Comunicação, Gêneros e Sexualidades

Homão da porra: Rodrigo Hilbert e a rede textual de masculinidades transformadas

Juliana Soares Gonçalves
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Esferas

Universidade Católica de Brasília, Brasil

ISSN-e: 2446-6190

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 1, núm. 27, 2023

revesferas@gmail.com

Recepção: 13 Dezembro 2022

Aprovação: 06 Julho 2023



DOI: https://doi.org/10.31501/esf.v1i27.14348

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Resumo: A partir das enunciações de Rodrigo Hilbert como um homem desconstruído, refletimos sobre a configuração simbólica desse projeto de masculinidade transformada que faz ver modificações em níveis cosméticos, mas manutenções estruturais cis-heteronormativas. Acionamos as textualidades como lentes metodológicas para refletir sobre a constituição simbólica das masculinidades a partir de materialidades midiáticas que dialogam em rede, associadas aos conceitos de tecnologias e próteses de gênero.

Palavras-chave: Masculinidades transformadas, Rodrigo Hilbert, Textualidades, Gênero como construção simbólica, Próteses de gênero.

Abstract: Based on Rodrigo Hilbert’s statements as a deconstructed man, we reflect on the symbolic configuration of this project of transformed masculinity, which reveals cosmetic modifications but maintains cis-heteronormative structural aspects. We employ textualities as methodological lenses to contemplate the symbolic constitution of masculinities through media materialities that engage in networked dialogue, associated with the concepts of gender technologies and protheses.

Keywords: Transformed masculinities, Rodrigo Hilbert, Textualities, Gender as a symbolic construction, Gender prostheses.

Resumen: A partir de las enunciaciones de Rodrigo Hilbert como un hombre desconstruido, reflexionamos sobre la configuración simbólica de este proyecto de masculinidad que muestra modificaciones a nível cosmético, pero mantiene aspectos estructurales cis-heteronormativos. Utilizamos las textualidades metodológicamente para reflexionar sobre la constitución simbólica de las masculinidades a partir de materialidades mediáticas que dialogan en red, associadas a los conceptos de tecnologias y prótesis de género.

Palabras clave: Masculinidades transformadas, Rodrigo Hilbert, Textualidades, Género como construcción simbólica, Prótesis de género.

Introdução

Rodrigo Hilbert é um nome reconhecido no espaço midiático brasileiro. Ex-modelo e apresentador de programas nos canais GNT e Globo, com destaque para o Tempero de Família (programa de culinária), e o Bem Juntinhos (apresentando em conjunto com a esposa, Fernanda Lima, no qual Hilbert cozinha enquanto o casal conversa com convidados), recebeu o título de “homão da porra”. Esse termo surge em conversações nas redes sociais, muitas em tom de humor, para se referir a ele como um homem excepcional. O superlativo homão indica não se tratar de um homem qualquer, mas de alguém acima da média das referências partilhadas de masculino. Por se enunciar como um homem supostamente transformado, que assume suas funções nos cuidados com os filhos e com a vida doméstica da família por cozinhar, construir objetos diversos para a casa, fazer crochê e ainda ser um marido admirável de Fernanda Lima, são recorrentes postagens nas redes sociais em que outros homens, em tom jocoso, reclamem que Hilbert elevou os padrões de das masculinidades de prestígio para marcos inalcançáveis.

A enunciação de si como alguém diferente do padrão não é fortuita. Se baseia na narrativa de um homem que diz gostar de realizar tarefas recorrentemente impostas ao feminino, como as atividades domésticas e a participação nos cuidados com os filhos. Quando essa narrativa ultrapassa seu programa de televisão e ganha o espaço das redes sociais, Hilbert se consolida como uma referência positiva de masculinidade. Apostar em uma construção imagética assentada nesta temática parece funcionar como capital social capaz de despertar admiração, visibilidade expressiva e monetização, seja nas próprias plataformas digitais ou em outros espaços, em especial os midiáticos.

O que se percebe é que, enquanto atividades domésticas como cozinhar representam sobrecarga não remunerada para as mulheres, limitando consideravelmente o tempo disponível para se dedicar a outras atividades ou mesmo descanso, para os homens assume forma de reconhecimento social e ganhos financeiros. Ou seja, ao se enunciar publicamente como dotado de tais habilidades, o sentido de si como homem escapa dos limites da pele e se prolonga para tais (supostas) habilidades como próteses de potência masculina (Gonçalves, 2021). A potência, aqui, se sofistica e não mais se restringe aos lugares tradicionalmente vinculados à virilidade de força física e riqueza material, dois atributos possivelmente associados a Hilbert. Além de tudo que um homem na perspectiva tradicional deve ser, ele também parece querer ser visto como sensível e cuidadoso, características valorizadas na contemporaneidade, desde que não coloquem em xeque seu pacto de pertencimento à cis-heteronorma.

Nesse propósito, compreendemos os gêneros, por consequência as masculinidades, como construções socioculturais partilhadas que se organizam como textualidades (Abril, 2007) encarnadas, ou seja, como conjuntos de sentidos que se constituem no corpo e para além dele (Haraway, 2018; Preciado, 2018), que se baseiam no estabelecimento de diferenças normativamente estabelecidas.

Sendo o sistema de gêneros um tipo de estrutura de relações de poder, essas diferenças cis-heteronormativas determinam o conjunto de privilégios e possibilidades de ação que as posições distintas organizam e oferecem. Ainda que a produção de si enquanto homens passe necessariamente pelos corpos, a dimensão orgânica não parece suficiente para encarnar um conjunto de prescrições e privilégios que lhes são atribuídos. Assim, além de uma série de tecnologias e próteses que produzem e modificam os corpos masculinos (Haraway, 2018), um conjunto de artefatos físicos e simbólicos, mais ou menos acopláveis à matéria, se mostra essencial para que se faça possível se produzir como um emaranhado de sentidos legitimados como masculino e aptos a proporcionar certas posições de aceitação e privilégios sociais. Nesse caminho, expandimos a noção de próteses, assumida também em seu sentido metafórico, na tentativa de acessar e compreender como o corpo de Hilbert é textualizado em sua proposta de sentido de masculino desconstruído.

Com o objetivo de explorar tal perspectiva, nos dedicaremos nesse artigo a refletir sobre como a enunciação de si de Rodrigo Hilbert, em ambiências midiáticas, como expoente de uma masculinidade suspostamente transformada, dá a ver a sofisticação das engrenagens do sistema de gênero heteronormativo, operando na manutenção/renovação das relações de poder. E mais, como as narrativas de masculinidades mais palatáveis, pautadas no exercício de tarefas de cuidado, podem atuar na sofisticação das estruturas de poder, mantendo a sobrecarga de mulheres, ao mesmo tempo em que esses homens passam a gozar de posições especiais de atenção por espetacularizarem esse tipo de tarefa.

O homão da porra: Rodrigo Hilbert e o potencial reflexivo sobre enunciações de masculinidades transformadas

Ao convocar o nome de Rodrigo Hilbert em conversações cotidianas, uma parcela considerável de brasileiras e brasileiros que utilizam as redes sociais (ou não) facilmente identifica o conjunto simbólico implicado: o homão da porra é diferente dos demais e se constitui como referência positiva de masculinidade. Tal construção simbólica começa a ganhar força a partir de 2012, ano de lançamento do Tempero de Família no canal GNT, do Grupo Globo. Aos 32 anos, Hilbert já havia se dedicado às carreiras de modelo e ator, tendo participado de novelas do maior canal aberto do Brasil, a Rede Globo, mas sem ter alcançado destaque midiático. Casado com a também ex-modelo e apresentadora de televisão Fernanda Lima, na ocasião, era pai de dois filhos gêmeos (atualmente são três crianças). Ao lançar o programa de culinária Tempero de Família, o ator passa a construir para si uma narrativa até então desconhecida do público: do homem que sabe cozinhar, tem habilidades surpreendentes e dissociadas dos padrões de masculinidade tradicionais, como fazer crochê, origami, construir casa na árvore para os filhos, fazer seus próprios utensílios de cozinha, dentre outras capacidades consideradas inesperadas para os padrões tradicionais de masculino. Nesta composição de excepcionalidade, é importante ressaltar que Rodrigo Hilbert não é um corpo qualquer, mas representa o topo da pirâmide de privilégio colonialista masculino. É um homem branco, loiro, de olhos azuis, jovem, torneado, dentro de todos os padrões normativos de beleza, de reconhecido poder aquisitivo e projeção midiática.

Ainda que o Tempero de Família tenha se estabelecido como esse ponto de virada na carreira de Hilbert, que a partir de então passa a ter como base principal de sustentação o prestígio atribuído a essa nova cosmética de masculinidade, tal construção simbólica ganha espessura e é socialmente legitimada a partir da expansão de sua textualidade em outros dispositivos. Tais enunciações que compõem essa rede textual de sentidos sobre quem é Rodrigo Hilbert ultrapassam suas aparições no canal GNT e vão ganhando corpo ao se fazerem presentes em outras ambiências midiáticas, como as redes sociais (com destaque para o Twitter, Facebook, Instagram e Youtube), entrevistas e temas de debate em outros programas televisivos, páginas de revistas e jornais e a conversação cotidiana. Ou seja, para que se estabeleça enquanto modelo de masculinidade transformada e admirável, foi necessário que tal construção simbólica ganhasse o contorno de rede textual, em que a legitimação social se deva principalmente à validação pública nas redes sociais, com destaque para seus pares, os outros homens.

Por ser uma referência relevante para o que se partilha socialmente no Brasil como “novas masculinidades”, ou “masculinidades transformadas”, refletir a partir da construção simbólica e midiática que se institui tendo Rodrigo Hilbert como centro, nos parece um movimento potente na tentativa de acessar aspectos estruturantes dos debates e disputas que se instauram sobre discursos de masculinidades que se oferecem como outras do referencial tradicional do ser homem. Logo, nos interessa pensar em aspectos das experiências masculinas que reivindicam as enunciadas novas masculinidades como eixo central.

Neste trabalho, delimitamos como recorte a rede textual, com especial atenção para as materialidades midiáticas, que dão a ver a narrativa que se constrói sobre Rodrigo Hilbert como homão da porra. O presente artigo se configura como um desdobramento da tese de doutorado Novas estéticas para estruturas antigas: tecnologias, próteses de gênero e textualidades do mandato de masculinidades (Gonçalves, 2021) e, por isso, assumimos como corpus a coleta realizada nesse contexto, atualizado no momento de escritura do artigo. As materialidades têm naturezas diversas: vídeos no Youtube, entrevistas na televisão e na internet, conversação em outras redes sociais como Facebook, Instagram e Twitter. Para a presente análise, nosso movimento consiste em acessar tal textualidade como processo em curso, convocando para diálogo algumas enunciações que auxiliam na articulação da argumentação proposta.

Apontamentos metodológicos: os gêneros como textualidades

Nos parece importante iniciar esse tópico demarcando nosso entendimento sobre as relações entre o fenômeno investigado e a Comunicação, não apenas com intuito de justificar este trabalho, mas de contribuir para a expansão dos movimentos reflexivos que podem ser desenvolvidos em nosso campo. Nossa proposta se insere nos estudos da Comunicação em pelo menos duas dimensões. A primeira diz da qualidade das empirias sobre as quais se debruça a pesquisa, as materialidades midiáticas. Ou seja, buscamos acessar os sentidos partilhados pelas masculinidades principalmente a partir de enunciações midiáticas diversas, com destaque aqui para o programa Tempero de Família, no canal GNT, postagens e comentários que passar a circular em redes sociais como o Twitter, Instagram, Facebook e YouTube.

Mas, sobretudo, esta investigação faz sentido no campo da Comunicação em função das lentes de análise que acionamos para pensar os gêneros: as textualidades. Aqui, pensamos a comunicação para além de sua condição de mídia e assumimos que o tecido social só pode ser alinhavado por um material simbólico que constitui o solo da cultura. Logo, refletir sobre as masculinidades parte da compreensão de como se corporifica o conjunto de sentidos que nos possibilita acessar aquilo que se constitui como ser homem em dado contexto social.

As textualidades são tomadas como textos em processo (Abril, 2007), com teia composta por elementos de naturezas heterogêneas que ultrapassam a dimensão verbal. Para pensar nas masculinidades como textualidade se faz necessário começar por uma breve localização do que compreendemos por texto e, consequentemente, por textualidade. O primeiro movimento que fazemos se baseia no deslocamento de uma noção estável de texto para uma construção desse como processo, como algo que Leal define como “práticas sociais discursivas historicamente situadas” (2017, p.12). O que assumimos como texto, assim como discutido por Abril (2007), diz de qualquer unidade de comunicação, a qual o autor atenta ser, geralmente, multissemiótica, e que tem como sustentação prática discursos inseridos em redes textuais, podendo ou não ser composto por elementos verbais, embora não possa ser identificado por essa dimensão de maneira estrita. Ou seja, os textos são espécies de teias, necessariamente provisórias, de relações de elementos e de natureza heterogênea.

Se todo texto é um emaranhado provisório de elementos heterogêneos articulados que configuram um processo sempre em curso, entendemos que esses, invariavelmente, emergem em articulação com outros textos, em movimentos de diálogo, silenciamento, intertextualidade, imprecisão, fratura e referencialidade, sendo necessariamente contaminado pelos atravessamentos socioculturais. Ou seja, não existem textos puros, objetivos e acabados. Assim, Abril (2007) explica que os textos não são apenas:

Objetos culturais mediados, mas também dispositivos de mediação de outros processos culturais. Essa observação permite afirmar que não todo processo, comportamento, prática cultural é um texto, por mais que, como afirmou Bakhtin, todo comportamento pode ser interpretado como um texto potencial. (Abril, 2007, p.88, tradução nossa).

Logo, tendo em vista o caráter dinâmico e processual dos textos, intimamente vinculado à dimensão sociocultural, entendemos as masculinidades materializadas nos corpos, valores, comportamentos e vivências como emergências de textos potenciais, passíveis de interpretação e reconhecimento como tais. Assumimos no presente trabalho que as masculinidades como textos são o que Leal (2017) define como modos de agir, formas de experiência moduladas por múltiplos sentidos e referências.

Assim, entendemos os gêneros como textos em processo no mundo, que estabelecem matrizes de significação para o que compreendemos cis-heteronormativamente como masculino e feminino, em um exercício crítico sobre a estrutura patriarcal. Assumimos que tais processo de significação não se sustentam apenas no corpo, mas em todo o conjunto de tecnologias, próteses e artefatos de sentidos, mais ou menos materiais, em suas interfaces com a constituição somática. E é esse conjunto que configura a rede textual das masculinidades. Nesse caminho, pensamos as performatividades de gênero (Butler, 2015) como atos interlocutivos, que só ganham vida nas trocas sociais. Mas compreender essa rede textual implica em acessar o universo simbólico que normatiza os projetos de inteligibilidade das formas de ser homem.

Pensar nas masculinidades pelo viés das textualidades consiste em um movimento metodológico, que entende essa rede textual a partir de sua significação nos tecidos cultural, social e de relações de poder nos quais está entranhado. De maneira que pensar nas masculinidades como rede textual de articulação de sentidos aponta para a produção do corpo em seu entrelaçamento com discursos, práticas de poder, instituições, comportamentos e produções simbólicas que forjam projeções de masculino. Logo, reconhecemos que as enunciações de gênero se dão em configurações estruturalmente comunicativas. Pensar as questões das performatividades de gênero pelas lentes dos processos comunicativos significa percebê-las como sistema que configura condições de enunciação. Ou seja, ao se colocar no mundo como homem, o sujeito se constitui como tal em processos de apropriação e compartilhamento de sentidos, que só podem ser atualizados e legitimados no encontro com seus interlocutores.

Dessa maneira, investigar os arranjos de sentidos nos afastando do pressuposto masculino universal (ainda que seja necessário reconhecer sua existência simbólica na estrutura patriarcal normativa de gênero) significa um compromisso com a ruptura com os modelos meta-explicativos de masculinidades, que deixam escapar a vivacidade e a diversidade implicada nas formas de ser homem. Nesse caminho, ao percebemos as masculinidades como textos, pressupomos um movimento de configuração e partilha de sentidos que atravessa e produz o corpo, mas não podemos estabilizar que sentidos e dinâmicas estão postos em jogo de maneira definitiva. Outro aspecto de extrema relevância para o entendimento proposto corresponde às posições de poder e privilégio vinculadas às masculinidades, que são perenes como estrutura, mas diversas em suas formas de materialização no mundo.

Sobre as redes somatotécnicas de gênero: os códigos das masculinidades

Como define Butler (2015) ao pensar o gênero como performatividade, os sentidos de feminino e masculino não existem fora da linguagem. Assim como ser mulher, ser homem é uma ficção que não encontra sustentação real na biologização da identidade e do desejo. A gramática partilhada do que são as masculinidades (cambiáveis de acordo com questões geográficas, etárias/geracionais, socioeconômicas, raciais, dentre uma infinidade de dimensões possíveis) define as lógicas de articulação desses diversos elementos heterogêneos, nos mais variados graus de atravessamentos e produção dos corpos, que fazem desses, textualidades que se oferecem ao mundo como propostas de sentido, em diálogo com tantas outras.

Em consonância com De Lauretis (2019), ao recusar os aspectos biologizantes da suposta conexão entre formas de enunciação de gênero e o corpo em seu estado de natureza, queremos dizer que o que é compartido como referências de masculino e feminino são construções sociais, um tipo de linguagem apreendida e partilhada que procura normatizar existências e configurar o real.

O sistema de sexo-gênero, enfim, é tanto construção sociocultural quanto aparato semiótico, um sistema de representação que atribui significado (identidade, valor, prestígio, posição de parentesco, status dentro de hierarquia social, etc.) a indivíduos inseridos na sociedade. Se as representações de gênero são posições sociais que trazem consigo significados diferenciais, então o fato de alguém ser representado ou se representar como masculino ou feminino subentende a totalidade daqueles atributos sociais. (De Lauretis, 2019, p.126).

Dessa forma, a função primordial do gênero é entendida como a de transformar indivíduos concretos em homens e mulheres. Tal ficção é capaz de definir (e limitar) as condições de autonomia e agência dos indivíduos, conforme as configurações de poder e os lugares de privilégio que cada pessoa ocupa. Sobre o desmantelamento das fronteiras entre ficção e realidade nas construções de gênero, Donna Haraway (2018) compreende os sentidos de masculino e feminino a partir dos atravessamentos de corpo e artefatos tecnológicos. Para a autora, somos todos ciborgues, híbridos simultaneamente teóricos e fabricados, constituídos de máquina e organismo. Entendidos como compostos, constituímos uma condensação de imaginação e materialidade do real. Em Haraway, os corpos são atravessados e remodelados por potentes tecnologias de comunicação e biotecnologias, que resultam na imposição de novas configurações de trocas sociais. Neste âmbito, pode se pensar em interfaces múltiplas como a aplicação de hormônios, inserção de microchips, suplementação alimentar, ou mesmo as interferências cirúrgicas, ou a colocação de próteses dentárias, nas genitálias, de silicone (nos mais diversos lugares do corpo) e, atualmente, inserção outras substâncias como preenchimento e remodelação facial com ácido hialurônico, dentre uma infinidade de procedimentos que produzem os corpos postos em relação no mundo.

Preciado (2018) amplia essa noção de interface e, ao pensar especificamente sobre as masculinidades, afirma que os códigos semióticos-técnicos que as configuram consistem em uma rede de referências, práticas, comportamentos vinculados ao que se comunga como masculino, que, mais do que indícios de uma identidade partilhada, funcionam como uma espécie de conjunto prescritivo produtor dos sentidos que organizam e compõem o que se entende como tal. Se enunciar como homem e ser socialmente apreendido nesses termos, depende das negociações estabelecidas com o conjunto de condições e referências compartilhadas no universo simbólico do masculino.

Para Rita Laura Segato (2018), a masculinidade em sua condição de mandato, de status que se legitima entre pares, pode ser assumida como sinônimo de potência. Ou seja, ser reconhecido como homem entre seus pares depende da capacidade do sujeito de enunciar potência. Porém, ainda que as estruturas históricas de opressão confiram aos corpos a condição de corporeidades, (ou seja, como o corpo produzido e posto em relação com o mundo, emaranhado de sentidos), a rede simbólica que configura aquilo que entendemos como ser homem extrapola os limites da pele, sendo compostos por interfaces do organismo com artefatos mais ou menos materiais. A corporeidade pode ser associada à condição textual dos corpos inserido em seus múltiplos contextos socioculturais. O que quer dizer que o que entendemos como corpo textualizado só faz sentido quando é considerado a partir de suas múltiplas negociações sociais e de poder. Dessa maneira, os atravessamentos interseccionais estabelecem diferentes lugares de poder e privilégio para corpos distintos, de forma que gênero, raça, padrões de juventude e beleza são sim alvo de leituras sociais que determinam as possibilidades de existência e agência dos sujeitos.

Mas tais aspectos não são os únicos determinantes para a construção de sentidos de potência para si. Quando trazemos aqui nossa concepção metafórica de próteses de gênero (Gonçalves, 2021), convocamos os demais acoplamentos, mais ou menos materiais, capazes de atribuir aos corpos sentidos de potência. Tomando como articuladora da presente proposta a configuração simbólica de homem transformado por parte de Rodrigo Hilbert, fica evidente que para além de suas características localizadas no corpo que garantem condições de privilégio (homem branco, loiro, jovem, do sul do Brasil, dentro dos padrões normativos de beleza e virilidade), acionar lugares de exepcionalidade, na condição de homem heterossexual, com habilidades inesperadas como cozinhar, tricotar, construir objetos para a casa, brinquedos para os filhos, dentre outras várias, conferem a ele mais uma camada de potência. Ou seja, se ao considerarmos os padrões tradicionais de virilidade, artefatos como carros e outros bens financeiros, roupas, armas, podem operar como próteses de potência para alguns projetos de masculinidades (ou compensação daquilo que pode ser entendido como fragilidade), nos projetos de masculinidades que se dizem transformadas as próteses metafóricas são outras, mas possivelmente apontam para valores muito semelhantes.

Tendo em vista tal ampliação da rede que constitui nossas experiências como corpos generificados, assumimos a noção de prótese como aquilo que modifica o corpo organicamente, mas ampliamos também para pensar, em sua dimensão metafórica, nos mais diversos artefatos e tecnologias que são mais ou menos materiais, mas que são acionados na tentativa de compor certo projeto de sentido, a partir de uma gramática heteronormativa socialmente partilhada, que tenta determinar os elementos efetivos nessas propostas de sentido de masculinidades.

Não desconsideramos a perenidade de alguns valores historicamente vinculados a uma projeção de virilidade, como os projetos de poder (seja sexual, financeiro, físico, etc.), as relações de propriedade, o controle, a agressividade/força, a capacidade de liderança, dentre outras possíveis). Tais construções simbólicas seguem existindo, mas passam a dividir espaço com outras cosméticas de masculinidades, muitas delas em processos de negação de tais valores. Como explica Azpiazu Carballo (2017), muitas vezes, as atualizações das construções simbólicas de masculino, sempre em curso, são mais conectadas às formas do que à estrutura de constituição dos lugares de poder vinculados aos gêneros e suas condições sócio-históricas. O que quer dizer que em uma perspectiva historicamente patriarcal, mesmo que tenhamos observado consideráveis mudanças nas maneiras como os sentidos de masculinidades são oferecidos ao mundo, ainda são muito pequenas as reais alterações nas relações de poder que configuram os gêneros. Ou seja, alguns projetos de masculinidades se apresentam de maneiras cada vez mais palatáveis, o que faz com que os privilégios e jogos de poder se sofistiquem e sejam mais dificilmente percebidos como tais.

Tendo em vista tais considerações, a partir das textualidades que configuram Rodrigo Hilbert como a projeção de uma nova masculinidade exemplar, nos dedicamos a pensar sobre a composição desta rede textual, refletindo sobre a teia múltipla de elementos que compõe esses sentidos, sejam esses produzidos no próprio corpo (e, invariavelmente, produzindo esse corpo), sejam próteses, físicas ou metafóricas, mais ou menos acopladas à materialidade orgânica.

A desconstrução de Hilbert tem limite?

Novas masculinidades. Masculinidades transformadas. Homens desconstruídos. Todos esses termos apontam para propostas de masculinidades contemporâneas que têm como aspecto comum algum nível de contraponto aos projetos tradicionais de masculinidades e virilidade, um dos principais focos de crítica dos movimentos feministas. Se as reivindicações de novas propostas de masculinidades ganham fôlego no século XXI, no Brasil, a projeção midiática de Rodrigo Hilbert e seu programa de culinária Tempero de Família se estabelecem como um marco importante. Ainda que esse movimento de enunciação de si como homem desconstruído venha sendo reivindicado por diversos homens há décadas, conectados a diferentes temáticas (como a espiritualidade e o sagrado masculino, a paternidade afetiva, outras possibilidades de afetos entre homens), a partir da popularização do termo homão da porra, vinculado ao apresentador, e à ampliação deste assunto na conversação midiática, as masculinidades transformadas deixam de ser uma temática de certos nichos e passam a alcançar um debate público amplo.

A projeção de si como um homem desconstruído tem como ponto de partida a exibição, nas edições do programa, de uma série de habilidades já expostas neste artigo, que se diferenciam em algum grau do que é recorrentemente esperado dos parâmetros tradicionais de masculinidade. Práticas como cozinhar, fazer crochê e origami, ter habilidades domésticas, ser um pai supostamente ativo operam como próteses de gênero, atribuindo sentidos de potência e ele como homem e despertando a admiração de seus pares. Sobre esses últimos, fica explícito que aproveitando tal repercussão entre os outros homens, o Tempero de Família deixa de ser um programa exclusivamente de culinária, e, gradualmente, passa a explorar midiaticamente a construção simbólica do homão da porra, estreando em 2020 um quadro chamado Faça Você Mesmo, em que Hilbert exibe também seus conhecimentos de marcenaria e serralheria, construindo objetos diversos como cadeiras, descansos de panelas e churrasqueira.

Ainda que seja relevante constatar como atributos e construções simbólicas vinculados ao feminino operam como próteses de masculinidades, sendo capazes de atribuir a Hilbert tal status de excepcionalidade, nos parece importante aqui compreender também como tal configuração se organiza, e refletir sobre os limites das negociações do apresentador com essas referências, de maneira a não abandonar o pacto cis-heteronormativo.

Para além de certa noção de sensibilidade e cuidado com a família, recorrentemente presentes em suas narrativas, Hilbert passa a construir para si um equilíbrio perfeito entre habilidades associadas ao feminino e ao masculino. No quadro Faça Você Mesmo, exibido em abril de 2021[1], o apresentador ensina a construir prateleiras com tábuas de cozinha. Com uma trilha sonora de rock, a cena começa na cozinha, onde ele recolhe as tábuas e rapidamente se transfere para a oficina, onde é possível observar uma variedade de ferramentas e máquinas dignas de um ambiente profissional. Depois de exibir suas diferentes habilidades com ferro e madeira na construção da prateleira, ao final do vídeo, Hilbert leva o objeto para a cozinha e dispõe nele os temperos, vasos de planta e outros utensílios, encerrando a narrativa que oscila entre o homem desconstruído, que domina a cozinha como poucos, e o super viril, que sabe manusear diferentes ferramentas e instrumentos de marcenaria e serralheria, historicamente vinculados às masculinidades.

Por meio dessa coreografia entre referências que oscilam entre polos cis-heteronormativos, é possível perceber como a rede de sentidos que configura o projeto de masculinidade de Rodrigo Hilbert se organiza: articula elementos que conduzem a referencias tradicionais de masculinidades, capazes de assegurar que as práticas associadas ao trabalho doméstico e ao cuidado não coloquem em risco seu status como homem. As práticas de diversas naturezas que são simbolicamente associadas aos papeis de gênero femininos, como cozinhar, fazer crochê, cuidar dos filhos, são postas em intersecção com atos que ultrapassam as expectativas de práticas entendidas como masculinas e que se restringem a referenciais históricos de virilidade, como o trabalho de ferreiro, habilidades com ferramentas e construções em madeira. Essa parece ser a combinação de prestígio de Hilbert: um homem que coloca em prática elementos extremamente viris, contrabalanceando as atividades consideradas femininas.

Dessa maneira, a construção de Rodrigo Hilbert como modelo de masculinidade excepcional parte não apenas de práticas e habilidades consideradas inesperadas para os homens, mas principalmente de certos arranjos e combinações capazes de assegurar que tais construções simbólicas apontem para potência e não para rechaço. Queremos dizer que não é qualquer corporeidade que terá o mesmo prestígio ao realizar tais atividades, ou demonstrar essas habilidades. No caso de Hilbert, é possível identificar algumas práticas e construções simbólicas condicionantes desse sentido de potência. A heterossexualidade e a configuração familiar heteronormativa tradicional operam como fiadoras de tal projeto de masculinidade, de maneira que atividades tradicionalmente associadas ao feminino não sejam vistas como descredibilização de sua condição de macho. Ou seja, enquanto homens que se enunciam como homossexuais, ou que não se enquadram nos padrões de virilidade normativos podem ser vítimas de rechaço por tais práticas, Hilbert é exaltado. Nesse caminho, ser um homem que reproduz os padrões físicos, gestuais e simbólicos de virilidade também assegura que tais próteses operem como lugares de potência.

Tudo isso, somado à pouca recorrência de enunciações cotidianas de homens cumprindo tarefas domésticas, permite perceber que um dos calcanhares da vulnerabilidade social imposta às mulheres é apropriada simbolicamente por homens, como diferencial capaz de engendrar lugares especiais de atenção. Na rede simbólica contemporânea das masculinidades reivindicadas como transformadas, as habilidades domésticas e de cuidado enunciadas são pleitos de valorização social, pautadas na suposta ruptura desses com a estrutura de poder patriarcal, desde que seus lugares de pertencimentos às masculinidades estejam afiançados. O que não se percebe são indícios de qualquer mudança estrutural da construção de gênero a partir de tais enunciações, alterando, por exemplo, a compulsoriedade do trabalho doméstico para as mulheres como consequente da constituição natural dos corpos femininos. Pelo contrário, para que essas práticas tenham caráter simbólico de excepcionalidade por parte desses homens, é fundamental que a estrutura se mantenha. Portanto, o valor simbólico de homens como Rodrigo Hilbert como diferentes, a ponto de serem recompensados social e financeiramente por isso, depende diretamente da manutenção da divisão social do trabalho, que segue sobrecarregando as mulheres em distintos níveis.

No caso de Rodrigo Hilbert, se sua construção como homem digno de prestígio depende desse contexto doméstico e familiar para se sustentar, chama atenção que essa enunciação de si não ultrapasse os limites de discursos identitários e ignore possíveis interlocuções com falas e publicações de sua companheira. Nesse movimento analítico, nos interessa expandir a leitura sobre as enunciações de Rodrigo Hilbert como homem, considerando também o que diz Fernanda Lima, na tentativa de apreender possíveis fraturas e contradições do homão da porra, bem como acessar as estruturas de poder que sustentam tais construções. Ao considerar além do que ele tem a dizer sobre si, buscamos observar como outras camadas de sentido se estabelecem e como privilégios de gênero são mantidos. Uma das textualidades aqui convocadas consiste em uma publicação na rede social Instagram realizada por Fernanda Lima em setembro de 2021, iniciada com a frase "a difícil missão de ser mãe ou cuidadora nas madrugadas". Nesse texto, a apresentadora relata as angústias vivenciadas com a filha, então bebê, durante as noites. Ela conta que:

Essa noite ela fez algo que nunca tinha feito. Acordou chorando e seguiu por uns 10 minutos (que pareciam 45 minutos às 3h da manhã). Sem deixar que eu encostasse nela, muito brava, dizia que queria "passear na rua". Normalmente ela faz isso com o Rodrigo quando ele tenta dormir com ela, até ele não conseguir mais contê-la e me entregar a criança. Pois ontem pensei: o fim da linha é aqui pois eu não tenho para quem entregá-la. (Lima, Rio de Janeiro, 2021, Instagram: @fernandalima)

Dessa maneira, fica evidente que ainda que Rodrigo Hilbert receba o título público e midiático de homão da porra, segue sendo Fernanda Lima aquela sobrecarregada com as tarefas de cuidado noturnas. Ou seja, fica explícito o hiato entre sua enunciação midiática como um homem desconstruído e um compromisso com mudanças reais nas relações de poder, ainda que limitado ao âmbito de sua própria família.

Considerações finais

Ao refletir sobre a composição do projeto de masculinidade transformada engendrado por Hilbert, observamos quais são as próteses de potência acionadas como capazes de atribuir prestígio e admiração social, em especial entre seus pares, percebendo também quais são os limites das mudanças enunciadas. Na reflexão realizada, dá-se a ver de que maneira tal enunciação de desconstrução encontra lugares de segurança que desviam de riscos de rechaço social associados aos padrões heteronormativos. Hilbert aciona práticas e valores historicamente associadas ao feminino, reivindicando para si atributos como sensibilidade e cuidado como diferenciais em relação aos homens médios, ao mesmo tempo em quem aciona outras práticas simbolicamente associadas à virilidade como garantia do pertencimento à cis-heteronorma. Ou seja, as práticas e habilidades excepcionais de Hilbert se dão dentro de limites controlados da cis-heteronormatividade.

Por último, fica evidente também que ainda que o homão da porra se aproprie das habilidades domésticas e de cuidado como expertise, tal construção de si não resiste a movimentos de tensionamento com outras enunciações que compõem tal rede textual, como a postagem de Fernanda Lima denunciando seu processo exaustivo e solitário com a filha nas madrugadas.

Referências

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Notas

[1] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FtteHtdNeHI
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