DOSSIÊ

A virada linguística na filosofia geográfica de Milton Santos

The linguistic turn in the geographical philosophy of Milton Santos

Rosalvo Nobre Carneiro
UERN, Brasil

Percursos

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN-e: 1984-7246

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 23, núm. 51, 2022

revistapercursos.faed@udesc.br

Recepção: 13 Setembro 2021

Aprovação: 29 Março 2022



DOI: https://doi.org/10.5965/1984724623512022052

Resumo: A década de 1990 revela movimentos importantes no pensamento do geógrafo Milton Santos. Nesse contexto, há muitas periodizações realizadas por geógrafos e não geógrafos para a sua trajetória intelectual. Todavia, não se busca acrescentar mais uma, mas tão somente objetiva-se argumentar sobre a passagem de uma Filosofia da Consciência para uma filosofia linguística ou intersubjetiva no pensamento geográfico miltoniano. Concentra-se a análise em suas obras e artigos escritos desde 1990, e cujas ideias se encontram sedimentadas, especialmente, em A natureza do espaço: técnica, tempo, razão e emoção. Parte-se do pressuposto da sua filiação teórica com a filosofia mentalista ou subjetiva que marcou seu arcabouço teórico-metodológico até então. Verificou-se que a racionalidade comunicativa ou intersubjetiva, a linguagem como meio de entendimento entre os atores sociais e, consequentemente, o agir comunicativo foram incorporados em sua filosofia geográfica crítica. Conclui-se que Milton Santos avança na consideração da intersubjetividade linguística como dado explicativo do espaço, sem que abandone, porém, sua ancoragem na filosofia geográfica subjetiva.

Palavras-chave: teoria do agir comunicativo, racionalidade comunicativa, Jurgen Habermas.

Abstract: The decade of the 90’s reveals important movements in the thought of geographer Milton Santos. In this context, there are many periodization performed by geographers and non-geographers for their intellectual journey. However, we do not seek to add one more, but it is only aimed to argue on the passage of a Philosophy of the Consciousness to a linguistic or intersubjective philosophy in the geographic miltonian thought. The analyses focuses in his works and articles written since 1990, and which ideas are well-grounded, especially, in A natureza do espaço: técnica, tempo, razão e emoção (The nature of space: technique, time, reason and emotion). It is departed from the assumption of its theorical affiliation with the mentalist or subjective philosophy, which marked its theoretical-methodologic framework until then. It was verified that the intersubjectivity or communicative rationality, the language as a way of understanding between social actors and, consequently, the communicative act were all incorporated in its critical geographical philosophy.

Keywords: theory of communicative action, communicative rationality, Jurgen Habermas.

Introdução

Em 1968, Milton Santos afirmara na introdução de O trabalho do geógrafo no terceiro mundo que a mesma realidade pode prestar-se a diferentes interpretações. Nas suas palavras: “A questão está em saber se queremos limitar-nos a uma maneira fixa de interpretação, isto é, a uma forma única de raciocínio, ou se nos propomos evoluir juntamente com as mudanças que sobrevêm na superfície do globo” (SANTOS, 1996, p. 1).

O trecho acima servirá de fio condutor de nossos argumentos. A nossa interpretação é que Milton Santos nunca abandonou essa máxima de sua postura profissional. Trata-se, por isso mesmo, de um geógrafo em movimento, não apenas literalmente pelo território baiano, depois europeu, africano, estadunidense, latinoamericano e em seguida brasileiro novamente, mas, sobretudo, de uma filosofia geográfica que, mantendo-se constante no tempo, não deixou de mudar. Ou será o inverso?

Diante disso, concentra-se a análise na Terceira Parte do livro Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico-informacional. Especialmente, os capítulos 8 - O retorno do território, 10 - O lugar: encontrando o futuro e 11 - Razão global, razão local: os espaços da racionalidade. Os capítulos 7 - Meio técnico-científico e urbanização: tendências e perspectiva e 9 - Os espaços da globalização. Trata-se de uma coletânea de textos publicados anteriormente, entre 1991 e 1993, com exceção do capítulo 12, O período técnico-científico, que é de 1985, e o capítulo 13, O meio técnico-científico informacional e a urbanização no Brasil, de 1989. Além disso, o capítulo 5, Técnicas, tempo, espaço era inédito, escrito em 1994 para o livro.

Da obra Da totalidade ao lugar analisa-se a Terceira Parte, Globalização e meio técnico-científico, a qual incorpora textos escritos até outubro de 1994, no caso do capítulo 11. A natureza do espaço: técnica, tempo, razão e emoção, Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal e O Brasil: território e sociedade no início do século XXI são analisadas em totalidade.

Nesse sentido, a década de 1990 revela movimentos importantes no pensamento filosófico do geógrafo Milton Santos. Há muitas periodizações realizadas por geógrafos e não geógrafos para a sua trajetória intelectual. Não se busca, portanto, acrescentar mais uma, mas tão somente interrogar sobre a passagem de uma filosofia da consciência para uma filosofia linguística no seu pensamento filosófico.

Milton Santos procedeu a uma virada filosófica em seu pensamento pós 1990? Paralelamente, direcionou-se para a virada linguística na sua Geografia? Quais elementos corroboram esse movimento do pensamento para a Filosofia da Intersubjetividade? Essas questões já partem do pressuposto da filiação teórica com a Filosofia da Consciência ou Subjetiva que marcou seu arcabouço teórico-metodológico até então. Da mesma forma, pressupõe-se que a linguagem como meio de entendimento entre os atores sociais foi incorporada em sua filosofia crítica.

Parte-se da compreensão na qual com a guinada linguística “as estruturas de racionalidade são cunhadas pela linguagem” (ARAGÃO, 2002, p. 10). Neste âmbito, razão e linguagem se identificam ao ponto da comunicação ser a condição de possibilidade do conhecimento (ROMERO, 2021). Portanto, no paradigma da intersubjetividade, a linguagem torna-se protagonista na filosofia (TEIXEIRA JÚNIOR, 2020). Nesse âmbito, demonstra-se que Milton Santos incorpora um grupo de autores e de ideias ao pensamento, aproximando-o gradativamente da filosofia da linguagem ou, de todo modo, afastando-o da filosofia subjetiva. Esta, de início, pode ser entendida nestes termos,

O paradigma da consciência é calcado na idéia de um pensador solitário que busca entender o mundo a sua volta, descobrindo as leis gerais que o governam, revelando a unidade encoberta sob a diversidade aparente. Neste modelo há uma relação de subordinação do objeto frente ao sujeito. (PINTO, 1995, p. 78)

Diferentemente da filosofia da consciência, na filosofia da linguagem ou Intersubjetiva, no paradigma da racionalidade comunicativa de Habermas, altera-se a relação do sujeito com o mundo,

Para esta última, deixa de ser paradigmática a relação que o sujeito isolado mantem com alguma coisa apresentável e manipulável no mundo, e passa a ser paradigmática a relação intersubjetiva assumida por sujeitos aptos a falar e agir, quando se entendem uns com os outros sobre alguma coisa. Para tanto, os que agem de maneira comunicativa movimentam-se no médium de uma linguagem natural e fazem uso de interpretações legadas pela tradição, ao mesmo tempo que se referemse a alguma coisa no mundo objetivo único, em seu mundo social partilhado, e no respectivo mundo subjetivo. (HABERMAS, 2012, p. 674)

Essa virada pragmática extrapola, assim, a relação entre linguagem e mundo objetivo inserindo o processo de comunicação linguística. Na pragmática formal de Habermas (2004, p. 65), “a conversação está em primeiro plano”. Nesse cenário, já se delineiam mudanças importantes no pensamento geográfico de Milton Santos rumo a essa filosofia da linguagem. Por exemplo, à predominância de uma Geografia da comunicação na perspectiva clássica de transportes, ligações, linguagem como mídia e línguas dos povos, em seu pensamento pré 1990, falarei, então, da emergência de uma Geografia Comunicativa pela consideração da linguagem notadamente nos moldes da teoria do agir comunicativo, após 1990.

A partir da interpretação de Silva (2012), a nossa se concentra nesta segunda e terceira fase da Geografia crítica miltoniana (Figura 01).

fases do pensamento miltoniano e das teorias da comunicação
Figura 01
fases do pensamento miltoniano e das teorias da comunicação
Fonte: Adaptado de Silva (2012).

Ainda que a perspectiva interpretativa da comunicação entre 1980 e 2002 apareça em paralelo com estas segunda e terceira fases do pensamento miltoniano - a do período técnico-científico-informacional e do território usado - cabe destacar que a filiação teórica de Milton Santos junto à fenomenologia e sociologias compreensivas, requer a sua consideração da comunicação, especialmente pós 1960, notadamente ao construtivismo e ao interacionismo simbólico.

O papel da cultura e a abordagem fenomenológica na Geografia, consolidado na década de 1990 em diante no Brasil, contribuíram, por sua vez, para a reconstrução de argumentos negativos miltonianos sobre a Geografia como cultura e os métodos etnológicos (SANTOS, 1996), outrora compreensíveis apenas no contexto de época. A aproximação com o campo das geografias e filosofias, subjetivas e intersubjetivas, criaram as condições para esse processo de mudança. As motivações dessa virada necessitam ser esclarecidas.

Na coletânea Técnica, espaço, tempo que antecede, portanto, A natureza do espaço, percebe-se, de um lado, a presença exclusiva da filosofia subjetiva e a ausência, por conseguinte, das filosofias intersubjetivas. A teoria crítica miltoniana segue os fios condutores do marxismo e da escola Frankfurt da primeira geração, especialmente Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse.

A aproximação com as geografias de Eric Dardel, Edward Relph, Armand Frémont, Anne Buttimer; com as filosofias e sociologias de Edmund Husserl, Thomas Luckmann, Alfred Schutz, Maurice Merleau-Ponty, Gaston Berger, Gaston Bachelard e Ludwig Wittgenstein, demonstram que na obra A natureza do espaço: técnica, tempo, razão e emoção externaliza-se um impulso extraordinário para a viragem na Geografia filosófica de Milton Santos.

Destaco, todavia, que o impulso para essa viragem foi a aproximação com a teoria de Jurgen Habermas, até então, uma “desconhecida” de Milton Santos. Basicamente, as obras Técnica e ciência como ideologia, Crise de legitimação do capitalismo tardio e Teoria do agir comunicativo - racionalidade do agir e racionalização social, volume I. Sua primeira referência explícita é em setembro de 1994, na palestra O lugar: encontrando o futuro(capítulo 10 do livro Da totalidade ao lugar) ao desenvolver a ideia de “densidade comunicacional” ainda que, notadamente, relacionada aos espaços da globalização. Essa ideia permanece em A natureza do espaço..., ao dizer “Os espaços da globalização apresentam cargas diferentes de conteúdo técnico, de conteúdo informacional, de conteúdo comunicacional” (SANTOS, 2004, p. 257).

Assim, a filosofia geográfica em Milton Santos é, sobretudo, o modelo de pensamento da primeira metade do século XX, isto é, a filosofia da consciência ou Subjetiva. Em Técnica, espaço, tempo..., todavia, já se lê:

O novo sistema de objetos geográficos e o novo sistema de ação deliberada, que inclui o subsistema de ação comunicativa, são, pois, o cenário ideal para o exercício de uma racionalidade implacável do sistema econômico, mais exatamente do subsistema hegemônico da economia que, desse modo, se superpõe e deforma o sistema social e o sistema cultural, agindo, igualmente, sobre o restante, não hegemônico, do sistema econômico. (SANTOS, 1998, p. 78, grifo do autor)

É a primeira vez que Milton Santos menciona “ação comunicativa”, todavia o faz para diminuí-la à razão técnica e igualá-la na estrutura categorial do mundo do sistema. Não percebe, ainda, que é o agir comunicativo que garante a reprodução do sistema social e cultural, a solidariedade dos grupos humanos e suas tradições mediante o prosseguimento do saber válido pela socialização, o que o levaria a integrar categoricamente, a sociedade com um sentido amplo (Figura 02).

Sociedade em sentido amplo segundo Habermas
Figura 02
Sociedade em sentido amplo segundo Habermas
Fonte: Elaboração pessoal, 2022.

Ainda que se admita, já nesse momento, uma leitura miltoniana dos textos de Habermas, apenas posteriormente se verificará uma apropriação adequada da ação e da razão comunicativa que o encaminha para uma efetiva virada linguística e para a intersubjetividade.

A linguagem comunicativa não é ainda objeto, neste momento. A comunicação ainda é mídia. “O espaço é mídia nos dois sentidos. Ele é linguagem e também é o meio onde a vida é tornada possível” (SANTOS, 1998, p. 41, grifos do autor). Percebe-se, desse modo, ainda em 1994, um Milton Santos que menciona a língua e a linguagem, mais próxima da informação que propriamente uma dimensão central de nossas vidas, produtoras e condição de nossa espacialidade.

Em outra passagem, citando Eugenio Coseriu sobre a sincronicidade e diacronia das frases e palavras temporalmente datadas da linguagem, o faz apenas para reforçar o sentido de paisagem como palimpsesto. Nesses termos, afirma, por associação: “Da mesma forma que o sistema linguístico, cada sistema geográfico é sucedido por um outro, o qual recria sua coerência interna, ainda que cada variável isolada experimente um processo de mudança com ritmo próprio” (SANTOS, 1998, p. 67). De todo modo, é a aceitação clara de que a linguagem, a comunicação intersubjetiva é incorporada à sua filosofia geográfica:

Sendo assim, e contrariamente a uma tese em vigor, a opulência dos lugares, para retomar um termo de Abraham Moles escrevendo sobre a informação, não adviria de sua densidade técnica, mas de sua densidade humana. Haveria, então, lugares mais ou menos voltados ao presente e outros mais orientados ao futuro, aqueles onde a riqueza comunicacional é maior. (SANTOS, 2005, p. 1916, grifo do autor)

Essa apropriação já se revela em setembro de 2004, na palestra O lugar: encontrando o futuro, em que leituras de Habermas, Alfred Schutz e Gaston Berger desembocam na ideia de “densidade comunicacional” do espaço. Elenca, então, um conjunto de características das “relações comunicacionais” contrapostas às “relações informacionais”: são geradas no lugar, são horizontais, resultam do meio social ambiente, são menos dependentes da tecnosfera e da psicoesfera, podem apontar o reino da liberdade (SANTOS, 2004, 2005).

Nesse sentido, Milton Santos vai ao encontro de Habermas, ao situar a “ação comunicativa” como interação social mediada por símbolos e diferenciar de trabalho enquanto agir racional em relação a fins. Todavia, nesse mesmo momento, percebe-se a sua imprecisão conceitual, ao citar de Abraham Moles (1971 apud SANTOS, 2005, p. 162), o sentido de “interação” como uma “ação que intervém, modifica e perturba outras ações em curso, independente destas”. A interação social, em Habermas, não é, como nessa passagem, intervenção causal no mundo, na situação de fala e de ação, assim como também sobre os outros, mas se trata de um problema de coordenação da ação que busca, exatamente, evitar essa condição de influenciação.

Trabalho e interação se distinguem por modos independentes de produção do conhecimento, mas também de racionalidade (HONNET, 1999). Dito isso, a ação comunicativa se diferencia de outras formas de ação, como a instrumental e a estratégica, por sua orientação para o entendimento mútuo (Figura 03).

Tipologia e orientação básica das ações segundo Jurgen Habermas
Figura 03
Tipologia e orientação básica das ações segundo Jurgen Habermas
Fonte: Elaborado a partir de Habermas (2012, p. 495).

Para Habermas, na interação social orientada pelo entendimento, os atores sociais se orientam “segundo normas de vigência obrigatória que definem as expectativas recíprocas de comportamento e que têm de ser entendidas e reconhecidas, pelo menos, por dois sujeitos agentes” (2009, p. 57, grifo do autor). Depreende-se isso do sentido de racionalidade que orienta a ação comunicativa.

No agir comunicativo os participantes não se orientam em primeira linha pelo êxito de si mesmos; perseguem seus fins individuais sob a condição de que seja capazes de conciliar seus diversos planos de ação com base em definições comuns sobre a situação vivida. De tal forma, a negociação sobre as definições acerca da situação vivida faz um componente essencial das exigências interpretativas necessárias ao agir comunicativo. (HABERMAS, 2012, p. 496)

As estreitas margens da razão funcionalista e da filosofia da consciência fazem com que Milton Santos se mantenha preso a uma aporia, um dilema irresolvível, daí a busca por outras racionalidades. Nessa direção, diz Milton Santos “A questão, para nós, seria descobrir e pôr em prática novas racionalidades em outros níveis e regulações mais consentâneas com a ordem desejada, desejada pelos homens, lá onde eles vivem” (1998, p. 58).

Mas, mesmo quando trata das horizontalidades, do cotidiano partilhado e da existência solidária, a reduz a promover um aumento de produtividade econômica e produtividade política, inclusive alimentada pela informação. Ou seja, como se a saída para a força invasora do mercado e do poder político estivesse neles mesmos. Quanto a nós, julgamos que é na ação comunicativa que deve ser buscada essa resistência e a orientação futura, inclusive na ideia de “poder comunicativo”, na força de participação da sociedade nas deliberações públicas, ao modo de uma esfera pública política.

A adoção do modelo racional do agir orientado para fins de base weberiana e da primeira geração da escola de Frankfurt orienta Milton Santos para interpretações da realidade espacial pela via do agir instrumental. Assim, quando fala dos pobres urbanos, que vivem nas “zonas urbanas opacas”, afirma: “Estes são os espaços do aproximativo e não (como as zonas luminosas) espaços da exatidão, são espaços inorgânicos, abertos e não espaços racionalizados e racionalizadores, são espaços da lentidão e não da vertigem” (SANTOS, 1998, p. 83, grifo nosso). Mais uma vez, aqui, se percebe a estreiteza da razão iluminista, técnica, instrumental que adota como basilar de seu arcabouço teórico. Em realidade, todos os espaços são diferentemente racionais pelo telos que preside a sua concepção e produção, seja pela via instrumental ou pela razão comunicativa.

Essas duas formas básicas de racionalidade e as correspondentes formas básicas de ação se excluem mutuamente, mas cada pessoa, cada ator, pode adotar, em cada situação, em cada contexto de seus mundos da vida, as duas. Logo, como as ações são orientadas para fins egoístas ou orientadas para a intercompreensão mútua, as formas, funções e processos espaciais serão diametralmente opostos consoante uma dessas ações seja hegemônica em determinado lugar (CARNEIRO, 2009).

Essa indistinção, por conseguinte, contribui para que as demais categorias de análise miltonianas sejam influenciadas pela leitura reificadora e negativa da razão e da racionalidade. Fica evidente esse posicionamento na concepção de “espaços racionais” e “outros espaços”. Nas palavras de Santos,

Podemos, igualmente, propor uma outra forma de regionalizar, a partir da noção de racionalidade. Hoje, graças aos progressos das técnicas e à aceleração contemporânea, os espaços nacionais podem, também, grosseiramente, dividir-se em, de um lado, os espaços da racionalidade e, de outros, outros espaços. (SANTOS, 1998, p. 33, grifo nosso)

Havíamos identificado essa limitação interpretativa e da concepção de racionalidade, ao tratarmos da natureza do espaço numa perspectiva comunicativa, advogando que o espaço privado e o espaço público se ampliam ou se retraem pela força da racionalidade dominante em cada lugar (CARNEIRO, 2007, 2009). Nesse sentido, um maior predomínio da razão instrumental corresponde a uma maior racionalidade técnica do espaço, e a um maior predomínio da racionalidade comunicativa corresponde uma maior racionalidade político-democrática do espaço.

Mesmo em A natureza do espaço, essa limitação conceitual e interpretativa permanece ao modo de contradições do discurso, pois nesse momento já havia incorporado o sentido de razão e de ação comunicativa ao seu pensamento. Por exemplo, partindo justamente da concepção habermasiana de racionalização da sociedade, por baixo, ao nível do território, define os espaços racionais como um “campo de ação instrumental”, e o faz pela assimilação do racional do espaço à presença dos objetos técnicos, científicos, informacionais (SANTOS, 2004, p. 292), desconsiderando, desse modo, o uso da linguagem intersubjetiva entre os atores sociais como parâmetro de racionalidade espacial.

Domina, por conseguinte, na linguagem conceitual e categorial miltoniana, a razão e a ação instrumental, tornadas categorias de análises reguladoras da interpretação do espaço. Ainda não se observa, em Técnica, espaço, tempo..., outra categoria de agir que não seja a instrumental como resta evidente ao tratar dos “espaços de racionalidade” (SANTOS, 1998). Assim, os espaços da racionalidade, marcados pela ciência, tecnologia e informação são “dóceis” ou “abertos” à racionalidade desses diversos atores.

Mas o espaço não é simplesmente materialidade, é o teatro das ações, logo é tanto o domínio da necessidade quanto o domínio da liberdade (SANTOS, 1998, p. 39). Nesse sentido, afirma que “A vida não é um produto da Técnica, mas da Política, a ação que dá sentido à materialidade” (SANTOS, 1998). Interpreto, assim, que Milton Santos ao eleger a Geografia como uma filosofia das técnicas extrai daí uma ideia de uso ético-moral do agir instrumental, o qual passaria pela política, e, especificamente pelo Estado.

A saída pelo agir instrumental torna a liberdade parcial, pois o agir instrumental pode ampliar a nossa esfera de emancipação frente ao mundo objetivo, mas para a emancipação social e humana, o agir comunicativo, a esfera pública constituída a partir do mundo da vida precisaria ser considerada. Partindo da concepção de três mundos de Popper, Habermas (2012) havia delimitado um mundo objetivo das coisas, um mundo intersubjetivo das relações sociais e um mundo subjetivo das experiências pessoais (Figura 04).

Mundos formais de Popper e Habermas
Figura 04
Mundos formais de Popper e Habermas
Fonte: elaboração pessoal a partir de Habermas (2012).

Nesse contexto, encontra-se, ainda em Milton Santos em Técnica, Espaço, Tempo..., a centralidade dessa primeira categoria, o mundo objetivo, e que o leva, consequentemente, à centralidade da razão e da ação instrumental. Depreende-se essa afirmação, a partir desta passagem:

Sistemas de objetos e sistemas de ações interagem. De um lado, os sistemas de objetos condicionam a forma como se dão as ações, e, de outro lado, o sistema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes. É assim que o espaço encontra sua dinâmica e se transforma. (SANTOS, 1998, p. 111, grifo nosso)

Logo, se corresponde do nosso ponto de vista, a uma explicação parcial da realidade, pois a transformação do espaço também precisa ser posta ao ponto da explicação não apenas causal do mundo, isto é, ao modo de uma ação tomada instrumentalmente.

A teoria analítica da ação é proveitosa para o esclarecimento das estruturas da atuação propositada. Ela se restringe ao modelo atomístico de um ator isolado e negligencia mecanismos da coordenação de ações pela qual as relações pessoais chegam a se estabelecer. Concebe as ações justamente sob o pressuposto ontológico de um mundo de estados de coisas existentes e negligencia relações ator-mundo essenciais às interações na natureza social. Como as ações são reduzidas a intervenções propositadas no mundo objetivo, o que fica em primeiro plano é a racionalidade das relações entre meios e fins. (HABERMAS, 2012, p. 476, grifo nosso)

O caminho que leva Milton Santos a essa concepção restrita de mundo, entendido pela aceitação de uma leitura da modernidade e da filosofia pelo paradigma subjetivo ou mentalista e, notadamente, pela concepção de racionalidade teleológica que adota, e que vem da ligação com os clássicos da sociologia da ação, notadamente com Max Weber. Tomando a racionalidade instrumental como parâmetro de transformação do espaço, essa é analisada, portanto, com base em graus de racionalidade, conforme meios e fins. Mediante a crítica e a reconstrução da teoria weberiana da ação reacional-teleológica, desde a década de 1980, Habermas (2012) recomenda começar pelo agir comunicativo, pois nele se demanda a coordenação das ações individuais.

Diferentemente, porém, Milton Santos busca na própria razão instrumental e nos atores sistêmicos a saída para as questões sociais e espaciais. De um lado, o planejamento ainda é, em seu pensamento, o instrumento da mudança espacial e, de outro, o Estado é o ator que utilizará essa técnica. Duas passagens são esclarecedoras nesse sentido; a primeira ao tratar das horizontalidades como lugar das finalidades impostas de fora, mas também das contrafinalidades impostas de dentro:

Neste sentido, as cidades regionais podem tornar-se o locus de um novo tipo de planejamento, que desafie as verticalidades que as sociedades locais não podem comandar e imponham contrafinalidades, isto é, ‘irracionalidades’ do ponto de vista da racionalidade que lhes é sobreposta. (SANTOS, 1998, p. 94, grifo nosso)

A segunda passagem, na forma de questionamento, de dúvida, se pergunta pelo papel do Estado, nas diversas escalas federativas, na condução dessas irracionalidades:

Quais são as possibilidades do Estado - como federação, como Estado federado, como município - na condução dessas irracionalidades, buscando ver nelas uma razão a descodificar, estabelecendo os instrumentos necessários de intervenção e as regras de um planejamento eficaz e aceitável? (SANTOS, 1998, p. 96, grifo nosso)

Diante dessas afirmações, nos indagamos, então: e a sociedade? Os indivíduos e os grupos humanos não somente considerados do ponto de vista econômico e político, o consumidor do mercado e o usuário de serviços públicos? Numa palavra, a esfera pública, onde entra na filosofia geográfica miltoniana?

As respostas às questões citadas norteariam a discussão para além do planejamento enquanto uma ação ampliada que prossegue a racionalidade instrumental em nossas sociedades complexas. Ao mesmo tempo, os termos da questão não precisariam ser medidos em termos de eficácia, mas de entendimento, de deliberação, de democracia, enquanto temas próprios da esfera da racionalidade intersubjetiva.

Para Habermas,

Na medida em que a atividade estatal visa a estabilidade e o crescimento do sistema econômico, a política assume um peculiar carácter negativo: orienta-se para a prevenção das disfuncionalidades e para o evitamento dos riscos que possam ameaçar o sistema; portanto, a política visa não a realização de fins práticos, mas a resolução de questões técnicas. (HABERMAS, 2009, p. 70, grifo do autor)

Destarte, a saída no planejamento sobre questões técnicas, direcionadas para os objetos, e pelo Estado enquanto Sujeito desse processo, implica na debilitação das questões práticas que somente a consideração da sociedade enquanto esfera deliberativa e orientada por interesses práticos-emancipatórios pode dar conta. Todavia, a construção de uma ética na era da técnica é ambivalentemente, pois é a ciência objetiva, pseudamente neutralizada, que impõe limitações às saídas deontológicas para a sociedade. Apel estabelece os argumentos dessa situação humana,

Quem reflete sobre a relação entre ciência e ética na moderna sociedade industrial planetária se defronta, a meu ver, com uma situação paradoxal. Pois, de um lado, a carência de uma ética universal, isto é, vinculadora para a toda sociedade humana, nunca foi tão premente como em nossa era, que se constitui numa civilização unitária, em função das consequências tecnológicas promovidas pela ciência. De outro lado, a tarefa filosófica de uma fundamentação racional de uma ética universal jamais parece ter sido tão complexa, e mesmo sem perspectiva, do que na idade da ciência. Isso porque a ideia da validez intersubjetiva é, nesta era, igualmente prejudicada pela ciência: a saber, pela idéia cientificista da ‘objetividade’ normativamente neutra ou isenta de valoração. (APEL, 1994, p. 69)

Consequentemente, quando aborda as influências das mudanças espaciais para os movimentos sociais, a horizontalidade enquanto lugar não conformista, da descoberta e da resistência, Milton Santos se vê no dilema, na “grande questão” de como trabalhar essa relação. O encaminhamento, todavia, oscila entre a afirmação “O espaço hoje se subdivide entre subespaços onde há uma carga considerável de racionalidade e áreas onde isso ainda não ocorre” (SANTOS, 1998, p. 106), e a constatação, é fundamental aos propósitos de nossos argumentos em torno do direcionamento para uma virada linguística e, consequentemente, para filosofias intersubjetivas, da existência de contraracionalidades.

Essa racionalidade supõe contra-racionalidades. Essas contraracionalidades se localizam, de um ponto de vista geográfico, nas áreas menos modernas, e, do ponto de vista social, nas minorias. As minorias se definem pela sua incapacidade de subordinação completas às racionalidades hegemônicas. As minorias étnicas, sexuais (de gênero) e outras têm mais dificuldades para aceitar e atender às exigências da racionalidade, na mesma medida em que os pobres delas também são mais defendidos, porque mais infensos às trampas do consumo. Esses são também os instrumentos da realização das contra-racionalidades. (SANTOS, 1998, p. 107)

Entretanto, essas constatações que poderiam emergir sob a forma de um poder comunicativo das minorias, das lutas por reconhecimento e cidadania, do fortalecimento da esfera pública, justamente pela existência de espaços conforme a racionalidade intersubjetiva e não conformista com a racionalidade instrumental, aparece, contraditoriamente, como a condição da ação - instrumental - do Estado. Assim, se expressa Milton Santos (1998, p. 108), “Graças, exatamente, àquelas suas áreas sociais e geográficas onde a racionalidade capitalista contemporânea é menor, o Estado (União, Estados e Municípios) pode ter força para planejar a cidade”.

A destranscendentalização que poderia operar, mediada pelos sujeitos humanos e os grupos sociais, de corpo e alma, as minorias, pela ação e a razão comunicativa e, consequentemente, um levante do mundo da vida, logo é transferida, parece-nos, para o Estado, e assim também para a materialidade, para o sistema dos objetos enquanto dado explicativo da vida humana. A defesa da Geografia como filosofia das técnicas, por isso mesmo, cria não um dilema teórico-metodológico, mas uma situação aporética de difícil saída no pensamento miltoniano.

Em Técnica, Espaço e Tempo... a razão e a ação são, sobretudo, do instrumento. Milton Santos não trabalha, até então, com outras tipologias que lhe permitiram, portanto, leituras geográficas com base em uma filosofia diversa. O não desvendamento da razão intersubjetiva que guia as pessoas em seus mundos da vida, não permite, ainda, a Milton Santos se desligar da lógica explicativa da razão instrumental, chegando a afirmar, sobre a organização da vida, tornada longínqua e estranha: “Antes, a sua razão era a própria vida, hoje é uma racionalidade sem razão, sem objetivo, sem teleologia, que comanda a existência dos homens e a evolução dos espaços” (SANTOS, 1998, p. 115).

Diferentemente, Habermas (2012) elabora os contornos da razão comunicativa que garante a reprodução simbólica do mundo da vida, pela manutenção das tradições culturais e a sua renovação, pela solidariedade dos grupos sociais inseridos em seus contextos compartilhados e pelos processos de socialização que constituem as personalidades humanas. Essa reprodução por meio da linguagem, da interação mediada simbolicamente, não pode ser subsumida à racionalidade instrumental. Assim, o espaço também se produz e reproduz com base em parâmetros da racionalidade comunicativa.

Paralelamente, porém, essas dificuldades nos argumentos filosóficos geográficos de Milton Santos estavam se direcionando para encontrar as respostas adequadas mediante a redescoberta da razão. Percebe-se, de modo claro, nesta passagem:

Eu penso que essa via do estudo da racionalidade é importante. Estou tentando estudá-la agora, reler, por que mais que nossa formação seja marxista, precisamos saber mais sobre os que falaram que a racionalidade é um equívoco. Nós temos que reler para poder incorporar isso de outra forma. (SANTOS, 1998, p. 185, grifo nosso)

Essa incorporação ao seu pensamento, víamos também tentando fazê-la pela consideração do espaço numa perspectiva comunicativa ou intersubjetiva, logo, com a necessidade da ampliação do sentido de razão para além daquele advindo com o projeto de modernidade e com a filosofia da consciência (CARNEIRO, 2007, 2009). A referida filosofia reduziu o agir humano e social à compreensão moderna desenvolvida desde Max Weber, a um sentido negativo de racionalização da vida social, bem como à ideologia. Ainda que essa perspectiva domine o pensamento de Milton Santos, compreendo que é neste momento, em 1994, que ele tem acesso à discussão da filosofia de Jurgen Habermas, a julgar pelo uso do conceito “ação comunicativa”, o qual aparece uma única vez em Técnica, Tempo, Espaço...

O movimento do pensamento em cada período de sua vida profissional, sempre atualizando as categorias e os conceitos, encontra aqui, em 1994, um ponto de inflexão no “poder incorporar isso de outra forma”. Trata-se da tomada de consciência das aporias de que as categorias - notadamente a racionalidade técnico-instrumental - assim também a sua filosofia - o marxismo - dificultava outras análises, explicações e compreensões, enfim, a sua própria defesa da totalidade.

Milton Santos redescobre a racionalidade, ao dizer: “a racionalidade é uma questão que vai voltar a ter importância” (SANTOS, 1998, p. 185). Com algumas décadas de atraso, ele encontra, portanto, uma literatura que indo contra a ideologia da ciência e da técnica e a negação do projeto da modernidade que se reificou pelo agir racionalcognitivo, defende o potencial emancipador de uma razão não derrotista, mas que contém as sementes do futuro pela via da construção de entendimentos possíveis.

Habermas consolida a sua virada linguística em 1971, rompendo com a tradição de Frankfurt, a qual já tinha sido antecipada com a Lógica das Ciências Sociais em 1967 e com Conhecimento e Interesse em 1968. Em suas palavras,

Sem uma referência à razão incluída nos conceitos fundamentais faltaria à partida o critério não arbitrário para a apreensão crítica daquelas patologias sociais que, como sempre, deveria ser tarefa de uma ‘teoria comunicativa da sociedade’ (como agora se diz). Evidentemente, é necessário situar a razão no espaço social e no tempo histórico. Mas, a fim de evitar que a destranscedentalização do espírito seja adquirida à custa da introdução de sujeitos colectivos de grau superior, trata-se agora de uma ‘fundamentação linguística da sociologia’ que valide a força descentradora da comunicação e compreenda também as identidades colectivas de sociedades e culturas como intersubjectividades de grau superior e condensadas, e tenha na devida conta a característica fundamentalmente plural da vida social. (HABERMAS, 2010, p. 13)

Portanto, foram as leituras de Habermas, desde então, que possibilitaram a virada incompleta na filosofia geográfica subjetiva, de base marxista, da economia política e existencialista, para uma filosofia da intersubjetividade, linguística. Categorias centrais serão, a partir daí, agir comunicativo, razão comunicativa, intersubjetividade.

Em A natureza do espaço... se expressa tudo isso de modo programático, isto é, um esforço inconcluso, mas já suficiente de identificação de uma virada fundamental em sua filosofia geográfica. Consequentemente, racional não teria a ver com a obtenção de conhecimento, mas com o uso que se faz do conhecimento disponível (HABERMAS, 2012), e, dessa forma, a ideia de território usado poderia se ampliar. Não apenas isso, o próprio modo de perceber o conteúdo racional do espaço seria revisto. Por exemplo, ao comparar os espaços de São Paulo ao de um espaço africano, se lê: “Já um africano, por exemplo, não é tão racional, o espaço não tem tanto objeto técnico, ele tem o comando dos objetos” (SANTOS, 1998, p. 185).

Essa afirmação se depreende, por conseguinte, pelas estreitas margens do agir orientado para a produção de algo no mundo objetivo, no qual a intencionalidade se localiza entre a ação e o objeto, por exemplo, na frase “a ação é tanto mais eficaz quanto os objetos são mais adequados” (SANTOS, 2005, p. 94). Sendo o espaço materialidade e vida, do ponto de vista do agir orientando para o entendimento, essa intencionalidade se localizaria entre sujeitos que falam e agem em mundos da vida compartilhados intersubjetivamente, considerando, em todo caso, o sistema dos objetos ou o mundo objetivo.

O mundo da vida, porém, é vertido para cotidiano ou tornados sinônimos, como na tradução que é feita a partir de Anne Buttimer, em A natureza do espaço. Revela a partir de então, a aproximação com a fenomenologia. Já em Técnica, Tempo, Espaço..., se verifica o reconhecimento da cultura como dado explicativo do espaço, ou seja, a “convergência da questão do espaço com a discussão da cultura” (SANTOS, 1998, p. 187). Exemplar, ainda, nesse âmbito é a afirmação: “Mesmo que se divida a Geografia - em política, econômica, cultural -, não é possível trabalhar esses ramos sem o mundo” (SANTOS, 1998, p. 179).

Com a virada linguística, cultural e fenomenológica em andamento, no entanto, o paradigma mentalista do conhecimento científico e filosófico ainda se faz presente. Assim, o mundo é visto numa perspectiva ontológica, que o pressupõe como algo que existe independentemente e que pode ser interpretado ou descrito numa perspectiva objetivamente. Assim, diz Milton Santos:

Nenhum método é eterno, modifiquei o meu várias vezes, em função da minha experiência e da dos outros, mas sobretudo em função de como o mundo se apresenta, já que não posso inventar o mundo: invento uma forma de intepretação, pois o mundo existe independentemente de mim. (SANTOS, 1998, p. 167, grifo nosso)

Essa “posição realista”, no dizer de Habermas (2012, p. 40, grifo nosso) tem relação direta com o tipo do emprego do saber proposicional, com o télos da racionalidade sob o aspecto da disposição instrumental ao passo que na “posição fenomenológica”, por sua vez, com o télos do entendimento comunicativo “o mundo só conquista objetividade ao tornar-se válido enquanto mundo único para uma comunidade de sujeitos capazes de agir e utilizar a linguagem”.

Portanto, a concepção realista de mundo, miltoniana, se depreende no contexto de sua própria filosofia geográfica da consciência e pela razão subjetiva como ponto de partida do seu arcabouço teórico. Todavia, já em 1994, em sua palestra sobre o Lugar: encontrando o futuro, e novamente em 1996, em A natureza do espaço... se encontra uma citação de Alfred Schutz, para quem nas situações cara a cara é essencial que “você e eu tenhamos o mesmo entorno” (SANTOS, 2004, p. 258), já prefigurando, portanto, uma ideia de mundo dependente de nós.

Isso implica em considerar a dimensão intersubjetiva da produção da vida humana e social, e, portanto, do próprio espaço, logo sujeita a interações sociais carentes de entendimento, isto é, da obtenção de acordos sobre as pretensões de validez inseridas nos atos de fala. Por isso, apenas na perspectiva de um observador, pode se entender a ideia de que em sociedade “todos estão agindo conjuntamente, com objetivos particulares que se diluem em um objetivo comum que é a vida social” (SANTOS, 1998, p. 165). Numa perspectiva participante, ainda que o bem comum, o bem viver, o viver juntos, sejam preferíveis a uma vida amoral, essas finalidades são sempre realizadas nos contextos de interações sociais mediadas pela ação orientada para o entendimento mútuo.

Nesse sentido, o ator pode escolher entre uma orientação para o êxito e uma orientação para o entendimento mútuo. Logo, não se trata de diluição dos interesses ao modo de uma autoconsciência sublimada, mas da necessidade constante de coordenação das ações individuais, sob a pena da desintegração social e espacial. Daí, estarmos falando recentemente de geoética universal (CARNEIRO, 2019, 2020).

Em sua apresentação ao livro Da totalidade ao lugar, Carles Carreras, analisa-o, de um lado, como uma “chave intelectual para interpretar a mudança no pensamento teórico de Milton a partir dos anos 1980, mudança que, por outro lado, nunca supôs uma ruptura com a sua produção anterior” (SANTOS, 2005, p. 13). Hoje, alguns anos depois, porém, essa obra autobiográfica também nos possibilita as senhas de acesso a uma virada fundamental da filosofia geográfica miltoniana, mas a partir da década de 1990.

Ainda que não se verifique uma ruptura, desde então, pode-se afirmar, colocando seu pensamento rumo à reviravolta, a linguagem, a comunicação, a intersubjetividade, a destrancedentalização que caracterizam o paradigma intersubjetivo na filosofia, tomam corpo em suas ideias, categorias e conceitos com que têm que lidar para a compreensão e a explicação da produção material e simbólica do espaço.

Desse modo, passa a elencar as características da razão local. Ela é comunicacional, horizontal, está fundada na escala do cotidiano, seus parâmetros são a co-presença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização (SANTOS, 2005). A quarta parte de A natureza do espaço, A força do lugar, revela, por conseguinte, a virada para uma filosofia linguística e intersubjetiva na Geografia de Milton Santos.

Mediante a razão funcionalista, dificulta-se, porém, o emprego dessas categorias quanto às saídas ao processo invasor da razão técnica. Assim, quando aborda horizontalidades e verticalidades, espaço banal e espaço em rede, o acontecer solidário, homólogo, complementar e hierárquico, o sentido de solidariedade é limitado a uma organização relativa aos fins e à escolha dos meios adequados. Resta evidente ao dizer: “A noção, aqui, de solidariedade, é aquela encontrada em Durkheim e não tem conotação ética ou emocional” (SANTOS, 2005, p. 158).

Em A natureza do espaço..., substitui ética e emocional por “conotação moral”, mantendo a tônica na “realização compulsória de tarefas comuns” (SANTOS, 2004, p. 166). Por sua vez, em Por uma outra globalização..., acentua essa dimensão ética, emocional ou moral. Nesse contexto, Milton Santos poderia avançar para uma virada radical da questão, incluindo a dimensão da esfera pública ou do espaço público, do território usado. No entanto, ao tratar da “coesão horizontal” ou das “uniões horizontais” do espaço pela razão local, valorizando a sociedade civil, faz a sua defesa pela ampliação da esfera da produção econômica e do consumo.

Um exemplo é a maneira como produtores rurais se reúnem para defender os seus interesses, o que lhes permitiu passar de um consumo puramente econômico, necessário às respectivas produções, a um consumo político localmente definido e que também distingue as regiões brasileiras umas das outras. (SANTOS, 2005, p. 144).

Assim, de modo ambíguo, o poder político que orientaria a construção dessas novas horizontalidades, a dos atores não hegemônicos ou hegemonizados, estando ele próprio imbuído de racionalidade técnico-instrumental, é que poderia, nesse contexto, “encontrar um caminho que nos libere da maldição da globalização perversa que estamos vivendo e nos aproxime da possibilidade de construir uma outra globalização, capaz de restaurar o homem na sua dignidade” (SANTOS, 2005, p. 144).

Luta por dignidade, consequentemente, por outra globalização teria que ser pensada, então, a partir do próprio mundo da vida compartilhado pela diferença cultural e não apenas pela desigualdade econômica. Daí, questões como responsabilidade, ética, moral, reconhecimento, deliberação, democracia, entendimento e consenso precisam ser inseridas como fio condutor de um conjunto de questões, hoje não apenas locais. Essas questões requerem um tratamento não apenas racional relativo a fins, subjetivamente, mas, sobretudo, racional relativo a entendimentos mútuos e libertos de coerções, intersubjetivamente. Essa postura fica evidente na fala de Milton Santos, ao dizer: “Uma dada situação não pode ser plenamente apreendida se, a pretexto de contemplarmos sua objetividade, deixamos de considerar as relações intersubjetivas que a caracterizam” (2004, p. 214).

Assim, Milton Santos avança na consideração da linguagem como dado explicativo do espaço, na década de 1990, sem que abandone a filosofia geográfica subjetiva. O que fica evidente na leitura de Por uma outra globalização... (SANTOS, 2003) e, de especialmente, O Brasil: território e sociedade no início do século XXI (SANTOS; SILVEIRA, 2004), pois linguagem, intersubjetividade e comunicação não mais aparecem como temas e categorias privilegiadas.

Conclusão

Buscou-se, neste trabalho, captar um processo que, por força do imperativo da vida, a partida espiritual, não foi passível de conclusão por Milton Santos. Ao se interrogar pela virada linguística na filosofia geográfica miltoniana, buscou-se, dessa forma, depreender o momento inicial e os seus desdobramentos.

Nesse âmbito, a aproximação com a filosofia intersubjetiva de Jurgen Habermas possibilitou uma reviravolta importante para a compreensão do espaço. Desde a sua primeira referência, em Técnica, espaço, tempo... e, posteriormente, na palestra A força do lugar, encontrando o futuro, até a sua apropriação mais efetiva em A natureza do espaço..., torna-se evidente a consideração da dimensão intersubjetiva como condição e resultado para uma Geografia da totalidade.

A tradição miltoniana da filosofia da consciência, baseada no marxismo e no existencialismo, foi posta em diálogo, por sua vez, com a fenomenologia de Alfred Schultz, de Edmund Husserl, de Hegel, e com a teoria do agir comunicativo de Jurgen Habermas. De todo modo, a comunicação tratada de modo clássico ao modo de ligações ou transportes até então, passou a ser tida como uma linguagem entre sujeitos que se relacionam cara a cara, no cotidiano, no mundo da vida.

Passou-se, do nosso ponto de vista, de uma Geografia da comunicação para uma Geografia comunicativa. Ainda assim, percebem-se algumas dificuldades no trato com as categorias de agir comunicativo e de razão comunicativa. A racionalidade quase sempre focada no agir instrumental serve para diferenciar os espaços racionais dos não racionais, espaços mais racionais de outros menos racionais.

Nesse modo de proceder, a partir da esfera do agir técnico e não do próprio agir comunicativo e da racionalidade própria do mundo da vida, os espaços da globalização se apresentam em alta densidade comunicacional, e não os espaços opacos. Do mesmo modo, a solidariedade é, sobretudo, um problema de organização e não de bem viver e de vida justa, diante do qual um conceito normativo e moral de agir comunicativo poderia contribuir para a virada linguística miltoniana.

A sua teoria do espaço como objetos e ações necessitaria incorporar, no entanto, de modo mais adequado, a dimensão da intersubjetividade e, portanto, complementar a leitura de mundo a partir da dimensão subjetiva e da dimensão objetiva do espaço já incorporada a ela.

Para isso, é necessário completar a virada da filosofia geográfica subjetiva miltoniana para o paradigma da filosofia da linguagem e da intersubjetividade. Espera-se, desse modo, ter contribuído para o debate!

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