DOSSIÊ
O Geoparque Caçapava Aspirante (RS) como ponto de partida aos termos sustentabilidade, desenvolvimento, território e o produto territorial do Alto Camaquã
The Caçapava Aspiring Geopark as a motto for the examination of the terms – sustainability, development, territory, territorial mark– concerning the Alto Camaquã region
Percursos
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN-e: 1984-7246
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 23, núm. 52, 2022
Recepção: 29 Novembro 2021
Aprovação: 17 Agosto 2022
Resumo: Este trabalho parte da definição de certos programas no escopo da UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura -, segundo a qual um Geoparque é definido como um território com limites determinados e com área suficientemente grande para dar suporte ao desenvolvimento socioeconômico local. Deve ser ressaltado previamente que as fontes bibliográficas são por enquanto escassas, uma vez que o tema é novo e segue em franca construção teórica. A ideia condutora deste trabalho repousa na percepção de que o Geoparque Aspirante Caçapava preenche os critérios para se tornar efetivamente um geoparque, se apenas considerarmos o potencial do território em questão de se desenvolver endogenamente. Nosso foco é na configuração socioespacial, categoria que engloba termos como geodiversidade, sustentabilidade, desenvolvimento e território. Um fator local relevante é a produção de cordeiro, praticada num território único em termos de paisagem, natureza e cultura humana, de forma a transformar essa produção em um marco territorial, também conhecido como “produto do terroir”. De fato, a produção de cordeiro pode, como este trabalho procura demonstrar, ser o ponto inicial para combinar teoria e práxis, uma vez que ela desponta como o estímulo mais importante e visível para o desenvolvimento local endógeno na região do Alto Camaquã, onde se localiza o Geoparque Aspirante Caçapava.
Palavras-chave: geodiversidade, Geoparque Aspirante Caçapava, configuração socioespacial, marca da carne de cordeiro.
Keywords: geodiversity, Caçapava Aspiring Geopark, sociospatial configuration, the brand of lamb meat
1 Apresentação
O estudo das paisagens geográficas nas últimas décadas tem se voltado para o uso da análise de sistemas, sendo que para Rocha et al. (2012), tanto “os geossistemas quanto os ecossistemas atuais experimentam desde há muito tempo, transformações mais ou menos profundas” (ROCHA et al., 2012, p.2). Sendo assim, o planejamento territorial tem se constituído como mola mestra para a evolução da paisagem. Por outro lado, sem planejamentos territorial e socioambiental atrelados às políticas governamentais, estamos à mercê de intempéries dos efeitos do clima e da ação antrópica desenfreada e poluidora que causa fome e pobreza no mundo.
Ferreira (2021) alude ao desenvolvimento sustentável, no âmbito da ONU e da cooperação entre as nações, o quesito desse instrumento de governança ser estruturado em torno do documento adotado na Cúpula da ONU em 2016 (NOVA IORQUE, 2016) “Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, no qual prevê 169 metas a partir de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Nesse sentido, para Daner Ferreira (2021), os ODS fornecem uma estrutura de formulação de políticas aos Estados membros e junto com outras ações e instrumentos compreendidos no plano de ação da Agenda 2030, abordam diversas questões como a erradicação da extrema pobreza e da fome, a sustentabilidade ambiental e uso de recursos naturais, questões de educação, saúde e economia, entre outras, e podem ser agrupadas em seis áreas temáticas, dentre as quais assumem Justiça e Prosperidade, Dignidade, Pessoas, Planeta (FERREIRA, 2021, p. 8). Programas vinculados à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (UNESCO) estão entre aqueles que consideram o eixo de desenvolvimento sustentável e têm estreita ligação com planos e ações relacionados às décadas posteriores a 1970, constituindo-se um marco.
Nesse trabalho, são estudadas as questões que trazem visibilidade à natureza e aos modos de relação com quem a habita, portanto, há um elo intrínseco entre proteção ambiental, desenvolvimento sustentável e a temática geoparque. O tema orienta-se a partir da definição dos programas vinculados à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura para os quais um geoparque é um território de limites bem definidos, com uma área suficientemente grande para servir de apoio ao desenvolvimento socioeconômico local. Para além disso, exige-se determinado número de sítios geológicos relevantes ou um mosaico de aspectos geológicos de especial importância científica, raridade e beleza, que seja representativo de uma região e da sua história geológica, eventos e processos (UNESCO, 2021).
Assim sendo, para Rocha et al. (2017), houve inicialmente a experimentação de territórios da Alemanha, França, Grécia e Espanha junto ao Programa de União Europeia para Desenvolvimento e Cooperação (LEADER) englobando zonas rurais junto ao conceito de geopark. como revelado nos estudos de Guy Martini e Nicole Zouros. De modo que vale reiterar que há quatro (04) geoparques europeus envolvidos, os quais deram início à formação de uma rede pioneira, a qual então os aglutinava: o Geoparque Floresta Petrificada de Lesvos (Grécia), o Geoparque Reserva Geológica de Haute Provence (França), o Geoparque de Vulkaneifel (Alemanha) e o Geoparque Maestrazgo (Espanha) (ROCHA et al., 2017).
Com isso, pretende-se propor uma possível investigação inicial de um território cujo escopo abarca a ideia de desenvolvimento local sustentável a ser analisado com a seguinte pergunta: Quais as perspectivas que se abrem a partir da candidatura do Geoparque Aspirante Caçapava como ligação ao potencial de desenvolvimento regional endógeno que poderia alavancar, economicamente, os municípios envolvidos para esse último?
No intuito de se delimitar a pergunta norteadora neste trabalho, há a necessidade de apoio em três pontos de diálogo na proposição deste texto:
1. Apresentar o objeto de estudo para o Geoparque Aspirante Caçapava;
2. Expor e compreender o uso teórico das categorias geodiversidade, formação socioespacial, desenvolvimento, sustentabilidade e território;
3. Apresentar a iniciativa que é a Associação para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Camaquã - ADAC - com vistas a se perspectivar e revalorizar a noção de desenvolvimento endógeno para um território.
Para encaminhamento, a revisão de literatura referencia-se em autores como Milton Santos (1997), Paul Little (2004), Rogério Haesbaert (2003); nos estudos de Moreira (2008), Neske et al., (2014), Borba (2015, 2017), esse último tece considerações em específico para o Alto Camaquã. Para a área delimitada, há propostas monográficas como de Fernanda de Almeida Pinto (2019) e Viviane Cristina Silva Lima (2016). Na teoria de agroecologia e interfaces com a sociedade civil e o Estado são incorporados trabalhos de Caron et al. (2020), Carvalho et al., (2019) e Jalcione de Almeida (2002). A metodologia se baseou em fonte secundária bibliográfica sendo que a revisão teórica se faz em continuidade porque novo.
Para localizar o recorte da pesquisa, há uso de descrição e qualificação de alguns elementos geofísicos da região do Alto Camaquã e, a posteriori, do município de Caçapava do Sul, com vistas a situar o leitor do Dossiê Geodiversidade e Geopatrimônio sobre a caracterização de um objeto de estudo que circunda os elementos Geoparque Aspirante e perpassa a marca territorial do produto Alto Camaquã.
2 O Alto Camaquã e suas peculiaridades
A Bacia Hidrográfica do Camaquã abrange uma área aproximadamente de 21.657 km. num território que engloba 28 municípios e delimita-se pela extensão do rio de mesmo nome - o rio Camaquã - geograficamente situado entre os municípios de Camaquã e São Lourenço do Sul (COMITÊ CAMAQUÃ, 2017 apud BORK, 2017). A população total estimada é de 356 mil habitantes (Mapa Comitê Bacia Rio Camaquã, Sítio da Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul). Quanto às suas nascentes, aquelas estão situadas próximas às localidades de Torquato Severo, no município de Dom Pedrito, divisa com o município de Bagé, e Tabuleiro, no município de Lavras do Sul.
O rio principal tem uma extensão aproximada de 430 km e desemboca na Laguna dos Patos, entre os municípios de São Lourenço do Sul e Camaquã. Os municípios integrantes da Bacia são: Amaral Ferrador, Arambaré, Arroio do Padre, Bagé, Barão do Triunfo, Barra do Ribeiro, Caçapava do Sul, Cachoeira do Sul, Camaquã, Canguçu, Cerro Grande do Sul, Chuvisca, Cristal, Dom Feliciano, Dom Pedrito, Encruzilhada do Sul, Hulha Negra, Lavras do Sul, Pelotas, Pinheiro Machado, Piratini, Santana da Boa Vista, São Jerônimo, São Gabriel, São Lourenço do Sul, Sentinela do Sul, Tapes e Turuçu (Comitê Camaquã) (Figura 1).
Para Carvalho et al. (2019), em nível de conflito, usos e problemas da bacia hidrográfica do Rio Camaquã, que por seu turno contemplam o território do Alto Camaquã, refletem a referida participação, discussões e negociações, uma vez que são identificadas demandas a partir dos Comitês de Gerenciamento de Bacia Hidrográfica. Assim, constitui-se pauta como um espaço público em que podem ser incorporadas democraticamente as necessidades e anseios da população da presente Bacia para as deliberações (CARVALHO et al., 2019, p. 11).
O território do Alto Camaquã, designado desse modo por ser a área de maior altitude e banhado pelas nascentes do Rio Camaquã, está localizado na região fisiográfica denominada Serra do Sudeste do Rio Grande do Sul, fazendo parte do bioma Pampa. Situam-se nos limites geográficos da bacia hidrográfica do Alto Camaquã partes das áreas dos municípios de Bagé, Caçapava do Sul, Encruzilhada do Sul, Lavras do Sul, Pinheiro Machado, Piratini e Santana da Boa Vista, o que compreende uma área de 8.172 km (NESKE et al., 2014, p.39). Há territórios de comunidades tradicionais que caracterizam e revelam suas formas e o modus operandi de pecuaristas familiares tal qual muitos se autodenominam como tais, mas não os restringem às atividades de criação de rebanhos, uma vez que existe ali uma complexa sociobiodiversidade.
A região do Alto Camaquã é marcada por um paradoxo: por um lado, é a região mais preservada do bioma Pampa, com 80% da cobertura vegetal natural, mas, por outro, é considerada, pelo Estado, como a mais parte mais empobrecida do Rio Grande do Sul, segundo as palavras de Rieth et al. (2019). A contradição ou paradoxo em parte relacionase a municípios como Santana da Boa Vista, Encruzilhada do Sul, Canguçu e Piratini que ocupam os últimos lugares no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado.
Se, no passado, a mineração foi uma constante fonte econômica e de renda das populações locais, sendo a mineração de cobre por exemplo, um destaque para a bacia, é importante enfatizar que “O depósito mineral, denominado de Santa Maria, está localizado em Minas do Camaquã, distrito do município de Caçapava do Sul”. Assim, Minas do Camaquã é um atrativo turístico do território e por isso compõe a singularidade geopatrimonial que se revela por toda a geografia sistêmica ali presente.
Para Rieth et al. (2019), caracterizam-se a autonomia em relação aos mercados internos, a topografia de terrenos ondulados, os solos rasos e a associação entre a vegetação arbórea com vegetação herbácea. Um mosaico de “campo sujo” e mato constituem, para Borba (2016), alguns dos fatores que explicam o desinteresse por muitos anos, dos projetos de modernização agrícola na região (RIETH, 2019, p. 52).
Godinho et al. (2017) arguem a respeito da “ ideia de desenvolvimento [que] surge com o discurso de Truman em 1949 (ex-presidente dos EUA), quando ele se refere à divisão do planeta entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, impondo nesse sentido, um modelo classificatório e evolutivo entre os diferentes países”. Para além, teorias referenciam o termo desenvolvimentismo como um efeito-ímã, à medida que lhe atribuem as insígnias de “progresso” e “produção de novidades”, seja da perspectiva das redes sociotécnicas ou do prisma de se superar a concepção da agricultura/pecuária tradicional. Neske et al. (2014, p. 42), salientam que as emblemáticas e não menos tendenciosas expressões de “promessas de progresso” e “legitimação de retóricas e regimes de ação" aludem como princípios de ordenação às estratégias de desenvolvimento - para o Alto Camaquã - em que se poderia afirmar “especialmente na última década, a estrutura produtiva do Alto Camaquã tem sido alterada e áreas historicamente ocupadas pela atividade pastoril da pecuária de corte têm cedido espaço para outras atividades” (NESKE et al., 2014, p. 42).
Visto assim, em 2008, o Projeto Alto Camaquã (PAC) foi criado com viés de uma abordagem territorial para se promoverem estratégias de desenvolvimento no território:
Não se trata de um projeto de pesquisa, como o nome pode sugerir, mas de um movimento de ação coletiva de atores locais que tem representado um processo de resistência contrária às práticasdesenvolvimentistas que se intensificaram no Alto Camaquã nos últimos anos. O Projeto prevê ações de intervenção que visam redescobrir” e “revalorizar” o local como portador de experiências e elementos socioeconômicos, culturais e ambientais próprios capazes de gerar e dar suporte a estratégias endógenas de desenvolvimento rural. (BORBA; TRINDADE, 2009 apudNESKE et al., 2014, p. 49, grifos nossos)
Para os autores tomados enquanto fontes, percebe-se o fato de o projeto ter propiciado a revisão de papel de atuação dos dispositivos político-organizacionaisinstitucionais a que pertencem, e ainda a capacidade de reflexão crítica e conduta dos atores sociais a respeito da valorização do lugar dos pecuaristas familiares. Assim, analisando-os, será a partir de uma esfera de novidades, que suponho, desencadearem outras similaridades inventivas, as quais ditas organizacionais, tornam pressupostos importantes como a criação da Associação para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Camaquã (ADAC), da Rede de Produtores e Empreendedores do Alto Camaquã (REAC) e da Feira Alto Camaquã. Diferentemente de aprofundar suas interfaces, as elencamos como possíveis sugestões para se refletir, a partir desse estudo propositivo sobre território, estratégias endógenas e o desenvolvimento per se.
Como em uma via de mão dupla, para Lima (2016, p. 94), em termos do território gaúcho, os atores sociais pecuaristas familiares inserem-se num movimento de resistência à racionalidade capitalista, uma vez que a opção assumida é por manter o sabor diferenciado da carne de cordeiro cuja propositiva tem relação com a marca territorial. Assim, com vistas a respeitarem as dinâmicas ecossociológicas do bioma Pampa e fortalecerem, ao longo do tempo, as iniciativas locais que refletem identidades nos laços de pertencimento com a terra. Por outro viés, sugere-se atribuir sentido à condição intrínseca que perpassa análise via teoria econômica para a qual aponta-se “a externalidade positiva deste processo é a independência frente aos mercados de agroquímicos e a externalidade negativa está na vulnerabilidade social desses atores, que estão à margem de políticas públicas promotoras do bem-estar." (LIMA, 2016, p. 94).
Se a análise é colocada para o território do Alto Camaquã, nota-se linearidade das perguntas a priori conduzidas pelos autores Neske et al., (2014), Lima (2016), Rieth et al. (2019), e sugere-se haver uma aproximação no sentido de buscar a compreensão sobre “O que é desenvolvimento rural? Uma perspectiva linear e reducionista? Ou caracterizados por uma variabilidade de processos sociais, ambientais, econômicos, ecológicos, em um contexto de desenvolvimento?” (CARVALHO et al., 2019).
Tais indagações podem ser problematizadas como motivadoras para outras abordagens que conduzam às questões de escopo que convergem para se analisar a ordenação para estratégias de desenvolvimento endógeno. Por exemplo, parte-se da perspectiva de serem consideradas relevância social, econômica, cultural e ambiental de que se ocupa a pecuária familiar no território do Alto Camaquã, para o desenvolvimento rural e especialmente, à literatura a qual passa-se a argumentar para enfoque de uma visão que se volta para a marca territorial e desenvolvimento.
3 Geodiversidade e o Geoparque Aspirante Caçapava
No passado, todas as comunidades tinham suas sementes, seus materiais de propagação de plantas e animais, perfeitamente adaptados às condições ecológicas e culturais de cada agrossistema. (DAL SOGLIO, 2009 apud BORK, 2017, p. 23)
Para Carvalho et al. (2019), “O paradigma do desenvolvimento sustentável assume que para alcançar o equilíbrio entre o ambiente natural e a qualidade de vida cultural, social, econômica e física das populações locais, é essencial, reconhecer, incorporar, promover e reforçar o papel das populações endêmicas das suas comunidades, já que as empresas privadas exploram os serviços ambientais prestados pelos pecuaristas familiares.” (CARVALHO et al., 2019, p. 353).
No alto Camaquã, o território apresenta-se com seus vales rochosos e plantas endêmicas e por isso constitui cenários para a existência de muitos projetos de turismo rural. O geoturismo nesse cenário, vincula-se tanto às características integrantes do espaço geográfico quanto às possibilidades de incluir a geodiversidade enquanto potencialidade de desenvolvimento endógeno.
Ao mesclar elementos geológicos e geomorfológicos, há condições indispensáveis para ser propor o termo geodiversidade como categoria analítica (NESKE et al., 2014; BORBA, 2015, 2017; FIGUEIRÓ et al., 2019). Na atualidade, o termo abarca diferentes ações e campos de conhecimento desde geopatrimônio, geoturismo, geoeducação, enfim, por engendrar novos valores e práticas contemporâneas frente às lentes que se voltam para mudanças de comportamentos dos seres humanos frente à natureza e à conservação. A geodiversidade pode, inclusive, contribuir para modificar cenários regionais de turismo, emprego e renda.
Para Borba (2017), o caso específico de um geoparque que aglutine Caçapava do Sul, Santana da Boa Vista e Lavras do Sul, projeta-se a partir das justificativas que envolvem: (a) o fato de que são apenas três prefeituras, com laços históricos e geográficos bem consolidados, o que facilita as articulações políticas; (b) o fato de que, com os três municípios, seria possível atingir uma população maior, de quase 50 mil pessoas, e comunidades mais carentes, mesmo com a dificuldade imposta pelas grandes distâncias; e (c) o fato de que os três municípios são muito bem conhecidos em termos de geodiversidade e geopatrimônio, sobretudo após os levantamentos realizados por análises de Borba et al. 2013; Peixoto 2015 (apudBORBA, 2017, p. 121).
Assim, respaldado em Pereira (2010), Figueiró et al. (2019), se defende a perspectiva de que geoparques podem ser entendidos como sistemas sustentáveis de gestão territorial em virtude de aplicáveis a territórios delimitados uma vez que englobam um conjunto de geossítios com relevância em termos científicos, estéticos, culturais, científicos e educativos (FIGUEIRÓ et al., 2019, p. 179). Em função de se vincularem territórios sustentáveis à premissa de um potencial que possa alavancar renda, geoconservação e, acima de tudo, visibilidade para o território, requer considerar:
A percepção dos valores científico, educativo, cultural, ecológico e econômico da geodiversidade de Caçapava do Sul certamente é um passo importante para o desenvolvimento humano e socioeconômico do município e de sua população, de maneira integrada com um meio ambiente equilibrado e conservado. (BORBA, 2015, p. 410)
A partir da inferência de Borba (2015) a respeito do valor atribuído enquanto “desenvolvimento humano e socioeconômico” atrelado à condição de territórios foi necessário buscar um segundo elemento relativo a que Stoffelen (2019) atribui sentido por “se analisar a presença da componente social e o papel das comunidades locais em publicações que envolvem o termo geoparque, por meio de uma revisão sistemática da literatura” (FERREIRA, 2021, p. 16) em que, O segundo autor identificou que as pesquisas são conduzidas por meio de estudos de caso descritivos e repetitivos, nos quais não há uma reflexão crítica da importância social no desenvolvimento dos geoparques. Na verdade, existe uma posição quase que unânime de presumir as contribuições dos geoparques nas questões sobre o desenvolvimento sustentável, bem como para os seus próprios objetivos. (STOFFELEN, 2019 apud FERREIRA, 2021, p. 16)
Assim sendo, o termo desenvolvimento relacionado à denominação e caracterização de um geoparque tem forte vinculação com estratégias endógenas e isso implica de um modo, considerar a atuação dos dispositivos político-organizacionais-institucionais, um atributo que discorremos anteriormente ao citarmos a ADAC, bem como os Empreendedores do Alto Camaquã (REAC) e a Feira Alto Camaquã.
4 Discussão teórica
É mister retomar uma emblemática categoria à geografia crítica que é a de formação socioespacial, a qual tem como precursor teórico Milton Santos, o qual constatou que:
Modo de produção, formação social, espaço - essas três categorias são interdependentes. Todos os processos que, juntos formam o modo de produção (produção propriamente dita, circulação, distribuição, consumo) são histórica e espacialmente determinados num movimento de conjunto, e isto através de uma formação social [...]. Os modos de produção tornam-se concretos sobre uma base territorial historicamente determinada. (SANTOS, 1977, p. 86).
Sendo de grande valia compreender a categoria formação socioespacial enfocando sua base na totalidade, ou seja, num movimento de conjunto, caberão também análises como de Rocha et al. (2017), que situaram nas últimas décadas sobre a preocupação com a conservação do patrimônio geológico suscitar diversas iniciativas de proteção. Os autores destacam, por exemplo, a Rede Global de Geoparques. chancelada pela UNESCO, criada em 2004, para viabilizar conservação, valorização e divulgação do patrimônio geológico como preocupação por irradiar dentre outros valores e práticas. Resulta em sobressaírem como elementos paleológicos, geomorfológicos e paleontológicos por atributos inerentes à condição de geodiversidade e de evolução geológica do território e, por tal o possibilitam ser um aspirante à geoconservação, este um dos quesitos para se concretizar a Carta de Intenções junto à propositura da UNESCO.
Borba (2017, p. 105) faz menção à região de Caçapava do Sul, apontando a localidade por tratar-se de “um centro de produção de conhecimento e de aprendizado em geociências ao mesmo tempo, um laboratório e uma sala de aula ao ar livre”. Ademais, sobre o termo certificação, junto ao termo território:
Um dos critérios fundamentais para a certificação de um território como geoparque segundo as atuais regras da UNESCO (UNESCO, 2016) referese à existência de um patrimônio geológico ou geomorfológico singular, de valor internacional, aferido por uma comissão de avaliação, com base nas publicações disponíveis sobre os geossítios ou geomonumentos presentes naquele território. (BORBA, 2017, p. 109)
Consta da literatura que os geossítios “constituem-se por um projeto de desenvolvimento econômico e social sustentável, que se encontra em constante reformulação e adaptação às realidades locais” (ROCHA et al. 2017, p. 272). Enquanto teor de documento elaborado pela UNESCO, se tem a descrição da área em suas questões administrativas e de identificação do território, em que pelo menos cinco conjuntos de perguntas devem ser preenchidos, a saber apontam para: a) Geologia e Paisagem; b) Estrutura de Manejo; c) Interpretação e Educação Ambiental; d) Geoturismo e; e) Sustentabilidade Econômica Regional (MOREIRA, 2008, p. 103). Ora, para o interesse do trabalho, por fim, alude-se ao elemento de sustentabilidade.
Um ponto nodal a se ressaltar é que “sob uma lógica que busca unir interesses econômicos, ecológicos e sociais, o discurso de desenvolvimento sustentável foi adequado para manter o crescimento econômico e mitigar por via da ‘modernização ecológica’ (ZHOURI; LASCHEFSKI; PAIVA, 2005) os impactos causados por grandes empreendimentos” (GODINHO et al., 2017).
Portanto, ao se propor compreender sustentabilidade, derivada de sustentável, a ideia perfaz uma condição pertinente . promoção de transformações para a Agenda de 2030 tal como consta dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), conforme atributos mais amplos defensáveis a partir do Acordo de Paris (2015), no qual consta o artigo 2º, a saber “refletir-se o dilema entre promover baixas emissões de GEE e por outro garantir disponibilidade - o suficiente - de alimentos para todos do globo”. Caron et al. (2020), ao argumentarem sobre “sistemas alimentares para o desenvolvimento sustentável: propostas para uma profunda transformação em quatro partes”, nos expõem a ideia de que uma nova transformação engloba para além do abastecimento: agricultura e meios de subsistências rurais, que em congruência possam abarcar toda a cadeia (insumos, ambiente, pessoas, infraestrutura, instituições e processos).
Uma das metas dadas para os ODS, baseou-se naquela Agenda (2030), por isso requisitou a alteração do modo como o desempenho é aferido, com vistas a se propor a articulação entre níveis locais de oportunidades e fornecimento de serviços sociais e econômicos para o território. Compreendem-se os atributos sugeridos à transformação dos sistemas agroalimentares por Caron et al. (2020), pois aqueles atribuem, sinteticamente, as ideias de mecanização e modernização em atenção à globalização dos mercados. Sendo ainda notáveis exclusão, com relação às normas e especificações, condições de mercado, bem como excesso da volatilidade dos preços; externalidades que agrupam tanto as preocupações sobre questões ambientais - serviços ecossistêmicos - empobrecimento rural, impactos sobre a saúde -, consumo humano inadequado; ao que condiz ao fornecimento - e nesse quesito importa salientar o papel tanto de grupos científicos quanto dos atores políticos juntamente à transformação: reconhecimento da diversidade, adaptações das populações locais em prol do desenvolvimento humano e saúde em longo prazo.
Contrapondo-se à agricultura modernizadora, portanto convencional, há um prérequisito que é o renascimento rural enquanto alternativa, o qual após um longo período no anonimato das políticas públicas cede passagem por assumir condições de criar relações entre populações rurais e urbanas a partir de dimensões como agroecologia e agricultura orgânica. De modo que, para as populações inseridas nas avaliações pertinentes aos sistemas agroalimentares sustentáveis e aderentes aos pilares dos ODS, frente às intempéries e aos novos padrões climáticos, é preciso ser enfatizada a condição de uma análise mais processual para a inserção de territórios, diferentemente do que antes se orientava a partir dos modelos lógicos e lineares, ou seja, mais ligados aos convencionais e tempos antes, distantes dos moldes alternativos.
Assim, outra categoria a se tangenciar é a de território. Caracteres como bases tecnológicas devem ser incorporados no que concerne às dimensões espacial e geográfica. Para tanto, se revela válida a articulação de dimensão cultural, como a assumida a partir de Rogério Haesbaert:
O território envolve sempre ao mesmo tempo [...] uma dimensão simbólica, cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de controle simbólico sobre o espaço onde vivem (sendo também, portanto uma forma de apropriação) e, uma dimensão mais concreta de caráter político disciplinar: a apropriação e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos. (HAESBAERT, 1999 apudHAESBAERT, 2003, p. 14)
A respeito do que nos coloca Haesbaert (1999, 2003), é preciso fazer um parêntese sobre a antiga confusão entre território e espaço geográfico, os quais estão longe de serem expressões sinonímias. Para essa análise é profícuo enunciar um aporte histórico elementar que se debruça por compreender a crise do Estado-Nação, a deslocalização de empresas na economia versus a perda de base territorial das identidades culturais e uma vasta explanação das leituras sociológicas a respeito do discurso da desterritorialização. Opta-se pelo que Paul Little expõe sobre espaços intersticiais, a saber “a partir de uma macroperspectiva fundiária, o resultado geral do processo de expansão de fronteiras foi a instalação da hegemonia de Estado-nação e suas formas de territorialidade” (LITTLE, 2004, p. 257) e a propósito, acrescenta o autor:
Mesmo que esse processo não tenha sido homogêneo nem completo, como acabamos de ver a nova entidade territorial do Estado-nação impôs-se sobre uma imensa parcela da área que hoje é o Brasil, de tal forma que todas as demais territorialidades são obrigadas a confrontá-la. (LITTLE, 2004, p. 257)
sCompreende-se, desse modo, território como categoria indispensável para imbricar processos localizados de desenvolvimento, sustentabilidade e observância à economia endógena do território. Abramovay (2006) respalda-se em teóricos da Nova Economia Institucional em função da expectativa de delegar ao processo histórico da formação de territórios o termo confiança, sendo este a base de interação, fortalecimento de laços e identidades entre os atores sociais.
Por tal feito é consenso o entendimento de que os territórios são parte da história cultural, social e econômica dos povos; povos que “geralmente são fragilizados devidos aos processos de extermínio, desapropriação de seus territórios, subordinação política foram perdendo seus espaços e tendo que migrar para outras regiões” (WEDING; RAMOS, 2016, p. 23). No que tange a demarcação de territórios, estes “são processos fundamentais para sua reprodução social, num contexto em que, frente à expansão das fronteiras agrícolas e a construção de grandes obras, entre outros fatores, as áreas ocupadas vão se encolhendo mais e mais, ameaçando a sua existência” (BORK, 2017, p. 24).
Com vistas às perspectivas assumidas para os territórios de geoparques, há uma nota importante dos autores, a qual se deve a que “a implantação de um Geoparque, como alternativa de desenvolvimento regional, poderá alavancar economicamente os municípios envolvidos, pois o aval da UNESCO traz o reconhecimento de que determinado território está contemplado com uma geodiversidade apta para visitação.” (ROSA et al., 2015, p. 151). A partir de Borba (2017), infere-se um relevante atributo a que o conceito de geoparque deve ir além, na medida de constituir “unidades territoriais histórica e politicamente estabelecidas, nas quais haja uma população que se identifique com esses limites.” (BORBA, 2017, p. 123).
Fernanda de Almeida Pinto (2019, p. 53-55) expõe uma problemática ao levantar análises, partindo de escritos de Henry Lefebvre (2014, v. II) sobre a crítica da vida cotidiana para enunciá-las às possíveis contradições da vida quando o lugar de fala provém das comunidades que vivem às margens do rio Camaquã. Há pressupostos que iniciam por delinear como possível ligação ao potencial de desenvolvimento regional endógeno e por outro, ao sentido de conversão, essa terminologia tão cara à agricultura moderna.
Alavancar, economicamente, os municípios envolvidos em potencialidades geoturísticas seria uma proposição cogitada também às formas alternativas de comercialização? Relativamente à autonomia dos agricultores/pecuaristas familiares, quais aspectos e aptidões foram assumidos? Algumas questões conduzem ao sentido de se fazer investigar uma visão de mundo, que ora, é operativa frente a uma “estrutura capitalista da sociedade e da vida” (PINTO, 2019, p. 22-23) e, outrora é a força motriz para transformar caminhos. Reflete-se sobre a ideia do homem enquanto elemento da totalidade, pois se considera:
De acordo com Lefebvre (2014, v. I), estudar o cotidiano corresponde a explorá-lo em três dimensões: trabalho, família e lazer. Relacionadas umas às outras, elas formam um sistema dialético, uma unidade, “que podemos chamar de ‘estrutura global’, uma ‘totalidade’, sob a condição de enfatizarmos sua natureza histórica, mutante e transitória. (LEFEBVRE, 2014, v. I, apud PINTO, 2019, p. 24)
As dimensões trabalho, família e lazer percorrem as questões que ligam os pontos nodais a saber, desenvolvimento, associação e mesmo uma proposta que se possa acionar para a região investigada em que há predomínio de caminhos para conversão da agricultura/pecuária convencionais às formas alternativas de comercialização: tão necessárias para a mudança de paradigmas do sistema anterior.
Para Jalcione de Almeida (2002), iniciativas recentes de grupos e organizações sociais, tanto no âmbito governamental (particularmente no caso do Rio Grande do Sul, há cerca de quatro anos), como não governamental (experiências de ONGs, associações de agricultores, sindicatos, entre outros), se concentram na busca ou recuperação de alternativas tecnológicas aos sistemas produtivos convencionais tidos como esgotados, pois são considerados poluentes, antieconômicos e incapazes de promover a autonomia dos agricultores familiares envolvidos (ALMEIDA, 2002, p. 31).
É possível, ademais, enfatizar dentre as diversas questões desafiadoras da agroecologia, aquelas que por muito tempo se ligavam a:
Como considerar/elevar a diversidade para além do protesto puro e simples? Como adaptá-la às ações de desenvolvimento que se dirigem tanto a uma clientela heterogênea quanto aos seus determinantes sociais, suas aptidões e meios materiais? essas dificuldades não estariam ligadas a uma certa tendência ao isolamento, à prioridade dada a certas necessidades de camadas sociais que ainda não conseguiram despertar a atenção e o interesse do poder político instituído? (ALMEIDA, 2002, p. 32)
Sendo uma proposição que objetiva dar ênfase aos determinantes sociais, aptidões e meios materiais, faz-se compreensiva definir uma derradeira categoria de análise que é a de desenvolvimento endógeno. Para tanto, nesse escopo, a referência é buscada em Lima (2016), autora que expõe como desenvolvimento territorial endógeno a situação em ambientes de montanha:
O desenvolvimento capaz de valorizar o capital social dos atores e sujeitos, promover redes de articulação entre esses atores, melhorando a qualidade de vida deles; conservar os ecossistemas; e por fim o ato de manejo dos agroecossistemas de forma sustentável, assegurando a disponibilidade dos recursos naturais para as próximas gerações, garantindo-lhes a (re)produção sociocultural. (LIMA, 2016, p. 77)
É interessante ressignificar a palavra desenvolvimento atribuindo a ela o sentido de “buscar a satisfação das necessidades individuais e coletivas, em nível de cidadão e de cada segmento que compõe a sociedade denominados de ponto de vista (agricultura, comércio, indústria etc.), é fundamental o levantamento de problemas socioambientais” (ROCHA et al., 2012). Ademais, se almeja dar à problematização socioambiental sentido de empiria - com levantamentos e trabalhos de campo - à medida que se proceda de modo mais categorizado, ao que expressam os atores sociais para seus territórios por estes, do lado de cá, intitulados por cientistas de profissão.
5 Associação do Desenvolvimento do Alto Camaquã: cordeiro como carrochefe
Estava tudo se liquidando, o pasto tomando conta das plantações, as árvores morrendo de velhas, a criação se terminando, e agora, a lo más, as coisas eram diferentes, era tudo moderno, ninguém queria saber de caixa de doce, compota caseira, fruta seca, galinha viva… estava tudo mudando... (Schlee, 1988 apud Rieth et al., 2019, p. 50)
Viviane Cristina Silva Lima (2016) argumenta sobre o desenvolvimento endógeno dos territórios tendo como mote o protagonismo dos atores locais, bem como a valorização do capital territorial. Ao enunciar a agroecologia, a mesma autora toma por bases sociológicas, epistemológicas e metodológicas tal que as define:
No enfoque agroecológico o potencial endógeno constitui um elemento fundamental e ponto de partida de qualquer projeto de transição agroecológica, na medida em que auxilia na aprendizagem sobre os fatores socioculturais e agroecossistêmicos que constituem a base estratégica de qualquer iniciativa de desenvolvimento rural ou de desenho de agroecossistemas que visem alcançar patamares crescentes de sustentabilidade. (CAPORAL et al., 2011, apud LIMA, 2016, p. 16)
Há, em Lima (2016, p. 71), “um aspecto que merece destaque nas dinâmicas sociais do Alto Camaquã é a utilização do selo como marca distintiva do território”. Na visão de mesma autora, há esforços no sentido de mitigar a erosão sociocultural e o processo de desterritorialização do Alto Camaquã, sendo preliminar inseri-lo no cerne das políticas públicas a partir dos atores e dos “sujeitos que vivem e se reproduzem no território, considerando todo seu potencial endógeno, incluindo o estoque acumulado no processo organizativo dos mesmos”. A partir dessa visão, a tese da autora desmitificou o fato de que “entende-se [que] a manutenção das conquistas alcançadas pelos pecuaristas familiares ocorrerá face ao fortalecimento da marca coletiva territorial, apoiada na participação dos mesmos nos espaços de discussões, como Conselhos Municipais alicerçada no fortalecimento de suas organizações, dentre as quais destacamse a ARCO, a ReAC e a ADAC.” (LIMA, 2016, p. 73).
Assim sendo, Lima (2016) apresenta um, entre diferentes fatores limitantes constatados por sua pesquisa a respeito dos manejos de agroecossistemas pelos produtores do Alto Camaquã, e vislumbra a autora desse modo a ligação com tal porção de território apresentar área maior com baixa densidade demográfica e econômica. Fatos esses que sobredeterminam o distanciamento físico dos agricultores dos estabelecimentos comerciais, o que em parte, exige dos agricultores a dinâmica de criarem suas próprias estratégias de manejo com recursos disponíveis em suas unidades de produção ou nas proximidades daquelas.
Na teoria de Ploeg (2016) nota-se existir estrita vinculação com o termo economia de escopo, tanto por nossas considerações parciais quanto pelo que Lima (2016) sugere em sua análise, vinculada a que, “se por um lado o território do Alto Camaquã se aproxima de uma agricultura de base camponesa, cuja relação de pertencimento com a terra é grande, fazendo dela, ao mesmo tempo, o meio de produção aquele se faz o lócus da reprodução social.” (LIMA, 2016, p. 74).
Desde 2010 se considera a estratégia de um projeto de desenvolvimento territorial endógeno na região ter sido orientada por via da ADAC, se constituindo fruto da articulação entre pecuaristas familiares e parceiros, como universidades, Embrapa e Emater. A ADAC é uma rede de associações comunitárias, localizadas nos municípios que integram o projeto. A mesma rede envolve, assim, número aproximado de 500 famílias - cerca de 2 mil pessoas - distribuídas em vinte e cinco (25) associações. O objetivo daquela é “apoiar e promover a preservação do patrimônio histórico, do meio ambiente, das culturas étnicas e produtivas do Alto Camaquã.” (BORBA, 2016 apud RIECH, 2019, p. 52). Apenas no ano de 2012, novos encontros da ReAC possibilitaram avançar na construção de acesso aos mercados.
Simões (2021), dentre outros desdobramentos, compreende haver uma série de pequenos territórios contemplados e anexados aos “terroirs” identitários existentes, passando desse modo a demandar projetos de Design de marcas e de Design de embalagens, considerando evidência um viés da economia capitalista de mercado. Assim, recursos específicos como elementos culturais, geográficos particulares “podem e merecem ser ativados” em sinergia com ações governamentais expressas em arenas competitivas de mercado (Shiraishi Neto e Dantas, 2010, apud Simões, 2021, p. 15).
A respeito da ReAC, em maio e junho daquele ano (2010), duas novas reuniões definiram os produtos para iniciar a comercialização e as estratégias de uso da marca territorial coletiva (MATTE et al., 2016, p.149). Em Matte et al. (2016), utiliza-se um estudo de caso sobre a relocalização alimentar e formação de cadeias curtas pela venda de carne de cordeiro por pecuaristas familiares no Alto Camaquã em que se constatou “adotar a estratégia de revalorização da procedência dos alimentos, pretende construir mercados de pecuária familiar de produção e comercialização da carne de cordeiro no território Alto Camaquã”. Para os referidos autores, considerou-se:
A emergência da relocalização como protagonista na ressignificação da produção agroalimentar que associa e valoriza aspectos como o enraizamento social do lugar, relações de confiança e, sobretudo, a formação de cadeias curtas na produção de alimentos tem ganhado espaço nos debates sobre a virada da qualidade. (MATTE et al., 2016, p. 151)
Cabe ressaltar que o carro-chefe do processo de comercialização eleito foi o cordeiro, conforme foi estabelecido na reunião da ReAC durante junho de 2012, de modo que “os critérios e regulamentos do ‘cordeiro típico’ do Alto Camaquã: os cordeiros devem ser ‘produzidos no território (produção própria dos membros da ADAC)’”; “de raças diversas, machos (castrados) ou fêmeas com no máximo 14 meses”; “criados em campo nativo, aceitando-se suplementação para acabamento com fontes de concentrado não transgênicos produzidas no território Alto Camaquã”; “comercializados com peso entre 30 kg e 40 kg.” (MATTE et al., 2016, p. 149).
Importante, assim, considerar os atores sociais envolvidos no circuito no sentido de atribuir-lhes a tarefa de desconstruir a noção arraigada a priori, com relação às práticas e políticas modernizadoras enquanto por exemplo assumido um estigma sobre “lombo do cavalo” contraditório ao alcance a um “arsenal tecnológico disponível” constituindo, pois, mobilizados via mercados de insumos e serviços (NESKE; MIGUEL; BORBA, 2012; BORBA, 2002; BORBA; TRINDADE, 2009; WAQUIL et al., 2016). Assim sendo, dos autores vale reiterar:
Desconstruir a noção de pobreza enraizada no imaginário geográfico e social foi, e continua sendo, uma premissa ‘consciente’ que tem orientado a base das ações de desenvolvimento do Projeto Alto Camaquã, o que evidencia que o desenvolvimento rural não é uma mera aplicação de ações e políticas modernizantes na tentativa de corrigir problemas que são criados como ‘anomalias’. (MATTE et al., 2016, p. 153)
Sobremaneira, tem-se da reflexão dos referenciais acima, uma relevante premissa analítica que demonstra, pela insígnia do desenvolvimento, os pilares fortemente arraigados uma vez que “a qualidade está relacionada às qualidades presentes em ativos culturais, sociais, econômicos, produtivos, institucionais e ambientais presentes no local, os quais estão sendo mobilizados para a diferenciação dos produtos e dos processos de comercialização.” (MATTE et al., 2016). Isso implica que se a produção de cordeiro ocorre em um local único, de paisagem e características naturais e culturais únicas; é um produto diferenciado por conta daqueles singulares aspectos que a caracterizam marca territorial. 6 Considerações finais
Assim, o comportamento de populações nos quesitos valorização da natureza - geopatrimônio e geoturismo, bem como a sustentabilidade rural e o desenvolvimento devem estar vinculados à identidade territorial dos residentes onde são sediados os geoparques aspirantes. Para além, há de ser somado àquele o caráter de especulações de domínios geográficos, geopatrimoniais, tais que se apreendam nas candidaturas aos geoparques aspirantes UNESCO, enquanto regiões recortadas pelo geoturismo. Considera-se condição intrínseca existir o planejamento territorial e, indissociavelmente, se requer que essas mesmas porções geográficas atendam as recomendações da Carta de Intenções - UNESCO, na medida em que seus conteúdos se voltam para perspectivas e potencialidades de se alavancarem territórios para os quais a renda deve ser assegurada às suas populações residentes.
Ainda de interesse se fazem a perspectiva geracional e de inclusão de “todos os envolvidos”. Por isso, é mister se averiguar em que medida outras iniciativas, a exemplo da proposta de localismo do desenvolvimento, a proteção ao leque de produtos enfim assegure a valorização dos ativos do território tal qual se viceja com o caso da típica - porque local - carne de cordeiro, ao propiciar a potencialização e contribuições no quesito identidade territorial. Nesse sentido é a partir do prisma da cadeia curta que se vislumbra “incluir” os processos coletivos de comercialização em franca construção da marca territorial, por conseguinte também constituída coletivamente.
Lima (2016) parte da premissa de que as políticas públicas para a agricultura familiar somente podem ser consolidadas se, feitas pela perspectiva da participação, sendo, inclusive, utilizado pela autora o termo bottom up na acepção das novidades: fato que se nota frente à orientação de sentido pela própria base agroecológica.
Se, todavia, o olhar se volta para a relocalização, a partir de um contexto específico - que é o da pecuária familiar - possivelmente, se permita problematizar um norte para futuras pesquisas acadêmicas baseadas no que a própria autora acima nos expõe relativamente ao “resgate da base camponesa de produção, em que a relação homem-natureza extrapola a materialidade produtivista” (LIMA, 2016).
Desse modo, o artigo para o Dossiê de PerCursos, para além do estado da arte do geoparque e marca territorial coletiva, instiga refletirmos a tão propalada reinserção do rural sob a égide da “nova transformação para além do abastecimento”, conforme Caron et al., (2020) expuseram em análises sobre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável para a necessária Agenda 2030.
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