DOSSIÊ
Milton Santos e Século XXI: meio técnico científico informacional para a compreensão do presente-futuro
Milton santos and the 21th century: scientific technical informational environment for the comprehension of present-future
Percursos
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN-e: 1984-7246
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 23, núm. 51, 2022
Recepção: 04 Outubro 2021
Aprovação: 29 Março 2022
Resumo: Compreender as mutações recentes engendradas pela técnica no mundo do trabalho, nas formas de produção de violência e no acesso às políticas públicas trabalhistas e previdenciárias são os principais desafios desse artigo, que busca a compreensão do papel do espaço e da ciência geográfica na atualidade. Essas mutações precisam ser analisadas na perspectiva da totalidade do pensamento crítico. Com base nessa afirmação, a obra de Milton Santos é estratégica para a compreensão do Presente. Dessa forma, o artigo focaliza a categoria meio técnico cientifico informacional criada pelo autor como possibilidade teórica e metodológica para a análise da atualização das formas de hegemonia que se alimentam da técnica como essencial no exercício da dominação. O estudo dedica-se também no entendimento sobre a adoção de tecnologias de informação e dados no atendimento dos contribuintes do sistema previdenciário.
Palavras-chave: Milton Santos, espaço geográfico, técnica, política previdenciária.
Abstract: The main challenges of this article are to comprehend recent mutations engendered by the technique in the world of work, in the forms of violence production and in the access to social security and labor public policies, which seeks the comprehension of the role of space and geographic science at present. These mutations need to be analyzed in the perspective of the totality of critical thought. Based on this information, the work of Milton Santos is strategic for the comprehension of Present. Thus, the article focuses the category informational scientifical technical mean created by the author as a theorical and methodological possibility for the analyses of the update of hegemony ways which are fed by the technique as vital in the exercise of domination. The study also dedicates to the understanding on the adoption of information technologies and data in the attendance of contributors of the social security system.
Keywords: Milton Santos, geographic space, technique, social security policy.
Como trabalhar a questão da técnica de modo a que sirva como base para uma explicação geográfica? Cremos que um primeiro enfoque é considerar a própria técnica como um meio. Essa, aliás, foi, em diversos livros, uma das propostas principais de Jacques Ellul, para quem a ordem criada pela técnica inclui o homem em um verdadeiro novo meio natural. G. Bóhnee propõe a noção de Tecnoestrutura, que seria o resultado das interrelações essenciais do sistema de objetos técnicos com as estruturas sociais e as estruturas ecológicas, ideia que servirá, no dizer de B. Joerges (1988, p. 17) para exorcizar as ambiguidades do conceito de técnica e de tecnologia nas ciências sociais. (SANTOS, 2006, p. 22)
Introdução
Milton santos nasceu em 3 de maio de 1926 em Brotas de Macaúba, Bahia, e faleceu em 2001 na cidade de São Paulo, em plena aurora do século XXI. Foi responsável pela produção de uma extensa obra que tinha duas finalidades: a primeira, de repensar o objeto de estudo da Geografia, ciência que estuda as relações sociais, econômicas e políticas na produção do espaço e que busca analisar os aspectos espaciais da natureza - como recurso para as empresas e como meio de existência para a população. A segunda finalidade era de pensar e interferir na realidade brasileira e em outros países denominados de Terceiro Mundo e/ou subdesenvolvidos. Dentre tantos reconhecimentos pelo trabalho de professor, pesquisador e de geógrafo, está o prêmio Vautrin Lud, em 1994, o de maior prestígio na escala da Geografia internacional.
A contribuição de Milton Santos é inumerável, indo muito além do seu tempo. Seu trabalho no exterior (na França, nos Estados Unidos, na Tanzânia, dentre outros países) lhe permitiu a ampliação de acesso a uma vasta literatura da Geografia, da Filosofia e de outras disciplinas das ciências afins, que contribuiu para instrumentalizar o dom e a capacidade de analisar as mutações, os problemas e os grandes processos estruturais de dominação na estruturação do espaço. Negro, brasileiro e baiano, Milton Santos se tornou cidadão do mundo, por estar muitíssimo comprometido com a superação das desigualdades sociais e espaciais, com a verdade que liberta e com a ética da dignidade humana e da transformação social.
Ao pensar a Geografia, partiu de uma capacidade crítica de traduzir o marxismo, sem ser ortodoxo, e reformulou os métodos de desenvolvimento do pensamento crítico sem perder de vista as diferenças espaciais. Sabia ele o poder das ideias, do pensamento e dos modelos, muitas vezes prontos, abstratos, importados, que negam as historicidades e as geograficidades dos lugares. Em seus textos, compreender o espaço geográfico como um conceito em movimento era compreender a produção social do tempo e sua realização como prático-inerte, como história e como sociedade. O espaço geográfico para Milton Santos é fruto social e, ao mesmo tempo, instância social que, uma vez produzida, influencia no presente e no futuro das formas de apropriação do espaço.
Ao problematizar a Geografia, estava problematizando os olhares sobre os grupos sociais subalternos, sobre as formas de dominação e de exercício do poder através do espaço e as formas de invisibilidade produzidas pela globalização perversa e pela globalização como fábula. Ao longo de sua obra, se preocupa com o advento das formas de modernização para o exercício da exploração e da acumulação de capitais por um grupo específico em detrimento do restante da população. A preocupação com a produção desigual de regiões, de lugares e a dimensão da urbanização corporativa são algumas das reflexões teóricas que o angustiavam ao estudar a realidade social.
Desse modo, o presente artigo tem como finalidade refletir sobre a importância da obra de Milton Santos para compreender os processos presentes na seguinte questão: a importância da categoria analítica “meio técnico científico informacional” na produção das desigualdades sociais, por meio de análise dos processos de modernização da técnica e seus impactos na difusão dos meios de comunicação, informação e informatização.
A metodologia utilizada para a elaboração do artigo levou em conta a análise dos textos de Milton Santos, sobretudo o seguinte material literário: A Natureza do Espaço: ação e Emoção, publicado pela primeira vez em 1996; 2. O espaço do cidadão, de 1987 e; 3. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana, com primeira edição em 1978. Para a atualização das informações sobre as questões pertinentes da relação entre meio técnico-científico informacional, implementação de técnica da informação nas políticas previdenciárias para atendimento da população, utilizamos dados do DATAPREV-INSS. Para compreensão dos contextos de violência e desemprego, utilizamos os dados do IBGE, leituras de artigos, relatórios e notícias recentes sobre a conjuntura social (dos anos 2017 a 2021).
Por que trabalhar com a obra de Milton Santos para compreender o presente e futuro na atualização das formas de dominação por meio da técnica?
Partimos da noção de século, de acordo com as perspectivas de Giacomo Marramao (1998). O filósofo político relaciona o conceito de século ao conceito de secularização. O século não é um conjunto de datas, ou simplesmente uma periodização. A secularização é processo de projeção do futuro. De conseguir pensar e perceber a produção de ações e visões de mundo que querem colonizar o futuro como forma de poder social, político e cultural. Da mesma forma, a secularização permite perceber os projetos em disputa, que buscam desenhar e agir no futuro a partir do presente.
O século torna-se formato operacional, contexto espaço-temporal dessas disputas. É o ambiente em totalização (movimento engendrado pelos eventos sociais políticos e econômicos). Por isso, o século não é somente tempo histórico (tempo de acontecimentos) é também espaço (localização, escalas, experiências vividas no lugar, objetos e difusão das inovações). Assim, compreendemos na obra de Milton Santos o espaço geográfico impregnado de tempo, e mesmo o geógrafo, em muitos momentos, faz referência ao espaço-tempo, tempo-espaço para a compreensão do conjunto de fragmentações, tensões, disputas, contradições sociais. Uma das melhores categorias para a compreensão do espaço-tempo para atualizar os processos do presente é, sem dúvida, o meio técnico-científico informacional, proposto por Santos (2006).
Milton Santos é pioneiro da explicação da globalização por meio da atualização da técnica nos contextos contemporâneos marcados pelos interesses do mercado na aceleração do tempo e pela simultaneidade e instantaneidade da difusão de informações, mercadorias e consumo. Santos problematizou o fazer geográfico no que se refere às leituras sobre as mutações do mundo, engendradas por interesses de grandes corporações e pelo pensamento neoliberal hegemônico. Para o autor, esses interesses produzem um projeto econômico mundial perverso porque produzem desigualdades sociais e espaciais.
Durante o processo democrático brasileiro, por exemplo, em meados dos anos 1980, Milton Santos apontava de forma crítica que estaríamos entrando numa novo momento histórico: a democracia. No entanto, percebia o fortalecimento do projeto de desenvolvimento nacional voltado para as grandes empresas monopolistas internacionais e nacionais e via uma tendência crescente da “Ditadura do Dinheiro” (SANTOS, 2007), e essa ditadura, atrelada à dificuldade de projetar o futuro, o autor demonstrava as fragilidades do Estado em todos os sentidos da governança, incluindo a dimensão da globalização como perversidade (aprofundamento das desigualdades sociais) e como fábula (promessa de um mundo melhor), quer seja na dimensão instrumental das redes e objetos, por meio das tecnologias de informação, dos sistemas globais, a aceleração do fluxo de dinheiro, pessoas, objetos e ideias, levando a uma velocidade das ações e das inovações que mais alienam do que contribuem para a conscientização.
Cidadania mutilada: limites da democracia? Cidadania para quem?
Marx (1987) argumentava que o Capitalismo é um modo de produção que em pouco tempo histórico produz muitas riquezas. E indagava: como um modo de produção que gera tantas riquezas, produz na mesma medida incoerências, pobrezas e paradoxos (desigualdades sociais, espaciais, segregações)? Sua obra desvenda e ensina sobre a natureza da acumulação permanente de capitais e uma das célebres explicações sobre as formas de realização do valor e dessa acumulação por meio de implementação de estruturas (divisão social do trabalho, fetiche da mercadoria, exploração da mais valia) e superestruturas (cultura, moral e da ética) sustentadoras da economia política capitalista.
Nesse contexto, o Estado aparece como um modus operandi do Capitalismo que traz consigo sua própria contradição entre garantir a função social e os meios e instrumentos legais para os grandes empresários. Partindo dessa reflexão, Milton Santos avança por meio dos estudos geográficos, filosóficos e, em contextos socioespaciais do Brasil, da América Latina e da África, e inscreve a ideia de cidadania mutilada (SILVA, 2015).
Segundo Santos (2011), as formas de dominação passam pela economia política, pela globalização, pelos modelos econômicos e cívicos e pela atualização do Capitalismo nos séculos XX e XXI, com os vultosos investimentos na produção científica e tecnológica sob a égide do pensamento (neo)liberal que sustentam a ideologia da modernização e também regimes autoritários na Ásia e na África.
A implementação do meio técnico-científico-informacional altera o espaço geográfico e a relação com sociedade. A construção do meio técnico-científico informacional está subordinada às novas lógicas globais que articulam a tecnosfera e psicosfera na produção de novas necessidades. A tecnificação interfere na ossatura do Estado, por meio da informatização dos serviços e dos meios de acesso às políticas públicas - sistemas de saúde, sistemas previdenciário, de educação, dentre outros, articulando o território nacional ao mesmo tempo em que o mercado se moderniza nos setores de saúde, educação e previdências privadas no Brasil. Desse modo, o Capitalismo do século XX se atualiza com as inovações tecnológicas no campo das mudanças de padrão das redes técnicas de informação e de comunicação. Entretanto, essas redes se expandem de acordo com as demandas das empresas internacionais.
No Brasil e no mundo, ao mesmo tempo em que se produz o discurso da democracia, cidadania e dos direitos humanos, produz-se o discurso da escassez dos recursos e se propõe o Estado mínimo para solucionar a crise econômica. Nota-se que esse discurso soma-se, atualmente, ao da crise da água e das mudanças climáticas. Assim, o meio técnico-científico-informacional possui a dimensão da técnica de informação e comunicação em que mensagens são produzidas e difundidas de forma instantânea. Um excesso de informações que muito atordoam e pouco explicam, produzidas cada vez mais por sistemas complexos de algoritmos que aceleram a produção de automatizações de mercadorias e de serviços.
Os algoritmos complexos estão inseridos nas nossas atividades diárias e nem percebemos. Quando assistimos a um filme ou encomendamos um livro pela internet, por detrás dessa escolha há a influência de algoritmos de recomendação. A sugestão de caminho proposto ou a precificação de uma corrida por aplicativo de serviço de transporte também são baseadas em algoritmos. As automatizações comandadas por grandes corporações especializadas em tecnologias de gestão de informações podem contribuir para ampliar a consciência (pelo acesso à massa crescente de informação) e, concomitantemente gera alienação (notícias falsas, apologia ao consumismo, expansão de ideologias conservadoras, narrativas estimuladoras de ódio e de estereótipos, que fortalecem as formas de dominação e de hegemonia de grupos e pensamentos sobre a maior parte da população).
Desse modo, Santos (2007) já chamava atenção para o fato de que existe a relação entre democratização e fortalecimento dos grupos econômicos sobre outros grupos e uma tendência crescente à oligopolização da economia. Santos (1987) reconhece que o modelo político e o modelo cívico são instrumentais ao modelo econômico: “As massas eram despertadas para a necessidade, o interesse, a vantagem de ampliação do consumo, mas não para o exercício da cidadania, que era cada vez mais amputada” (SANTOS, 1987, p. 213). De acordo com Ana Clara Torres Ribeiro (2013), esse mesmo modelo define a cultura da modernidade que sustenta a produção de estereótipos espaciais (periferias, favelas) e da corporeidade: falta de infraestruturas, racismo ambiental, racismo estrutural.
Na década de 2000, ampliam-se as formas de violência e negação do outro (exemplo: expansão dos grandes empreendimentos nas áreas históricas das comunidades tradicionais, ampliação de poluição em áreas pesqueiras, quilombolas e indígenas) tanto nas áreas rurais quanto nas áreas urbanas (SILVA, 2014, SILVA; CAMPOS, 2015). Ao mesmo tempo, as lutas históricas pelo direito à cidade e o direito à reforma urbana na década de 2000 aparecem no cenário político como possiblidades de redução das desigualdades sociais e regionais e a luta pelos direitos sociais e culturais pareciam ampliar os conflitos sociais e ambientais.
Dados sobre crescimento da violência urbana, conflitos ambientais e lutas urbanas e rurais não saíram de cena. Recentemente, o crescimento do número de mortes de indígenas cresceu consideravelmente, da mesma forma que as mortes de jovens negros das periferias, jovens trans e travestis, vítimas de uma sociedade que se moderniza tecnicamente, mas que a produção das inovações tecnológicas não garante a urbanidade. Pelo contrário, acirram-se as formas de estereótipos. Somada à violência física, a violência simbólica, que utiliza os meios de comunicação e de informação, contribui para a ampliação das formas de fragmentação já apresentadas por Ana Clara Torres Ribeiro ao analisar a articulação entre juventude e formas de apropriação urbana (RIBEIRO, 2013). Isso demonstra como a modernidade não consegue romper as fronteiras sociais criadas por uma história fundamentada na exclusão, na colonização e na discriminação social.
No livro O Espaço do Cidadão, Milton Santos (1987) dialoga com Ana Clara Torres Ribeiro, e deixa uma análise muito importante sobre o fato de que mais dinheiro ou discurso de democracia não garantiriam a cidadania para todos e todas. A cidadania mutilada é fruto do modelo de democracia pautada no mercado e, muitas vezes, na ditadura do dinheiro (SANTOS et al. 2007).
É possível encontrar uma atualização dessa afirmação nos contextos atuais de crescimento da violência no Brasil. Vejamos alguns dados do IBGE: A pesquisa conhecida como (Pesquisa Nacional de Saúde - PNS) do IBGE , demonstra que a violência atinge mais as mulheres, os jovens, as pessoas pretas ou pardas e a população com menor rendimento. De acordo com a PNS, o percentual de mulheres que sofreram violência nos 12 meses anteriores à entrevista é de 19,4%, ante 17,0% de homens. Entre jovens de 18 a 29 anos, o percentual chega a 27,0%, enquanto é de 20,4% na faixa de 30 a 39 anos; 16,5% entre os adultos de 40 a 59 anos e 10,1% entre os de 60 anos ou mais. As pessoas pretas (20,6%) e pardas (19,3%) sofreram mais com a violência do que as pessoas brancas (16,6%) (IBGE, 2019).
A mesma tendência ocorreu com a população com menor rendimento (sem rendimento ou até 1/4 do salário-mínimo), em comparação com a de maior rendimento (mais de cinco salários-mínimos), 22,5% e 16,9%, respectivamente (IBGE, 2021). Entre os mais vitimizados estão as mulheres, os jovens e os negros. O percentual de mulheres vitimadas foi maior do que o dos homens, 18,6% contra 16,0%. A população mais jovem (18 a 29 anos) sofreu mais violência psicológica do que a população com idade mais elevada (60 anos ou mais), 25,3% contra 9,6% respectivamente. Mais pessoas pretas (19,3%) e pardas (18,3%) sofreram com esse tipo de violência do que pessoas brancas (15,9%) (IBGE, 2021).
Entre os tipos de agressão psicológica, a PNS revela que ser ofendido, humilhado ou ridicularizado na frente de outras pessoas foi respondido por 59,1% das vítimas de ambos os sexos (56,2% dos homens e 61,3% das mulheres). Alguém ter gritado com ou xingado o entrevistado foi indicado por 76,4% das vítimas (72,8% dos homens e 79,2% das mulheres). A pesquisa revela, ainda, que o tipo de violência psicológica relatada por 31,5% das pessoas foi que alguém as ameaçou verbalmente de lhes ferir ou de ferir alguém importante para elas (IBGE, 2021).
Milton Santos e a natureza do espaço: contribuindo para a compreensão da relação entre meio técnico científico e políticas públicas para os pobres
Nesta seção, dedicaremos a reflexão aos impactos da tecnificação informacional no acesso às políticas públicas previdenciárias. Desse modo, torna-se importante compreender que a tecnificação se fundamenta na lógica de mercado. A implementação dos sistemas técnicos (informacionais - internet, dispositivos eletrônicos, localização das antenas e redes de fibra ótica, dentre outras técnicas) acaba por formatar o mercado e o consumo (individual, coletivo, público e privado). Essa formatação é dada pela lógica da produção no âmbito global, onde os países também se subordinam, não só ao mercado como também às hierarquias geopolíticas internacionais. Assim, sobre a forma como se reorganiza o espaço geográfico no final de século XX e no século XXI, Santos (2006, p. 157) orienta que:
Quanto ao meio técnico-científico-informacional é o meio geográfico do período atual, onde os objetos mais proeminentes são elaborados a partir dos mandamentos da ciência e se servem de uma técnica informacional da qual lhes vem o alto coeficiente de intencionalidade com que servem às diversas modalidades e às diversas etapas da produção. Como em todas as épocas, o novo não é difundido de maneira generalizada e total. Mas, os objetos técnico-informacionais conhecem uma difusão mais generalizada e mais rápida do que as precedentes famílias de objetos. Por outro lado, sua presença, ainda que pontual, marca a totalidade do espaço. É por isso que estamos considerando o espaço geográfico do mundo atual como um meio técnico-científico informacional. Quanto mais "tecnicamente" contemporâneos são os objetos, mas eles se subordinam às lógicas globais. Agora, torna-se mais nítida a associação entre objetos modernos e atores hegemónicos. Na realidade, ambos são os responsáveis principais no atual processo de globalização. (SANTOS, 2006, p. 160-161)
Para Santos (2006), o impacto da revolução científica e técnica e da globalização tem efeito desestruturador nos lugares. Tanto mais violenta e incisiva será a difusão da técnica, quanto menos implicado estiver o país em relação às inovações técnicas precedentes, pois produz grandes fragmentações sociais entre ricos e pobres e entre regiões.
Diz ele:
Tais efeitos são sociais, económicos, políticos, culturais, morais, e, igualmente, espaciais, geográficos, levando a uma reorganização do território, mediante uma redistribuição de papéis que inclui novos roles, estranhos até então à sociedade territorial. O fato de que as transformações se dão ao mesmo tempo, nas vias e meios de transportes e comunicações, na estrutura produtiva, nos hábitos de consumo, na forma de intercâmbio, nas relações de trabalho, na monetarização, nas formas de controle etc., tem efeitos cumulativos e acelerados sobre todos os processos de mudança, ao mesmo tempo em que os desequilíbrios instalados são mais profundos. Mesmo se as novas relações apenas alcançam parcelas reduzidas da economia e do território e incidem de forma incompleta sobre a sociedade, têm já bastante força para induzir transformações fundamentais ao conjunto. Fenómenos como as disparidades espaciais de tipo mercantil e a macrocefalia ganham novas dimensões. As formas novas, criadas para responder a necessidades renovadas, tornam-se mais exclusivas, mais endurecidas, material e funcionalmente, mais rígidas tanto do ponto de vista das técnicas implicadas como de sua localização. Passamos de uma cidade plástica a uma cidade rígida. (SANTOS, 2006, p. 168)
Assim, os objetos técnicos produzem nova tecnosfera e nova psicosfera ao interferirem nas relações societárias, nas relações no âmbito da ossatura do Estado, ou seja, o acesso às políticas públicas cada vez mais vem sendo realizado por meio de acesso aos aplicativos, sites, plataformas que distanciam o indivíduo do endereço físico da sede de um órgão público.
Neste contexto, a categoria “meio técnico científico informacional”, de fato, é de grande relevância para a compreensão do agenciamento dos fluxos das informações naquilo que chama de capitalismo de vigilância, que consiste nas grandes agências de informação e de controle das mensagens realizarem e manipularem a notícia de acordo com os interesses políticos e econômicos hegemônicos. E mais: a criação de um mercado de venda de dados pessoais, dados empresariais, dados políticos e dados governamentais.
A informatização dos dados públicos e a ação por meio de sistemas digitais na estrutura pública fazem com que o Estado fique subordinado aos produtos e serviços informacionais das grandes corporações, muitas vezes com um custo financeiro elevado. Serviços são terceirizados para a implementação dos sistemas informatizados para as políticas públicas. Trata-se da inserção do Estado como consumidor de produtos, obedecendo aos comandos verticais da globalização.
Afinal, Santos (2006 p. 174), citando o exemplo das economias regionais, fala que na
união vertical, os vetores de modernização são entrópicos. Eles trazem desordem às regiões onde se instalam, porque a ordem que criam é em seu próprio e exclusivo benefício. Isso se dá ao serviço do mercado, e tende a corroer a coesão horizontal que está posta ao serviço da sociedade civil tomada como um todo. Mas a eficácia dessa união vertical está sempre sendo posta em jogo; e não sobrevive se não à custa de normas rígidas - ainda que com um discurso liberal.
De fato, Santos (2006) tem razão porque as lógicas de modernização em todos os tempos levam à desordem de regiões e lugares por onde chegam. Com o tempo presente, essa modernização vem como ação de um discurso tradicional de progresso. De um lado e de outro estão os lugares e as populações mais pobres, as economias de pequenas escalas e as periferias do capitalismo que se constituem, para Santos (2006, p. 197), como “as uniões horizontais podem ser ampliadas, mediante as próprias formas novas de produção e de consumo.”
Nós poderíamos apresentar como exemplo também as formas de resistência dos pescadores artesanais na luta pelo território e manutenção de seu trabalho, renda e produção coletiva, de pequena escala. Trata-se de uma luta inscrita no cotidiano, no lugar, mas que se fortalece em redes regionais e nacionais, quando denunciam suas mazelas e sofrimentos, utilizando as redes técnicas de informação e de comunicação na luta pelos seus territórios e pela visibilidade pública de seus problemas.
Retomando o objetivo desta seção, compreender a expansão da técnica informacional no aparelho de Estado, ao estudarmos a implementação de informatização na reestruturação do sistema das políticas nacionais da previdência social, que se apoia nos sistemas de informatização, nas plataformas e aplicativos elaborados segundo as orientações dos grandes aglomerados gestores da produção desses dispositivos digitais, identificamos várias intencionalidades: 1. O mercado, mais uma vez, é que orienta a ação e a padronização de acesso às ações estatais; 2. A crença na agilidade e precisão dos dados; 3. A redução planejada dos funcionários públicos; 4. A certeza de que nem todos serão detentores dos dispositivos informacionais (internet, computadores, tablets, smartphones) para garantir o acesso às políticas públicas. Assim, a crença da técnica como mediação das políticas públicas requer uma reflexão mais aprofundada sobre os impactos sociais do acesso aos direitos sociais, trabalhistas, sobretudo para os grupos sociais mais empobrecidos e para os mais idosos, que têm dificuldades de acessar as informações no âmbito virtual (MARAMAO, 1998).
Segundo Weber (2000), a dominação burocrática produzida pelo Estado no contexto do Capitalismo, tem forte relação com a onipresença, a calculabilidade, a racionalidade técnica e a impessoalidade. No contexto da técnica informacional, essa dominação burocrática chega a sua condição mais sofisticada, produzindo o discurso de que quando ocorre um erro, a demora na implementação dos recursos ao sujeito de direito, o problema não é atribuído a uma pessoa, mas à máquina, ao sistema. Enfim, assim vimos a demora insuportável no acesso à aposentadoria, no auxílio ao pescador no período de defeso da espécie que captura, a dificuldade de acesso ao registro geral de pescador profissional. Poderia, aqui, fazer uma lista de problemas relatados que retardam ou negam o direito.
A integração das informações no âmbito federal (o chamado sistema GOV.BR), articula Receita Federal (Ministério da Economia), Instituição previdenciária (Instituto Nacional de Seguridade Social 0 INSS) e outros órgãos (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA), e precisa de um estudo que aponte para a complexidade de entradas e, ao mesmo tempo, para a dificuldade de detecção do erro por parte do usuário, que impede o acesso à política pública a que o sujeito tem direito.
É nessa etapa de informatização que se encontra o acesso aos direitos previdenciários. O Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, em 2015, instalou a central de telefonia, inicialmente em Recife, conhecida como 135, que visava atender o contribuinte para agendamento e acesso à política pública previdenciária. No entanto, o indivíduo precisava levar seus documentos a uma agência física. Em 2018, foi inaugurado o sistema MEU INSS, que é uma plataforma virtual em que o contribuinte, com login e senha, tem o repositório de suas contribuições. Ao mesmo tempo, é um portal de atendimento remoto para solicitações de aposentadorias, de auxílio defeso e de outros auxílios previdenciários. A resposta às exigências já cumpridas pelo trabalhador demora a aparecer no sistema e ultrapassa a determinação legal de tramitação do processo, que é de 45 dias entre a abertura do processo pelo trabalhador até a data de deferimento ou indeferimento final. Vale ressaltar que o contribuinte, embora tenha disponibilizado emails e telefones, não recebe nenhum aviso prévio, a não ser o que se disponibiliza no sistema.
Apesar de o discurso da tecnificação se basear na agilidade e na possibilidade de milhões de acessos pelo contribuinte, ao verificarmos os dados disponibilizados no DATAPREV - sistema de informações sobre os procedimentos e resultados anuais do exercício da política pública, verificamos várias contradições e desrespeitos aos sujeitos de direitos, conformeos mapas 1 e 2 mostram.
Comparando os dois mapas, é notável que a maioria das pessoas que entra com solicitação de requerimento por algum tipo de auxílio, fica aguardando mais de 45 dias, embora a legislação que acompanha a modernização do sistema descreva que o objetivo da informatização é garantir ao contribuinte acesso ao recurso em até 45 dias. Quando questionada, a presidência do INSS argumenta que o problema é o sistema. Entretanto, é fundamental expor que os funcionários não estão conseguindo avaliar os requerimentos porque o número de aposentados cresceu muito, o que torna fundamental a realização de concursos públicos e treinamento dos funcionários para atenderem o contribuinte segurado especial, que é a categoria específica para pequenos agricultores e pescadores profissionais artesanais, por exemplo.
Na tabela 1, conseguimos ver o detalhamento por região brasileira e por unidade da federação.
É notável que em todos os estados da federação, o número de requerimentos com mais de 45 dias é muito superior aos atendidos dentro do prazo legal, o que demonstra que o discurso de eficácia do sistema, de celeridade e de melhoria em relação aos mecanismos manuais ou de contato pessoal com o funcionário não é tão legítimo como se prega no discurso e nas teorias da administração informacional.
A ossatura do Estado e a modernização de seus aparatos de controle social, e as políticas públicas são uma delas como ensina Poulantzas (2000). A produção do meio técnico científico informacional, como explica Santos (2006), aproxima a ciência da tecnologia, produzindo mais verticalidades e aproximação do Estado com o mercado, na medida em que a renovação permanente do sistema técnico, impondo novas racionalidades, vai produzir, ao mesmo tempo, outras irracionalidades.
Considerações finais
Milton Santos, no seu livro O espaço do cidadão, faz uma pergunta: É possível a cidadania? Ao mesmo tempo, realiza uma reflexão profunda sobre a forma como a cidadania torna-se mutilada e frequentemente negada aos sujeitos sociais (sobretudo os mais empobrecidos, negros, mulheres, indígenas entre outros grupos sociais), o que se deve a dois grandes fatores. Primeiro, o mercado como centro de decisão sobre a vida coletiva, que sustenta o discurso neoliberal que oferece como solução dos problemas a implementação de políticas de austeridade para a classe trabalhadora. O segundo fator refere-se ao modelo cívico, que está subordinado ao modelo econômico implementador de desigualdades sociais. Compreendendo as políticas públicas recentes no tema de direito trabalhista e previdenciário, verifica-se a atualização das formas de dominação e de implementação do poder de corporações e do pensamento público na adoção de processos de modernização do território, sem avaliar os verdadeiros impactos na economia e na sociedade.
Graças à obra de Milton Santos, podemos compreender com profundidade teórica e conceitual a importância da Geografia para o entendimento entre tecnificação, espaço geográfico e mudanças societárias. Compreender os elos entre poder e o meio técnicocientífico-informacional, enquanto dimensões materiais e imateriais do espaço, é um dos legados deixado pelo professor. Neste artigo, nosso objetivo foi analisar a atualização dessas formas de dominação, que têm o suporte na técnica na sua atualização como condição histórica para a expansão da precarização do trabalho, do acesso à política pública previdenciária e as novas formas de produção de violência simbólicas. A importância da obra de Milton Santos para a análise crítica dos processos do presente e da determinação do presente-futuro continua elevada. Uma obra aberta que permite muitos diálogos e muitas possibilidades para o avanço da teoria social crítica. Um pensamento complexo e totalizante. Uma herança para as consciências geracionais (futuro), termo utilizado por Feixa e Leccardi (2010) para explicar a importância do pensamento intelectual na formação da juventude.
Qual é a importância da categoria meio técnico-científico informacional para a história do presente e para a compreensão dos direitos trabalhistas? A categoria criada nos anos 1990 já apontava para a análise crítica da natureza do espaço geográfico, que se atualiza na produção dos sistemas de objetos e sistemas de ações. Milton Santos provoca os estudantes e professores com a necessidade de atenção permanente ao tempo presente (aos processos de mutações sociais, de modernização e de permanência).
Ao perceber o meio técnico-cientifico informacional como condição de realização do sistema de ações e sistema de objetos, Santos chama a atenção para o consumismo e a ideologia de creditação do território. Tratava-se de compreender como as empresas do capitalismo financeiro articulavam-se às empresas detentoras do conhecimento técnico em computação e sistemas informacionais. No campo do consumo: os usos e acesso aos sistemas informacionais modificam o acesso ao mundo dos objetos e aos serviços. Nos anos 2000 e 2010, essa informatização atinge, como um projeto nacional mais incisivo, a estrutura de Estado e, com isso, o acesso às políticas públicas. Neste artigo, visamos trazer essa reflexão e reiterar a importância da obra de Milton Santos para a compreensão dos problemas da Geografia e da sociedade.
Referências
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