CONTÍNUA

O cuidado com as imagens de crianças nos estágios de pedagogia

Caring for children's images in the pedagogy stages

Cristiane Lumertz Klein Domingues
Centro Universitário Cesuca, Brasil
Gabriele Bonotto Silva
Centro Universitário Cesuca, Brasil

Percursos

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN-e: 1984-7246

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 23, núm. 51, 2022

revistapercursos.faed@udesc.br

Recepção: 01 Março 2020

Aprovação: 30 Março 2021



DOI: https://doi.org/10.5965/1984724623512022498

Resumo: Este texto tem por objetivo discutir como a escola aborda o direito de imagem da criança, de modo a refletir positivamente para os registros dos trabalhos dos alunos do curso de Pedagogia nas escolas de estágio, sendo escolas mescladas entre privado e público, dos Anos Iniciais, Educação Infantil e alguns espaços não escolares (Lar de idosos, Centro de condutores, Secretaria de Educação). Recorremos à coleta de dados documental realizada em relatórios de observação desde o ano de 2014 até 2019, do estágio supervisionado do curso de Pedagogia, e sobretudo aos dados coletados nas escolas de estágio pelos alunos do curso. Argumentamos, com base nos resultados encontrados, que é necessária uma mudança de atitudes quanto ao uso da imagem das crianças na escola, começando com reflexões importantes sobre o assunto em cursos de formação de professores, almejando uma mudança comportamental que possa proteger as crianças nesse sentido, quando falamos em prática pedagógica. Em especial, uma prática diferenciada pelos estagiários em seus campos de estágio no tocante ao registro das atividades realizadas.

Palavras-chave: estágios, direito à, própria imagem, crianças, ética.

Abstract: This text has the objective to discuss how the school approaches the child’s image right, in order to reflect positively for the registration of works from students of the course of pedagogy at internship schools, with mixed schools between private and public, of Initial Years, Early Childhood Education and some non-scholar spaces (Nursing Home, Conductors Center, Secretary of Education). We resorted to documental data collection performed in observation reports from year 2014 to 2019, of supervised internship of the course of Pedagogy and mainly to the collected data at internship schools by the students. We argue based on the results found that a change in the attitude regarding image use of children at school is necessary, starting with important reflections on the subject in formation courses for professors, aiming a behavior change that can protect the child in this sense, when we talk about pedagogical practice. Especially, a different practice by interns in their fields of internship, regarding the registration of activities performed.

Keywords: stages, right to own image, children, ethic.

Introdução

O objetivo deste texto é discutir como a escola aborda o direito de imagem da criança, de modo a refletir positivamente sobre os registros dos trabalhos dos alunos do curso de Pedagogia nas escolas de estágio, sendo escolas privadas e públicas, dos Anos Iniciais, Educação Infantil e alguns espaços não escolares.

A escola, principal alvo dos estágios curriculares, é um espaço de aprendizagem e conhecimento. Ao ingressar nesse espaço enquanto estagiários do curso de Pedagogia, os estudantes enfrentam diversas situações que precisam compreender e utilizar conhecimentos que construíram durante a caminhada acadêmica. Além de utilizar os conhecimentos prévios, os estudantes também se apropriam da realidade das escolas, compreendendo as suas necessidades e potencialidades.

A pesquisa aqui descrita foi resultado de um estudo realizado por duas professoras da disciplina de estágio supervisionado, devido a uma demanda que surgiu pelas características da nossa sociedade, que está cada vez mais tecnológica, o que acaba influenciando as escolas em suas rotinas, quando falamos da imagem das crianças, que aparecem em fotos no registro do processo de ensino e aprendizagem das turmas. Tal situação chamou atenção das professoras durante a leitura dos relatórios de observação, sendo que, para escrever esse relatório, o aluno faz 20h de observação das aulas da professora titular da turma em que ele realizou o estágio, mais uma entrevista1 com a professora titular e com a gestão da escola.

Caracterizamos essa pesquisa como documental, entendida da seguinte forma:

A pesquisa documental assemelha-se muito à pesquisa bibliográfica. A única diferença entre ambas está na natureza das fontes. Enquanto a pesquisa bibliográfica se utiliza fundamentalmente das contribuições dos diversos autores sobre determinado assunto, a pesquisa documental vale-se de materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa. (GIL, 2008, p. 51)

A pesquisa também foi caracterizada como observação participante, pois as pesquisadoras atuaram como professoras das disciplinas de estágio, coletando dados ao mesmo tempo em que organizavam as aulas. Isso permite uma relação com os sujeitos da pesquisa, acesso às fotos e relatórios, além da reconstrução de diálogos (LÜDKE; ANDRÉ, 1986).

Para tanto, foram coletados dados dos relatórios de estágio dos alunos de Pedagogia; no ano de 2019, as professoras listaram, para as alunas, os aspectos percebidos sobre a enorme exposição da imagem das crianças, porque por meio deles foi possível notar que algumas práticas propostas pela escola expõem demais a figura infantil, com fotos em diversas circunstâncias dentro do espaço escolar, e em materiais que vão para casa. Podemos destacar que os relatórios mostram principalmente que, no processo de avaliação das escolas, isso seria mais recorrente.

Foram lidos 300 relatórios de observação, dos três estágios entre os anos de 2014 e 2019, sendo que, em média, um relatório é composto por 10 páginas. O relatório apresenta, na introdução, qual estágio o aluno está realizando, a importância do estágio na formação acadêmica, a comunidade do estágio e o ano da prática de estágio; na descrição das observações, aparecem registros de falas das crianças e da respectiva turma, bem como de atividades realizadas, tudo separado por dia, com riqueza de detalhes; descrição da escola, do trabalho da professora, da entrevista com a professora titular e com a gestão. O trabalho é encerrado com uma análise crítica do estagiário sobre todos os dados descritos no relatório, com um posicionamento pessoal, analisando possíveis estratégias de trabalho no futuro.

Este artigo é resultado da pesquisa de duas professoras que lecionam nas disciplinas de Estágio Curricular no curso de licenciatura em Pedagogia. A temática surgiu a partir da própria práxis das docentes. Trate-se de uma pesquisa documental, realizada através da leitura e análise dos relatórios de estágio de 2014 até 2019, a saber: Estágio I: Educação Infantil; Estágio II: Anos Iniciais e Estágio III: Espaços não escolares, do curso de licenciatura em Pedagogia. A seguir apresenta-se o embasamento legal e o referencial teórico, que inclui aspectos relacionados aos estágios curriculares, às leis que amparam o direito de imagem e às metodologias ativas de ensino e aprendizagem.

O estágio curricular supervisionado

O estágio curricular do curso de Licenciatura em Pedagogia é um período de suma importância para os estudantes. É neste momento do curso que estagiários articulam conhecimentos, habilidades e competências para, através da práxis pedagógica, atuar nas escolas buscando o desenvolvimento do ensino e da aprendizagem. De acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Educação nº 1, de 15 de maio de 2006:

Art. 3º O estudante de Pedagogia trabalhará com um repertório de informações e habilidades composto por pluralidade de conhecimentos teóricos e práticos, cuja consolidação será proporcionada no exercício da profissão, fundamentando-se em princípios de interdisciplinaridade, contextualização, democratização, pertinência e relevância social, ética e sensibilidade afetiva e estética. (BRASIL, 2006)

O pedagogo constitui-se enquanto professor durante a profissão. Para desenvolver o repertório citado na Resolução do Conselho Municipal de Educação, o estudante deverá construir conhecimentos teóricos, desenvolvidos inicialmente na própria instituição superior de ensino, e práticos, nas disciplinas de práticas e de estágios curriculares. Por isso, o estágio curricular é tão significativo, pois permite contextualizar o aluno na realidade da comunidade escolar e propicia novos conhecimentos. No que se propõe este artigo, é mister que os alunos tenham contato com a escola para compreender a relevância do direito de imagem na sua profissão.

Ainda conforme com a Resolução do Conselho Nacional de Educação nº 1, de 15 de maio de 2006:

Art. 7º O curso de Licenciatura em Pedagogia terá a carga horária mínima de 3.200 horas de efetivo trabalho acadêmico, assim distribuídas:

I - 2.800 horas dedicadas às atividades formativas como assistência a aulas, realização de seminários, participação na realização de pesquisas, consultas a bibliotecas e centros de documentação, visitas a instituições educacionais e culturais, atividades práticas de diferente natureza, participação em grupos cooperativos de estudos;

II - 300 horas dedicadas ao Estágio Supervisionado prioritariamente em Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, contemplando também outras áreas específicas, se for o caso, conforme o projeto pedagógico da instituição;

III - 100 horas de atividades teórico-práticas de aprofundamento em áreas específicas de interesse dos alunos, por meio, da iniciação científica, da extensão e da monitoria. (BRASIL, 2006)

Portanto, os estágios curriculares compreendem carga horária significativa dentro do curso de Pedagogia, ou seja, os estudantes do curso têm contato com crianças, jovens e adultos, nas escolas, em diversos momentos. Além disso, a resolução supracitada informa que a atuação dos estudantes deve ocorrer prioritariamente na Educação Infantil, nos Anos Iniciais. Faixa etária essa que abarca as infâncias, em relação aos quais a preocupação com a exposição de imagem indevida é cada vez mais expressiva.

O direito de imagem para pensar o trabalho pedagógico

Para compreender a importância do direito do uso de imagem nos estágios curriculares e nas escolas, é necessário embasar-se em leis que garantem o direito do público em questão. Neste artigo, utilizar-se-á a Constituição Federal (BRASIL, 1988), o Código Civil (BRASIL, 2002) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).

De acordo com a Constituição Federal de 1988:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. (BRASIL, 1988)

Portanto, a Constituição Federal infere que qualquer pessoa que mora no Brasil tem direito à liberdade e à segurança. Consequentemente, o direito se estende a sua imagem e ao uso dela por terceiros. Ainda sobre o inciso X, evidencia-se que a imagem, não apenas a imagem visual, é inviolável. Ao trabalhar nas escolas como estagiários curriculares do curso da Pedagogia, deverão estar atentos ao princípio constitucional supracitado.

O artigo da Constituição Federal corrobora o Artigo 20° do Código Civil (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002):

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. (BRASIL, 2002)

Nesse artigo, mais recente do que a Constituição Federal, fica evidente o direito à proteção da imagem. E ainda, pensando no direito de imagem especificamente da criança e do adolescente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990) apresenta:

Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. (BRASIL, 1990)

Nesta direção, o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) garante que a imagem da criança seja preservada com o objetivo de priorizar a integridade moral, psíquica e física. Vendruscolo (2008, p. 87) reforça a ideia quando diz que: “ O direito à imagem é, pois, um direito da personalidade que merece proteção plena do ordenamento jurídico, viabilizando a realização do ser humano na sua integralidade.”

As três leis supracitadas embasam a necessidade de a escola não divulgar as fotos de crianças e adolescentes que participam do processo de ensino e aprendizagem, fato esse que impacta os alunos dos cursos de licenciatura, em especial, aqui, o estágio do curso de Pedagogia, uma vez que os registros das aulas dadas pelos estagiários, em sua maioria, são realizados por meio de fotos.

A articulação entre a resolução que fundamenta os estágios curriculares do curso de Pedagogia e as leis que mantêm o direito do uso de imagem se dá a partir da prerrogativa que o futuro docente precisa compreender das leis que irão reger a sua ação em sala de aula. Apesar de o estágio ser um momento de reflexão e construção do conhecimento, a legislação já tem impacto sobre os mesmos.

Podemos salientar conforme as palavras de Cury Júnior (2006, p. 58) “[...] a faculdade, absoluta e exclusiva, que toda pessoa tem de não ser fotografada sem o devido consentimento, podendo exigir de outrem o respeito a esse direito”, sendo essa uma ideia sintetizada pelo autor referente aos artigos 12, 21 e 927 do Código Civil, que demonstra a importância de cuidar esse aspecto.

Metodologias ativas de ensino e aprendizagem: o contexto dos estágios de Pedagogia

Ensinar e aprender são processos que ocorrem em vários locais de educação formal e não formal. Anastasiou (2015), ao falar sobre o aprender, afirma que se trata de um ato único, interno e voluntário. E que a aprendizagem só se concretiza ao passo que o indivíduo assume a posição de sujeito desse processo. Para que isso ocorra é necessário envolvimento, dedicação, esforço e responsabilidade.

Nas instituições de ensino do ensino superior e da educação básica, é crescente a discussão e o uso de metodologias ativas de aprendizagem. Metodologias essas que buscam uma aprendizagem efetiva e que propicie a tomada de decisões em situações da vida real. Conforme Moran (2018), pesquisas relacionadas à neurociência afirmam que a aprendizagem é um processo individual, mesmo que desenvolvida de uma forma coletiva. Cada indivíduo aprende de uma forma diferente, a partir do que é significativo e relevante, ou seja, a aprendizagem ocorre quando há conexão emocional e cognitiva. Para que o indivíduo desenvolva essa conexão emocional e cognitiva, premissa da aprendizagem ativa, é essencial que esteja no centro do processo de aprendizagem. Apesar de toda a aprendizagem ser ativa em algum grau, conforme evidencia Moran (2018), quanto mais o indivíduo estiver envolvido e ativo em seu processo de aprendizagem, maiores serão as chances de aumentar a sua flexibilidade cognitiva.

A flexibilidade cognitiva é a “capacidade de alternar e realizar diferentes tarefas, operações mentais ou objetivos e de adaptar-nos a situações inesperadas, superando modelos mentais rígidos e automatismos pouco eficientes” (MORAN, 2018, p. 3). No contexto deste artigo, os discentes da pedagogia, ao entrarem no campo de estágio, precisam romper com conhecimentos adquiridos anteriormente sobre a escola. Passam de alunos a professores e precisam encontrar formas eficazes de ensinar seus alunos, que pertencem a outra geração e necessitam de novas metodologias para construir seus conhecimentos.

A aprendizagem ativa está diretamente ligada às oportunidades de aprender fazendo. É nos momentos de prática nas escolas que os estudantes do curso de Pedagogia conseguem ancorar novos conhecimentos a partir de conhecimentos prévios. Tudo que os estudantes vivenciam nas escolas faz parte desse mecanismo que envolve ação-reflexão-ação. Portanto, a aprendizagem ativa é também reflexiva.

Através do conceito de aprendizagem ativa e reflexiva, relacionamos o estágio curricular supervisionado e suas demandas acadêmicas, da escola e de respeito às leis apresentadas anteriormente. Ao realizar o estágio, o estudante precisa registrar a sua prática através de um relatório. Os registros contam, com riqueza de detalhes, o planejamento, a execução e também a reflexão feita pelo estagiário durante o período de prática.

Aos registros escritos, acrescentam-se as fotos dos principais momentos de ensino e aprendizagem. As fotos indicam como as atividades foram aplicadas, o envolvimento das crianças com a atividade e a organização do estagiário. É nesse momento que as fotos passam de um registro de acesso privado para acesso público, pois ficam no relatório de estágio e em outros documentos solicitados pela instituição de ensino superior. A orientação das professoras é de cobrir o rosto das crianças no relatório, impedindo a identificação das mesmas.

Apesar de ser um registro obrigatório e significativo do processo de aprendizagem dos estudantes do curso de Pedagogia, ele envolve muitas responsabilidades. As imagens das crianças, além de constarem no relatório, podem ser facilmente publicadas em redes sociais, o que não é permitido nem pela instituição de ensino superior e nem por todas as escolas. Em alguns casos, a escola pode fazer a publicação das imagens das crianças com a devida autorização formalizada através do consentimento dos responsáveis.

Essa responsabilidade está relacionada com o próprio processo de aprendizagem ativa. O estudante precisa compreender que as decisões tomadas dentro da escola representam todo o seu caminho enquanto aprendente. Eles precisam articular todos os conhecimentos construídos durante a graduação para agir de forma adequada à realidade em que estão inseridos. O fato é que as habilidades desenvolvidas na graduação não são apenas cognitivas, são também socioemocionais. O curso de Pedagogia propõe que o estudante desenvolva a visão de mundo de sociedade, buscando o desenvolvimento de cidadãos conscientes e ativos na sociedade.

O registro das aprendizagens dos alunos na escola

Segundo Dahlberg (2016), o trabalho com a documentação pedagógica torna o processo acessível ao diálogo e à interpretação, contestação e transformação, promovendo um ambiente democrático dentro do espaço escolar e ajudando a desenvolver uma relação ética entre os sujeitos durante as experiências com as crianças porque

Por meio da documentação, podemos estudar e fazer perguntas mais facilmente sobre a prática. Qual é a imagem que devemos ter da criança? Que discursos do ensino e da aprendizagem aceitamos? Que voz, direitos e respeito as crianças recebem nos nossos programas infantis? Meramente falamos sobre a criança competente, criatividade, participação e prática reflexiva ou essas ideias realmente permeiam a nossa prática? (DAHLBERG, 2016, p. 231)

O mesmo autor (DAHLBERG, 2016) ainda continua escrevendo que somente uma fotografia, sem o registro escrito descrevendo e interpretando o comportamento da criança, não pode ser entendida como documentação pedagógica; então, podemos inferir que os registros fotográficos feitos em portfólios de avaliação das crianças, compostos por momentos significativos das aprendizagens, não podem ser considerados documentação pedagógica, e, pior, que a exposição de fotos funciona apenas como um álbum fotográfico, sem intenções de avaliar e interpretar o processo de aprendizagem do aluno.

Entendendo a situação

Esta experiência aconteceu com três turmas de estágio, no ano de 2019, de uma faculdade privada da região metropolitana de Porto Alegre. Faziam parte desse grupo: Estágio I: Educação Infantil; Estágio II: Anos Iniciais e Estágio III: Espaços não escolares. O estágio faz parte da grade curricular do curso de Pedagogia localizado nos últimos semestres, para que o aluno esteja em condições de realizá-lo, uma vez que isso dará suporte à prática pedagógica exigida no período. Será descrito aqui não o período de estágio das alunas, mas o tempo final dessa prática, quando os alunos apresentam os resultados alcançados aos professores, colegas de curso, bem como para as supervisoras de estágio. O estágio realizado pelos alunos do curso é compreendido como: “[...] a possibilidade de integrar-se em um cenário profissional real e conhecer e participar in situ da cultura e estilo de trabalho daqueles que exercem a profissão que o estudante, realizando as práticas, deseja acessar” (ZABALZA, 2014, p. 116).

Ao final do período compreendido pelo estágio, os alunos participam de uma mostra de estágios, realizada na instituição de educação superior, em um turno de aula; nesse momento, eles possuem algumas incumbências para concluir a etapa e encerrar o processo de avaliação. As estagiárias (os) apresentam na mostra para os demais colegas, expondo os materiais utilizados durante as aulas e um banner explicativo sobre o projeto de ensino desenvolvido com as crianças, a fim de deixar claro para os visitantes e colegas o trabalho que foi realizado nas aulas dadas durante o estágio. Salienta-se que os familiares das estagiárias, os estudantes da instituição de ensino superior e os professores e as equipes diretivas onde os estágios foram realizados são convidados para apreciar os relatos na mostra de estágio.

Para realizar a mostra de estágios foi necessário, em um primeiro momento, compreender como as escolas em que os alunos realizam o estágio lidam com a exposição da imagem das crianças, quando relatam as aprendizagens em situações de avaliação, ou na descrição de processos de ensino. A partir da leitura dos relatórios de observação dos alunos, foi possível perceber que grande parte das escolas produz material sobre o processo de ensino e aprendizagem baseado em portfólio com muitas fotos das turmas, com a imagem de todas as crianças no material.

Nossa investigação nos relatórios de observação levantou que as 300 escolas participantes possuíam termos de autorização de direito de imagem das crianças assinados pelos pais, mas saber disso apontou uma questão que foi discutida com os alunos na faculdade, pelas duas professoras responsáveis pelas disciplinas de estágio: será que o direito de imagem não seria só para atividades próprias da escola, realizadas em seu interior?

Os alunos concluíram, a partir das informações disponibilizadas pelas escolas, que sim, e que os professores usam tais imagens até mesmo nas suas redes sociais para promover seu trabalho, mas esquecem que a autorização é da escola e não deles. Também concluíram que os portfólios de avaliação vão para diferentes residências, com as fotos de todas as crianças da turma, quando os pais as mostram para muitas pessoas diferentes, fazendo propagar a imagem dos alunos em diversos lugares e para muitas pessoas. As escolas, especialmente as de Educação Infantil, estão em um movimento grande de valorização da documentação pedagógica das crianças, como ferramenta para análise e avaliação dos alunos, mas, ainda, segundo nossa análise, estão presas a registros de fotos, sem perceber a aprendizagem das crianças durante o processo, que é a intenção da documentação pedagógica. Segundo Rinaldi (2016), a documentação pedagógica seria o registro de uma experiência repleta de significado:

Os elementos da observação, da documentação têm uma forte conexão. É impossível observar sem interpretar, porque a observação é subjetiva. É impossível interpretar sem refletir e observar. Quando você escolhe algo para documentar; quando você tira uma foto ou grava um vídeo de uma experiência, você está fazendo uma escolha. Isso significa que você está valorizando ou avaliando essa experiência como significativa para os processos de aprendizagem das crianças, assim como para os seus próprios processos de aprendizagem. (RINALDI, 2016, p. 243)

Outro aspecto discutido com as turmas foi o fato dos relatórios de observação serem compostos por muitas fotos dos espaços da escola, com evidências registradas com a presença de fotos de muitas crianças, fato que trouxe uma outra provocação para nossos alunos: os professores titulares não orientaram os futuros estagiários a esse aspecto? Chegamos à conclusão que nenhuma escola nunca fez essa orientação aos nossos alunos, porque todos os relatórios no período de 2014 até 2019 apresentaram fotos em sua composição. A partir dessa constatação, os professores orientadores de estágio passaram a ter muito cuidado com fotos nos relatórios das(os) estagiárias(os). Embora os relatórios fiquem arquivados na faculdade, salientamos para nossos alunos a importância de prestarmos maior cuidado com esse aspecto, pensando no futuro profissional que estamos formando.

A partir disso, a turma de estagiários entendeu a importância de proteger a imagem das crianças, então pensaram juntos em estratégias de fazer o registro da prática pedagógica realizada, sem prejuízo do trabalho de estágio e considerando que a imagem das crianças não pode ser divulgada indiscriminadamente em meios digitais, painéis e banners. Os alunos passaram a fazer registros cuidadosos da imagem das crianças, e, para isso, compartilham estratégias entre os colegas de turma, concluindo que poderia ser feito por meio de fotos das mãos realizando as tarefas, vistas por trás dos alunos, fotos de cima em grupos; todo o cuidado foi investido, nesse sentido, ao se produzir os registros. O relatório de observação também passou a merecer uma atenção especial quanto à imagem das crianças, da escola e da professora, que passaram a existir sem serem vistos.

Tendo bastante cuidado com a imagem infantil, a mostra de estágios mudou sua estrutura organizacional, sem nenhum tipo de prejuízo ao registro do trabalho dos estagiários, pois houve um empenho ainda maior para que as fotos não identificassem seus alunos. Na exposição são colocados os trabalhos feitos pelos alunos das turmas de estágio, materiais confeccionados pelos estagiários para as aulas e um banner explicativo. Os alunos demonstram muita criatividade para expor os trabalhos na mostra, fazendo varais com prendedores, cubos forrados com imagens dos trabalhos, móbiles, usando degraus de escadas como expositores, painéis no chão e nas paredes. O trabalho continuou sendo mostrado, mas agora com maior comprometimento com a identidade dos sujeitos envolvidos no processo do estágio dos nossos alunos.

Considerações finais

O que gostaríamos de salientar aqui é a importância de a escola fazer parte das mudanças que acontecem na nossa sociedade, de modo a aproximar muito mais o aluno do mundo em que ele vive fora dos muros escolares, mas, ao mesmo tempo, o desejo de preservação da imagem das crianças, uma vez que notamos, com toda a passagem dos nossos alunos pelos campos de estágio, como esse assunto ainda é pouco discutido entre os professores.

Ressaltamos aqui a importância de os professores conhecerem as leis que embasam o direito de imagem dos indivíduos, por isso reconhecemos que iniciar o processo de preocupação com a imagem das crianças nas escolas deveria começar com discussões dentro de cursos de formação de professores, uma vez que esses alunos irão para as escolas realizar estágios curriculares e depois chegarão às instituições escolares como professores. Talvez, os professores recentemente formados, com o intuito de proteger a imagem do menor, possam plantar sementes nos professores que já estão com um sistema arraigado em suas práticas pedagógicas, para que eles comecem a pensar um pouco mais nessa situação, ou até mesmo consigam mudar o modo de registro das aulas deles.

Uma vez que levantamos que na maioria das escolas públicas e privadas em que se realizam os estágios, o registro das atividades acontece por meio de portfólio com imagens das crianças, e, que esse material vai para a residência dos alunos, como uma forma de mostrar o trabalho da escola a partir do que foi realizado pelos professores das turmas, percebemos também que as imagens são descuidadas. Com isso, não estamos apontando que as fotos nas escolas não devam ser feitas, mas nos preocupa a disseminação indiscriminada e de proporções alarmantes no meio escolar, em diversas mídias sociais.

Deixamos aqui o registro de uma prática que estamos tendo com os alunos que serão futuros professores, de um olhar cuidadoso com a imagem das crianças, de modo que não acabe a prática de registro das aprendizagens das crianças, mas que essas imagens ou vídeos sejam utilizados para fins educativos dentro da escola, e que os materiais que saírem dos ambientes escolares sejam mais avaliados, de modo a melhor preservar a identidade2 das crianças.

Outro aspecto merecedor de discussões nos cursos para professores é o uso das imagens das crianças nas redes sociais, será que isso não expõe essas crianças a diferentes olhares, deixando-as vulneráveis?

Referências

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Notas

1 A entrevista realizada para obter dados para o relatório de observação segue o seguinte conceito: “A subjetividade está muito presente: uma pessoa fala. Diz com o seu próprio sistema de pensamentos, os seus processos cognitivos, os seus sistemas de valores e de representações, as suas emoções, a sua afetividade e a afloração do seu inconsciente” (BARDIN, 1977, p. 89)
2 O conceito de identidade utilizado faz referência às características físicas da pessoa, sem nenhuma associação com o termo identidade cultural.
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