exemplo, ao tratar dos aspectos processuais e das feições geomorfológicas, seria apropriado referir-se a este como patrimônio geomorfológico, e da mesma forma em relação ao patrimônio geológico, patrimônio hidrológico/hidrográfico, patrimônio pedológico, entre outros.
Nesse sentido, cabe destacar, por exemplo, o conceito apresentado por Reynard e Panizza (2005), voltado especificamente para o patrimônio geomorfológico e geomorfossítios, classificados por eles como um conjunto de geoformas e processos a elas associados, que estão intimamente associados à evolução morfológica da superfície terrestre, possuindo, por sua vez valores científicos, educacionais, estéticos e/ou econômicos. Contudo, é importante ressaltar que os conceitos propostos para patrimônio geológico e Geopatrimônio estão associados e representam elementos abióticos de valor significativo do (e para o) planeta, são as memórias e o patrimônio da Terra. Entretanto, tem-se, por exemplo, no segundo, um aspecto mais holístico e integrador.
Isso posto, para além de conceitos e nomenclaturas, como se observará no quadro 1, o grande desafio atual é, além de disseminar o conhecimento e a importância do geopatrimônio, desenvolver estratégias voltadas à geoconservação. Em meio ao cenário atual e em escala mundial há de se destacar o papel desempenhado pela UNESCO na conservação do patrimônio cultural e natural, seja este biótico e/ou abiótico. A citar a Rede Mundial de Reservas da Biosfera, com 173 reservas em 131 países e o Programa Internacional de Geociências e Geoparques (IGGP) com 177 geoparques em 46 países, até o presente momento3.
Para Henriques et al. (2011), a geoconservação, ao emergir como uma disciplina nas Ciências da Terra, produz e apresenta conhecimento útil acerca de problemas reais e cotidianos, questões ambientais de relevância social, nas quais sociedade e natureza estão intrinsecamente ligadas. Nesse sentido, é preciso chamar atenção para a importância de se conhecer o geopatrimônio, uma vez que essa relação, quando extrapola o uso e torna o manejo inadequado dos recursos naturais, expõe o geopatrimônio a um grande risco de degradação.
Assim, se faz necessária a compreensão bem definida acerca dos conceitos de geodiversidade e geopatrimônio, uma vez que na geoconservação é preciso definir “o que e como preservar, conservar e utilizar” (GUIMARÃES, 2016, p. 81). Dito isso, a gestão e conservação do geopatrimônio se apresenta como um desafio cada vez maior. Para Borba e Sell (2018), a geoconservação depende da proteção e do uso sustentável do geopatrimônio, enquanto objetivos básicos e essenciais.
Quanto às estratégias de conservação do geopatrimônio reconhecidamente aplicadas no Brasil, em recente trabalho, Guimarães, Moura-Fé e Piekarz (2021) apresentaram algumas iniciativas direcionadas em diferentes esferas, ou seja, em espaços formais e/ou não formais de ensino, por meio de medidas estruturais e/ou não estruturais e ainda, através do Programa de Geoparques Mundiais da UNESCO, a citar o GeoPark Araripe, bem como, estratégias baseadas na legislação vigente, por meio de tombamentos ou através de iniciativas independentes.
Para quem? A aplicação do geopatrimônio
Transpor os apectos teóricos na direção de formas de aplicabilidade, historicamente para a ciência, é algo que se apresenta como um desafio. Colocar à prova das realidades cotidianas a validade, efetividade e sustentabilidade de ideias é uma etapa imprescindível para a maturação de teorias, métodos e conceitos.
Conforme visto, os conceitos de patrimônio e geopatrimônio foram e vêm sendo construídos a partir de diversas e relevantes contribuições, tendo em sua essência, dentre outras metas, a ambição de integrar e de serem aplicados, o que garantiria, de certa forma, tanto a validação de suas construções conceituais quanto a consolidação de métodos. Assim, pode-se perfeitamente perguntar: como pode se dar essa aplicação dos conceitos, do Geopatrimônio? E, talvez, ainda mais importante seja perguntar: para quem? Entende-se que Geopatrimônio, em um determinado recorte espacial e escala de análise, é decorrente, fruto ou relíquia das estruturas, dinâmicas e processos terrestres, vivenciados pelo planeta ao longo de sua história geológica, configurando-se, em suma, como parte significativa da memória da Terra.
Ressaltando Borba e Sell (2018) sobre o fato de que o geopatrimônio, formado por materiais, feições, processos ou relações, deve ser deixado como herança ou memória à humanidade e, em especial, às comunidades em cujo território de vida tais elementos ocorrem; bem como, considerando a correlação umbilical entre geodiversidade, geoconservação e geopatrimônio; além do papel que os geoparques vêm desempenhando, através do IGGP, notadamente, na promoção do conhecimento, valorização e aplicação da geoconservação em diversos lugares do mundo, tem-se, em suma, nos geoparques o locus ideal para se aplicar o ideário relacionado ao conceito de Geopatrimônio.
Geoparque, em linhas gerais, é uma marca atribuída pela UNESCO a uma área onde sítios do patrimônio geológico ou geopatrimônio representam parte de um conceito holístico de proteção, educação e desenvolvimento sustentável. Um geoparque deve gerar atividade econômica, notadamente através do turismo, e envolve um número de sítios geológicos de importância científica, raridade ou beleza, incluindo formas de relevo e suas paisagens (SCHOBBENHAUS; SILVA, 2012).
Ainda conforme Schobbenhaus e Silva (2012), um geoparque no conceito da UNESCO deve:
preservar o patrimônio geológico para futuras gerações (geoconservação); educar e ensinar o grande público sobre temas geológicos e ambientais e prover meios de pesquisa para as geociências; assegurar o desenvolvimento sustentável através do geoturismo, reforçando a identificação da população com sua região, promovendo o respeito ao meio ambiente e estimulando a atividade socioeconômica com a criação de empreendimentos locais, pequenos negócios, indústrias de hospedagem e novos empregos; gerar novas fontes de renda para a população local e atrair capital privado.
Sobre esse último aspecto vale um destaque, pois entre os objetivos fundamentais de um geoparque estão (MOURA-FÉ, 2016):
a promoção da conservação do seu patrimônio natural (com ênfase na geodiversidade e considerando a biodiversidade) e cultural; em consonância com o desenvolvimento socioeconômico sustentável das comunidades locais.
Ou seja, a adoção de estratégias de geoconservação no âmbito dos geoparques deve ser pensada também para as pessoas, para as famílias, para as comunidades, sobremaneira, aquelas que têm proximidade - física, geográfica, identitária, cultural, com os geopatrimônios, objetivando a identificação, aproximação e co-gestão desses espaços (conhecer/cuidar/gerir).
Embora os projetos de geoparques venham ganhando projeção e se consolidando no território brasileiro, com destaque para a região Nordeste do país, detentora, até 2022, do único geoparque com a chancela da UNESCO, o GeoPark Araripe (Figura 2), agora em companhia do Geoparque Seridó (recentemente incluído na lista da UNESCO), o conjunto estabelecido ainda não supre as demandas conservacionistas e, sobretudo, preservacionistas do Brasil.
Ressaltando a importância de se buscar a conciliação entre conservação ambiental e desenvolvimento socioeconômico, principalmente em segmentos territoriais do semiárido brasileiro que apresentam demandas populacionais por emprego e renda, parte das condições de alcance para o desenvolvimento sustentável (SACHS, 2008). Assim, a partir desse “hiato conservacionista”, vale destacar o fundamental papel das Unidades de Conservação (UCs), através do SNUC, sobretudo, na conservação da geodiversidade e seu geopatrimônio.
Embora as UCs, em sua maioria, historicamente no país, tenha sido propostas com ênfase em elementos da biodiversidade e na conservação de elementos biológicos (VIEIRA; CUNHA, 2004; NASCIMENTO et al., 2007; MOREIRA, 2010), uma lacuna que, por exemplo, prejudicou a contemplação da geodiversidade no estabelecimento da maior parte das UCs brasileiras (MOURA-FÉ, 2015); elas apresentam importantes características para a geoconservação.
Primeiro, são áreas legalmente instituídas pelo Poder Público, “com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção” (BRASIL, 2000, art. 2º, parágrafo I). Assim, as UCs proporcionam, pelo menos em tese, uma maior proteção legal ao geopatrimônio, na inobservância de um contexto legal mais específico. Aliás, junto com as Áreas de Preservação Permanente (APPs), as UCs representam os principais referenciais legais na defesa do meio ambiente no Brasil e têm no SNUC sua principal forma de organização (MOURA-FÉ; PINHEIRO; COSTA, 2017).
De maneira geral, as UCs integrantes do SNUC dividem-se em dois grupos, com características específicas, conforme pode ser visto no quadro 2, destacadas na coluna das categorias de UCs, algumas tipologias de UCs podem ser direcionadas para a preservação ou conservação dos elementos abióticos da natureza, como os monumentos naturais, uma característica que reforça o papel das UCs para a conservação do geopatrimônio. Aliás, mesmo que não seja um elemento central, elementos do geopatrimônio podem ser contemplados por qualquer UC, desde que haja a menção e medidas específicas para tal no plano de manejo, um documento fundamental para que o potencial de defesa do meio ambiente das UCs seja efetivado (MOURA-FÉ; PINHEIRO; COSTA, 2017).
O plano de manejo é um “documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade” (BRASIL, 2000, art. 2º, parágrafo XVII, p. 1).
Por fim, vale ressaltar que a coexistência de geoparques (locus ideal para o geopatrimônio) e UCs não só é possível como é bem-vinda, considerando que as UCs já dispõem e fazem parte de um regime jurídico estabelecido no país. Como exemplo, mesmo em uma região dotada de um geoparque, a região sul do Ceará, onde está o GeoPark Araripe, alcançando territórios dos estados vizinhos, tem-se o registro de 15 (quinze) UCs das três esferas administrativas (federal estadual, municipal), além das reservas particulares (Figura 3) (MOURA-FÉ et al., 2020).
Assim, seja através dos geoparques, seja através das UCs, a aproximação e, mais do que isso, a presença do geopatrimônio no cotidiano das pessoas, famílias, comunidades, isto é, para quem o geopatrimônio deve estar voltado, contemplando a integração entre os patrimônios culturais e naturais, pode garantir que passos mais concretos possam ser dados na direção de um contexto mais otimista e sustentável para a sociedade e para a natureza.
Considerações finais
Diante do cenário atual referente aos estudos voltados à temática da geodiversidade, geoconservação e geopatrimônio, o presente trabalho busca contribuir com algumas questões que despertam dúvidas, especialmente para aquelas e aqueles que estão iniciando suas leituras, observações e pesquisas. Um dos desdobramentos possíveis, é realizar uma abordagem da variável política sobre a temática do geopatrimônio, considerando as recentes “flexibilizações” ambientais e relaxamento da legislação vigente, as quais, sob as mais diversas formas, podem impactar sobre a geoconservação.
Nesse sentido, é importante compreender o porquê, para quê e para quem se faz necessário desenvolver iniciativas de geoconservação, manutenção e valorização do Patrimônio da Terra, nossa profunda memória coletiva. Tais questões podem ser compreendidas a partir do momento em que se tem conhecimento do geopatrimônio, suas nuances e tudo o que ele representa em todas as esferas do planeta, nos remetendo ao passado, ao valor que tem para a sociedade atual e, principalmente, para as gerações futuras, reforçando o inegociável compromisso intergeracional para a sustentabilidade.
Ao passo que avançam os estudos e iniciativas voltadas ao geopatrimônio, diminuem-se os hiatos entre conceitos, metodologias e aplicações. Esse cenário é possível de ser observado, por exemplo, no que tange ao crescimento do número de profissionais da geologia, geografia, turismo, entre outros, desenvolvendo projetos e publicando resultados de pesquisas, atuando nas áreas que envolvem o geopatrimônio.
Assim, o trabalho ora apresentado busca contribuir, enquanto fonte de pesquisa teórica, quanto aos conceitos e aplicações do patrimônio, mas principalmente do geopatrimônio e das estratégias de geoconservação a ele associadas.