RESENHA
Resenha do livro “O universo conceitual de Milton Santos”
Percursos
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN-e: 1984-7246
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 23, núm. 51, 2022
Recepção: 16 Fevereiro 2022
Aprovação: 01 Março 2022
Fruto de interlocuções pessoais e acadêmicas de longa data com um dos mais importantes geógrafos brasileiros, às quais se somaram estudos e pesquisas sistemáticas, o mais recente livro de Pedro de Almeida Vasconcelos1, intitulado O universo conceitual de Milton Santos, oferece um alentado balanço da vida e da obra desse intelectual heterodoxo e original que se dedicou a pensar o espaço geográfico como uma instância fundamental da existência humana e social.
Precedidos por uma apresentação, um prefácio assinado por Paulo Cesar da Costa Gomes (Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro) e uma introdução, os cinco capítulos que compõem o livro encontram-se organizados em duas partes. A primeira, intitulada “Vida e obra”, recorre a uma periodização da trajetória biográfica de Milton Santos em três momentos, cada um dos quais é abordado em capítulo específico, a fim de contextualizar a obra do autor, com destaque para os seus principais livros. Em seguida, na segunda parte, intitulada “Ideias científicas e contribuições ao pensamento geográfico”, dois capítulos tratam, respectivamente, do sistema categorial e conceitual miltoniano e da sua influência e difusão.
O capítulo 1, intitulado “As raízes baianas e os estudos regionais”, examina livros de Milton Santos publicados entre 1948 e 1961 – voltados a problemáticas urbano-regionais e a discussões teórico-metodológicas da ciência geográfica – e os contextualiza na trajetória biográfica e profissional do autor no estado da Bahia. Assim, ganham relevo no capítulo os seus anos formativos da infância e juventude; o início de sua prolífica vida profissional e seu crescente engajamento com a disciplina e a comunidade geográfica, no Brasil e no exterior; a influência duradoura da Geografia francesa em seu pensamento, tanto da matriz vidaliana “clássica” quanto das correntes urbanas e aplicadas então em ascensão; e a sua precoce vocação para a vida pública e a liderança, demonstrada nos cargos que assumiu durante esse período em importantes instituições de imprensa, acadêmicas e políticas na Bahia.
No capítulo 2, intitulado “O exílio e os estudos sobre o Terceiro Mundo”, a trajetória internacional percorrida por Milton Santos entre 1965 e 1977, marcada pela sua participação em distintas instituições de ensino e pesquisa na Europa, na África, na América do Norte e na América Latina, é reconstituída para contextualizar uma parte de sua obra dedicada, sobretudo, à compreensão das especificidades do espaço e da urbanização no “mundo subdesenvolvido”. O exame dos livros do autor que foram publicados no período reveste-se de especial interesse, posto que, além dos títulos mais conhecidos do público brasileiro, como Le métier du géographe en pays sous-développés (1971) e L’espace partagé (1975), ambos traduzidos para a língua portuguesa, inclui também publicações que repercutiram mais internacional do que nacionalmente, como Aspects de la géographie et de l’économie urbaine des pays sous-développés (1969), Dix essais sur les villes des pays sous-developpés (1970) e Les Villes du Tiers Monde (1971).
O período de consagração de Milton Santos enquanto geógrafo e intelectual público, entre 1977 e 2001, é tratado no capítulo 3, o mais extenso do livro, intitulado “O retorno ao Brasil, o reconhecimento internacional e os estudos teóricos em escala global”. Neste, Pedro Vasconcelos segue os meandros da trajetória do autor – sua reinserção no ambiente universitário brasileiro, sua intensa atividade acadêmica e institucional e o seu reconhecimento em nível nacional e internacional – para contextualizar uma produção bibliográfica vasta e diversa, composta por importantes livros de autoria própria ou dos quais participou como organizador ou como um dos autores, e que versam sobre os temas pelos quais Santos ficou amplamente conhecido, como os fundamentos epistemológicos e teórico-metodológicos da Geografia, a ontologia do espaço, o território e a urbanização brasileiros, a cidadania e a globalização vistas sob um ângulo geográfico e a partir das periferias do mundo.
No todo, a primeira parte do livro de Pedro Vasconcelos é bastante competente no exame geral da estrutura e do conteúdo dos principais livros de Milton Santos, bem como na contextualização dessa produção bibliográfica na trajetória biográfica do autor; contextualização esta que, acrescentamos, poderia ainda se beneficiar de algumas informações adicionais, como aquelas referentes à consultoria prestada por Santos para o Território Federal de Rondônia, em 1979, experiência da qual, nas palavras do próprio autor, lhe “vieram muitas ideias sobre o Brasil” (SANTOS, 2000, p. 117); e, também, a sua participação na Subcomissão da Questão Urbana e Transporte da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 (BRASIL, 1987), importante para a compreensão contextual do livro “O espaço do cidadão”, publicado naquele mesmo ano.
A segunda parte do livro de Pedro Vasconcelos inicia com o capítulo 4, que o autor considera ser o mais original. Com efeito, neste capítulo o leitor encontrará uma apreciação minuciosa do universo conceitual de Milton Santos, que inclui desde conceitos e categorias clássicas da Geografia, como paisagem, gênero de vida, espaço, região, território, lugar, cidade e rede urbana, até inovações conceituais que resultaram da internalização de noções oriundas de outras disciplinas ou de processos de criação e reelaboração conceitual feitos pelo autor, como formação socioespacial, inércia dinâmica, rugosidades, tempos empíricos/espaciais, tempos rápidos e lentos, flexibilidade tropical, tecnosfera e psicosfera, circuitos da economia urbana, circuitos espaciais de produção e círculos de cooperação, forma, função, estrutura e processo, entre outros.
Ao examinar as diversas definições de uma mesma categoria ou conceito na vasta obra de Milton Santos, Pedro Vasconcelos oportuniza uma visão sintética da evolução de um pensamento inquieto e criativo, prolífico na proposição de inovações teóricoconceituais, e ao mesmo tempo internamente coerente, perpassado por certas noções que se mantiveram, ainda que retrabalhadas, ao longo de todo seu desenvolvimento. Sobre estas últimas, além das recorrências pertinentemente arroladas por Vasconcelos, acrescentaria também a ideia de solidariedade associada ao fenômeno regional, já presente em textos da década de 1950 (SANTOS, 1959a), e a ideia de “atividades superiores da vida econômica regional”, talvez precursora do conceito de circuito superior da economia urbana, pois foi utilizada pelo autor em trabalho sobre o subdesenvolvimento da Bahia, também nos anos 1950 (SANTOS, 1959b, p. 91).
A influência e a difusão das ideias de Milton Santos constituem o assunto do capítulo 5, o último do livro. Trata-se de um levantamento não exaustivo, mas qualitativamente expressivo do reconhecimento nacional e internacional alcançado pelo geógrafo brasileiro, na forma dos prêmios e títulos que recebeu em vida, dos inúmeros convites para realização de conferências, pesquisas e consultorias no Brasil e no exterior, da projeção no debate público nacional, bem como dos diversos eventos e publicações, nacionais e estrangeiros, acadêmicos ou não, que se propuseram a homenagear, examinar, criticar e/ou desdobrar o seu legado intelectual.
Seguem-se aos capítulos uma breve conclusão do autor, as referências utilizadas ao longo do livro, uma cronologia da vida e obra de Milton Santos, e um apêndice contendo comentários sobre alguns de seus primeiros textos publicados, a saber, a tese “O povoamento da Bahia. Suas causas econômicas (Contribuição para o Estudo)” (1948), apresentada para o concurso à cadeira de Geografia do Brasil do Ginásio de Ilhéus (BA), e sete artigos publicados no jornal baiano “A Tarde”, entre 1949 e 1953.
Se o geógrafo baiano “[...] ‘semeou’ noções, conceitos e categorias em seus discursos, entrevistas e textos ao longo do tempo”, conforme conclui Vasconcelos (2020, p. 188), o grande mérito de O universo conceitual de Milton Santos é a sistematização rigorosa desse denso corpo teórico-conceitual, atentando para as suas coerências (e contradições) “internas” e também para os seus condicionantes “externos”, tanto de produção quanto de difusão das ideias. Desnecessário dizer que se trata de obra de referência para todos aqueles interessados pelo legado intelectual de um dos maiores geógrafos brasileiros.
Referências
BRASIL. Ata da 15ª Reunião Ordinária da Subcomissão da Questão Urbana e Transporte, Comissão da Ordem Econômica, em 6 de maio de 1987. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, Brasília, DF, ano 1, p. 88-107, 23 jul. 1987. Suplemento ao n. 102.
PLATAFORMA LATTES. Pedro de Almeida Vasconcelos. Plataforma Lattes – CNPq, Brasília, DF, 2021. Currículo Lattes. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/6592341965132312. Acesso em: 14 dez. 2021.
SANTOS, Milton. Geografia e desenvolvimento econômico. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, n. 4, p. 99-110, out./dez. 1959a.
SANTOS, Milton. Fatores que retardam o desenvolvimento da Bahia: a falta de indústrias. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1959b.
SANTOS, Milton. [Entrevista concedida a] Odette Seabra, Mônica de Carvalho e José Corrêa Leite. Território e sociedade: entrevista com Milton Santos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
Notas