DOSSIÊ

Impressões sobre um lugar para pensar o Brasil e o mundo: acervo Milton Santos no IEB

Impressions about a place to think Brazil and the world: collection of Milton Santos at the Brazilian Studies Institute

Manoel Lemes da Silva Neto
PUC, Brasil

Percursos

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN-e: 1984-7246

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 23, núm. 51, 2022

revistapercursos.faed@udesc.br

Recepção: 09 Setembro 2021

Aprovação: 03 Maio 2022



DOI: https://doi.org/10.5965/1984724623512022012

Resumo: Sob o impulso do acervo de Milton Santos no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, o artigo discute aspectos de sua vida e obra e mostra imagens desse acervo quando ainda depositado na residência da família.

Palavras-chave: acervo, Milton Santos, IEB-USP.

Abstract: Under the impulse of the Milton Santos archive in The Institute of Brazilian Studies (Instituto de Estudos Brasileiros – IEB), the article discusses aspects of his life and work and displays images of this archive when it was still placed in the family residence.

Keywords: collection, Milton Santos, IEB-USP.

Acervo Milton Santos, o que está guardado no IEB? Lições, histórias e uma obra

A materialidade de um acervo existe porque, antes, existiu um pensamento, uma vontade. O acervo é fruto do patrimônio intelectual herdado que agora subsiste no campo das ideias. Mais do que coisas, são as reflexões que estão guardadas. E as coisas não podem se suceder, ao contrário das reflexões, que podem desdobrar-se em um semnúmero de tantas outras. Em se tratando de Milton Santos, o que propriamente há decorre da busca de explicação do que “[...] se acha diante de nós [...], o agora e o aqui, a atualidade em sua dupla dimensão espacial e temporal” (SANTOS, 1982a, p. 10). O que se encontra guardado não é somente o passado de alguém, mas uma lição que ensina a ver o sempre presente.

Milton Santos é reconhecido como um dos grandes teóricos do fenômeno espacial, e é por isso que lhe interessou tanto entrever, no momento presente, nesse instante da totalidade em movimento, a buscar, no sempre fugidio espaço, a dinâmica do que foi, do que é e do que pode vir a ser. A análise espacial repousa na forma-conteúdo presentificada.

O que está guardado é a formidável lição de como não correr “[...] o risco de confundir o presente com aquilo que não mais o é” (SANTOS, 1982a, p. 11). É a destinação do exercício intelectual construído no tempo de alguém, agora passado, que, no pensamento de outros, aponta futuros possíveis, depois presentes e novamente passados no infindável aprendizado de descobrimento do mundo. O que está guardado é a história de um pensamento suficientemente vigoroso a ponto de reunir as condições para levar um extraordinário projeto científico adiante, tal como idealizara em um de seus clássicos.

Esse texto reflete a obra de Milton Santos sob dois pontos de vista. Primeiramente, discute uma periodização de sua trajetória por meio da identificação dos livros que melhor refletem a envergadura de seu pensamento. Depois, traz a público a documentação elaborada pelo autor sobre o conteúdo das estantes do escritório do professor em sua residência, na cidade de São Paulo, no estado em que se encontrava após seu falecimento. Essa atividade integra o projeto de contribuir para a reconstrução do processo da produção intelectual do professor, tendo seu ambiente particular de trabalho como apoio. Desde 2009, os arquivos e a biblioteca de Milton Santos integram os acervos do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) e essa documentação pode contribuir com o estudo de sua obra.

De por uma geografia nova, de 1978, à natureza do espaço, de 1996

Publicado em 1996, o livro A natureza do espaço é, certamente, o mais importante de sua obra. O texto revela a elaboração teórica do autor em sua versão mais apurada, encerrando uma síntese de proposições sobre uma teoria geral do espaço humano que ilumina indistintamente várias províncias de conhecimento, além da geografia. Esse livro é o ponto alto de sua reflexão. Suas páginas encerram uma história também guardada junto ao acervo. “A história de uma pesquisa que durou muitos anos, a história da busca de uma forma de exprimir os resultados alcançados” (SANTOS, 1996, p. 11).

Na medida em que “o plano original da obra foi muitas vezes refeito durante o processo, para atender a um ideal de coerência” (SANTOS, 1996, p. 12), abriu-se um campo de possibilidades para especular os passos percorridos por esse capítulo da historiografia brasileira do pensamento geográfico escrito por Milton Santos. E tudo cuidadosamente palmilhado, desde a escolha das palavras. Era importante “encontrar a forma”, como ele dizia, a escolha do termo exato para descrever e explicar.

Apoiado em um léxico próprio solidamente constituído, o discurso científico de Milton Santos possibilitou, inclusive, a apropriação linguística do “conjunto sistemático de ideias [...] da obra do geógrafo-filósofo Milton Santos” (FERREIRA, 2007, p. 27). Suas ideias, noções, conceitos e categorias mantiveram-se vivos (VASCONCELOS, 2020, p. 145-172). Tanto por ele mesmo, que se encarregava de seguir a própria lição de que “o conceito se esgota com o tempo”, quanto pelo frescor no emprego das palavras e do estilo.

Vislumbrando toda a obra do professor Milton Santos, a publicação de Por uma geografia nova, em 1978, pode ter sido o estágio de arrancada para “um projeto ambicioso” (SANTOS, 1978, p. 3-7), que fez surgir, 18 anos depois, A natureza do espaço. É uma hipótese entrevista na introdução daquele livro. Toda obra seria composta por “cinco volumes consagrados a um tema geral: O Espaço Humano” (SANTOS, 1986, p. 3).

Em Por uma geografia nova, o primeiro da série, estava “pretendendo chegar a uma geografia crítica [...] a uma revisão crítica da evolução da geografia [para] unicamente apontar aqueles problemas que ao nosso ver, impedem a construção de uma geografia orientada para uma problemática social mais ampla e mais construtiva” (SANTOS, 1986, p. 4). Senão de fato, a proposição dessa obra representa, ao grande público, o lançamento de uma reflexão teórica que ultrapassou os limites do pensamento geográfico e influiu no método de análise das disciplinas espaciais, incluindo-se as projetuais.

À preocupação de refletir a “problemática social mais ampla e mais construtiva” (SANTOS, 1986, p. 4), acrescente-se, ainda, umas poucas palavras que singularizam a reflexão metodológica: “partimos do passado com vistas ao futuro” (SANTOS, 1986, p. 4), um futuro que aponta direções não exclusivamente à geografia, mas a todos aqueles que se preocupam em construir horizontes humanistas libertários. Um “norte reflexivo”, como diria Ana Clara Torres Ribeiro, teria descortinado a composição dos elementos essenciais para conduzir o projeto de pensar o espaço do homem.

Os demais volumes [seriam] consagrados, respectivamente, aos temas seguintes: 2. Da Natureza Cósmica à Divisão Internacional do Trabalho; 3. Organização Espacial da Sociedade Contemporânea; 4. Tempo Social e Espaço Humano; 5. Totalidade Social e Espaço Total: Forma, Função, Processo e Estrutura. (SANTOS, 1986, p. 4)

De Por uma geografia nova, publicado em 1978, à Natureza do espaço, de 1996. O primeiro demarca um momento importante do percurso de Milton Santos: 1977. É seu retorno ao Brasil, após 12 anos de exílio. Na bagagem, níveis analíticos amplificados pelo convívio no exterior. No segundo, na década de 1990, aos 70 anos, a sabedoria da vida deve ter decuplicado sua extraordinária acuidade analítica. Se fosse razoável periodizar o trabalho intelectual ininterrupto de toda uma existência, uma possibilidade a se considerar é a publicação desses dois livros.

Antes, um trabalho devotado à descrição e à explicação do mundo a sua volta. Da terra natal ao “terceiro mundo”. E, em simultâneo, à solidificação de convicções teóricas a respeito do objeto geográfico e da essencialidade do fenômeno espacial. Depois, direcionado à interpretação do período histórico atual e à elaboração explícita de uma “proposta libertária para esses dias tumultuados”, tal como subintitulado no documentário de Sílvio Tendler, de 2006: Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá. Os primórdios estão bem definidos. É o reconhecimento acadêmico do professor como geógrafo.

Aos 27 anos de idade, apresenta a tese de concurso para “docência livre” junto à cadeira de Geografia Humana da Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia, datada de agosto de 1953: Os estudos regionais e o futuro da geografia. Em 1958, com 32 anos, Milton Santos apresenta sua tese de doutorado em geografia à Universidade de Estrasburgo: O centro da cidade de Salvador: estudo de geografia urbana. Juntamente com Marianne em preto e branco, de 1960, esses títulos marcam o desfecho de um período balizado pela preocupação em desenvolver estudos urbano-regionais associados às questões de método do pensamento geográfico.

No exílio, A cidade nos países subdesenvolvidos, de 1965, e Le métier de géographe en pays sous-développé: un essai méthodologique, publicado em Paris no ano de 19711, deram a tônica de suas principais preocupações teóricas de então: urbanização, no subdesenvolvimento, e método. Em 1975, também em Paris, publica o L'espace partagé: les deux circuits de l'économie urbaine des pays sous-développés. Sua versão brasileira, publicada em 1979, inaugurou a potência de seu pensamento no campo interdisciplinar do planejamento urbano e regional, e é tão notório quanto o livro Por uma geografia nova. Ou até mais notório, para os não geógrafos.

O retorno ao Brasil, sua integração definitiva na geografia brasileira e o ingresso no Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo permitiram a ele usufruir um ambiente acadêmico prolífero com os colegas, pesquisadores e alunos que se refletiu na produção de um arcabouço teórico imprescindível para se pensar o tema geral do espaço humano. Na geografia e fora da geografia. Esquemas teóricos, hipóteses, referências, quadros empíricos sintetizados na preparação das aulas do professor consubstanciavam-se em livros, e numerosos artigos, conferências, participações em eventos científicos, entrevistas... Por isso aquele projeto científico, de 1978, avançou. Está todo ali, no livro A natureza do espaço, publicado em 1996.

Aquela numeração de temas mencionada no Por uma geografia nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica, não significava que os livros seguintes apareceriam naquela ordem (SANTOS, 1986, p. 4), embora seja de se especular que o último, que tratava da “totalidade social e espaço total: forma, função, processo e estrutura”, indicaria o momento em que o projeto estaria concluído. De sua formulação original até A natureza do espaço, Milton Santos elaborou e publicou, em muitos outros textos, todas aquelas categorias que idealizara, mas não com a sistematicidade e completude com que foram tratadas neste livro. Tal inteireza pode justificar o porquê de seu subtítulo: técnica e tempo; razão e emoção. Por detrás do projeto, a totalidade, o conceito seminal que percorre duradouramente seu trabalho, e lhe confere a coerência do método: “A noção de totalidade é uma das mais fecundas que a filosofia clássica nos legou, constituindo um elemento fundamental para o conhecimento e análise da realidade” (SANTOS, 1996, p. 93).

Posteriormente, em 1988, na introdução do livro Metamorfoses do espaço habitado, avaliava que a geografia crítica que “tanto floresceu” desde a publicação de Por uma geografia nova, de 1978, “[...] não [podia] se contentar em ser apenas crítica. Para ser útil e utilizada, a crítica tem de ser analítica e não apenas discursiva. A crítica pode até ser destrutiva, desde que tenha algo a propor, explícita ou implicitamente, sem o que não contribui para o avanço do conhecimento” (SANTOS, 1988, p. 9). De fato, avançar o conhecimento foi uma constante de seu roteiro intelectual.

Como cientista e como cidadão, perseguiu a compreensão do fenômeno espacial como objeto definidor da ciência geográfica e como um tesouro, ou enigma, que encerra o descobrimento das oportunidades, coloca em marcha a ação política, a dimensão do “socialmente necessário”, como definiria uma de suas mais importantes interlocutoras, Ana Clara Torres Ribeiro (2005).

Reconstruindo os passos do atalho que agora nos separa dos idos de 1978, entre as variáveis constantes, e, portanto, chave de sua inquietude, há uma relação especial: teoria e práxis. Segundo Milton Santos, essa indissociabilidade exige a ação do “intelectual anônimo”, este homem que procura, incansavelmente, a verdade, mas não apenas para festejar intimamente, dizê-la, escrevê-la e sustentá-la publicamente [mas para] assumir um papel de guia em busca de melhores caminhos para a sociedade (SANTOS, 2001).

A energia do discurso político nascido de seu pensamento geográfico tem, no livro Por uma outra globalização, uma insistência incomum pela análise crítica e simultaneamente propositiva de planos político-territoriais que restabeleçam a integridade do território e da cidadania. Sempre foi portador de um desejo de colaborar no desenho de um projeto de nação para o seu país. Seu humanismo concreto lhe permitiu apresentar a “pertinência da utopia” e o projeto de “um novo mundo possível” (SANTOS, 2000, p. 159-170).

Pois teoria e práxis ressurgem em sua reflexão derradeira. Naquele livro, publicado em 2000, convergem pensamentos e proposições políticas de largos horizontes libertários. Não há notas de rodapé. As referências bibliográficas circunscrevem-se no texto, não são tão abundantes como em outros livros e, com frequência fora do comum, remetem-se aos próprios escritos considerados in totum. Não há listagem da bibliografia. O livro parece ter frutificado das próprias entranhas. Há um sumário e, de elementos adicionais, um subtítulo: do pensamento único à consciência universal.

Nessa trilhada, ele, em si, é um lugar de projeto, é um lugar para a explicação geográfica do mundo. Assentados no IEB, o arquivo e biblioteca Milton Santos compõe um lugar para pensar o Brasil e o mundo. E por que introduzir um texto, como este, com tais argumentos? Explica-se. Este texto trouxe essa interpretação possível da grandiosidade da obra de Milton Santos para contextualizar o significado pessoal que representa o seu acervo no IEB visto de um ângulo modestíssimo: um projeto despretensioso que aliou um banco de dados referencial de seu arquivo e biblioteca a uma coleção de imagens de seu escritório.

E é com esse intuito que o preenchimento do banco de dados pari passu a documentação fotográfica de seu ambiente de trabalho podem contribuir: na recomposição epistemológica de seu raciocínio analítico e, consequentemente, na possibilidade de estender futuramente o seu projeto científico. Datação, lugares, colaboradores e categorias são algumas das referências que ajudarão renovar o seu legado.

Quatro significados

Não há como deixar de lado os porquês deste texto. A razão principal é o desenvolvimento e a organização de um banco de dados com o objetivo de catalogar o acervo construído por Milton Santos. Também, para deixar registrada uma parcela de como foi inicialmente projetada a transferência material do arquivo e da biblioteca para o IEB, na Universidade de São Paulo, nos idos dos anos 2000.

Como em todo projeto, parte dele é sonho, imaginação. E na idealização do banco de dados não foi diferente. Cerca de dois anos após seu falecimento, surge o plano de perenizar, de recriar o espaço de trabalho do professor Milton Santos e compartilhá-lo no ambiente cibernético da internet. Era a ideia, e que ainda continua sendo perseguida. O disparo inicial foi a visita que fiz à Marie-Hélène Tiercelin dos Santos, sua esposa, na casa da família. Entrando no escritório, nas prateleiras à esquerda, e logo a mão de quem se sentava à poltrona diante da escrivaninha, os livros utilizados na finalização de A natureza do espaço. Nas estantes à direita, e nas prateleiras lá do alto, os textos clássicos do marxismo. Entre eles, os Escritos da juventude, de Marx.

Num móvel com portas em que se amontoavam mais livros e alguns dos arquivos de fichas catalográficas e de anotações bibliográficas classificadas por assunto, tudo caprichosamente escrito - Milton Santos tinha imenso prazer em escrever à mão -, textos de Sartre com vasta marginalia reveladora de influências filosóficas.

Também as caixas-arquivo, com papelório separado por pastas, envelopes, clipes e tudo o mais que pudesse auxiliá-lo na sistematização de seus assuntos de interesse, tudo desperta imensa curiosidade. Especialmente, o que chamava de “esquema de ideias”, isto é, o registro escrito ou diagramado de uma estrutura organizativa de conceitos não raramente cifrados por cores das tintas das canetas e a lápis. Uma vez perguntado sobre o porquê das cores - azul, preto, vermelho e verde - respondeu que registrava situações ou condições distintas. O que ele pensava, de uma cor. O que os outros diziam, de outra. As discordâncias com mais outra. As perguntas, com mais outra ainda. Isso quando assistia ou participava de algum evento científico. Por isso, supostamente, nos esquemas de ideias, as cores corresponderiam a alguma codificação semelhante que ele, ao bater os olhos, imediatamente reconhecia em blocos ou unidades de raciocínio. Mencionou, ainda, que havia se habituado à técnica durante sua permanência na Europa, onde os alunos, segundo ele, comportavam-se como “estudantes profissionais”.

Lembrança ainda fresca em minha memória, a imagem do professor Milton Santos mais jovem e forte, que apontava as caixas-arquivo para ensinar como depositava a documentação que encontrasse à frente de acordo com os temas que, por sua vez, compartimentavam-se internamente em subtemas. E, em cada caixa, um projeto de livro. Os cursos também. Dizia: “para cada curso, um livro”. E realmente. Os assuntos tratados em aula nunca se apresentavam mofados. As anotações que trazia em classe ou nas reuniões científicas jamais se mostraram amareladas pelo tempo.

Ora, com toda essa riqueza de informações, que permite reconstruir caminhos e mais caminhos, sentidos e direções de método, de facilitações de quem cultivara o hábito de pensar intensamente e de manter-se inconformado e combativo diante do que lhe parecesse injusto, concluiu-se: por que não ampliar a experiência da visita? A providência inicial foi o registro fotográfico desse ambiente. Mais precisamente, das estantes, dos armários e das pilhas de papéis e livros cuja organização, na medida do possível, foi mantida inalterada por Marie-Hélène desde 2001, ano em que o professor faleceu.

Depois de 851 dias, em 23 de outubro de 2003, iniciaram-se as sessões de fotografias. O trabalho foi concluído logo após, em 4 de novembro (Figuras 1, 2 e 3). Ao mesmo tempo, montava-se o banco de dados disposto sob uma interface gráfica. Em ambiente web, permitiria “abrir” as prateleiras e pilhas e vasculhar seus conteúdos. Por isso a catalogação segundo os elementos referenciais.

Biblioteca e arquivo de Milton Santos em sua residência. À frente e atrás de algumas estantes, havia duas fileiras de livros
Figura 1
Biblioteca e arquivo de Milton Santos em sua residência. À frente e atrás de algumas estantes, havia duas fileiras de livros
Fonte: autoria própria, 2004

Biblioteca e arquivo de Milton Santos em sua residência. À frente e atrás de algumas estantes, havia duas fileiras de livros
Figura 2
Biblioteca e arquivo de Milton Santos em sua residência. À frente e atrás de algumas estantes, havia duas fileiras de livros
Fonte: autoria própria, 2004.

Biblioteca e arquivo de Milton Santos em sua residência. À frente e atrás de algumas estantes, havia duas fileiras de livros
Figura 3
Biblioteca e arquivo de Milton Santos em sua residência. À frente e atrás de algumas estantes, havia duas fileiras de livros
Fonte: autoria própria, 2004

Assim, a maravilha das técnicas que tanto lhe encantaram - mas que também o surpreenderam pela serventia de subordinar autoritariamente populações inteiras - poderia ser usada a favor de perspectivas libertárias. Idealmente, pensava-se, poder-se-ia inclusive disponibilizar o papelório em arquivos de imagem. Mas não se vislumbrava tão somente uma exposição virtualmente pública. O que se pretendia era organizar um lugar de intercâmbio de ideias, de ampla discussão e de avanço efetivo do conhecimento geográfico. Por exemplo, o estudo das categorias que ele trabalhou tão bem poderia ensejar um verdadeiro “convite à leitura”. O projeto só faria sentido se o pensamento de Milton Santos pudesse transformar-se dinamicamente com as pessoas e com o mundo. Se assim não fosse, seria afrontar uma de suas convicções mais arraigadas. Se assim não fosse, melhor seria desistir do projeto.

Feito isso, faltava imaginar uma estrutura capaz de possibilitar que um internauta de qualquer lugar do mundo, querendo, pudesse, materialmente, ter acesso ao documento de seu interesse. Ainda que a realização dessas possibilidades resida no plano da utopia, a doação do arquivo e biblioteca Milton Santos ao IEB facilitará enormemente a difusão e acessibilidade às suas ideias. Como evento, a doação vem carregada de significados.

Primeiro: Mais do que generosidade, o ato de doação por parte da família Santos demonstra enorme consciência do sentido público. Significa a compreensão de que o valor desse acervo não pode apequenar-se à propriedade particular, e, sim, precisa cumprir uma destinação pública, de socialização. A vontade do professor certamente seria esta. Segundo: O acolhimento, pelo IEB, do arquivo e biblioteca Milton Santos significa o reconhecimento institucional do valor de seu trabalho, colocando-o entre a produção de grandes intelectuais que pensaram o Brasil.

Terceiro: Demarca, também, a importância da ciência geográfica na interpretação complexa do mundo, das técnicas e das ações humanas. Tal importância é ainda maior ao se tratar do trabalho de um geógrafo disposto à análise de uma organização espacial, em muitos aspectos ímpar, como a que resulta da cultura mestiça da sociedade brasileira. Quarto: Por fim, a doação desfecha a contribuição de um modo particular de fazer e pensar geografia. A abordagem do tema exige cuidado redobrado por parte dos geógrafos e, para quem provém de outra formação, o risco é maior ainda. Mas, vamos lá. Para quem é estrangeiro na geografia, resta, ao menos, testemunhar o alcance de sua obra. Vai muito além da província geográfica.

Para as pessoas. Todas

A interdisciplinaridade do pensamento de Milton Santos, presumivelmente, não pode ser atribuída a sua obra, que não é interdisciplinar. Ela é, essencialmente, geográfica. Disciplinarmente geográfica. Entretanto, as proporções de seu alcance ultrapassam os “muros altos e grossos da universidade”, e, também da geografia. Os exemplos da aplicação não geográfica de seus ensinamentos são provas cabais de que eles são autenticamente geográficos.

Daí a raridade de sua geografia. Com a difusão de seu trabalho, popularizou-se uma concepção geográfica mais desapegada das explicações corográficas. A propagação de sua geografia “complicada”, para muitos - incluindo muitos geógrafos - expõe, paradoxalmente, grande aderência de seu pensamento junto às parcelas menos especializadas ou comuns da população.

Milton Santos pop
Figura 4
Milton Santos pop
Fonte: autoria própria, 2021.

Não pretendendo ir além da prudência exigida pelas circunstâncias e pretensões deste texto; vamos a uma explicação plausível, e circunscrita à interpretação de duas frases textuais do professor Milton Santos. Com isso, a chance de equívoco diminui e o eco que produziram aumenta. O objetivo é ensaiar, ou, ainda, buscar compreender o alcance da interdisciplinaridade da disciplina geográfica produzida por Milton Santos.

Em primeiro lugar, uma questão de método. O alcance interdisciplinar de sua obra se deveria à disciplina rigorosa com que refletia e pesquisava sobre o seu trabalho em geografia. E essa comprovação ainda ressoa com sua voz. O eco vem de uma conversa telefônica, quando, ao lhe dizer que estava estudando desenho urbano, perguntou o que seria. Diante da resposta de que seria algo situado entre planejamento urbano e projeto de arquitetura, retrucou que, então, não seria nada. E explicou: Estando entre uma coisa e outra, não pode ser nada. Tratava-se, segundo ele, de perseguir o que chamou de “objeto definido”.

E o que seria isso? Literalmente, a lição ficou gravada exatamente com as seguintes palavras. “O objeto definido contém o todo ou o tudo que é definido, mas apenas ele. Se eu estou falando sobre a pêra, falo o todo ou o tudo sobre a pêra, mas apenas sobre a pêra. Não vale falar da maçã”. Daí a diferença entre o cientista filósofo e o cientista especialista. Ousando uma diagramação de tal distinção, o resultado seria o destas figuras.

Objeto definido
Figura 5
Objeto definido
Fonte: autoria própria, 2004.

Na concepção do especialista, o objeto resulta de uma abstração do universo das coisas. O objeto destaca-se do todo, ou do tudo, e a atenção volta-se especificamente para ele. No outro caso, o que desperta a atenção é o conjunto de relações que o universo das coisas trava com o objeto definido. A totalidade é que se destaca, e é dela que se depreende o objeto, que, então, passa a ser definido.

O segundo ecoar vem de uma conferência no auditório de Departamento de Geografia da USP. No fundo, um cochicho perturbador da plateia foi interrompido com alto e bom som. “Venho de tempos morais e quero voltar a tempos morais”. Esse foi o trecho de sua admoestação que ficou gravado letra por letra na memória. O resto foi um convite à retirada dos que se sentiam incomodados pela concentração que o momento exigia.

O tom foi o de uma lição de política e de convivência democrática que torna intolerável qualquer forma de desrespeito para com o trabalho alheio. Há estreita correlação entre ética e política na produção e transmissão do conhecimento e o humanismo concreto. É a exigência do plano da cultura e da educação cidadã que pode transformar, colaborando, assim, no desenho de um projeto para o homem e para o Brasil capaz de superar essa crise civilizatória, que é, sobretudo, moral e política.

Avançando mais um pouco, também é importante relacionar seu método de análise das particularidades - não das especificidades - e com isso forjar um pensamento que, disciplinar, atinge, por isso, a universalidade na compreensão e explicação dos fenômenos. Um exemplo é a sua percepção, na dinâmica dos “homens lentos”, do papel revolucionário da cultura popular como uma das pré-condições da ultrapassagem deste período, o “técnico-científico-informacional” (SANTOS, 1994, p. 139; 1996, p. 190-192), para “demográfico” ou “popular” (SANTOS, 1982b, p. 47-49; 2000, p. 142-149). Talvez por isso o pensamento de Milton Santos guarda estreita correlação com outras estéticas, com a beleza e com a ética. Ele tinha horror à feiúra e ao abuso (SILVA NETO, 2004, p. 20).

As categorias pensadas e forjadas pelo professor Milton Santos para o trabalho interdisciplinar em dimensões espaciais tais como a cidade, o Brasil e o mundo, podem ser sintetizadas em torno de duas definições: formação socioespacial e o processo espacial como territorialidade do acontecer solidário. Em dois momentos distintos, ambas sintetizam o mesmo raciocínio geográfico. O conceito de formação socioespacial, foi trabalhado especialmente em Por uma geografia nova3, de 1978, e Society and space: social formation as theory and method, de 19774.

A formação socioespacial seria um “conceito totalizante” capaz de fundamentar a “geografia renovada”. Isto é, a geografia que trata do “estudo das sociedades humanas em sua obra de permanente reconstrução do espaço herdado das gerações precedentes, através das diversas instâncias da produção.” Seu objeto:

o espaço humano transformado pelo movimento paralelo e interdependente de uma história feita em diferentes níveis - internacional, nacional, local. As noções de totalidade e de estrutura, de universal e de particular, deverão ser unificadas em um mesmo movimento conjunto no qual a sociedade seria reconhecida em seu diálogo com a natureza transformada, não apenas como agente transformador, mas também com um dos seus resultados. (SANTOS, 1986, p. 195)

Em A natureza do espaço, de 1996, o lugar, como “territorialidade do acontecer histórico”, e quaisquer outros subespaços, e especialmente sob o efeito do fenômeno de globalização, retoma o sentido categórico da formação socioespacial e não pode mais ser definido pela “noção geométrica” de escala, mas, sim, pela escala “condicionada pelo Tempo” (SANTOS, 1996, p. 133).

O lugar, a região, os subespaços são definidos pelas dimensões temporais do “acontecer solidário [...] malgrado todas as formas de diferença, entre pessoas, entre lugares [e] se apresenta sob três formas no território atual: um acontecer homólogo, um acontecer complementar e um acontecer hierárquico” (SANTOS, 1996, p. 132). No acontecer homólogo e no acontecer complementar

[...] temos a primazia das formas com a relevância das técnicas. No caso do acontecer hierárquico, temos a primazia das normas, e a relevância aqui não é da técnica, mas da política. [...] Tanto o acontecer homólogo quanto o acontecer complementar supõem uma extensão contínua, na cidade e no campo, sendo a contiguidade o fundamento da solidariedade. Já no caso do acontecer hierárquico, as relações podem ser pontuais. Aqui a solidariedade independe da contiguidade. É a diferença entre proximidade espacial e proximidade organizacional. (SANTOS, 1996, p. 132)

A aproximação de caráter epistemológico encontradiça nessas definições é mais um exemplo das permanências que o distinguem como pensador da geografia e de como elas se transformaram na evolução de nexos explicativos.

Considerações finais

Com a virtude de permitir vários tráfegos, a obra geográfica de Milton Santos é real porque constrói formas concretas. E elas têm grande poder transformador: nos projetos de arquitetura, de urbanismo e de paisagismo, na engenharia cartográfica, nos espetáculos teatrais, na linguística, nos movimentos sociais, nas artes circenses, na saúde pública, nos gestos e no silêncio, nas “vozes dissonantes” de Denise Stocklos.

A propósito, dissonante significa o que destoa, o desarmônico, o que produz sons desagradáveis... Para alguns. É o discordante, essa figura altiva do intelectual anônimo, que tem coragem de dizer o que pensa é que é sinônimo de avançar e de prosseguir.

Finalizando sua trajetória geográfica em Por uma outra globalização, e referindo-se à pré-condição histórica de que “[...] somente agora a humanidade pode identificar-se como um todo e reconhecer sua unidade” (SANTOS, 2000, p. 170), o item 30 conclui que “a história apenas começa” (SANTOS, 2000, p. 170-174).

Referências

FERREIRA, Alice. Un penseur, par ses mots : le lexique de Milton Santos. In: LÉVY, Jacques. Milton Santos : philosophe du mondial, citoyen du local. Lausanne : Presses polytechniques et universitaires romandes, 2007. p. 27-38. (Collection Espace en société - Penseurs d’espace)

GRIMM, Flavia. Apontamentos da produção teórica e da organização do arquivo de documentos do geógrafo Milton Santos. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 52, 2011, p.165-182.

RIBEIRO, Ana Clara Torres. Território usado e humanismo concreto: o mercado socialmente necessário. In: SILVA, Catia Antonia da et al. Formas em crise: utopias necessárias. Rio de Janeiro: Arquimeds Edições, 2005. p. 93-111.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo; razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.

SANTOS, Milton. Society and space: social formation as theory and method. Antipode, Worcester, n. 9, p. 3-13, fev. 1977.

SANTOS, Milton. Espaço e sociedade. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1982a.

SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Hucitec, 1982b.

SANTOS, Milton. Metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Nobel, 1990.

SANTOS, Milton. O intelectual anônimo. Disponível em: http://www.frigoletto.com.br/Geografos /miltonsantos.htm. Acesso em: 22 maio 2007.

SANTOS, Milton. O trabalho do geógrafo no terceiro mundo. São Paulo: Hucitec, 1978. (Geografia: teoria e realidade).

SANTOS, Milton. Por uma geografia nova. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1986.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SANTOS, Milton. O intelectual anônimo”, Correio Braziliense, Brasília, 3/06/01.

SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1994. (Geografia: teoria e realidade).

SILVA NETO, Manoel Lemes da. Cidades inteiras de homens inteiros: o espaço urbano na obra de Milton Santos. Acervo: revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 11-22, jan./jun. 2004.

VASCONCELOS, Pedro de Almeida. O universo conceitual de Milton Santos. Curitiba: CRV, 2020.

Notas

1 Com o título O trabalho do geógrafo no terceiro mundo, o livro foi publicado no Brasil em 1978.
2 Em Access, esse banco de dados, bem como a estrutura e a organização dos elementos referenciais utilizados na catalogação do acervo, foi desenvolvido pelo autor. Referências ao trabalho de catalogação do arquivo e da biblioteca, a sistematização e o preenchimento de tabelas e formulários correspondentes aos elementos referenciais do banco de dados pode ser encontrado em: GRIMM, Flavia. Apontamentos da produção teórica e da organização do arquivo de documentos do geógrafo Milton Santos. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, [s.l.], n. 52, p. 165-182, 2011.
3 “As noções de totalidade, de formação social e de renovação da geografia” (SANTOS, 1986, p. 191-202).
4 Com o título Espaço e sociedade, o livro foi publicado no Brasil em 1979.
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