DOSSIÊ
Tecnologias da informação e conhecimento geográfico: análise do uso das geotecnologias a partir da obra de Milton Santos1
Information technologies and geographical knowledge: analysis of the use of geotechnologies in Milton Santos’work
Percursos
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN-e: 1984-7246
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 23, núm. 51, 2022
Recepção: 26 Setembro 2021
Aprovação: 20 Abril 2022
Resumo: Este artigo visa abordar o papel das denominadas geotecnologias (sensoriamento remoto orbital, sistemas de informação geográfica e sistemas de posicionamento global - GPS) e suas implicações para o conhecimento geográfico a partir da obra de Milton Santos e, particularmente, apresentar exemplos do papel assumido pelo emprego de tecnologias da informação e seus sistemas técnicos como subsídio para a formulação e suporte de políticas públicas territoriais. As tecnologias da informação, entendidas como densidade técnicoinformacional do espaço geográfico, ocasionam novas formas de uso, organização e regulação do território. Os sistemas técnicos que envolvem as geotecnologias tendem à unicidade técnica e à totalidade dos lugares, possibilitando a instantaneidade e a simultaneidade da informação e, assim, o aumento qualitativo da cognoscibilidade do planeta. São apresentadas algumas limitações das geotecnologias que poderiam levar a um reducionismo do entendimento do espaço geográfico às suas formas instrumentais e também as possibilidades latentes de usos diferentes do sentido em que foram concebidas.
Palavras-chave: Milton Santos, tecnologias da informação, políticas públicas territoriais, conhecimento geográfico, densidade técnica, objetos técnicos.
Abstract: This article aims to approach the role of the denominated geotechnologies (orbital remote censoring, geographic information systems and global positioning system – GPS) and its implications for the geographic knowledge based on the work of Milton Santos and, especially, presenting examples of the role taken by the application of information technologies and its technical systems as a subsidy for the formulation and support of territorial public policies. Information Technologies, understood as technical- informational density of the geographic space, cause new ways of use, organization and territory regulation. Technical system that involves geotechnologies tend to the technical oneness and to the totality of places, enabling the immediacy and the simultaneity of information and, therefore, the qualitative increase of planet knowledgeability. Some limitations of geotechnologies, which could lead to a reductionism of the understanding of the geographic space to its instrumental forms and also the latent possibilities of different uses than the sense in which they were conceived.
Keywords: Milton Santos, information technologies, territorial public policies, geographical knowledge, technical density, technical object.
1 Breve introdução sobre as geotecnologias e os sistemas técnicos
Nas três últimas décadas foi evidenciada a ampla difusão de diferentes usos das geotecnologias em políticas públicas que envolvem o monitoramento agrícola e o monitoramento ambiental, como ferramenta de suporte a planos setoriais e de gestão de programas governamentais voltados aos sistemas de proteção social2, e também como instrumento de ordenamento territorial e de cadastros fundiários. As tecnologias da informação, entendidas como densidade técnico-informacional do espaço geográfico, ocasionam novas formas de uso, organização e regulação do território. A materialização das geotecnologias, de forma desigual e incompleta no território, reforça a indissociabilidade de sua dimensão técnica e de sua dimensão política. Os sistemas técnicos que envolvem as geotecnologias tendem à unicidade técnica (SANTOS; SILVEIRA, 2001, p. 69-85) e à totalidade dos lugares.
Segundo Santos (1996), no passado, os sistemas hegemônicos não possuíam alcance global podendo inexistir em alguns lugares ou regiões, enquanto que no atual período tornou-se ubíquo, retomando a expressão de “universalismo técnico” elaborada por Ellul (1964, p. 116-133 apud Santos, 1996, p. 153). A técnica se transforma em “meio universal e uniforme”, conforme Miquel e Ménard (1988 apud SANTOS, 1996, p. 154). Acerca da atual tendência à unicidade técnica planetária, esclarece que:
O movimento de unificação, que corresponde à própria natureza do capitalismo, se acelera, para hoje alcançar o seu ápice, com a predominância, em toda parte, de um sistema técnico, base material da globalização. Com a emergência do período técnico-científico, no imediato pós-guerra, o respectivo sistema técnico se torna comum a todas as civilizações, todas as culturas, todos os sistemas políticos, todos os continentes e todos os lugares. (SANTOS, 1996, p. 153)
Os sistemas técnicos que envolvem as geotecnologias consistem na adequação de uma estrutura e da função de seus objetos (como os sensores remotos orbitais), em uma ação planejada que torna possível sua exatidão e eficácia. Esses objetos técnicoinformacionais se inserem num sistema mais amplo: no sistema de objetos, intrinsecamente relacionados ao sistema de ações (SANTOS, 1996). Diferentemente de outros períodos técnicos (SANTOS, 1985), atualmente, os sistemas técnicos tendem à unidade e atingem a totalidade dos lugares e dos homens. A construção de um objeto técnico consiste em preparar uma disponibilidade, o que pode implicar na criação de uma psicoesfera dependente de uma tecnoesfera, mas não implica em sua utilização imediata. Assim, são aqui exploradas algumas das limitações das geotecnologias que poderiam levar a um reducionismo do entendimento do espaço geográfico às suas formas instrumentais e também as possibilidades latentes de usos diferentes do sentido estrito em que foram concebidas.
Dentre os exemplos das políticas de monitoramento agrícola e ambiental, podem ser citados o monitoramento orbital de queimadas, cálculo de desflorestamento da Amazônia Legal, plataformas de coletas de dados ambientais, agricultura de precisão (BALASTREIRE, 2000; INAMASU; BERNARDI, 2014), previsão de safras agrícolas e, mais recentemente, a denominada agricultura digital3 ou agricultura 4.0 (MASSRUHÁ, 2018). Além disso, as geotecnologias passaram a ser empregadas como instrumentos de ações de ordenamento territorial, como zoneamentos ecológico-econômicos, zoneamentos agrícolas de risco climático, cadastro georreferenciado de imóveis rurais e cadastro ambiental rural. No âmbito dos Planos Nacionais que consideram o território como elemento de integração de políticas públicas, vem sendo utilizadas como subsídios em ferramentas de gestão de programas governamentais voltados aos sistemas de proteção social, principalmente com a retomada das ações estratégicas de planejamento a partir de meados da década de 19904, tais como os Planos Nacionais (Plano Nacional de Logística e Transportes, Programas de Aceleração do Crescimento (PAC), Política Nacional de Ordenamento do Território (PNOT), Plano Brasil Sem Miséria).
Particularmente sobre a PNOT, Becker (2007) ressalta que esta foi constituída em um contexto em que a globalização e a abertura dos mercados impuseram novos padrões de competitividade baseados na exportação, sendo a logística uma das principais condicionantes da reestruturação do território, permitindo às grandes corporações ampliar suas escalas de atuação e a expansão da fronteira agropecuária.
O atual governo federal no Brasil tem sido caracterizado, inclusive, pelas rupturas e descontinuidades nos planos nacionais em diferentes setores, descaracterizando a seguridade social (FAGNANI, 2021) instituída pela Constituição de 1988 e pelo desmonte do aparato político institucional constituído nas últimas décadas, como os sistemas únicos de saúde (SUS) e de assistência social (SUAS), programas de reforma agrária e de fortalecimento da agricultura familiar, políticas urbanas, segurança alimentar e nutricional, dentre outros.
O meio técnico-científico e informacional é caracterizado, inclusive, pelo emprego das tecnologias da informação que permitem um controle do espaço aéreo, das fronteiras, da biodiversidade, ou seja, um efetivo monitoramento através da repetitividade dos sistemas orbitais. Como consequência, surgem novas potencialidades de uso da cartografia automática e de sistemas de informação geográfica, permitindo, assim, ações mais precisas sobre o território. Tais sistemas técnicos permitiram a cognoscibilidade do planeta e o acompanhamento da dinâmica das paisagens de toda a superfície terrestre, de forma sinóptica e ao mesmo tempo detalhada.
Os sistemas técnicos do sensoriamento remoto orbital consistem na adequação de uma estrutura e da função de seus objetos (os sensores), em uma ação planejada que torna possível sua exatidão e eficácia. Esses objetos técnico-informacionais5 se inserem num sistema mais amplo: no sistema de objetos, intrinsecamente relacionados ao sistema de ações. Inexistente em outros períodos técnicos, hoje há um sistema técnico que tende à unicidade e atinge a totalidade dos lugares e dos homens. Novos comportamentos humanos e a necessidade de utilização de recursos técnicos atuais conferem um determinado conteúdo ao território, que são condicionados pela tecnoesfera e pela psicoesfera.
Segundo Santos (1996), a tecnoesfera é dependente da ciência e da tecnologia e se adapta aos imperativos da produção, da articulação de mercados e controle do território, frequentemente traduzindo interesses distantes ao lugar. A psicoesfera se funda sobre as mesmas bases, traduzindo as ideias, crenças e produção de um sentido ao mesmo meio, fornecendo regras a uma racionalidade ou induzindo um sentido. A tecnoesfera e a psicoesfera são produtos de uma sociedade mais ampla que o lugar em que estão materializadas, com inspiração, regras e racionalidades mais amplas e complexas. Assim como identificadas por Ribeiro (1991), ambas estão consolidadas nas bases sociais da técnica e na adequação de comportamento à interação entre tecnologia e valores sociais, condicionando automatismos e racionalidades.
Ortega y Gasset (1963) circunscreve a relação entre o homem e sua técnica a partir de duas questões: a mudança substantiva que produziu a técnica atual e a razão pela qual ocupa na vida humana um papel singular em relação a momentos históricos anteriores. Ao assumir a consciência de suas limitações, a técnica passa a representar novas possibilidades ao homem. Para Ellul, a transformação do meio não ocorre apenas no trabalho, que aborda a separação entre o conhecimento da técnica e da aplicação da técnica, mas também “trata-se de uma modificação de todo seu ambiente, quer dizer, de tudo o que constitui suas circunstâncias, seus modos de vida, sua paisagem, seus hábitos” (ELLUL, 1968, p. 332-333).
Benakouche (2005) ressalta a presença cada vez maior das tecnologias nas práticas sociais das sociedades contemporâneas. Em contraposição à noção de “impacto tecnológico”, que emerge a partir dos anos 1970 acompanhada do aumento de estudos que analisam os impactos sociais da técnica, a autora esclarece sobre o entendimento equivocado da técnica marcada por viés determinista. Eram atribuídas à técnica suposta dicotomia entre a tecnologia, responsável pelos chamados impactos, e a sociedade, que os sofreria. Em decorrência da crítica a essa noção, desenvolveu-se uma corrente de investigação sociológica denominada sociologia da técnica.
Santos (1996), ao propor que a questão da técnica sirva como base para uma explicação geográfica, afirma que a técnica é um meio, não cabendo suposta separação entre meio técnico e meio geográfico, sendo que:
Nos dias atuais um novo conjunto de técnicas torna-se hegemônico e constitui-se a base material da vida da sociedade. É a ciência que, dominada por uma técnica marcadamente informacional, aparece como um complexo de variáveis que comanda o desenvolvimento do período atual. (SANTOS; SILVEIRA, 2001, p. 21)
A técnica, portanto, é “integrada ao meio como uma realidade unitária” (SANTOS, 1996, p. 35).
2 Tecnologias da informação e conhecimento geográfico
A informação (banal, técnica, científica, produtiva) é um dos principais vetores dos processos sociais, permitindo um maior controle de dinâmicas dos lugares mesmo que longínquos de seus centros de decisão. A partir do advento da ciência moderna, “o conhecimento científico do espaço passou a ter grande importância estratégica; mais do que nunca, com efeito, o espaço é o campo das diferenciações, das contradições, das tensões, das competições” (ISNARD, 1982, p. 12). No atual período histórico, as tecnologias da informação possibilitaram a simultaneidade e a instantaneidade da informação6, tornando possível o aumento qualitativo da cognoscibilidade do planeta com alto grau de detalhamento, conformando territórios à funcionalidade que o mercado exige.
De acordo com Santos (2000),
o período histórico atual vai permitir o que nenhum outro período ofereceu ao homem, isto é, a possibilidade de conhecer o planeta extensiva e profundamente. Isto nunca existiu antes, e deve-se, exatamente, aos progressos da ciência e da técnica (melhor ainda, aos progressos da técnica devido aos progressos da ciência). (SANTOS, 2000, p. 31-32)
Num sentido mais amplo, podemos afirmar que através dos objetos técnicos foi possível converter a totalidade filosófica do mundo em totalidade empírica (SANTOS, 1994). A técnica diz respeito a um conjunto de possibilidades. Para Vargas (1994), corresponde também à habilidade humana de fabricar, construir e utilizar instrumentos. A submissão da ciência à técnica é também uma submissão ao mercado, pois surge num momento histórico que serve às bases do capitalismo. B. S. Santos (1988) atenta para a necessidade de aproximação com as culturas locais para utilizar o potencial da ciência em benefício de toda a sociedade, propondo um diálogo entre as ciências humanas e a produção de tecnologias, ao tratar da segunda ruptura epistemológica.
B. S. Santos (1989, 1995) diferencia duas vertentes no modelo mecanicista assumido, que tivera no racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações. A primeira vertente consistiu em aplicar os princípios epistemológicos e metodológicos dos estudos da natureza ao estudo da sociedade; a segunda, cada vez mais seguida, reivindicou para as ciências sociais um estatuto metodológico próprio, com base na especificidade do ser humano e sua distinção polar em relação à natureza.
Segundo Castillo (2000), “a matematização do conhecimento do território funda-se e é parte integrante do conhecimento da natureza”, sendo necessário conhecer a origem da concepção matemática do conhecimento até o seu emprego como fundamento das políticas territoriais. Com o paradigma da ciência moderna, há, segundo B. S. Santos (1989), uma separação entre o discurso científico e o senso comum. Constitui-se num modelo de racionalidade científica, que se impõe como modelo totalitário, “na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e suas regras metodológicas” (SANTOS, B. S., 1995, p. 11). Formulado sob as leis da matemática, predominam os aspectos quantitativos neste modelo de paradigma. A linguagem matemática seria a única capaz de manter o rigor do conhecimento científico.
É assim que se configura a racionalidade mecanicista tendendo a atingir todas as atividades humanas, se conformando como uma linguagem dominante da ciência. A partir da emergência da ciência moderna - e com a institucionalização da geografia no século XIX influenciada pelo positivismo nas ciências (CAPEL, 2012; 2016), legitimando como científica uma racionalidade quantitativista do mundo (SANTOS, B. S., 1988; 1995).
Neste contexto, a técnica inicia seu processo de convergência com a ciência moderna e torna-se sistemática ao longo do século XX, sobretudo a partir da segunda guerra mundial que foi um período rico em desenvolvimento e aplicações. De acordo com GRANGER (1994), não há progresso técnico relevante a partir da segunda metade do século XX que não esteja baseado na ciência.
A evolução técnica impôs alterações na maneira como o conhecimento é produzido e apropriado. Hoje, boa parte da produção científica se coloca a serviço da técnica e da produção (GRANGER, 1994) e, consequentemente, do mercado, fazendo com que a ética perca seu espaço para a tecnociência. Essa é uma das características do atual período técnico. Cabe apontar que a partir dos anos 1970, o uso combinado dos computadores com os satélites artificiais permitiu a produção de um conhecimento digital da materialidade que compõe o espaço geográfico (CASTILLO, 2002) e que passaremos a exemplificar no próximo item.
3 O monitoramento agrícola e o monitoramento ambiental
As tecnologias de sensoriamento remoto orbital e os avanços no campo dos sistemas de informação geográfica (SIG) têm subsidiado estudos de identificação e mapeamento de recursos naturais direcionados ao planejamento e suas formas de apropriação e uso. Por exemplo, na implementação de zoneamentos ecológicos e econômicos, conforme apontado por Becker e Egler (1997) ao tratar dos chamados ordenamentos territoriais dos estados da Amazônia. Dessa forma, Crepani et al. (1996) descrevem algumas das aplicações do sensoriamento remoto e geoprocessamento nos zoneamentos ecológico-econômicos, apontando os estudos de planejamento do uso adequado de áreas associadas às informações de aptidão agrícola com a análise da adequação do uso de terras.
Essas ferramentas das chamadas geotecnologias oferecem subsídios para a formulação de políticas públicas institucionalizadas em diversos programas governamentais a partir dos anos 2000, como por exemplo, o monitoramento da cobertura do solo7 para a caracterização da paisagem e identificação de áreas desflorestadas, além dos programas de monitoramento realizados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) na Amazônia que servem como apoio na tomada de decisões do Ministério do Meio Ambiente.
Outro exemplo é o zoneamento agrícola de risco climático, implementado no âmbito da PROAGRO8 a partir de 1996 (CUNHA; ASSAD, 2001). Este acarreta em uma maior seletividade espacial, orientando culturas para onde elas sejam mais favoráveis segundo a produtividade e viabilidade econômica. Tal quadro pode culminar em um confronto com as culturas locais e produtores agrícolas tradicionais, quando submetidos a uma racionalidade instrumental da decisão sobre o que é produzido e que pode levar a uma especialização produtiva em razão de acontecimentos externos ao lugar. São privilegiados cultivos atrelados às demandas por consumo global (embora não exclusivamente) em detrimento daqueles mais restritos ao mercado e cultura alimentar locais. Há a conjugação entre tecnologias da informação (com complexos cálculos de variáveis edafoclimáticas), sistemas de manejo, biotecnologias modernas, um conjunto de elementos que traz uma racionalidade na agricultura do país e resulta numa reorganização territorial produtiva. Apesar do conflito com as racionalidades locais, o zoneamento cumpre o seu papel enquanto política pública contribuindo com a redução das perdas agrícolas dos pequenos produtores, mas também beneficia grandes produtores funcionais ao agronegócio e às seguradoras agrícolas.
Dentre o conjunto de práticas atreladas às tecnologias da informação, podem ainda ser mencionadas a agricultura de precisão, as plataformas de coleta de dados ambientais (PCDs), o cadastro georreferenciado de imóveis rurais (ESTEVES, 2010), o cadastro ambiental rural e a previsão de safras agrícolas utilizando o sensoriamento remoto orbital.
4 Aplicações de geotecnologias em políticas públicas de cadastros fundiários em implementação no Brasil
Como possível exemplo do uso conjunto das tecnologias da informação empregadas em políticas públicas territoriais, podem ser citados, dentre outros, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Cadastro Nacional de Imóveis Rurais (CNIR), ambos de abrangência nacional.
O CAR é um cadastro concebido como instrumento complementar de regularização ambiental de propriedades rurais. Elaborado a partir do levantamento de informações georreferenciadas contendo delimitações das áreas de uso agrícola, áreas de utilidade pública e áreas de conservação ambientais (áreas de proteção permanente, reserva legal, remanescentes de vegetação nativa). Seu uso é previsto para fins de regularização ambiental9, pode ser utilizado também para ações de recomposição de áreas degradadas ou ainda compensar áreas de reserva legal; foi criado pela Lei 12.651/2012 e, com o Decreto 7.380/2012, foi estabelecido o Sistema de Cadastro Ambiental Rural (SICAR) que integra o CAR operado por todos os estados federados.
O CNIR permite identificar inconsistências no Sistema Nacional de Cadastro Rural, localizar fraudes nos registros cartoriais e uniformizar os dados integrados com o Cadastro de Imóveis Rurais (CAFIR), com finalidade tributária, administrado pela Receita Federal do Brasil. Os dados do CNIR podem, portanto, ser comparados com os registros existentes, identificando nestes os reais limites das glebas. Com a Lei 10.267/2001 que criou o CNIR e a legislação dela decorrente foram incluídas novas ferramentas de gerenciamento das demarcações das propriedades e integrados a sistemas de informação geográfica (ESTEVES, 2010), tendo como meta promover o cadastro de imóveis rurais reconhecidos no Sistema Nacional de Cadastro Rural (aproximadamente 5,77 milhões de imóveis rurais, em 2016).
As tecnologias da informação empregadas nos dois cadastros fundiários mencionados podem ser entendidas como um elemento de uma informação espacial técnica e precisa, sendo que o CNIR possui implicações diretas que o cadastro georreferenciado de imóveis rurais possui sobre o encaminhamento de programas de reforma agrária. Isso se dá na identificação de terras devolutas, grandes propriedades improdutivas, concentração fundiária, como também das potencialidades latentes para a adequada arrecadação tributária dos imóveis rurais, ao permitir o cruzamento dos dados constantes dos cadastros de terras e os respectivos registros de matrícula de propriedades com os dados tributários declarados à Secretaria da Receita Federal. Do ponto de vista geográfico, o CNIR pode ser apontando como um elemento da densidade técnico-informacional do espaço geográfico e que ocasiona em novas formas de uso, organização e regulação do território brasileiro.
O espaço geográfico é aqui entendido como a transformação do meio pelo trabalho, um híbrido de formas de materialidades e de formas de ações, composto de formas-conteúdo (SANTOS, 1996; 1999). Até o presente momento, as possibilidades técnicas existentes desses cadastros georreferenciados e a sua atual materialização desigual e incompleta no território reforçam para a condição de indissociabilidade de sua dimensão técnica e de sua dimensão política. Segundo Santos (1996), o espaço geográfico pode ser entendido “como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações” (SANTOS, 1996, p. 266), trazendo à tona a discussão sobre a técnica (e o fenômeno técnico) que traz consigo uma série de normatizações.
Os cadastros baseados nas tecnologias da informação podem representar uma reação tanto ao processo histórico de concentração fundiária e ações ilícitas no campo, quanto ao modelo atualmente predominante de execução da política de reforma agrária (não pautado pela função social da propriedade e fomentando um mercado de terras), colocando em evidência e dando publicidade às injustiças - legais e ilegais - no campo. Pode, portanto, baseado nos sistemas técnicos atuais, representar uma reação ao processo histórico de concentração fundiária nos países da América Latina, colocando em evidência as particularidades da propriedade nas diferentes formações socioespaciais. No caso brasileiro, podem ser mencionadas as particularidades como o coronelismo, clientelismo, formação de latifúndio, ação de grileiros e empresários rurais.
Em relação às populações da América Latina que respondem por grande diversidade cultural e étnica, cabe apontar que a questão sobre o domínio fundiário não foi completamente solucionada. No caso brasileiro, o pluralismo jurídico conforme definido por Antas Júnior (2005), que garantiu o reconhecimento de direitos étnicos na Constituição de 1988 (como as populações indígenas e os remanescentes de quilombos), carece ainda de instrumentos eficazes e capazes de assegurar a delimitação, demarcação e titulação de suas terras denominadas como tradicionalmente ocupadas. O cadastro georreferenciado de terras pode ser entendido como uma densidade técnica que pode orientar tais políticas. A apropriação formal de terras baseada no direito à propriedade definitiva (para os quilombos) e na posse permanente (para os indígenas) permanece como uma lacuna a ser preenchida no interstício existente entre as disposições constitucionais e as estruturas administrativas existentes no Brasil (ESTEVES, 2012).
5 O emprego das geotecnologias: algumas considerações para o conhecimento geográfico
Com a evolução da técnica e as mudanças decorrentes na forma como parte do conhecimento é produzido atualmente, acentuou-se a tendência da matematização do conhecimento do território. As novas formas de conhecimento trouxeram uma visão de mundo dada pela influência do positivismo nas ciências que a legitimaram como científica. De acordo com B. S. Santos (1988), somente a partir do século XIX foi estendido das ciências naturais para as ciências sociais, que é também um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter reacional a todas as formas de conhecimento que estão baseadas em outras regras metodológicas.
No contexto da visão quantitativista, o paradigma computacional e o paradigma do cálculo fazem parte de um novo momento epistemológico (CASTILLO, 2002). No sentido de buscar uma racionalidade instrumental do conhecimento digital do território, as imagens de satélite necessitam do tratamento e da informação, que segundo Castillo (1999, 2002) se dão nas dimensões sensorial, sintáxica (ou algorítmica) e semântica; assim, a informação pode ser utilizável e, portanto, inteligível.
O paradigma do cálculo, segundo Levy apud Castillo (2000), entre outras denominações dessa nova racionalidade pretende tornar-se a linguagem dominante das ciências, definindo complexos de ideias compostas pelas noções de sistema, informação, comunicação e cálculo. O processo de matematização do conhecimento (VARGAS, 1994) e da cognoscibilidade da Terra em cada uma de suas partes é apontado por Castillo (2000) como operacionalizado devido a dois fatores: o surgimento do computador eletrônico e o advento dos satélites artificiais (especialmente os sensores remotos orbitais).
Para a Geografia, esse processo se traduz nas diversas combinações envolvendo as geotecnologias, como uma das expressões do paradigma do cálculo. São evidenciadas na definição de Geografia de Pike (1987), expandida conceitualmente para acomodar outros planetas; na consideração do SIG como a quarta dimensão da cartografia, na qual a geografia moderna tiraria o proveito dessa nova ferramenta para se expressar como ciência dos espaços e dos lugares (DOBSON, 1993; TACHON, 1995; PICKLES, 1995; ARNOULD, 2010); e Lacoste (1995), ao chamar a atenção daqueles que afirmavam o esgotamento das potencialidades da geografia, sem se dar conta dos conhecimentos geográficos produzidos nas últimas décadas graças aos progressos técnicos da observação por satélite, fotografia e sensoriamento remoto. É chamado de paradigma geotecnológico por Buzai (2009).
A conjugação das potencialidades dos satélites com os avanços da computação (e o respectivo desenvolvimento técnico dos sistemas de informação geográfica) permitem novas possibilidades à Geografia, mas como um recurso instrumental e não como um fim. Câmara (2001) lembra a limitação ao uso das geotecnologias, ao apontar que o entendimento da realidade está muito além do que as formas de representações espaciais podem oferecer. Essa condição pode levar ao reducionismo da disciplina às suas formas instrumentais ou às formas de representação cartográfica. A imagem de satélite é uma das expressões da paisagem dentre muitas outras possíveis. É uma definição singular de paisagem10, entendida como fragmento da realidade e não pode ser sinônimo de espaço geográfico (CASTILLO, 2002); é incapaz de apreender as densidades normativas do espaço geográfico.
Esse recurso sustenta e legitima ações hierárquicas a partir de um conhecimento digital preciso (como nos zoneamentos de risco climático) sendo um sistema de ações que permite a intervenção corporativa na organização do território que pode competir com os interesses da maioria da população. Logo, alguns exemplos demonstram o risco de um reducionismo da disciplina às suas formas, sem que a reflexão epistemológica que a Geografia exige como forma de responder, inclusive a sua importância, como denomina B. S. Santos (1988, 1989, 1995), na emergência de um paradigma alternativo da ciência pós-moderna que também considere o conhecimento local e o conhecimento tradicional.
As tecnologias da informação constituem-se, portanto, como mais um elemento da densidade técnico-científica e informacional do espaço geográfico, modificando as estruturas sociais dos lugares. Isso se dá na medida em que o conhecimento digital se impõe, desqualificando os saberes locais baseados nos antigos conhecimentos empíricos que são submetidos à racionalidade da produção e a interesses que podem ser externos ao lugar.
Conclui-se que o uso das geotecnologias diz respeito a uma concepção atrelada ao fenômeno técnico, ao paradigma do cálculo, e sua aplicação nas políticas públicas mostra que, cada vez mais, existe uma dependência de sistemas técnicos capazes de responder às demandas criadas por racionalidades de novas formas de organização do território (ESTEVES, 2010). Cabe-nos fazer a crítica dessa forma instrumental e tornar inteligível o uso dado pelas tecnologias da informação presentes nas políticas territoriais. Da mesma forma, é imprescindível também tornar inteligível as capacidades latentes nesses sistemas técnicos, mesmo que estes tenham sido concebidos com objetivos estritos, para que possam ser revertidos em prol da sociedade brasileira.
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Notas