CONTÍNUA

Notas iniciais de pesquisa: mapeando a presença de mulheres como titulares de acervos em instituições de memória em Santa Catarina

Initial research notes: mapping the presence of women as titular names of collections housed in memory institutions in Santa Catarina state

Karla Simone Willemann Schütz1
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, Brasil
Susane da Costa Waschinewski2
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, Brasil

Percursos

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN-e: 1984-7246

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 23, núm. 51, 2022

revistapercursos.faed@udesc.br

Recepção: 17 Janeiro 2022

Aprovação: 19 Abril 2022



DOI: https://doi.org/10.5965/1984724623512022440

Resumo: Tomando como ponto de partida a Lei nº 18.226 de 2021, que inclui a História das Mulheres do Campo e da Cidade no currículo escolar da educação básica em Santa Catarina, o presente artigo discorre sobre os momentos iniciais de pesquisa que têm como objetivo mapear a presença de mulheres como titulares de arquivos abrigados em diferentes instituições de memória em Santa Catarina. O arcabouço teórico-metodológico da pesquisa está apoiado em debates que relacionam memória e história, arquivo, arquivos pessoais, escrita da história e história das mulheres. Com base na divisão regional do estado, a pesquisa iniciou com contatos por meio virtual com essas instituições e posterior organização dos dados em planilhas. Levando em conta as poucas respostas recebidas, percebeu-se, além de uma dificuldade de entendimento acerca do que seria exatamente o objeto da pesquisa, que a presença das mulheres como protagonistas ainda é bastante tímida nesses espaços institucionais.

Palavras-chave: acervos, arquivos de mulheres, escrita da história, instituições de memória, Santa Catarina.

Abstract: With Law n. 18.226 from 2021 as starting point, which includes the History of Women of the Field and City in the school curriculum of basic education in Santa Catarina, this article elaborates on the initial movements of research, which has as objective mapping the presence of women as holders of files sheltered in different institutions of memory in Santa Catarina. The theorical-methodologic framework of the research is supported in debates that relate memory and history, files, personal files, history writing and women history. Based on the regional division of state, the research was initiated with contacts through virtual mean with these institutions and later data organization in charts. Considering the few responses received, it was realized that, in addition to a difficult of understanding of what would exactly be the research object, the presence of women as protagonists is still very shy in such institutional spaces.

Keywords: collections, women's archives, history writing, memory institutions, Santa Catarina state.

Primeiros apontamentos

No dia 13 de outubro de 2021, foi decretada pela Assembleia Legislativa e sancionada pelo governador do estado de Santa Catarina a Lei nº 18.2261, a qual inclui como conteúdo transversal, no currículo da educação básica de escolas públicas e privadas do estado, a História das Mulheres do Campo e da Cidade. Fruto do Projeto de Lei nº 86.1/2019, de autoria da deputada estadual Luciane Carminatti2, o objetivo principal da lei é promover a valorização das trajetórias de mulheres catarinenses que tiveram importante atuação em diferentes setores da sociedade no estado, mas que têm pouco espaço na história oficial, nos livros didáticos e, por conta desse silêncio, permanecem invisibilizadas e desconhecidas. De fato, poderíamos nos perguntar: que outros nomes femininos para além de Anita Garibaldi3 e Antonieta de Barros4 figuram na memória coletiva e têm lugar privilegiado dentro das narrativas históricas que ultrapassam os muros das pesquisas universitárias e chegam às escolas ou à mídia em Santa Catarina?

A aprovação acompanha a discussão - há muito candente na sociedade - acerca dos personagens que durante muito tempo estiveram silenciados nas narrativas históricas. Esse debate, em relação à escrita da história em Santa Catarina, adquiriu maior vigor na década de 1990 em decorrência de uma mudança de perspectiva observada no Departamento de História e no Programa de Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Acompanhando discussões teóricas nacionais e internacionais, entraram em cena novas teorias, metodologias, fontes e temas de pesquisa, e emergiu a história das mulheres (GONÇALVES, 2006, p. 38). No caso das principais universidades públicas do estado, UFSC e UDESC, destaca-se a formação de laboratórios de pesquisa com foco na história das mulheres e nos estudos de gênero a partir dos anos 2000. Na UFSC, houve a formação, em 2006, do Laboratório de Estudos de Gênero e História, e na UDESC, do Laboratório de Relações de Gênero e Família, em 2007.

No entanto, é preciso ressaltar que, apesar de os laboratórios inaugurarem efetivamente, durante os anos 2000, pesquisas relativas às temáticas logo acima ressaltadas, estas vêm sendo desenvolvidas desde a década de 1990. Segundo a tese de Gonçalves (2006), o papel social das mulheres e as relações de gênero passam a ser mais visitados nos trabalhos defendidos no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC a partir de meados dos anos 1990, como deixam transparecer os próprios títulos de algumas das dissertações defendidas no Programa durante esse período: “Dos subterrâneos da história: as trabalhadoras das minas de carvão de Santa Catarina (19371964)”, defendida por Carlos Renato Carola em 1997; “Tensões, trabalho e sociabilidades: histórias de mulheres em Joinville no século XIX”, defendida por Janine Gomes da Silva em 1997 e “Marias do Socorro: mulheres presas, mulheres torturadas”, defendida por Marise da Silveira Veríssimo em 1998. Porém, tais temáticas ficaram de certa forma restritas à escrita da história produzida dentro do espaço acadêmico universitário. Quando presentes nas escolas, partem geralmente de iniciativas individuais de professores e de profissionais da educação, motivados muitas vezes por situaçõesproblemas ocorridas no cotidiano escolar ou da sociedade.

Sendo questões que afloram em determinado presente, a promulgação de leis e decretos, a criação de datas comemorativas e até mesmo a derrubada de estátuas se apresentam aos historiadores como um sinal que demanda um olhar sensível para o passado e para a narrativa histórica que almeja representar esse mesmo passado. Tal olhar, assim sendo, convida também a discutir sobre a necessidade de alterações nos currículos e conteúdos escolares, impostos por uma nova realidade da qual a escola não pode permanecer alheia. Tal exigência de repensar o currículo escolar pode ser observada no artigo 1º da referida lei, que declara: “Fica incluída no currículo da educação básica das escolas públicas e privadas do Estado de Santa Catarina, como conteúdo transversal, a História das Mulheres do Campo e da Cidade em Santa Catarina” (SANTA CATARINA, 2021). Já nos seus incisos são explicitados temas específicos que a lei deseja privilegiar:

§ 1º O conteúdo a que se refere o caput deste artigo tem como objetivo promover o conhecimento da história das mulheres de destaque de outros movimentos que contribuíram para a emancipação das mulheres, para alcançar espaços de igualdade de gênero. § 2º O conteúdo deverá apresentar a trajetória pessoal e profissional de mulheres que atuam em diversos segmentos, tais como educação, política, direitos humanos, saúde, cultura, sociologia, entre outros, incluindo todas as etnias presentes no Estado, com o cuidado especial de salientar as conquistas das mulheres negras, quilombolas e indígenas. (SANTA CATARINA, 2021, §§ 1º-2º)

O texto da lei representa um importante passo para a ampliação das discussões de gênero no ambiente escolar, além da valorização e reconhecimento social das mulheres em um dos estados mais feminicidas do país (RABELO, 2021). Contudo, sua aprovação permite ainda refletir sobre o enaltecimento da memória da atuação das mulheres no estado também como uma forma de força política, dando notoriedade ao que poderia ser classificado como uma memória débil (TRAVERSO, 2007). Segundo Enzo Traverso, assim como a língua oficial possui maior força por ser institucionalizada e protegida por leis, algumas memórias também se tornam mais fortes em relação a outras de acordo com a representatividade política e social de seus portadores e agentes. De acordo com essa ótica proposta por Traverso, a noção de que existam “memórias fortes” e “memórias débeis” é importante para entender a existência de um apagamento de certas memórias em detrimento de outras, algo que varia de acordo com as conjunturas dos jogos de poder que definem quais agentes detêm maior evidência política e social em determinado momento e local.

A emergência da lei, portanto, levanta diversas questões relativas aos meios de divulgação da história e ao próprio processo de escrita de narrativas históricas no estado e sobre o estado, por exemplo. Este último tema, por sua vez, fomenta a problemática das fontes disponíveis para que a escrita da história dessas mulheres seja possível. Sem suas fontes, historiadoras e historiadores são apenas especuladores ou comentaristas, pois elas são os vestígios do passado que balizam a maneira pela qual vai navegar a interpretação que dá luz à narrativa histórica. Como coloca o historiador alemão Reinhart Koselleck (2006), a história como ciência articula, entre as suas fontes e o seu objeto de análise, indagações que permitem dar inteligibilidade a toda uma série de eventos que se situam além do que o próprio documento informa. Para Koselleck, "uma fonte não pode dizer nada daquilo que cabe a nós dizer. Ela nos impede de fazer afirmações que não poderíamos fazer" (2006, p. 188). O autor nos apresenta, portanto, as fontes como "balizas", pois elas não nos oferecem o discurso histórico "pronto", mas têm "poder de veto, [pois] nos proíbem de arriscar ou de admitir interpretações as quais, sob a perspectiva da investigação de fontes, podem ser consideradas simplesmente falsas ou inadmissíveis" (KOSELLECK, 2006, p. 188).

Assim sendo, podemos dizer - e isso não deve causar espanto algum - que sem essas "balizas", que chamamos de "fontes'', os historiadores se afastam dos métodos e das ferramentas próprias do seu métier e se transformam em produtores de histórias ficcionais. Para Ricoeur (2007), o funcionamento da verdade do texto histórico se baseia em uma relação de confiança e de expectativa estabelecida em um acordo implícito entre historiador e leitor. Nesse seguimento, a construção de um discurso histórico convincente depende da presença desses vestígios; assim, o pacto velado de leitura com o leitor do qual nos fala Ricoeur depende desse elo entre a documentação e o discurso histórico.

Quando articulamos a lei que objetiva a valorização da história de mulheres catarinenses das mais diversas origens e tempos históricos e a necessidade primordial da lida com as fontes por parte de historiadoras e historiadores, chegamos às seguintes questões: onde estão algumas dessas fontes que ajudarão a contar as histórias dessas mulheres previstas no texto da lei? Onde estão esses documentos que podem tirar tais mulheres do silêncio? Esses vestígios dispõem de inúmeras potencialidades investigativas no sentido de produzir conhecimento em torno da participação das mulheres na construção da história catarinense.

As instituições de memória (arquivos, bibliotecas, museus e centros de memória) são também locais onde relações de poder estão materializadas. A partir dessa observação, entende-se que certas ausências nesses espaços não se constituem a partir de operações neutras. Por trás dessas operações, que dão rosto e corpo a tais instituições, estão subjacentes questões como as negociações da memória, sempre entre o lembrar e o esquecer, e a supremacia de desejos e interesses de certos grupos em detrimento de outros. Ao longo da história, viu-se vozes de mulheres serem caladas - em diversos momentos a partir de processos violentos -, e todos esses processos muitas vezes as colocaram como meras coadjuvantes ou apagaram a sua presença e importância no curso da história. Nesse sentido, parece pertinente pensar sobre a importância dos procedimentos de arquivamento na consagração da memória de uns e na obliteração da memória de outras.

A problematização da presença das mulheres nas instituições de memória, em especial nos arquivos, é um tema de discussão que vem chamando a atenção de pesquisadoras e pesquisadores nos últimos anos. São sintomáticos desse maior interesse, por exemplo, a realização do I Seminário Internacional Arquivos, Mulheres e Memórias, sediado no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, entre os dias 22 e 25 de março de 2017, e do dossiê resultante dele, “As mulheres e seus arquivos”, publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros em 2018. Além do seminário e da publicação no periódico, pode ser mencionada ainda, como um sinal do interesse crescente no tema, a organização de uma rede de pesquisadoras e pesquisadores dedicados a pensar a presença/ausência das mulheres em arquivos. Denominada Rede Arquivo de Mulheres - RAM, o grupo convida a participar todas aquelas e todos aqueles que "têm interesse em visibilizar, valorizar e refletir sobre arquivos de mulheres e seus processos de salvaguarda" (INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS, 2019). Por iniciativa da rede, já foram organizados três seminários virtuais, o primeiro realizado em 2020 e os dois últimos realizados em 2021.

Em uma perspectiva mais abrangente, que engloba outros campos do conhecimento que não só a arquivologia, podem ser destacadas algumas publicações lançadas nos últimos anos. A primeira delas é o livro organizado por Franciele Carneiro Garcês da Silva e Natalia Lima Romeiro: O Protagonismo da mulher na Arquivologia, Biblioteconomia e Ciência da Informação, lançado em 2019. Nele, estão organizadas em capítulos diversas reflexões vindas de profissionais desses diferentes campos do conhecimento, tendo como principal tônica a presença e o papel das mulheres, seja nos quadros profissionais, na importância que tiveram para a constituição desses campos, seja na documentação e informação que eles têm o papel de selecionar, organizar e guardar. A segunda publicação é advinda da tese de doutorado defendida em 2020 por Maria Ivonete Gomes do Nascimento no Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília. Lançada em formato de livro em 2021, a tese intitula-se “Desvendando o véu da opacidade: a representação da mulher nos arquivos públicos brasileiros” e busca abordar o espaço das mulheres na documentação abrigada nos arquivos públicos brasileiros. Para tanto, a autora parte da análise dos instrumentos de pesquisa das diferentes instituições nas quais pesquisou, percebendo, ao fim, o quanto eles contribuem para uma invisibilização de certos sujeitos, no caso de sua pesquisa, as mulheres.

Para observar essa tendência, também foi realizado um mapeamento de publicações relacionadas ao tema que foram divulgados na Revista Acervo, periódico vinculado ao Arquivo Nacional e editado desde 1986. A revista tem como foco principal a difusão de pesquisas e reflexões nas áreas de ciências humanas e sociais, com especial atenção para aquelas que realizam interlocuções entre história e arquivologia - foi por conta desse eixo direcionador e da sua circulação no cenário nacional que ela foi selecionada como objeto de observação. Como resultado desta incursão, notou-se uma maior atenção aos arquivos de mulheres específicas, ou seja, aos arquivos e às trajetórias pessoais de mulheres a partir dos anos 2010.

Até essa data, as temáticas que tangenciavam o estudo da história das mulheres utilizavam uma lente que propiciava um olhar mais ampliado, voltando suas problematizações para sociedades, grupos ou organizações. A contar dos anos 2010, foram pouco a pouco emergindo "nomes próprios" e trajetórias individuais e, eventualmente, discussões específicas sobre seus arquivos5. Nesse cenário, a temática recebeu maior atenção no dossiê “As várias faces dos feminismos: memória, história, acervos”, publicado em 2020, que tinha como objetivo refletir sobre "feminismos", porém, entendendo que, "para melhor compreendê-los em sua historicidade e complexidade, torna-se cada vez mais importante refletir sobre a preservação de seus documentos, de sua memória" (ENGEL; GUERELLUS; SOIHET, 2020, p. 7).

Tomando como um impulso essas tendências recentes no campo da pesquisa, juntamente à aprovação da lei - dois movimentos que, acreditamos, não podem ser desvinculados, pois são um sintoma de processos históricos antigos que emergem como fenômenos em nosso presente -, que buscamos em nossa pesquisa a presença de mulheres como titulares de arquivos encontrados em acervos de instituições de memória em Santa Catarina. Nesse sentido, o estudo estrutura-se em torno de dois eixos. O primeiro deles, “Entre vozes, murmúrios e silêncios: mapeando acervos”, é dedicado à apresentação dos caminhos metodológicos iniciais para a construção dessa investigação, e o segundo, intitulado “A tão presente ausência: problematizando acervos'', se volta à problematização dos resultados parciais da pesquisa, articulando-os junto a algumas possibilidades analíticas.

Sendo assim, pautada em estudos recentes desenvolvidos nos campos da história, patrimônio cultural, memória e também da arquivologia, a pesquisa que o presente artigo delineia busca tanto contribuir com os estudos historiográficos acerca das trajetórias de mulheres catarinenses e a sua presença nos processos históricos regionais - pois, por meio do mapeamento, objetiva-se vislumbrar a maneira pela qual se dá a inserção dessas mulheres nos espaços institucionais de memória - quanto fomentar uma discussão acerca das práticas de arquivamento e divulgação dessas mesmas instituições.

Entre vozes, murmúrios e silêncios: mapeando acervos

No cruzamento destas questões e inquietações, pautamos a metodologia de nossa busca na divisão regional do estado de Santa Catarina, que respeita os parâmetros estabelecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os critérios estabelecidos pelo IBGE reúnem os municípios com similaridades econômicas e sociais em uma mesma região geográfica. Em Santa Catarina, tem-se a Região Serrana, a Região do Oeste Catarinense, a Região do Meio Oeste, a Região do Vale do Itajaí, a Região do Norte Catarinense, a Região do Sul Catarinense e a Região da Grande Florianópolis. Dentro dessas divisões, primeiramente elegemos as cidades com a maior população: Joinville, Chapecó, Blumenau, Itajaí, Lages, Florianópolis e Criciúma. Partindo dessas cidades, efetuamos um mapeamento inicial por meio de pesquisas no ambiente virtual, criando uma planilha na qual colocamos os principais dados desses espaços de memória (arquivos, bibliotecas, museus e centros de memória), como localização e meios de contato. Uma primeira triagem, portanto, foi realizada empregando o critério de regionalização e a partir de buscas na internet6.

Além do levantamento desses locais, utilizamos a relação de instituições que integram o Sistema Estadual de Museus (SEM/SC), a qual atua como uma rede que incorpora mais de 224 instituições museológicas, públicas e privadas do Estado de Santa Catarina, dentre elas universidades, centros de memória, museus públicos e privados. Esse levantamento está apresentado em números no quadro 1, o qual expõe as regiões e a respectiva quantidade de instituições que elas abarcam.

Instituições museológicas distribuídas por região
Quadro 1
Instituições museológicas distribuídas por região
Fonte: Sistema Estadual de Museus de Santa Catarina. Elaborado pelo autor, 2021.

Elencadas as instituições, iniciou-se uma fase de contatos, que ocorreu em grande parte via e-mail e ligações telefônicas. Com o auxílio do Sistema Estadual de Museus, também foi divulgado por meio do seu informativo mensal (FUNDAÇÃO CATARINENSE DE CULTURA, 2021) um formulário voltado a mapear a existência desses acervos em diferentes espaços de memória. Como um primeiro passo metodológico, portanto, realizou-se uma busca sistemática das instituições, com o objetivo de responder às principais questões de pesquisa: existem acervos que têm como titulares mulheres nessas diferentes instituições de salvaguarda? E de que forma essas mulheres estão presentes nesses acervos?

Com base nesses objetivos investigativos, é importante problematizar as noções de arquivos de mulheres que estamos considerando para fins de pesquisa, sobretudo por percebermos que as devolutivas de algumas instituições continham diferentes entendimentos sobre o que estamos dispostas a capturar no estudo. Segundo a Lei nº 8.159/1991, no art. 2º,

Consideram-se arquivos, para os fins desta Lei, os conjuntos de documentos produzidos e recebidos por órgãos públicos, instituições de caráter público e entidades privadas, em decorrência do exercício de atividades específicas, bem como por pessoa física, qualquer que seja o suporte da informação ou a natureza dos documentos. (BRASIL, 1991, art. 2)

Neste sentido, nossa busca pauta-se em localizar conjuntos documentais produzidos por mulheres em sua esfera pública ou privada (a exemplo do arquivo pessoal de Clarice Lispector)7, ou seja, documentos criados e preservados por mulheres e que possibilitam estudar os processos de arquivamento produzidos por elas ao longo de suas trajetórias. Além dos arquivos, e alargando as buscas, temos os fundos arquivísticos produzidos sobre mulheres (como exemplo os da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino com a sessão Bertha Lutz8).

Seguindo a concepção apresentada no texto da lei, é importante conceituar os acervos, como a “Totalidade dos documentos conservados num arquivo” (CAMARGO; BELLOTTO, 1996, p. 1). Seguindo esse entendimento, de acordo com o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística do Arquivo Nacional, os acervos seriam os “Documentos de uma entidade produtora ou de uma entidade custodiadora” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 19). Ou seja, concordamos com Maria Teresa Santos Cunha (2019, p. 19), quando afirma que o conceito de acervo é mais abrangente por se tratar de “um conjunto de documentos, peças ou obras reunidas e abrigadas/custodiadas por instituições como museus, bibliotecas, arquivos e centros de documentação ou ainda em coleções particulares”. Assim, dentro do acervo de uma instituição como um museu, pode haver um arquivo ou uma biblioteca, e toda a documentação e objetos que esses espaços abrigam também fazem parte do acervo do museu.

À vista dessas questões, fomos recebendo algumas devolutivas das instituições. Como a pesquisa ainda está em desenvolvimento, até o momento produzimos dados a partir dessas respostas. Entre as 13 instituições que responderam estão: Museu Antônio Selistre de Campos e Museu de História e Arte de Chapecó (ambos abrigados no prédio histórico da antiga prefeitura municipal de Chapecó); Museu de Arte de Joinville (Museu Casa Fritz Alt); Ecomuseu Dr. Agobar Fagundes (Blumenau); Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina (Florianópolis); Museu Hering (Blumenau); Museu de Arte de Santa Catarina (Florianópolis); Museu da Infância (Criciúma); Museu Histórico Thiago de Castro (Lages); Museu Cidade de Jaguaruna (Jaguaruna); Espaço de Memória do Colégio Santa Rosa de Lima (Lages); Estação da Memória (Joinville); Centro de Memória da Educação do Sul de Catarina da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Criciúma).

Nessas devolutivas, que representam todas as regiões catarinenses mencionadas acima9, estão evidenciados diferentes entendimentos e formas de "guardar". Algumas respostas explicitaram a existência de documentos produzidos por mulheres (como obras de arte e produção literária) ou, ainda, a presença de documentação de mulheres em meio a outras coleções. Nesse panorama, percebeu-se que apenas uma das instituições possui um acervo no qual mulheres são titulares: o Museu Hering, em Blumenau, no qual são preservadas documentações referentes às mulheres da família Hering, tais quais Gertrud Gross Hering (1879-1968) e Elke Hering Bell (1940-1994). Esses acervos integram pinturas, peças teatrais, músicas, poesias, romances, textos de memórias, contos, além de textos diversos produzidos e relacionados a essas personagens.

As demais instituições participantes da pesquisa nos informaram que não possuem um acervo especializado sobre a trajetória de mulheres da região em que estão inseridos ou, ainda, afirmam que possuem um acervo dedicado às mulheres, porém, quando analisadas as condições de organização e tipologia da documentação, percebe-se que não se tratam de arquivos que possuem mulheres específicas e suas trajetórias como titulares. No caso do Museu de Arte de Joinville (Museu Casa Fritz Alt), os responsáveis pela instituição afirmaram haver no acervo obras de artistas mulheres. Assim também afirmou a equipe do Museu de Arte de Santa Catarina, que complementou relatando existirem no arquivo do museu alguns documentos relativos a essas artistas.

Já no Museu Antônio Selistre, a devolutiva, de que não há especificamente um acervo dedicado à guarda de documentos de mulheres, mas que no passado foi realizada uma exposição denominada “Espaço Mulher”, na qual a expografia homenageava 14 mulheres que teriam sido, na visão desse Museu, mulheres de destaque na história da cidade de Chapecó. O Museu da Cidade de Jaguaruna, na sua resposta, trouxe um pouco da narrativa que elabora a ideia de “mulheres extraordinárias” ou de “mulheres à frente de seu tempo” e declarou que abriga um conjunto de entrevistas realizadas com mulheres que teriam se destacado “numa sociedade tipicamente machista de década de 1950”. A relação entre bicicletas e mulheres é tema do Museu Estação da Memória em Joinville. Conforme nos informou a equipe, a instituição possui em sua exposição bicicletas de modelos específicos para mulheres, dando destaque às suas particularidades e fornecendo textos explicativos sobre o papel e a história da mulher no uso desse meio de locomoção.

O Centro de Memória da Educação do Sul de Catarina da CEMESSC/UNESC (Criciúma), possui documentos relativos a pesquisas que tiveram como objeto de estudo a trajetória e/ou memórias de professoras. Comportam essa documentação entrevistas, cadernos, agendas, documentos escolares produzidos por elas. Atualmente, o grupo de pesquisa responsável pelo CEMESSC conta com uma pesquisa em andamento denominada Acervos pessoais de Professoras: uma investigação sobre os guardados de Vera Maria Silvestre Cruz, a qual tem como objetivo a catalogação e disponibilização para consulta do acervo pessoal da professora Vera Maria Silvestri Cruz (1947-2020). Nesse acervo estão incluídos a sua biblioteca e variados documentos relativos à sua trajetória profissional e produzidos pela própria titular.

Tal quadro nos levou a alguns pontos de reflexão, entre eles a necessidade de explicitar aos nossos interlocutores o que entendemos como "mulheres titulares de acervos", algo que pareceu não ter sido compreendido com nitidez. Entretanto, esse "silêncio" ou suposta “ausência” das fontes documentais, em grande parte, era seguido de informações adicionais que chamaram atenção para a presença das mulheres nos espaços de memória. Suas presenças se mostram de maneira difusa, o que nos leva à problematização da inserção das mulheres na sociedade, no cotidiano, no trabalho, no processo de colonização, na educação, enfim, em diversos espaços, e da maneira pela qual se deu essa representatividade social.

Um exemplo interessante sobre os documentos que permitem conhecer a atuação de mulheres pode ser observado no Ecomuseu Dr. Agobar Fagundes - EDAF, em Blumenau, no qual em uma de suas coleções podemos encontrar objetos normalmente vinculados ao uso feminino. O acervo, nesse sentido, é composto por utensílios utilizados pelas mulheres no trabalho doméstico e na lida do/no campo, como informou a própria instituição. Embora haja um recorte claro de gênero, temos também um importante ponto de inflexão: as mulheres estão e são presentes nos espaços sociais em diferentes períodos; os rastros de memória preservados deixam, portanto, entrever onde uma boa parte delas estava inserida naquele contexto. Esses rastros revelam sua presença no trabalho doméstico, no cotidiano do campo. Esses espaços de memória nos ajudam a ver as mulheres onde elas em grande parte estavam presentes, e não onde nós queríamos que elas estivessem.

Um segundo ponto para consideração diz respeito ao registro desses documentos e arquivos, seguindo os critérios arquivísticos de determinado período ou atendendo a funcionalidade das instituições de salvaguarda. Tais questões podem ocasionalmente provocar a invisibilidade das mulheres nesses espaços, pois a documentação referente às suas trajetórias integra muitas vezes arquivos familiares ou de seus esposos. Há ainda, em relação aos instrumentos e metodologias de busca utilizadas pelas instituições, a existência de descritores pouco eficientes e que não auxiliam nessa procura.

Com base no mapeamento parcial, retornamos às nossas problematizações iniciais acrescentando a elas novas indagações: onde estão essas mulheres titulares, ou seja, onde estão essas mulheres como principais produtoras das coleções? Será que essas mulheres aparecem nesses acervos como vinculadas a seus maridos ou famílias? E que mulheres são essas? Suas trajetórias se voltam à vida pública ou ao espaço íntimo?

A tão presente ausência: problematizando acervos

Como apontado anteriormente, atentar para a presença das mulheres nas instituições de memória se relaciona com uma série de movimentos vivenciados nas últimas décadas e, no caso da problematização dessas presenças nessas instituições, nos últimos anos. Alguns desses movimentos a serem considerados fazem referência ao contínuo crescimento do número de mulheres em locais de trabalho que extrapolam o ambiente íntimo do lar e o aumento da sua projeção e atuação em cargos de chefia, também no campo universitário e científico.

Assim, a visibilidade conquistada pelas mulheres tem tensionado diversas mudanças no próprio espaço acadêmico, não somente nas questões cotidianas da sala de aula e dos departamentos, como também nas pesquisas, pois é percebido um considerável aumento no “número de teses defendidas, de cursos ministrados na Pósgraduação e mesmo graduação [...] e praticamente todas as associações profissionais e de Pós-graduação nas Ciências Humanas contam com pelo menos um grupo de trabalho sobre mulher e gênero” (ROSEMBERG, 2013, p. 348). Segundo Rosemberg (2013), até os anos de 1970, raras eram as pesquisas que tematizavam sobre as mulheres ou relações de gênero.

Com a ampliação das mulheres nos espaços acadêmicos, entraram em pauta com maior vigor estudos que buscam problematizar temas relativos a situações dessas personagens em várias áreas do conhecimento, demarcando seu espaço na produção e visibilizando suas contribuições para as ciências. Tais abordagens permitem não apenas que mulheres recebam maior incentivo nas pesquisas acadêmicas, como também retratam as condições em que as realizam: em meio às relações de gênero e dos jogos de poder que estão subjacentes a todos esses processos.

Observar mulheres no meio acadêmico, na produção de conhecimento, em cargos de chefia, ocupando vários postos de trabalho, possibilita pensar sobre suas trajetórias, sobretudo nos locais destinados a salvaguardar seus rastros de memória. Nessas dinâmicas impostas pelo presente, foi, como afirmado anteriormente, que surgiu o interesse em realizar uma investigação com o objetivo de identificar a presença e/ou ausência das mulheres em instituições de memória no estado de Santa Catarina. Somouse, em nosso interesse investigativo, o desconhecimento de arquivos pessoais de mulheres, coleções ou fundos documentais, no estado catarinense, destinados à preservação da memória de trajetórias de mulheres específicas. Essa questão por si só já nos chama atenção para refletir: não conhecemos porque existem poucas iniciativas? Ou a presença de mulheres ocorre em meio a outros acervos ou de formas diferentes dentro desses acervos, sendo necessário refinar ou repensar os processos de busca e acesso para ser possível encontrá-las?

As problemáticas das quais partiram nossas investigações caminham lado a lado com diferentes momentos históricos vivenciados em nossa sociedade (desde a chegada dos colonizadores, a formação das primeiras cidades até a complexificação da sociedade em redes). Esses momentos se relacionam com políticas que definem e elegem o que será lembrado e esquecido, bem como preservam e organizam os vestígios do que será relevante e representado por meio do patrimônio museológico e documental. Nas dinâmicas dos processos de patrimonialização catarinense, por exemplo, temos a forte presença no “[...] patrimônio da imigração o legado de um grupo de imigrantes - identificado como o trabalhador rural da pequena propriedade, que vive de forma consensual e harmônica no seu território” (PISTORELLO, 2015, p. 7) e no qual estão representados majoritariamente e de maneira idealizada a força e a coragem de homens que empreenderam na colonização e no processo de formação das cidades do estado. Essa narrativa é responsável ainda por nomear diversas instituições, ruas e monumentos que homenageiam homens considerados importantes no processo de formação da sociedade catarinense, o que, por fim, acaba por reservar poucos espaços para a memória dos povos indígenas, da população negra e das mulheres.

Na capital catarinense, ocupando grande representatividade sobre o que seriam as políticas culturais - sobretudo políticas culturais de estado - “do que se deve preservar”, temos o Museu Histórico de Santa Catarina (MHSC). Em seus diversos traços, que vão da arquitetura a seus conjuntos documentais, a estrutura do Museu busca sustentar a construção da memória do “bom político” ou a “busca por uma identidade genuinamente catarinense” (BRUHNS, 2010, p. 90). Notoriamente, por se tratar de um período com pouca participação das mulheres na política, o MHSC tem como uma de suas exposições principais e permanentes a Galeria dos Governadores, que abrange os políticos (todos homens) que governaram o estado a partir do período republicano - algo que evidencia um espaço marcadamente masculino.

Porém, refletindo sobre os debates que se voltam para aquilo que é preservado e aquilo que é relegado ao esquecimento, quando pensamos sobre as políticas de preservação e divulgação de acervos, por consequência, também nos voltamos para o debate acerca dos vestígios e dos produtores que serão privilegiados. Isso posto, de que maneira se poderia evitar, como alerta Ana Maria Camargo (2009, p. 29), decisões de salvaguarda pautadas em cânones vigentes que normalmente favorecem aqueles que têm visibilidade acadêmica e na sociedade? E ao serem convencionadas outras prioridades de escolhas - levando-se em conta a transitoriedade dos valores que estão a elas imbricados - quais as consequências futuras dessa seleção para os campos de preservação e de pesquisas que essas diversas instituições pretendem atender? Nesse sentido, a presença ou invisibilidade das mulheres nos arquivos pode ser observada na relação com o “poder que arquivos e arquivistas exercem sobre o campo da memória, do conhecimento e das identidades” (HEYMANN; NEDEL; 2018, p. 7).

Não se pode ignorar que aquilo que elas guardam é produto das atividades e ações da sociedade, portanto, elas são uma reverberação dessa mesma sociedade e suas predileções. As indagações de Camargo se voltam especificamente à questão dos arquivos; todavia, elas poderiam ser direcionadas também para as diversas instituições que aqui abordamos em relação aos seus processos de arquivamento.

Sabemos que não resolveremos essas interrogações nas breves páginas deste artigo, mas elas não podem ser perdidas de vista, pois estão conectadas aos processos e às políticas adotadas pelas diversas instituições que mapeamos e pretendemos ainda observar com maior atenção. Para além dessas discussões, questionar a ausência de acervos de mulheres nas instituições de memória em Santa Catarina nos faz refletir sobre as mulheres como produtoras de arquivos pessoais. Suas agendas, seus diários, cadernos de receitas... Quais os destinos dessas documentações? São objeto de descarte? Não interessam aos espaços de memória? E se são preservados, de que forma o são?

Durante muito tempo abrigados no universo privado, os produtos desses processos de arquivamento realizados por mulheres nos fornecem informações diferentes daquelas encontradas no espaço burocrático dos arquivos oficiais e institucionais. São nesses locais recônditos que a presença da mulher e suas ações emergem de maneira bem mais abundante. Ainda, além de presentes, como aponta Michele Perrot (1989), nesses espaços, as mulheres aparecem como as principais produtoras dos arquivamentos, tornando-se muitas vezes "as secretárias da família" (PERROT, 1989, p. 11-12). São elas as maiores responsáveis por aquilo que será preservado ou descartado no espaço íntimo e familiar. Além do mais, por meio de tais práticas de organização, pode-se ainda observar condutas que são comumente associadas às mulheres, como os diários íntimos, os livros de receitas, a administração do cotidiano doméstico, as correspondências familiares, os álbuns de família etc.

De acordo com Perrot, a narrativa histórica tradicional, ao favorecer sobretudo o mundo político, reservou pouco espaço para as mulheres, justamente na medida em que costumou privilegiar a cena pública: “Mas existem aspectos ainda mais graves. Essa ausência no nível da narrativa se amplia pela carência de pistas no domínio das ‘fontes’ com as quais se nutre o historiador [...]" (PERROT, 1989, p. 9), ou seja, "No teatro da memória as mulheres são sombras tênues" (PERROT, 1989, p. 9). Nesse sentido, é curioso pensar que são essas mulheres que dão origem aos arquivos familiares, uma vez que são responsáveis pela reunião, pelo registro e pela preservação de memórias. Porém, muitas vezes, suas atuações como organizadoras e os documentos que deixam rastros sobre suas existências estão invisibilizados, tanto nos arquivos institucionais que tendem a privilegiar a cena pública quanto nos próprios arquivos familiares. Essa ausência, segundo a autora, é ainda maior quando tratamos de mulheres do “povo”, as quais são citadas somente “quando seus murmúrios inquietam no caso do pão caro, quando provocam algazarras contra os comerciantes ou contra os proprietários, quando ameaçam subverter com sua violência um cortejo de grevistas” (PERROT, 1989, p. 10).

Além da invisibilidade, essa documentação, não raro, está fadada à destruição por parte de suas próprias produtoras. Michele Perrot, a partir da observação da sociedade francesa, por exemplo, sugere que documentos como os diários produzidos por mulheres são encontrados com pouca frequência, pois eram constantemente destruídos por suas titulares, que, “pressentindo a indiferença, se antecipavam a ela 'colocando suas coisas em ordem', isto é, destruindo seus cadernos íntimos, temendo a incompreensão ou a ironia de seus herdeiros” (PERROT, 1989, p. 12).

Realizar investimentos de pesquisa, com o intuito de observar as fontes documentais que demarcam a frequência com que as mulheres são lembradas nestes espaços de memória, é fundamental para dessacralizar uma memória cristalizada em torno das trajetórias e ações apenas de homens públicos. Observa-se uma representação binária de homens e mulheres e as relações consequentes dessa construção. Sendo assim, compreende-se que as diferenças entre homens e mulheres não se dão apenas pelo seu “sexo”, a partir de uma visão biológica, mas são definidas pelo seu “gênero”, portanto, ligadas à cultura. São as relações entre gêneros que, de forma diferente em cada sociedade, definem os papéis sociais dos indivíduos, como afirmou Margareth Mead ainda na década de 1930 (PEDRO, 2005).

Aqui, partimos do pressuposto de que as relações de gênero e os papéis sociais que a partir dela se estabelecem são os elementos fundantes para a atribuição ou não de espaço para a memória das mulheres nos diferentes acervos, ou ainda, como titulares de arquivo. Essa categoria, portanto, ajuda a compreender a subordinação das mulheres também nesses espaços de memória e arquivamento. Acompanhando essa perspectiva, Perrot afirma que:

a observação das mulheres em outros tempos obedece a critérios de ordem e de papel. Ela diz respeito mais aos discursos que às práticas. Ela se detém pouco sobre as mulheres singulares, desprovidas de existência, e mais sobre “a mulher”, entidade coletiva e abstrata à qual se atribuem as características habituais. Sobre essas não há uma verdadeira pesquisa, apenas a constatação de seu eventual deslocamento para fora dos territórios que lhes foram reservados. (PERROT, 1989, p. 10)

À vista disso, a “‘generificação’ dos arquivos” - entendida como um olhar que leva em conta o papel e o espaço dado a homens e mulheres dentro de acervos - “é, pois, um índice dos diferentes modos como as mulheres participaram das diversas esferas da vida social de um país” (SIMONI; ELEUTÉRIO, 2018, p. 21).

Ao observarmos, mesmo que ainda superficialmente, as políticas e estruturas dessas instituições mapeadas, vimos muitos vestígios da presença de mulheres, porém a forma como esses indícios estão alocados ou retratados parece ainda não dar destaque ao protagonismo que elas tiveram nas suas comunidades. Além do mais, a maneira como esses vestígios estão acondicionados não facilita o seu acesso. Se tomamos como parâmetro a forma como são divulgados e organizados os acervos nos quais estão salvaguardados documentos que se referem à atuação de homens, essa situação se torna ainda mais flagrante. Nesse quadro, não se pode perder de vista uma construção social que tendeu atribuir mais espaço na cena pública, seja ela política ou cultural, aos homens. Essas mulheres que observamos nesses espaços, em sua maioria, não parecem ter um nome próprio ou protagonismo, são "sujeitas" e não "agentes", que muitas vezes têm sua existência marcada somente pela relação que estabeleceram com "grandes homens" ou com processos históricos mais abrangentes.

Considerações finais

Os arquivos têm o poder de privilegiar ou de marginalizar. Podem ser uma ferramenta de hegemonia ou de resistência [...]. Nesses espaços de poder, o presente controla o que o futuro saberá do passado (COOK; SCHWARTZ, 2002, p. 24)

Muitas questões emergem a partir da aprovação da Lei nº 18.226, a qual versa sobre a História das Mulheres do Campo e da Cidade em Santa Catarina e sua inclusão nos currículos escolares estaduais. Um desses questionamentos se refere à adequação dos documentos educacionais de maneira que possam incorporar o tema da lei e colaborar para seu efetivo cumprimento. Outro, por seu turno, trata dos processos de escrita e produção de conhecimento histórico que discorrem sobre as mulheres catarinenses, tema que nos leva à reflexão acerca das fontes documentais que contarão essa história e dos espaços que as guardam.

O objeto da lei nos fez olhar para os locais de salvaguarda interrogando o espaço ocupado pelas mulheres nessas instituições. Acompanhadas do crescente interesse investigativo sobre a história das mulheres e sobre os arquivos de mulheres como titulares, partimos de uma suposta ausência documental no estado catarinense, viabilizada pela forte presença de uma narrativa dos homens públicos, sejam eles políticos, intelectuais ou artistas.

Com base na metodologia de pesquisa abordada e nos resultados levantados até o momento, consideramos que os documentos preservados nestes espaços seguem a lógica apontada logo acima por Cook e Schwartz (2002) e também por Derrida (2001): no jogo entre aquilo que se preserva e aquilo que se descarta sempre haverá o poder de destruição, de seleção ou exclusão. Não há lembrança sem o esquecimento e, nesse processo, o que está posto não é o passado, mas, sim, o futuro: aquilo que será lembrado. O arquivo é concebido - de maneira descontínua - por lacunas e é perpassado pelo que Derrida chama de "mal de arquivo": o apagamento e o esquecimento. As condições de arquivamento não são estáticas, mas fluem no ritmo das dimensões temporais (passado, presente e futuro) sempre em um vir a ser. Nesse arranjo estão conjugados história, verdade e poder, os quais são impulsionados pela transformação e desconstrução, que é a dinâmica própria do arquivo que abriga os suportes da memória e as técnicas de arquivamento.

Sendo assim, há que se levar em conta a importância de problematizações sobre as práticas de guarda e arquivamento e as narrativas propagadas nessas instituições de memória em Santa Catarina, as quais estão navegando também de acordo com as transformações sociais e de produção do conhecimento, seja a partir da emergência de novos sujeitos de pesquisa, seja a partir do reconhecimento de novas fontes documentais que esses novos sujeitos de pesquisa exigem.

Para que não sejam tomados apenas como locais que ocupam uma posição de poder (ou violência, como proporia Derrida), é imprescindível que essas instituições de memória, em especial os arquivos, disseminem e incentivem questionamentos acerca das histórias, lutas e vivências dos mais variados grupos e sujeitos sociais. Talvez essa seja uma tarefa difícil de realizar, mas é preciso que as próprias instituições também se dediquem a reconstruir, a partir do que vivenciam no presente, o que tem escapado ao arquivamento: os não-ditos sintomáticos de nossa sociedade. Como já mencionado anteriormente, nesse cenário emerge também a escrita da história que é tributária desses indícios, e é mediante esse olhar que podemos articular aquilo que abrigam essas instituições e a Lei nº 18.226.

Por fim, levando em conta as notas iniciais de pesquisa aqui apresentadas, os próximos passos da investigação se voltarão para segundos contatos com essas instituições e, assim que os protocolos sanitários de prevenção à Covid-19 permitirem, para a organização de visitas presenciais a alguns desses locais com o objetivo de observar mais de perto seus processos de salvaguarda. Tal iniciativa se coloca como necessária, visto que muitos dos nossos primeiros contatos não tiveram retorno e, ainda, percebemos, muitas vezes, uma dificuldade de entendimento em relação à nossa proposta de pesquisa, voltada especificamente para a busca de acervos - particularmente arquivos pessoais que possam estar abrigados por essas instituições - que tenham mulheres como titulares.

Referências

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Notas

1 Disponível em: https://leisestaduais.com.br/governo/sc/lei-ordinaria-n-18226-2021-santa-catarina-incluicomo-conteudo-transversal-no-curriculo-das-escolas-publicas-e-privadas-do-estado-de-santa-catarina-ahistoria-das-mulheres-do-campo-e-cidade-em-santa-catarina. Acesso em: 10 dez. 2021.
2 Luciane Carminatti nasceu em 9 de julho de 1970, no município catarinense de Chapecó. Professora na rede pública, atuou na Educação Especial e em Orientação Educacional. Atualmente está em seu terceiro mandato (2019-2023) consecutivo como deputada estadual na Assembleia Legislativa de Santa Catarina. Disponível em https://lucianecarminatti.com.br/biografia/. Acesso em: 31 mar. 2022.
3 Anita Garibaldi viveu entre os anos de (1821 - 1849), natural do município catarinense de Laguna. É considerada uma importante liderança revolucionária em defesa da república e da unificação da Itália. É reconhecida como "Heroína dos Dois Mundos” por meio da participação ativa nas batalhas ocorridas em solo brasileiro e italiano. Disponível em:https://www.camara.leg.br/tv/173997-anita-garibaldi/. Acesso em: 8 dez. 2021.
4 Antonieta de Barros viveu entre os anos de (1901-1952), natural do município de Florianópolis/SC. Estudante normalista na mesma cidade, formou-se professora, onde fundou cursos e dirigiu escolas. Também trabalhou como jornalista, período em que criou alguns jornais e periódicos. Foi a primeira mulher Deputada Constituinte, Deputada Estadual Catarinense, e primeira mulher negra, no século XX, a assumir mandato popular no Brasil. Disponível em:https://memoriapolitica.alesc.sc.gov.br/biografia/68Antonieta_de_Barros. Acesso em: 8 dez. 2021.
5 Artigos publicados a partir de 2010 que tomaram como objetos principais as trajetórias e acervos de mulheres ou a temática de gênero: Preservando o legado da cineasta Helen Hill, de Kara Van Malssen (2010); Políticas de gênero na Segunda Guerra Mundial: As roupas e a moda feminina, de Ivana Guilherme Simili (2012); Lydia Sambaquy e a Biblioteca do Dasp: Contribuições para a constituição do campo biblioteconômico no Brasil, de Nancy Elizabeth Oddone (2013); Laboratórios da história: a centralidade do arquivo na trajetória profissional de Cecília Westphalen, de Daiane Vaiz Machado (2019); Tia Marcelina, a negra da costa, e as memórias do Quebra de Xangô de Alagoas, de Anderson Diego da Silva Almeida e Paulo Antonio de Menezes Pereira da Silveira (2020); Ruth Guimarães: Uma romancista negra na imprensa brasileira dos anos 1940, de Silvio D'Onofrio (2020).
6 A escolha da metodologia também levou em conta o momento de exceção vivido durante os passos iniciais da pesquisa, no qual diversos espaços de memória se encontravam fechados em decorrência dos protocolos epidemiológicos voltados a minimizar os riscos de transmissão da Covid-19.
7 O Acervo Clarice Lispector encontra-se salvaguardado no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. É composto por sua biblioteca pessoal com cerca de 800 livros. Além de manuscritos e datiloscritos, cadernos, correspondências e quadros pintados por ela. O acervo também pode ser visitado em repositório digital. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/acervo/. Acesso em: 31 mar. 2022.
8 O Acervo de Bertha Lutz é composto por diferentes coleções que são custodiadas pelo arquivo histórico da Câmara dos Deputados. Além da Coleção Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, custodiada pelo Arquivo Nacional. RJ. Disponível em: https://arquivohistorico.camara.leg.br/index.php/colecaobertha-lutz. Acesso em: 31 mar. 2022.
9 Cabe ainda ressaltar que, muitas vezes, os responsáveis pelo retorno ao nosso contato expressaram a satisfação em saber que uma pesquisa voltada para a temática que cruza a questão da guarda de documentos e gênero estava sendo desenvolvida, o que entendemos também como um sintoma da importância que o debate tem no espaço público.
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