CONTÍNUA

Dinâmicas econômicas e sociais na aglomeração urbana de fronteira de Corumbá/BR, Puerto Quijarro e Puerto Suarez/BO: uma análise a partir dos descolamentos pendulares

Economic And Social Dynamics in the urban frontier agglomeration of Corumbá/BR, Puerto Quijarro and Puerto Suárez/BO: an analysis based on commuting

Cláudia Heloiza Conte
UEMS, Brasil

Percursos

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN-e: 1984-7246

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 23, núm. 51, 2022

revistapercursos.faed@udesc.br

Recepção: 04 Agosto 2021

Aprovação: 19 Novembro 2021



DOI: https://doi.org/10.5965/1984724623512022385

Resumo: Este trabalho busca compreender as dinâmicas econômicas e sociais que ocorrem na aglomeração urbana de fronteira composta por Corumbá/BR, Puerto Quijarro e Puerto Suárez/BO, por meio dos deslocamentos pendulares. Trata-se de um fenômeno comum nessas áreas e que caracteriza e singulariza as mesmas. Para tanto, buscou-se discutir os elementos dos deslocamentos pendulares, para em seguida abordar a gênese e o desenvolvimento dessa aglomeração. Por fim, é traçada uma análise dos deslocamentos pendulares que ocorrem por ali. Compreendeu-se que, é por meio desses deslocamentos que grande parte da população assegura seu trabalho, além do consumo de bens e serviços.

Palavras-chave: Corumbá, Puerto Suárez, Puerto Quijarro, deslocamentos pendulares, fronteira.

Abstract: This work seeks to comprehend the social and economic dynamics that occur in the border urban agglomeration composed by Corumbá/BR, Puerto Quijarro and Puerto Suárez/BO, through commuting displacements. It is a common phenomenon in these areas and which characterizes and singularizes these. For this purpose, it was sought to discuss elements of commuting displacements, to approach, following that, the genesis and the development of this agglomeration. Lastly, an analyses of commuting processes which occur there is traced. It was comprehended that, through these displacements, most of the population ensure their work, in addition to goods and services.

Keywords: Corumbá, Puerto Suárez, Puerto Quijarro, commuting, frontier.

Introdução

A população de Corumbá, Ladário, Puerto Quijarro e Puerto Suárez é de 157.059 habitantes, dos quais 34.0281 vivem no lado boliviano. A passagem pela fronteira é dinâmica e frequente, passando por ali diariamente moradores, turistas, mercadorias, informações decisões, mais valia, etc. De acordo com Manetta (2009), a população de Puerto Quijarro foi a que mais cresceu nos últimos anos, em razão do intenso comércio informal nas imediações do limite com Corumbá.

Grande parte da população do Oriente boliviano tem mais contato com cidades brasileiras do que com as cidades bolivianas do antiplano, pois encontram-se mais próximas e principalmente pela oferta de bens e produtos. Atrelado a isso, tem-se o fato de que a fronteira com a Bolívia é a mais extensa do Brasil (3.126 quilômetros), com baixa densidade demográfica em diversos trechos. O mapa 01 apresenta essa aglomeração urbana de fronteira.

Aglomeração urbana de Corumbá, Puerto Suárez e Puerto Quijarro
Mapa 1
Aglomeração urbana de Corumbá, Puerto Suárez e Puerto Quijarro
Fonte: Google Maps, 2015

Lima (2007) classifica aglomerações urbanas de duas maneiras: a primeira abrange aquelas de espaço urbanizado contínuo, que podem ser resultado de expansão da cidade central, da expansão simultânea de duas ou mais cidades ou resultantes de uma integração do próprio sítio urbano (cidades geminadas). A segunda é a de aglomerações sem espaço urbanizado contínuo, constituídas por municípios contíguos, cuja integração é realizada por complementaridade de funções.

A aglomeração urbana representa uma área de mutação diária entre cidades, isto é, o desenvolvimento de relações interdependentes entre duas ou mais áreas urbanas, compondo um fenômeno único (ULTRAMARI; MOURA, 1994). Essa vinculação entre os centros urbanos, que caracteriza a continuidade espacial, está relacionada aos fluxos de pessoas, de mercadorias, informações, capital, etc.

Nos estudos sobre aglomerações de fronteira, alguns autores se referem as mesmas enquanto cidades gêmeas, visto que se encontram aos pares ao longo do limite internacional. Machado (2006, p. 63) argumenta que “[...] a posição geográfica, de proximidade ao país vizinho, é um atributo que confere a essas aglomerações, forte potencial de atuar como nódulos articuladores de redes locais, regionais, nacionais e transnacionais”.

Para a autora, a denominação cidades-gêmeas é livre, pois a fronteira internacional brasileira é grande e faz fronteira com vários países, situação que cria arranjos espaciais bastante diversificados, apresentando tamanhos distintos, encontrando-se ou não em fronteiras secas, podendo ou não constituir uma conurbação. Aglomeração de fronteira e cidades gêmeas possuem o mesmo significado, ou seja, cidades localizadas na fronteira internacional, que possuem fortes relações e fluxos entre si. Nesse trabalho optou-se pela utilização do termo aglomeração de fronteira, deixando claro que se trata de fronteira com países, portanto, internacional (MACHADO, 2007).

Dentre os fluxos que ocorrem nas aglomerações urbanas de fronteira, os deslocamentos pendulares ganham destaque do ponto de vista de sua importância para a dinâmica das mesmas. Assim, os deslocamentos pendulares representam uma das “[...] dimensões dos processos de deslocamento da população no território, num contexto determinado e socialmente constituído, no tempo e no espaço” (JARDIM, 2011, p. 58).

Para discutir a temática aqui proposta, este trabalho está dividido em três partes, além das considerações finais. Incialmente, é apresentada uma breve discussão teórica sobre deslocamentos pendulares. Em seguida, é realizado um resgate histórico, a fim de compreender como se deu a gênese e o desenvolvimento das cidades pertencentes à aglomeração urbana de fronteira em tela, e por fim, abordam-se os deslocamentos pendulares que ocorrem nessa área, analisando e verificando as principais características e os elementos responsáveis por essa dinâmica.

Metodologia

Para alcançar o objetivo deste trabalho foi preciso compreender a realidade do objeto de estudo, ou seja, dos municípios de Corumbá/BR, Puerto Quijarro e Puerto Suárez/BO. Para tanto, o materialismo histórico e dialético foi a base para o entendimento e interpretação da realidade. Neste sentido, a formação socioespacial possibilita realizar uma análise da concretude de uma determinada sociedade, levando em consideração sua criação, evolução, situação atual, mudanças históricas e suas relações, sendo essa uma realidade histórico-concreta.

A pesquisa utilizou distintos procedimentos de coleta de dados. Para o entendimento sobre as temáticas vinculadas à formação socioespacial, aos deslocamentos pendulares, economia, aspectos históricos e geográficos, assim como demais assuntos relevantes, foi realizada leitura de teses, dissertações, livros, artigos especializados, além de consulta em sites e órgãos governamentais. O levantamento bibliográfico auxiliou na construção de um referencial teórico. Além disso, ocorreu a realização de pesquisas de campo, com intuito de verificação empírica dos processos que dão singularidade a essa aglomeração urbana de fronteira.

Deslocamento pendulares: algumas considerações

O conceito de migração pendular é antigo na geografia e já foi estudado por diversos autores, a exemplo de Beaujeu - Garnier (1980) e Derruau (1964), que abordaram em seus estudos os movimentos migratórios, explicitando que esses variam de acordo com duração e escala de abrangência. Diante disso, os autores evidenciam que, os deslocamentos de natureza cotidiana devem ser analisados no contexto em que estão inseridos, principalmente urbano.

Beaujeu - Garnier (1980) ao abordar o fenômeno dos movimentos diários, enfatiza as migrações para o trabalho, designando como “migrantes diários” e chama atenção para o fato de que esses movimentos têm crescido constantemente, em número e em distância. O aumento dos deslocamentos está relacionado com a melhoria nos sistemas de transporte, que possibilitaram a ampliação das distâncias percorridas diariamente. A autora citada, denomina como commuting o deslocamento pendular entre o local de residência e o local de trabalho, apontando ainda que:

[...] se reconhecermos que, de fato, há enorme número de pessoas envolvidas nesse movimento diário, comumente realizado duas vezes por dia, poderemos restringir o uso do termo 'commuting' a movimentos que encerram três características: apreciável extensão, uso de alguns meios de transporte mecânicos e certo grau de convergência. (BEAUJEUGARNIER, 1980, p. 293)

Desta forma, os deslocamentos pendulares representam uma das “[...] dimensões dos processos de deslocamento da população no território, num contexto determinado e socialmente constituído, no tempo e no espaço” (JARDIM, 2011, p. 58). Apesar do trabalho possuir centralidade em relação aos deslocamentos cotidianos, deve-se considerar que esses não se realizam somente para trabalho e estudo, já que envolvem a procura por outros serviços, assim como o consumo. Os deslocamentos se articulam também ao movimento da economia e da sociedade “[...] ora expansiva criando maior oferta de emprego e salário, ampliando os deslocamentos para determinados municípios seja para trabalho, consumo de bens e serviços; ora recessiva com implicações diretas nos fluxos cotidianos” (FRESCA, 2012, p. 8).

Para Jardim (2011), os motivos para que a população realize deslocamentos pendulares são representados por um “sistema de valores”, possibilitando a elaboração de indicadores socioeconômicos referentes às condições de vida e da reprodução social da população. Esses, todavia, estarão relacionados com os movimentos da economia e da sociedade, ou seja “[...] as necessidades são social e historicamente produzidas e se referem às atividades dos sujeitos na concepção de seus sentimentos, experiências e expectativas de acesso ao consumo de bens e serviços socialmente diferenciadas, num determinado momento histórico” (JARDIM, 2011, p. 64).

Além disso, a mobilidade pendular está associada à infraestrutura urbana, especialmente aos transportes urbanos municipal e intermunicipal, possibilitando “[...] identificar as ligações entre municípios que constituem aglomerações urbanas, permitindo o planejamento integrado das redes de transporte disponíveis para atender diferentes pontos das aglomerações urbanas e dimensionar a oferta de público adequado à flutuação da demanda de transporte” (IBGE, 2010, p. 278).

A expressividade do deslocamento pendular revela a extensão do fenômeno urbano no território, constituindo, inclusive, informação para delimitação de grandes áreas urbanas, especialmente por institutos de pesquisa estatísticas, a exemplo do Bureau do Censo dos Estados Unidos, que utiliza dados sobre deslocamento pendular (trabalho) para definição e delimitação de áreas metropolitanas.

É preciso considerar que, em um período em que a circulação preside a produção, o estudo dos fluxos e das redes é fundamental para o entendimento dos distintos fenômenos na atualidade (SANTOS, 2001). Desse modo, é necessário considerar a cidade através de escalas mais amplas, tal como fez Beaujeu-Garnier e Chabot (1970) em relação ao cenário urbano da Europa no início da década de 1960. Os autores alertaram, ainda naquele momento, que os problemas urbanos encontravam-se em escala regional.

Ao abordar as cidades de fronteira que constituem aglomeração urbana de fronteira, buscamos Beaujeu-Garnier e Chabot (1970, p. 21) para relembrar que, aglomeração é “una noción más extensa que la de ciudad y más precisa que la de área suburbana”. Souza (2003, p. 30), por sua vez, define aglomeração urbana enquanto um “minissistema urbano em escala local”, formado a partir da junção de duas ou mais cidades, seja pela intensificação dos vínculos ou pela expansão territorial urbana. A intensificação dos vínculos diz respeito à integração entre os centros urbanos, aos fluxos de pessoas ligados principalmente aos deslocamentos para trabalho, estudo, consumo, etc. No caso das aglomerações urbanas, as relações entre as cidades podem se dar pela dependência e/ou pela complementaridade de funções urbanas.

Grande parte dos estudos sobre aglomerações urbanas dedicam-se à análise de regiões metropolitanas e grandes cidades, contudo, deve-se destacar que esse processo também ocorre em cidades médias e pequenas, em escala nacional e internacional. Isso se deu com a intensificação do processo de urbanização e muitos processos antes limitados às metrópoles e grandes cidades passaram a ocorrer também nas médias e pequenas cidades.

Outro elemento importante é que a aglomeração urbana não necessita da continuidade do tecido urbano, já que a intensidade das relações interurbanas pode defini-las. Assim, a intensificação de diferentes fluxos entre as cidades, especialmente de pessoas que deslocam-se para trabalhar ou estudar, pode caracterizar o processo de aglomeração urbana, sem que ocorra uma continuidade territorial urbana2. Haesbaert em seu estudo sobre regiões transfronteiriças pontua algumas das características mais importantes nas áreas de fronteira:

- o domínio do capital financeiro (naquilo que CHESNAIS [1998], denominou de regime de acumulação financeirizado): os limites internacionais se tornam, em alguns casos, completamente permeáveis, pois o capital flui de um país para o outro na instantaneidade proporcionada pela teleinformática. É junto aos limites internacionais que este fluxo de capitais adquire uma de suas manifestações mais contundentes, especialmente através da lavagem de dinheiro obtido nos circuitos ilegais da economia. Transações financeiras de grande monta são efetuadas em cidades fronteiriças, nódulos estratégicos de um sistema global altamente corrompido e muitas vezes mafioso [...].

- o aumento brutal da exclusão social: uma das marcas sociais mais graves deixadas pelas políticas econômicas neoliberais implementadas nos países do Mercosul é o desemprego e a inclusão precária dos indivíduos no mercado de trabalho; com isto, os dilemas vividos pelos excluídos de um país acabam refletindo no outro, mesmo com as restrições impostas, por exemplo, à mobilidade dos trabalhadores. [...]. Nas chamadas áreas de fronteira intensificam-se migrações do tipo pendular ou sazonal, em escalas menores, como as que ocorrem entre trabalhadores dos dois lados do limite internacional em Foz do IguaçuCiudad del Este, Encarnación-Posadas e outras cidades paraguaias. (HAESBAERT, 2013, p.08)

Para Tomaz (2010), a mobilidade humana na atualidade busca atender a demanda de mão de obra não qualificada para os setores de agricultura, alimentação, construção, têxtil e vestuário. A intensificação dessa atividade entre os países da América Latina não difere muito do que ocorre em âmbito internacional. Isso se dá, especialmente, pela proximidade geográfica e cultural, pela facilidade de entrada nos países, pela existência de redes consolidadas, etc. A partir dessa breve abordagem sobre deslocamento pendular e aglomerações urbanas de fronteira, a próxima parte irá apresentar a gênese e o início do desenvolvimento de Corumbá, Puerto Suárez e Puerto Quijarro.

Gênese e desenvolvimento da aglomeração urbana de fronteira

A área referente ao atual município de Corumbá faz parte da Bacia do Alto Paraguai. No século XIX, essa região era caracterizada como uma faixa utilizada para proteger as possessões portuguesas das ameaças castelhanas e como bloqueio às eventuais invasões da República Paraguaia. Fundada pelos portugueses em 1778, Corumbá exerceu importante função geopolítica, visto que já em 1775 foi construído o forte Coimbra, com o intuito de proteção do território contra ataques inimigos. Contudo, a povoação naquele momento não atuou como núcleo de irradiação de povoamento, considerando que encontrava-se em um contexto marcado pela ausência de estímulos econômicos para a ocupação produtiva (SENA, 2010).

O crescimento e a ocupação de Corumbá foram lentos. Apenas em 1847 o povoado de Albuquerque foi incorporado ao município de Poconé, sendo desmembrado de Cuiabá. Entretanto, nos primeiros anos da segunda metade do século XIX, as freguesias de Albuquerque, Miranda e Santa Ana do Paranaíba forma elevadas à categoria de vilas.

Em 1852, ocorreu a liberação da navegação no território da Confederação Argentina. Assim, no ano seguinte, o governo imperial anunciou a permissão para o comércio estrangeiro mediante a criação de uma Mesa de Rendas, um porto no rio Paraguai. Além de dispor de um porto alfandegário e de estar geograficamente bem localizado para a atividade comercial, o povoado de Corumbá beneficiava-se pela existência de um considerável grupo consumidor em crescimento e com certo poder aquisitivo, representado, sobretudo, pela concentração de militares (QUEIROZ, 2009).

Nessa conjuntura, Albuquerque teve crescimento rápido e em pouco tempo se tornaria o principal empório do comércio da Província. No ano de 1862, já possuía 36 casas edificadas, 29 em construção, 109 ranchos e 266 concessões de lotes de terra para edificações urbana (SENA, 2010, p. 157). Contudo, essas mudanças foram afetadas com o início da Guerra do Paraguai (1864-1870), ocasião em que a região foi tomada pelas tropas paraguaias.

A abertura das fazendas de criação no Sul do Mato Grosso, durante o século XIX, foi responsável pelo povoamento do Pantanal, concentrando 2/3 do rebanho da província (MAMIGONIAN, 1986). Com características distintas, os grandes fazendeiros dessa região não eram financeiramente induzidos a vender toda a produção, ocasionando a expansão de forma independente do mercado, visto que além da estrutura fundiária favorável, seus gastos eram mínimos. O fim da Guerra do Paraguai contribuiu para a fixação de novas fazendas nas porções meridionais e centrais do Pantanal. Com a presença de grandes excedentes bovinos, a abertura da navegação fluvial e o fim da Guerra, outra atividade desponta na região, a instalação de charqueadas. Neste sentido, Corumbá recebeu pessoas de distintos lugares da província do Mato Grosso, do Brasil e também de outros países. De acordo com Sena:

A internacionalização das águas do rio Paraguai até o seu porto, bem como os incentivos fiscais por parte do Governo Imperial, ao isentar de impostos todos os produtos importados e exportados num prazo de dois anos, e os esforços de particulares e do Governo Provincial, fizeram com que o local crescesse. (SENA, 2010, p. 80)

Assim, no final do século XIX, Corumbá foi considerado o terceiro maior porto fluvial da América Latina. Na década de 1930 o processo de industrialização no Brasil foi intensificado, alterando o cenário econômico. Desta forma, a região do Pantanal matogrossense, atingida pela nova conjuntura econômica, passou a realizar o escoamento de sua produção via transporte ferroviário, deixando o transporte fluvial, a sua principal forma de escoamento por muitas décadas. A implementação da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil promoveu alterações de eixo na articulação da região. Com a estrada de ferro, a porção sul do pantanal passou a articular-se com o sudeste brasileiro através da venda de bois magros, principalmente para São Paulo.

A Estrada de Ferro causou o desvio de fluxo dos transportes e comunicações da Bacia do Prata para o interior do país. Como consequência, a partir de 1920 o centro urbano de Corumbá passou por um processo de esvaziamento populacional, visto que muitos comerciantes deslocaram-se para outras cidades ou passaram a investir na pecuária. Além disso, naquela mesma década, o eixo econômico do sul do Mato Grosso passou a ser Campo Grande, pois a cidade encontrava-se mais próxima dos grandes centros da região sudeste do país, acentuando a redução do comércio portuário de Corumbá e a perda de sua posição de destaque no estado (SILVA, 2010).

Apesar disso, o início da industrialização na cidade de Corumbá se deu na década de 1940 e estava associado à implantação da siderurgia pelo Grupo Chamma. Brito (2011) aponta que a cidade chegou a ser considerada o maior parque industrial do Mato Grosso, atraindo investimentos de outras regiões do país, a exemplo da fábrica de cimento do Grupo Itaú, de Minas Gerais, em 1950. Contudo, a falta de condições favoráveis para a expansão da atividade foi acirrada pela concorrência do minério de ferro que vinha sendo extraído no estado de Minas Gerais.

Em 1960, ocorreu o enfraquecimento da dinâmica econômica de Corumbá, motivado, sobretudo, pelo crescimento e modernização da indústria no centro dinâmico da economia brasileira, expansão e melhorias das condições de transporte fora e dentro do estado, baixa do preço dos minérios de ferro e manganês no mercado internacional, fortalecimento e dinamismo da condição regional de Campo Grande (OLIVEIRA, 1998).

Sobre a importância do comércio em Corumbá, Peres (2012) evidência que em meados dos anos 1950 teve início uma nova fase para a economia da cidade. Trata-se da ligação ferroviária entre Brasil e Bolívia, que trouxe novas demandas, principalmente do lado boliviano, tornando Corumbá um centro distribuidor de mercadorias, escoando a produção, sobretudo a paulista, que chegava via Nordeste do Brasil. “Além de uma nova etapa para a dinâmica econômica corumbaense, a estrada de ferro entre Brasil e Bolívia representou a extensão das relações comerciais do sudeste brasileiro ao oriente boliviano, antes um espaço desarticulado e desagregado da economia nacional” (PERES, 2012, p. 64).

Foi no final de 1690 que os jesuítas do Paraguai chegaram à área de Puerto Suárez. Até a chegada dos jesuítas, os Chiquitos3 haviam tido pouco contato com os espanhóis. Com a ocupação realizada pelos jesuítas, a propriedade da terra ganhou características de latifúndio e, com a saída dos mesmos em 1767, estabeleceu-se nessa área uma nova elite latifundiária conservadora, apoiada por políticas governamentais. Entre 1748 e 1767 (neste último destaca-se a expulsão dos jesuítas), iniciou-se um novo ciclo de fundações com a preocupação de vincular as missões da Chiquitania com as do Paraguai. Neste sentido, de acordo com Tonelli, em 1772 a Coroa Espanhola:

Ordena celar con especial cuidado los confines de Mato Grosso del que injustamente se han apropriado los portugueses, como igualmente de las grandes y ricas minas de Cuyabá, parecendo muy preciso, para que continuen em sus usurpaciones, se formen hacia las lagunas Mandioré, Vayuva y Xarayes, que hacen caudaloso el Rio Paraguay, otros pueblos de espanoles, com un pequeno flerte o vigía, además de lo cual es necessário evitar las incursiones por tierra, que pueden ternerse por el caminho que se sabe haber aberto desde la referida laguna Mandioré. (TONELLI, 2007, p. 99)

Até aquele momento, essa área boliviana manteve as características que a definiram no período de sua gênese, ou seja, povoamento indígena com pouca ou nenhuma atividade produtiva. A independência da Bolívia ocorreu em 1825, configurandose em uma República eminentemente indígena, com uma população estimada de 200.000 brancos, 100.000 cholos4 e 800.000 camponeses índios (KLEIN, 1991). Klein (1991, p. 72) caracteriza essa nova conjuntura da Bolívia como “Um Estado fraco e isolado do mundo [...] um Estado em guerra perpétua com sua própria população”.

Tanto assim que, até a década de 1870, a fronteira da Bolívia com o Brasil não estava efetivamente ocupada, tampouco ocorria integração da economia nacional, a exceção da dispersa população indígena na área. Em 1874 ocorreu uma tentativa de colonização da área onde encontra-se Puerto Suárez. Apesar da fundação de Puerto Suárez, os demais investimentos e infraestruturas encontravam-se estacionados, como afirma Tonelli:

[...] a pesar de los fatigosos esfuerzos del empresario por conseguir socios capitalistas en Buenos Aires y Rio de Janeiro, no havia obtenido recursos suficientes para llevar adelante en debidas formas los objetivos de la empresa. Las inversiones efectuadas provinieron casi exclusivamente de los derechos aduaneros percebidos en Puerto Suárez, los que resultaron exíguos para ejecutar obras de importancia. La carretera entre Santa Cruz y Puerto Suárez, cuya extension calculaba entre 575 y 600 kilometros, se habian abierto durante anos 1879 y 1880 unos 176 kilometros [...] en ló que concierne a Puerto Suárez, no habia aun muelles ni edifícios para aduana, depósitos y fortin de resguardo. (TONELLI, 2007, p. 107)

Em Puerto Suárez, o final do século XIX foi um período de relativo desenvolvimento, pois era através do seu porto que os processos de exportação da borracha ocorriam. Além disso, Puerto Suárez era também o local de entrada de mercadorias procedentes de outros países e que chegavam por Corumbá. Como consequência dessa dinâmica portuária advinda da borracha em Puerto Suárez, comerciantes alemães vinculados à exploração e comercialização desse e demais produtos, como a Zeller, Villinger & Cia, Stefefens, Schnack e Muller e Cia, chegaram ao município e deram um novo impulso à área. No entanto, a dinâmica era dificultada durante seis meses do ano, período em que as estradas ficavam intransitáveis em decorrência do alagamento dos rios (PPAS, 2011).

Os processos de exportação da borracha dinamizaram a região por alguns anos, até que, em 1904, a Bolívia efetuou um tratado com o Chile para a utilização de seus portos no Pacífico. Desse modo, as exportações do país, facilitadas pelas ferrovias de Antofogasta, que ligava Oruro, Ariaca e La Paz, foram voltando-se para o Pacífico. A fim de amenizar a situação, o governo boliviano decidiu manter a aduana de Puerto Suárez livre de impostos por um período de quatro anos. A medida não foi suficiente para manter o seu comércio, acarretando uma crise comercial na região.

Sobre o desenvolvimento de Puerto Suárez, um marco importante diz respeito à ferrovia, que se colocou para a Bolívia como uma grande possibilidade de desenvolvimento, principalmente após a decadência da borracha. As possibilidades de chegar a Puerto Suárez eram precárias e agravaram-se após o período da exploração da borracha. Dessa forma, a partir de 1929, o exército iniciou obras de melhoramento da via. A construção dessa linha férrea proporcionou o desenvolvimento da província de German Busch, onde se encontram os municípios de Puerto Suárez e de Puerto Quijarro, o segundo fundado posteriormente.

El tratado es legalmente constituído en 25 de febrero de 1938. Entre las causulas estipuladas se tenia el millon de libras esterlinas pendientes como saldo del tratado de Petrópolis, que seria utilizado en la construcción del ferrocarril. Brasil adelantaria los recursos necesarios para concluir la obra, finainciamento que seria reembolsado por Bolívia en dinero o en petroleo crudo. (PPAS, 2011, p. 79)

A formação de Puerto Quijarro teve início neste momento, a partir da construção da primeira etapa da ferrovia em território boliviano e a inauguração da primeira estação, chamada de Quijarro em homenagem a um dos idealizadores do projeto. Apesar do crescimento advindo da ferrovia, com o fechamento da Bahia de Cáceres5, em 1936, o desenvolvimento de Puerto Suárez estagnou. Isso se deu pela inviabilidade da navegação comercial pela Bahia, fato que consolidou Corumbá enquanto principal porto comercial da região (ÂNGULO, 2006). Soma-se a esse processo de decadência econômica, a obstrução do canal de Tuyuyú, alimentador da lagoa de Cacéres, em 1940 (PPAS, 2011).

Foi na década de 1950, com a chegada da Ferrovia Oriente S.A., que a ocupação dessa área efetivou-se, especialmente porque a estação de Puerto Suárez passou a ser a única saída boliviana para o mar. Com a conexão da Ferrovia Oriente com a ferrovia brasileira Noroeste, as cidades de Corumbá e Puerto Suárez tornaram-se o principal caminho entre Brasil e Bolívia. A intensificação das relações comerciais entre Brasil e Bolívia tornou-se possível pelo processo de exportação de bens brasileiros, bem como pela presença de consumidores bolivianos fronteiriços (BRITO, 2011).

Puerto Quijarro, por sua vez, foi ocupada a partir da construção da ferrovia em meados da década de 1970, tornando-se município apenas em 1991. Nesse sentido, Oliveira (1998) aponta que a formação e dinâmica dessa fronteira começou a ser conformada a partir da segunda metade da década de 1970. A partir do entendimento da gênese e da articulação entre as cidades pertencentes a essa área de fronteira, na sequência será discutida a dinâmica social e econômica da aglomeração a partir dos deslocamentos pendulares

Os deslocamentos pendulares entre as cidades da aglomeração urbana

Ao tratar dos deslocamentos pendulares, é importante considerar que grande parte da população do Oriente boliviano tem mais contato com cidades brasileiras do que com as cidades bolivianas do antiplano, pois encontram-se mais próximas e, principalmente, pela oferta de bens e produtos. Atrelado a isso há o fato de que a fronteira com a Bolívia é a mais extensa do Brasil (3.126 quilômetros), com baixa densidade demográfica em diversos trechos. A Bolívia constitui-se em país de emigração de mão de obra, pela pouca expectativa de desenvolvimento social e econômico (LEONARDI, 2007).

Embora o objetivo seja verificar a dinâmica dos deslocamentos pendulares que ocorrem nessa aglomeração de fronteira, um fenômeno muito comum na área deve ser considerado, mesmo que brevemente. Trata-se da emigração de bolivianos com destino a cidade de São Paulo.

Silva (2007) explicita que as migrações de bolivianos para o Brasil tiveram início em 1950, majoritariamente composta por jovens, homens e mulheres, com escolaridade média, em busca de trabalho e estudo e tinham como destino a cidade de São Paulo. A partir da década de 1970, impulsionado pelo crescimento da economia brasileira, o número de imigrantes dessa nacionalidade foi se intensificando. Na década de 1980, apesar da crise na economia brasileira, os bolivianos continuaram vindo, mas para tornarem-se mão de obra barata, principalmente nas fábricas de costura de São Paulo.

Os dados em relação ao número de bolivianos no Brasil são imprecisos. Segundo Tomaz (2010), com base em estimativas do Ministério da Justiça, em 2009 eram cerca de 60 mil bolivianos na cidade de São Paulo e 10 mil no estado do Mato Grosso do Sul. Contudo, o Ministério Público Federal estimava que nesse mesmo ano eram 200 mil bolivianos em São Paulo, entre regulares e irregulares6.

A população de Corumbá, Ladário, Puerto Quijarro e Puerto Suárez é de 157.059 habitantes, dos quais 34.0287 são do lado boliviano. A passagem pela fronteira é dinâmica e frequente, passando por ali diariamente moradores, turistas, mercadorias, informações decisões, mais valia, etc. De acordo com Manetta (2009), a população de Puerto Quijarro foi a que mais cresceu nos últimos anos, em razão do intenso comércio informal nas imediações do limite com Corumbá.

O comércio de Puerto Quijarro foi se expandindo e se especializando na venda de produtos importados como eletrônicos, perfumaria, roupas, entre outros produtos provenientes majoritariamente da China. Essa área comercial encontra-se bem próxima da aduana (cerca de 500 metros) e está disposta em lojas e em muitas barracas espalhadas pelas ruas, da mesma forma como ocorre em Ciudad del Este, no Paraguai. Em Puerto Suárez o comércio é bem distinto, ou seja, não existe esse comércio direcionado a turistas e compristas, mas um comércio básico para a população local.

As relações econômicas, sociais e culturais entre Corumbá e as cidades bolivianas induziram à realização de acordos e projetos políticos institucionais, a exemplo do Decreto 6.737/2009, que promulgou o acordo entre o governo do Brasil e da Bolívia para permissão de residência, estudo e trabalho de brasileiros e bolivianos.

Costa (2015) explicita que os bolivianos passaram a deslocar-se para Corumbá, sobretudo a partir da década de 1990. Estes tinham como principal atividade a revenda de roupas fabricadas na China. Desde então, a presença de comerciantes bolivianos tem promovido ações do poder público, influenciado tanto por demandas políticas locais, especialmente da Associação Comercial de Corumbá, quanto por demandas nacionais de segurança na Fronteira, que buscam coibir a entrada de produtos não tributados no Brasil. Dentre estes, destaque para a criação do Plano Estratégico de Fronteiras (PEF) em 2011, que prevê um conjunto de ações no sentido de vigiar e monitorar as fronteiras brasileiras, com o aumento do efetivo de segurança e com a presença ostensiva da Força Nacional.

Peres (2015) colabora ao apontar que a dinâmica do mercado de trabalho específico, no qual inserem-se os imigrantes bolivianos, favorece a entrada de mulheres. O comércio é uma atividade culturalmente ignorada pelos homens bolivianos, e por isso, é exercida majoritariamente pelas mulheres. “Esta característica tão particular de Corumbá - como um lugar receptor de migrantes bolivianos, sobretudo de mulheres, dada a sua dinâmica econômica histórica - favorece a construção de um outro traço marcante deste fluxo migratório: a formação de uma rede social essencialmente feminina” (PERES, 2015, p. 52).

Nesta perspectiva, e considerando a proximidade física entre as cidades bolivianas e Corumbá, ocorre a possibilidade dos comerciantes bolivianos trabalharem no Brasil e residirem na Bolívia. A situação, no entanto, não é aceita por alguns grupos corumbaenses. Para Fernandes (2014, p. 68), os comerciantes bolivianos inseridos na economia informal não são facilmente reconhecidos, “[...] São minorias que tiveram que se adequar a uma nova condição de vida”.

Em Corumbá existem as feiras itinerantes, com a venda de produtos de hortifruti, roupas, brinquedos e diversos outros produtos chineses. Predominam os feirantes bolivianos, que vêm das cidades vizinhas.

Nas proximidades de quase 170 mil habitantes, esse território conduz um extravagante movimento de fluxos de mercadorias e transeuntes que causa frisson em qualquer observante, ainda que desatento. Gás, minério, turismo, exportação e reexportação aludem um vai e vem de barcos e barcaças no rio, acenam com um transbordo de passageiros terrestres nos taxis adaptados, nas linhas de coletivos intermunicipal, interestadual e internacional, um formigueiro de veículos (carros, motos e similares) que passa e repassa a fronteira comprando e vendendo roupas, verduras, brinquedos, bebidas, fraldas, serviços desorientando o trânsito e cosmopolizando passeios, praças e feiras deixando atordoado qualquer observador, sem fôlego o leitor e sem regras e sem respeito gramatical qualquer relator. (OLIVEIRA, 2015, p. 127)

Na contrapartida, muitas pessoas de origem boliviana são nascidas em Corumbá, possuem documentação brasileira, estudam nas escolas brasileiras, prestam o serviço militar brasileiro, são bilíngues em sua maioria, mas continuam sendo chamadas de bolivianas pelos brasileiros (COSTA, 2015). Como grande parte desse grupo vive nas cidades bolivianas, continuam a manter seus laços culturais e identitários com a Bolívia, apresentando-se em muitas ocasiões enquanto bolivianos, não brasileiros, mesmo que nascidos em Corumbá. Em 2018, foram matriculados nas escolas públicas de Corumbá, 2.572 alunos bolivianos.

Nesse sentido, Araujo e Conceição (2015) evidenciam que, com o deslocamento pendular de Puerto Suárez e Puerto Quijarro para Corumbá, embora aparentemente revele processos de integração e troca, a convivência entre brasileiros e bolivianos é conflituosa. Para as autoras, ser boliviano em Corumbá, não é fácil, “O preconceito, nem sempre velado, embute relações de poder econômico historicamente construídas entre os dois países. Neste aspecto, o modelo centro-periferia é reproduzido em escala regional, hierarquizando os espaços de relações” (ARAUJO; CONCEIÇÃO, 2015, p. 29).

Oliveira (2015) explicita ainda que a atual condição dessa área de fronteira está marcada por profundas assimetrias, especialmente as socioculturais. As circulações provenientes de capital, trabalho, terra e serviços entre brasileiros e bolivianos vêm materializando um processo com novos significados e novas integrações, interações e conflitos. Quando se discute descolamento pendular, elemento fundamental diz respeito ao número de passageiros, cuja tabela 01 apresenta os dados da linha “Fronteira”, realizada pela empresa Viação Cidade e que faz o trajeto Corumbá/fronteira.

Movimentação de passageiros na linha fronteira: 2018
Tabela I
Movimentação de passageiros na linha fronteira: 2018
Fonte: Viação Cidade (2020).

Os dados mostram que, de forma geral, cerca de 1.000 pessoas utilizam a linha “fronteira” mensalmente. São pessoas da Bolívia, especialmente Puerto Quijarro e Puerto Suárez, que atravessam a fronteira para utilizarem o transporte coletivo até a cidade de Corumbá. Grande parte dessas pessoas está ligada ao comércio informal, além de compristas que atravessam a fronteira em busca de produtos mais baratos do que nas cidades bolivianas, principalmente produtos básicos. O movimento de Corumbá para a fronteira é expressivo também e além de transportar bolivianos que retornam ao país, muitos brasileiros utilizam desse transporte para cruzar a fronteira e realizar compras na área comercial de Puerto Quijarro, principalmente roupas e demais produtos importados. Importante destacar que Puerto Quijarro e Puerto Suárez não disponibilizam transporte público, ou seja, esta é a única linha que realiza o trajeto entre Corumbá e a fronteira.

Como o transporte público é limitado a essa única linha e realizada por uma única empresa, outros meios de transporte são utilizados para realização do percurso, com destaque para o táxi. Costa (2014) aborda o trabalho dos taxistas de Corumbá, Puerto Quijarro e Puerto Suárez enquanto possibilidade de capitalização e circulação de bens e pessoas de uma maneira distinta de outras cidades dos respectivos países. Importante apontar que os transportes públicos formais da cidade são efetuados por uma única empresa de ônibus, por mototaxistas, organizados em “cooperativas” e pelos táxis, que possuem um sindicato atuante.

Em relação ao transporte boliviano, os táxis também possuem destaque. Esses estão divididos em três categorias: táxis do sindicato (com placas vermelhas), de cooperativas (apenas com indicação de táxi) e os veículos particulares. Esses carros não podem transportar passageiros no lado brasileiro, assim como os táxis brasileiros não podem transportar no lado boliviano. Existe um acordo de que tanto os táxis brasileiros, quanto os bolivianos só podem deixar passageiros até o ponto de transporte coletivo da linha fronteira. Diante disso, nota-se que grande parte dos deslocamentos entre as cidades pertencentes à aglomeração ocorrem através de táxis, sendo difícil apurar tais dados. Costa (2015) apresenta uma análise detalhada sobre os fluxos, impactos e barreiras na aglomeração urbana em tela, através do quadro 1, a seguir.

Fluxos, impactos e barreiras na área de fronteira de Corumbá/Puerto Suárez e Puerto Quijarro
Quadro 1
Fluxos, impactos e barreiras na área de fronteira de Corumbá/Puerto Suárez e Puerto Quijarro
Fonte: Costa (2015, p.160)

Os dados apurados por Costa (2015) confirmam a forte relação comercial existente entre as populações das cidades bolivianas e Corumbá. Esse fluxo, embora existente em ambos os lados da fronteira, é intensificado quando o câmbio favorece uma das moedas. Outro elemento diz respeito às migrações de outras áreas da Bolívia para Puerto Quijarro, um fenômeno que se intensificou a partir da década de 1990 e que impulsiona o circuito inferior dessa área de fronteira.

Uma questão apontada pelo autor que não foi abordada neste trabalho diz respeito ao tráfico de drogas. Trata-se de um tema abrangente, importante na configuração desta aglomeração de fronteira, mas que optou-se por não considerá-lo neste momento devido aos objetivos mais específicos e, como mencionado, por tratar-se de um tema abrangente e que demanda estudos mais detalhados.

Desse modo e de acordo com a análise de Costa (2015), os fluxos dominantes dessa aglomeração de fronteira vão da extrema formalidade à extrema informalidade, com interesses pouco convergentes, assim como divergentes. Todavia, tanto o lado boliviano quanto o brasileiro têm aumentado as possibilidades para a realização de acordos no sentido de diminuir os entraves em relação às barreiras, assim como flexibilizar os marcos regulatórios de ambos os países.

Diante das relações mantidas entre Corumbá, Puerto Quijarro e Puerto Suárez, verifica-se que essas cidades compartilham do mesmo ambiente urbano pelo elevado nível de articulações, a exemplo do entreposto comercial através do corredor São Paulo - Santa Cruz de la Sierra, pela utilização dos serviços, como saúde, educação e assistência e até mesmo pelas externalidades negativas, como descontrole do trânsito, especulação imobiliária e tráfico de drogas.

As assimetrias existentes entre as cidades pertencentes à aglomeração urbana de fronteira induzem, em certa medida, a maior procura e maior presença de bolivianos em Corumbá. No entanto, o inverso também ocorre. Evidente que se tratam de outras demandas, majoritariamente relacionadas ao comércio e sazonal diante do câmbio, ou seja, quando da desvalorização do dólar, crescem os deslocamentos sentido Corumbá/Puerto Quijarro e Puerto Suárez. Situação que não ocorre na atualidade, visto a valorização do dólar em relação ao real. Outras demandas também existem, a exemplo dos deslocamentos de brasileiros em busca de estudo (ensino superior) e saúde, mas em pouca expressividade. Costa analisa esta situação da seguinte forma:

De qualquer modo, em todos os sentidos, este pedaço da fronteira BrasilBolívia possui uma história de aproximação marcada por movimentos internos alternando-se entre lentos, longos e abruptos, produzidos sobre contornos territoriais com especificidades únicas, o que lhe confere muita força, capacidade criativa e consistência. Em igualdade de circunstâncias, trata-se de um território que também foi (e está) regido (e até patrulhado) sob a égide de ações exógenas e conjunturais, o que lhe expõe restrições impactantes capazes de abalar sua consistência e exigir esforço adicional da capacidade criativa territorial. (COSTA, 2015, p. 158)

Diante disso, não é mais possível pensar em cidades pertencentes a aglomerações urbanas de fronteiras sem considerar as diferentes funcionalidades que lhes são atribuídas pela sociedade e pelo capital. É preciso considerar essas cidades enquanto elementos importantes na conexão e no controle entre países fronteiriços, mas suas características são as mais diversas, de acordo com as particularidades dos países, da localização geográfica, do sítio e de outros condicionantes que a definem (CAMPOS, 2013).

Considerações finais

As fronteiras da América do Sul, historicamente, configuram-se como espaços periféricos dos territórios nacionais e dos centros políticos e econômicos mais dinâmicos. Diante disso, o fortalecimento dos blocos econômicos regionais é fundamental para uma inserção regional mais competitiva. É nesse contexto que as regiões de fronteira passaram a ser valorizadas enquanto áreas estratégicas no processo de integração socioeconômica internacional; e assim os deslocamentos como processo ativo nas aglomerações urbanas de fronteira, devem ser considerados neste conjunto.

A circulação que ocorre entre as cidades de fronteira possui características similares em distintos contextos entre Estados nacionais que apresentam diferenças em relação ao seu desenvolvimento econômico e social. Ou seja, o lado da fronteira que conta com maior expressão econômica, mais oferta de trabalho, mais benefícios sociais, torna-se atrativo para aqueles que vivem do outro lado. Evidente que esses fluxos podem ocorrer em dupla direção e de forma pendular ao longo do tempo. Neste sentido, pode ocorrer de uma cidade ser mais atrativa em termos de oferta de empregos, enquanto a outra no sentido dos serviços e do comércio. O sentido, bem como a intensidade desses fluxos podem mudar, dependendo do contexto em que se encontram as cidades e forte variação no tempo.

Referências

ÂNGULO, José, Luiz,Gutiérrez. O terceiro lado da fronteira: processos e transformações dos espaços agrários no pantanal: estudos de caso em comunidades da Bolívia e do Brasil. 2006. Tese (Doutorado em 2006) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

ARAUJO, Ana Paula. Correa, de; CONCEIÇÃO, Orsolina, Fernandes. da. A arrogância revelada no conflito: bolivianos e brasileiros no espaço escolar da cidade de Corumbá (MS). Espaço Aberto, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 145-162, 2015.

BEAUJEU-GARNIER, Jacqueline. Geografia da população. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1980.

BEAUJEU-GARNIER, Jacqueline; CHABOT, Georges. Tratado de geografía urbana, Buenos Aires, n. 711, p. 557, 1970.

BRITO, Naman, Moura, de. Desenvolvimento econômico e mineração: uma abordagem da atividade em Corumbá, MS. Entre-Lugar, Dourados, ano 2, n.4, p.123-150, 2011.

CAMPOS, Heleniza, Avila. O papel estratégico de cidades gêmeas no controle de mercadorias em regiões de fronteira no contexto do MERCOSUL: Uruguaiana (BRA) e Paso de los Libres (ARG), 2013.

COSTA, Gustavo, Villela, Lima da. Esquemas de fronteira em Corumbá (MS): negócios além do legal e do ilegal. Dilemas, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 207-232, 2014.

COSTA, Gustavo, Villela, Lima da. Os bolivianos em Corumbá - MS: conflitos e relações de poder na fronteira. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p.35-63, 2015.

DERRUAU, Max. Geografia Humana I. Portugal: Editorial Presença, 1964.

FERNANDES, Roberto, Mauro, Silva, da. Levantamento do perfil do imigrante boliviano que cruza a fronteira. Nacionalismo, Luta de Classes e limites que se confundem. Revista Geopantanal, Corumbá, n. 17, 115-138, 2015.

FRESCA, Tania, Maria. Deslocamentos pendulares na região metropolitana de Londrina: uma aproximação. GeoUERJ, Rio de Janeiro, n. 23, v. 1, p. 167-191, 2012.

HAESBAERT, Rogério. Regiões Transfronteiriças e redes Brasileiras no Mercosul. [S.l.], 2013. Disponível em:observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal8/Geografiasocioeconomica/Geogra fiaregional/04.pdf. Acesso em: 11 maio 2020.

JARDIM, Antonio, Ponte. Reflexões sobre a mobilidade pendular. In: OLIVEIRA, Luiz, Antonio, Pinto.; OLIVEIRA, Antônio, Tadeu, Ribeiro. (org). Reflexões sobre os deslocamentos populacionais no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2011. p. 58-70.

KLEIN, Hebert. Bolívia: do período pré-incaico à independência. São Paulo: Brasiliense, 1991.

LEONARDI, Victor. Violência e direitos humanos nas fronteiras do Brasil. Brasília: Paralelo 15, 2007.

LUCIDIO, João, Antonio, Botelho. A ocidente do imenso Brasil: as conquistas dos rios Paraguai e Guaporé (1680-1750). Lisboa: Universidade de Lisboa, 2013.

MACHADO, Lia, Osório. Estado, territorialidade, redes: cidades gêmeas na zona de fronteira sul-americana. In: SILVEIRA, Maria, Laura. (org.).Continente em chamas: globalização e territórios na América Latina. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 1-30.

MAMIGONIAN, Armen. Inserção de Mato Grosso ao mercado nacional e a gênese de Corumbá. Geosul, Florianópolis, n. 1, p. 39-58, 1986.

MANETTA, Alex. Dinâmica populacional, urbanização e ambiente na região fronteiriça de Corumbá. 2009 Dissertação (Mestrado em Demografia) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.

OLIVEIRA, Tito, Carlos, Machado. Uma fronteira para o pôr-do-sol: um estudo geoeconômico sobre uma região de fronteira. Campo Grande: Editora UFMS, 1998.

OLIVEIRA, Tito, Carlos, Machado; ESSELIN, Paulo, Marcos. Localizando as condições pretéritas e as relações correntes na complexa fronteira Brasil-Bolívia. Geosul, Florianópolis, v. 30, n. 60, p. 125-163, jul./dez. 2015.

PERES, Roberta, Guimarães. Mulheres na fronteira: a migração de bolivianas para Corumbá/MS. 2009 Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.

PERES, Roberta, Guimarães .Presença boliviana na construção de Corumbá - Mato Grosso do Sul: espaço de fronteira em perspectiva histórica. In: BAENINGER, Rosana. (org). Imigração Boliviana no Brasil. [S.l.]: Fapesp, CNPQ, Unfpa, 2012. p. 35-74.

PPAS. Recorriendo los municipios del corredor bioceánico: Puerto Suárez: passado y presente. Santa Cruz de la Sierra, [s.n.] 2011.

QUEIROZ, Paulo, Roberto, Cimó. Uma esquina nos confins do Brasil: o Sul do Mato Grosso Colonial e suas vias de comunicação (projetos e realidades). Fronteiras, Dourados, v.11, n.19, p. 197-227, 2009.

SENA, Divino, Marco de. Trabalhadores livres no “baixo Paraguai” do Império do Brasil. Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 22, p. 153-173, 2010.

SILVA, Ronaldo, Alexandre, Amaral do. Brasil-Paraguai: marcos da política pragmática na reaproximação bilateral, 1954-1973: um estudo de caso sobre o papel de Stroessner e a importância de Itaipu. 2006. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Nacional de Brasília, 2006.

SILVA, Sidney, Antonio da. Costurando sonhos: trajetória de um grupo de imigrantes bolivianos em São Paulo. São Paulo: Paulinas, 2007.

SILVA, Laura, Helena, Arruda de. Comércio na Fronteira Brasil-Bolívia em Corumbá, MS: um estudo sobre a Feira BrasBol. 2010. Dissertação (Mestrado em Estudos Fronteiriços) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Corumbá, 2010.

SOUZA, Celina. Regiões metropolitanas: condicionantes do regime político. Lua Nova, São Paulo, v. 59, n. 2, p. 137-158, 2003.

TOMAZ, Marcela. Fluxos migracionais entre Brasil e Bolívia: imigração irregular, causas, vítimas e políticas migratórias. Universitas. Relações Internacionais, Brasilia, v. 8, n. 1, p. 155-175, 2010.

TONELLI, Justiniano,Oscar. El Peabirú Chiquitano. Santa Cruz de la Sierra: Editorial el País, 2007.

Notas

1 A população total de Corumbá é de 103.703 habitantes e de Ladário é de 19.607 habitantes (IBGE, 2010), enquanto a população total de Puerto Quijarro é de 18.574 e de Puerto Suárez de 15.706 (INE, 2010).
2 Neste sentido, o estudo Caracterização e tendências da rede urbana do Brasil (2001), aponta que a aglomeração urbana se constitui por áreas formadas por espaços urbanizados integrados e podem ser de dois tipos: formados por espaços urbanos contínuos e formados por espaços urbanos descontínuos.
3 A palavra “chiquito” fazia menção a diversos grupos indígenas localizados no Oriente boliviano entre o Chaco e as selvas pantanosas, que se estendem desde o Amazonas. Lucidio (2013) explicita que, foram assim chamados devido à suposição de que se tratava de um povoado constituído por pessoas pequenas, equívoco provocado pela pouca altura das entradas de suas casas.
4 Termo utilizado na Bolívia para designar a miscigenação entre mestiço e índio.
5 Baía do rio Paraguai, por onde Puerto Suárez realizava o escoamento de produtos.
6 Para aprofundamento sobre os processos de migração de bolivianos para São Paulo, ler SILVA (2006), SYMBALISTA; XAVIER (2007) e TOMAZ (2010).
7 A população total de Corumbá é de 103.703 habitantes e de Ladário é de 19.607 habitantes (IBGE, 2010), enquanto a população total de Puerto Quijarro é de 18.574 e de Puerto Suárez de 15.706 (INE, 2010).
8 A média diária foi feita com 25 dias, pois os domingos pouco representaram no número total de passageiros.
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
HMTL gerado a partir de XML JATS4R