Comunicação, Gêneros e Sexualidades
Recepção: 20 Dezembro 2022
Aprovação: 21 Junho 2023
Resumo: Paloma é o primeiro filme do cinema pernambucano que traz uma mulher transgênera como protagonista. Este artigo problematiza como são estabelecidos novos processos de subjetivação relacionados à transgeneridade a partir da contraconduta da personagem. Além de uma revisão bibliográfica sobre poder e gênero, a pesquisa analisa o discurso nas cenas em que se discute o tema. Considera-se, por fim, que Paloma contribui para novas formas de entender a transgeneridade.
Palavras-chave: Contraconduta, Transgeneridade, Paloma, Discurso, Subjetivação.
Abstract: Paloma is the first film of Pernambuco cinema that features a transgender woman as the protagonist. This article problematizes how new processes of subjectivation related to transgenderism are established based on the counter-conduct of the character. In addition to a bibliographic review on power and gender, the research analyzes the discourse in scenes where gender is discussed. Finally, it is considered that Paloma contributes to new ways of understanding transgenderism.
Keywords: Counter-conduct, Transgenderity, Paloma, Discourse, Subjectivation.
Resumen: Paloma es la primera película del cine pernambucano que tiene como protagonista a una mujer transgénero. Este artículo problematiza cómo se establecen nuevos procesos de subjetivación relacionados con la transgeneridad a partir de la contraconducta del personaje. Además de una revisión bibliográfica sobre poder y género, la investigación analiza el discurso en escenarios donde se habla de género. Finalmente, se considera que Palomacontribuye a nuevas formas de entender la transgeneridad.
Palabras clave: Contraconducta, Transgeneridad, Paloma, Discurso, Subjetivación.
Introdução
"Quem é que não precisa de um sonho, Zé?" (Paloma, 2022). Com essas palavras, Paloma, personagem principal que dá título ao filme, de 2022, dirigido por Marcelo Gomes, inspirado em uma história real, responde ao marido quando ouve dele a preocupação com os gastos para o casamento. A agricultora vive no município de Saloá, Agreste Meridional de Pernambuco, mora com o companheiro e uma filha, de sete anos, chamada Jenifer. É obstinada a ter um casamento na igreja. Ao longo de 1h 44 minutos de duração, o filme narra a saga de uma mulher transgênera, que, apesar de já ter seu direito ao casamento civil assegurado por lei, quer receber as bênçãos de Deus em uma cerimônia na Igreja Católica mesmo não sendo permitida. Em 2020, o papa revelou ser favorável à união civil de Lésbicas,
Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pan/Poli, Não-binárias e mais (LGBTQIAPN+), mas o Vaticano afirmou que não se estenderia ao ritual nas congregações, apenas na justiça (G1, 2020).
Mesmo assim, Paloma pede ao padre João, responsável por uma igreja da localidade, para casá-la e escuta um não como resposta. Envia uma carta ao papa, que responde com outra negativa. Depois disso, recebe um recado de João para buscar ajuda com o padre Francisco, fundador de uma igreja na qual o sonho da agricultora pode ser concretizado.
Com esse mote, a película, roteirizada por Marcelo Gomes, Armando Praça e Gustavo Campos, traz à tona uma discussão sobre transgeneridade. Não é o primeiro filme depois da retomada do cinema pernambucano, iniciada em 1996 com Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, que trata a questão. A Febre do Rato (2011), de Cláudio Assis, e Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda, também trouxeram personagens transgêneras. A diferença é que, em Paloma, há o protagonismo de uma mulher trans. O filme acompanha um movimento nacional que também traz protagonistas transgêneras a exemplo de Elvis & Madona (2010), de Marcelo Laffitti, Madalena (2021), de Madiano Marcheti, além de outras produções documentais como Meu Corpo é Político (2017), de Alice Riff, Divinas Divas (2017), de Leandra Leal.
Se, por muito tempo, o espaço midiático, destinado à população transgênera, estava associado à violência nos programas policiais e noticiários com emprego de linguagem pejorativa (Hartmann, 2014; Oliveira, 2018), ao riso nos programas de humor com desumanização (Ribeiro, 2021), observa-se, nos longas mencionados anteriormente, um movimento em abordar a temática a partir de uma perspectiva política, ressaltando os direitos desse grupo social. Esses discursos não surgiram sem que condições de emergência produzissem essas novas possibilidades de tematização. O avanço do movimento LGBTQIAPN+ tem papel importante nesse processo ao reivindicar o direito à voz e representatividade.
Nesse contexto, observa-se a expressão da resistência da população queer com potencial de mudança na compreensão da sociedade sobre a temática de gênero. Para Foucault (1999), as lutas e resistências são constituintes do poder e as subjetivações emergem dos conflitos deflagrados na arena social. Na fase genealógica, o autor se debruça sobre o estudo do poder enquanto elemento capaz de explicar como se produzem os saberes e como nos constituímos nessa relação. O autor considera que o poder se exerce em rede e não há como analisá-lo isoladamente, nas mãos de alguns. O público prioritário de um determinado mecanismo de poder não é alvo inerte e apenas consentidor. Esse mesmo público pode ser agente de mecanismos de poder, inclusive, contrários a essa forma de poder ao qual estão submetidos.
Paloma constitui uma experiência audiovisual que não se adequa às normas hegemônicas de gênero e sexualidade, operando como resposta às dominações. Diante disso, este artigo problematiza como são estabelecidos novos processos de subjetivação relacionados à transgeneridade a partir da contraconduta explorada a partir da personagem do filme.
Para isso, além de uma revisão bibliográfica sobre poder e gênero, é realizada uma análise de discurso com base nas teorias de Foucault (2007). As cenas foram acompanhadas, em diários de observação, com decupagem dos momentos em que se discute transgeneridade. Os diálogos em que o tema é abordado foram transcritos para compor a análise. A pesquisa realizada é qualitativa, uma vez que o filme foi analisado a partir dos dados coletados e descritos nos diários de observação. A partir do discurso, foram identificadas as subjetivações associadas à transgeneridade estabelecidas a partir do filme. Antes, no entanto, é preciso conhecer um pouco mais sobre o papel do cinema na produção de subjetivações.
O discurso cinematográfico como tecnologia de gênero e produtor de subjetivações
O cinema pernambucano, de acordo com a pesquisadora Katia Kreutz, tem suas origens em meados de 1920 no chamado Ciclo do Recife em um movimento de incentivo à produção cinematográfica nacional nas principais cidades brasileiras com a criação de salas de exibição e o surgimento de revistas especializadas (Kreutz, 2019). Em 1930 e 1940, a produção em Pernambuco está associada à propaganda política. Nas décadas seguintes, a concorrência com os filmes norte-americanos e o custo de produção com o cinema sonoro dificultaram a realização de longas na região. A popularização dos filmes em Super-8 favoreceu mais uma vez um novo ciclo na filmografia pernambucana com curtas-metragens.
A retomada do cinema pernambucano se dá após o governo de Fernando Collor e, a partir dos anos 2000, Pernambuco se tornou um dos polos produtores de cinema mais relevantes do país (Kreutz, 2019). A tematização de gênero surge como tônica de algumas produções, citadas anteriormente, e ganha espaço de destaque em Paloma com a história de uma mulher transgênera.
Essas produções cinematográficas, quando discutem o assunto, atuam como tecnologias de gênero, segundo os postulados de Teresa de Lauretis (1994). Para a autora:
[...] a construção do gênero ocorre hoje através das várias tecnologias do gênero (p. ex., o cinema) e discursos institucionais (p. ex., a teoria) com poder de controlar o campo do significado social e assim produzir, promover e “implantar” representações de gênero (p. 228).
O conceito assemelha-se ao de dispositivo desenvolvido por Foucault (2001) para quem a regência das atividades da população é realizada a partir da estruturação desses dispositivos.
Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (Foucault, 2001, p. 138).
Deleuze (1990), a partir de uma análise mais ampla do pensamento de Foucault, considera que o dispositivo é um conceito operatório multilinear, que está baseado em três eixos: saber, poder e subjetivação. O autor afirma que os dispositivos são máquinas de fazer ver e fazer falar.
é necessário distinguir, em todo o dispositivo, o que somos (o que não seremos mais), e aquilo que somos em devir: a parte da história e a parte do atual. A história é o arquivo, é a configuração do que somos e deixamos de ser, enquanto o atual é o esboço daquilo em que vamos nos tornando (Deleuze, 1990, p. 160).
Assim, a ideia de dispositivo aproxima-se da noção de modos de existência. Agamben (2009) é outro autor que se debruça sobre o conceito. Para ele, Foucault emprega o termo para compreender “o conjunto das instituições, dos processos de subjetivação e das regras que se concretizam nas relações de poder” (p. 32). O dispositivo é qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes (Agamben, 2009, p. 40). É justamente a partir disso que se torna possível identificar o que reúne as definições de cada um dos autores para o conceito de dispositivo: processo de subjetivação. Os meios de comunicação operam regendo seu público e promovendo processos de subjetivação.
O cinema constitui um lugar de formação, assim como escola, família e instituições religiosas. Dessa forma, também tem participação decisiva na formação das pessoas a partir do discurso que é explorado na narrativa. Os processos pelos quais a identidade dos sujeitos se constrói ocorrem no interior da linguagem e do discurso (Foucault, 2007). Sendo assim, considera-se que são os discursos dos filmes com foco em gênero e sexualidade a partir de uma perspectiva de direitos da população LGBTQIAPN+ que ensejam as subjetivações. O cinema queer/cuir, com suas imagens plurais, traz à tona uma democracia real de sujeitos e corpos, atuando como tecnologia de gênero. “Através do cinema, tentou se mostrar, na realidade, um orgulho de suas próprias imagens desviantes de uma norma majoritária e justamente por isso, particular, original e bela” (Lopes; Nagime, 2015, p.14).
O discurso, para Foucault (2007), constitui uma rede de enunciados e de relações que tornam possível o sentido. Trata-se de um conjunto de enunciados que provém de um mesmo sistema de formação. É por isso que, para ele, pode-se falar em discurso econômico, discurso psiquiátrico, por exemplo. E são justamente essas recorrências na enunciação sobre transgeneridade que serão analisadas na próxima seção.
Contraconduta de gênero e o estabelecimento de novas subjetivações em Paloma
A recorrência enunciativa em Paloma que contribui para novas subjetivações é o investimento em contraconduta de gênero. Michel Foucault (2008), na observação do pastorado cristão, identifica resistências a essa modalidade de poder. O filósofo chama de contraconduta essas ações que dizem respeito às formas de ataque e de contra-ataque que se afirmaram nas disputas de poder. O conceito é pertinente para compreensão das práticas contemporâneas. "A contraconduta designa, portanto, o movimento nos jogos de poder capaz de criar outras possibilidades de ação, na medida em que recusa, não propriamente o governo, mas o modo como se é governado" (Costa, 2019, p. 68). As contracondutas, então, estabelecem táticas de enfrentamento às investidas de poder e ao seu desejo de governar.
O início de Paloma é revelador na abordagem da contraconduta de gênero. Começa com uma cena de sexo entre dois corpos que, à primeira vista, não correspondem a homens ou mulheres. Depois, revelam-se um corpo com aspectos masculino e outro feminino. Surge o nome do filme com close no rosto de Paloma. A sequência, no entanto, rompe com as expectativas sobre gênero. Paloma, ao tomar banho, vai mostrando seu corpo aos poucos. Aparecem os seios pequenos e o pênis. É a partir desse momento que há no filme uma dissociação com as compreensões de gênero e sexualidade hegemônicas.
Butler pensa a questão de gênero para além do binarismo macho/fêmea, avançando para corpos que fogem a essa regra. Seguindo as ideias de Foucault (2009), a autora rompe com a ideia da naturalidade do sexo e do gênero, atribuindo à questão uma perspectiva discursiva. Ela considera que gênero não é algo que somos, mas algo que fazemos. Não é algo que se “deduz” de um corpo. Butler (2016a) propõe pensar o gênero como algo fluido, socialmente construído, performado, como um "efeito".
Dessa forma, ela aponta como a heterossexualidade obrigatória e reprodutora materializou nos corpos modos de ser masculinos e femininos. E, com isso, não se quer dizer que as pessoas ligadas ao binarismo estão erradas. São fruto justamente dessas tecnologias de gênero que engendraram seus modos de ser. Há, entretanto, possibilidades de subversão a esse modelo, as que produzem descontinuidades e dissonâncias em relação a sexo, gênero e desejo.
Preciado (2020) propõe, então, algo que está presente no discurso de Paloma. "O que é preciso defender é o direito de todo corpo – independentemente de sua idade, de seus órgãos sexuais ou genitais, de seus fluidos reprodutivos e de seus órgãos gestacionais – à autodeterminação de gênero e sexual" (p. 73).
Paloma sabe quem é. Diz que nasceu homem, seguindo a determinação de gênero ligado a sexo, mas se considera mulher. Ao não se identificar com o gênero ao qual foi designada ao nascer, a protagonista lança uma discussão sobre sua condição e isso produz, na audiência, modos de se compreender o assunto. O filme revela a dificuldade em afirmar isso diante de uma sociedade conservadora. Em uma cena no clube da cidade, sua filha, que estava acompanhada pela protagonista e pelo marido, é proibida de brincar com outra criança diante do que duas mulheres chamam de "pessoal esquisito". "A gente devia falar com o proprietário para não deixar pessoas assim aqui", diz uma delas (Paloma, 2022). "Gente como tu", "pessoal esquisito" e "pessoas assim" são termos utilizados para marginalizar Paloma.
Na rua, é vítima de críticas negativas em três momentos distintos ao longo da exibição de sua história. No primeiro, ouve-se apenas um: "Olha, olha, é essa daí" (Paloma, 2022). O filme não precisa dizer que estão se referindo ao fato de ser uma mulher transgênera. Fica evidente pela entonação empregada. É também discriminada quando está com a amiga, também transgênera Kelly, em um bar. Paloma ainda pede para ir embora, mas a cena acaba com a morte de Kelly após espancamento. Em outro momento, é vítima de preconceito no ponto de ônibus. "Olha, olha! Tá vendo? Ali ó: o travesti que casou de noiva. Tu num visse na TV não? Desonrou o nome da cidade" (Paloma, 2022). O artigo acompanhando o termo travesti no masculino não se adequa ao gênero com o qual a pessoa travesti se identifica. É usado com o intuito de desumanizar, de fortalecer o discurso vigente de naturalização entre genitália e gênero.
Conceitualmente, as pessoas que se definem como homens ou mulheres e se identificam com o gênero que foram designados ao nascer, a partir de critérios biológicos, são consideradas cisgêneras, ou cis. Diante das subversões a esse modelo, surge a noção de transgeneridade, que está relacionada a pessoas cuja identidade de gênero é diferente daquela atribuída no nascimento.
A transgeneridade congrega pessoas transexuais e também travestis. Há, no entanto, dificuldade em diferenciar pessoas transexuais e travestis. Barbosa (2010) considera não ser possível usar essas categorias estritamente por meio de aspectos relacionados a gênero e sexualidade. Para o autor, é necessário entender variantes como diferenças de classe, cor/raça e geração. Nota-se uma disputa simbólica e política, então, no uso dessas nomenclaturas.
Sem teorizar sobre essas questões, o filme, a partir do discurso, contribui para uma perspectiva de reconhecimento de identidades que extrapolam os limites biológicos, como é o caso de Paloma que é mulher mesmo com uma genitália que contraria a Biologia. Jesus (2021) compartilha com Butler a noção de que o primado do sexo biológico não se impõe sobre o gênero. "[...] é central reconhecer que o ideal normativo do sexo é incapaz de explicar a pluralidade de identidades de gênero identificadas ao longo da História da humanidade: a transpluralidade desafia a cisnorma (p. 25)".
Esse desafio, no entanto, não é simples. O Brasil é, por exemplo, o país que mais mata pessoas trans no mundo (Pinheiro, 2022). No filme, em mais um assédio na rua, há uma tentativa de atropelar Paloma. Quando perguntada, por uma amiga, se denunciou à polícia, Paloma responde: "Pra que, Maria, pra não dar em nada?" (Paloma, 2022).
Podemos entender, então, que uma das variáveis que estabelece subjetivação em Paloma é sua narrativa que trata de identidades dissonantes daquelas constituídas pela cultura heteronormativa. Ao dar visibilidade a sujeitos marginalizados, o filme propõe uma ressignificação do olhar para com o outro, causando um dissenso com o binarismo de gênero e as imposições sociais sobre corpos sexuais.
O processo de invisibilização sobre qual esses corpos dissidentes são atravessados pode ser entendido em diálogo com o que Judith Butler (2016b) definiu como “vidas precárias”.
A condição precária também caracteriza a condição politicamente induzida de maximização da precariedade para populações expostas à violência arbitrária do Estado que com frequência não têm opção a não ser recorrer ao próprio Estado contra o qual precisam de proteção. Em outras palavras, elas recorrem ao Estado em busca de proteção, mas o Estado é precisamente aquilo de que elas precisam ser protegidas. Estar protegido da violência do Estado-Nação é estar exposto à violência exercida pelo Estado-Nação; assim, depender do Estado-Nação para a proteção contra violência significa precisamente trocar uma violência potencial por outra (Butler, 2016b, p. 46-47).
Por conseguinte, o Estado é a instância responsável pela promoção de políticas públicas que garantam a manutenção da vida das populações LGBTQIAPN+, mas também é atribuída a ele a preservação do discurso da normalidade heteronormativa. Subjugados e precarizados pelas instâncias culturais hegemônicas, esses sujeitos são obrigados a produzirem seus próprios mecanismos de defesa e resistência. É o caso de Paloma, que não busca ajuda policial porque considera que não será socorrida. Butler (2016b) sugere que
[..] a precariedade é, talvez, obviamente, relacionada diretamente a normas de gênero, uma vez que sabemos que aquelas pessoas que não vivem seus gêneros de maneiras inteligíveis estão em risco acentuado de assédio, patologização e violência” (p. 35).
A despeito de estarem expostos às violências estatais e sociais, a autora ainda ressalta que a compreensão da precariedade e o mostrar-se precário é um ato de resistência diante do jogo de poderes.
O contraponto do diretor é mostrar que, apesar da dissimetria ao qual a sua protagonista está submetida, a personagem nutre um sonho tão comum a tantas pessoas: o desejo de se casar na igreja. Há resistência, em Paloma, quando, por exemplo, a protagonista insiste em realizar o seu sonho mesmo com o consenso de que isso não é possível em uma igreja. Enquanto faz um penteado em uma noiva, amiga de infância, e relembram o sonho que tinham mais novas em se casar, a protagonista ouve que colocar o nome na cauda do vestido da noiva faz com que a pessoa se case. Decidida, Paloma pede para que a amiga coloque o dela e escuta: "É o que, Paloma? Tu? Casar? E na igreja? Sei não, viu. Humpf. Ai, meu Deus!" (Paloma, 2022), suspira a amiga rindo, enquanto a câmera mostra a expressão de tristeza de Paloma. Em outra cena do filme, Paloma, conversando com uma amiga, fala sobre o seu desejo de se casar.
Paloma: Aquele padre ficava me olhando no olho. Ele dizia tanta coisa bonita. Ele olhava pra mim e parecia que ele tava dizendo bem assim: "Paloma, tu tem que casar na igreja, mulher". Fiquei tão emocionada. E na hora do juramento? Ele me olhava e dizia: "O que Deus une, homem nenhum separa" (Paloma, 2022).
Mesmo sem contar com o apoio do marido Zé, Paloma decide conversar com o padre na igreja.
Paloma: Licença, seu padre.
Padre João: Ôi, Paloma, diga lá. Sente aí. O que traz você aqui? Fale!
Paloma: Seu padre, eu vi que o senhor trata muito bem as pessoas que vêm aqui na igreja do senhor. Todo mundo que eu conheço tem consideração pelo senhor e eu queria saber se o senhor pode fazer um casamento de graça.
Padre João: Claro que faço. Isso aqui é a casa de Deus. Não é comércio.
Paloma: A noiva sou eu, seu padre. Queria me casar na sua igreja. Queria receber as bênçãos de Deus pela mão do senhor.
Padre João: Pela lei natural de Deus, nós somos homens e mulheres e nos complementamos. Geramos nossos descendentes. A igreja decretou essa lei há mais de mil anos. Muita coisa mudou. O mundo mudou muito, mas a igreja não mudou. O seu pedido é sincero, mas, infelizmente, eu não posso mudar a lei. Eu não sou o papa. Somente o papa pode mudar essa lei (Paloma, 2022).
A negativa vem diante de vidas que escapam a esse quadro binário, macho/fêmea. São existências tidas como perigosas à sociedade. Butler (2016b, p. 28) afirma que são “[...] os enquadramentos que, efetivamente, decidem quais vidas serão reconhecíveis como vidas e quais não o serão devem circular a fim de estabelecer sua hegemonia”. Por conseguinte, os sujeitos são atravessados por normas sexuais de sexo e gênero que condicionam, a partir de um processo de repetição, corpos legíveis e corpos não legíveis, estes últimos são expostos a diferentes formas de violências sociais e institucionais. Entende-se por corpos legíveis aqueles que reproduzem as regras e padrões heteronormativos e binários: enquadramentos produzidos pelas instâncias e instituições de poder; igreja, Estado e ciência e reproduzidos pela cultura.
Portanto, as vidas que não correspondem a essas convenções heterocentradas e binárias de macho/fêmea têm seus corpos marcados e estigmatizados. Preciado (2014) cita três possibilidades de performances sexuais determinadas pela história: masculinas, femininas e perversas, esta última como representação dos corpos não binários. Ao renunciar as duas primeiras, esses sujeitos também renunciam às instâncias, sociais, jurídicas e econômicas de proteção e manutenção da vida, tendo suas vidas sistematicamente negligenciadas.
No caso de Paloma, sua proteção vem do céu. Religiosa, em diversos momentos do filme, ela demonstra sua fé. Reza com a filha o Santo Anjo antes de dormir, vai a Juazeiro acompanhar uma romaria e pedir para se casar e ora um pai nosso para pedir proteção após a morte de sua amiga Kelly, vítima de um ataque transfóbico. Acreditando que Deus cuida de sua vida, ela não desiste do casamento na igreja. Envia uma carta ao papa.
Paloma: Eu num sei nem por onde começar.
Kelly: Anda, vamo logo.
Paloma: Bota aí: Seu papa, meu nome é Paloma. Vivo e trabalho aqui em Saloá como agricultora e, às vezes, faço bico de cabeleireira.
Kelly: Calma, criatura. Vai com mais calma. Eu não sou máquina de escrever não.
Paloma: Vivo amigada com meu marido Zé. Com ele, crio a minha fia Jenifer, presente mais maravilhoso que Deus me deu. Nasci homem, mas sou mulher. Todo mundo aqui sabe disso. Já errei muito nessa vida, seu papa, mas, depois que eu conheci o Zé, eu vivo uma vida digna e decente como qualquer outra mulher. Me considero fia de Deus como qualquer outra pessoa. Já me batizei, fiz a primeira eucaristia, a crisma, agora só falta eu realizar o meu maior sonho que é casar na igreja e eu sei que só o senhor pode autorizar isso. É por isso que eu tô escrevendo esta carta: pra pedir que o senhor dê permissão ao padre João Manuel para que ele possa fazer o meu casamento e me tornar a mulher mais feliz do Sertão. Kelly: Eu nunca tinha imaginado escrever uma carta para um papa. Até eu me emocionei e tu vai te casar com tudo que tu tem direito pra tu mostrar pra essa gente aí que tu é uma mulher casada, que papa nenhum vai negar.
Paloma: E ai dele se disser não, né? (Paloma, 2022).
A resposta do papa chega pelo padre João.
Padre João: Infelizmente, o papa não autorizou o seu casamento. Eu não posso fazer nada. É o papa que orienta as obras de Deus aqui na Terra.
Paloma: Também sou obra de Deus, padre (Paloma, 2022).
"Vivo uma vida decente como qualquer outra mulher", "Me considero fia de Deus como qualquer outra pessoa" e "Também sou obra de Deus" são falas da protagonista que tentam marcar o caráter de normalidade em sua vida. Paloma defende a ideia de que é igual a qualquer outra pessoa. Em consonância com os estudos de Louro (2020), é a partir da metade do século XIX que as práticas sexuais desviantes ganham um contorno diferente. Elas deixaram de ser consideradas práticas exclusivamente sodomitas e pecaminosas e passam a delimitar um tipo de sujeito à margem da cultura heterotópica.
Não obstante esses corpos terem atravessado discurso cultural da sodomia e do pecado e obterem um reconhecimento enquanto indivíduos desviantes, para eles, foi demarcado um lugar de segregação e violência social e institucional. Os sujeitos desviantes das normas do poder heterotópico e binário não têm suas vidas reconhecidas, logo não podem nem ser consideradas precárias e, consequentemente, carentes de proteção, visto que a condição do reconhecimento da vida precede a condição da precariedade. Louro afirma que: “Ao longo dos tempos, os sujeitos vêm sendo indicados, classificados, ordenados, hierarquizados e definidos pela aparência de seus corpos; a partir de padrões e referências, das normas, valores e ideais da cultura” (Louro, 2020, p. 69). A subjetivação aqui proposta é sobre direitos. Sendo uma mulher, por que Paloma não pode se casar na igreja? Como dito anteriormente, a maioria das instituições religiosas não realizam cerimônias religiosas para pessoas transgêneras, mas há espaço hoje em movimentos religiosos progressistas em que o ritual é possível.
No filme, o padre João envia um recado para Paloma por meio de uma criança. "O padre Luiz Gonzaga vai realizar o seu sonho, procure ele no Sítio Estrela". Paloma vai ao encontro do religioso.
Paloma: O senhor é padre mesmo, né?
Padre Luiz: O voto que eu fiz ninguém desmancha [...] Minha ligação é com Cristo. Nós criamos a Igreja Nova do Sertão, onde todos são bem-vindos, onde todos são iguais, mas me diga no que é que eu posso lhe ajudar?
Paloma: Eu queria que o senhor me casasse com meu Zé.
Padre Luiz: Pois vá chamá-lo e traga as alianças para eu benzer que esse casamento vai acontecer agora, viu.
Paloma: Oxe, padre, quero me casar no meio do mato não, quero me casar na minha Saloá.
Padre Luiz: Mas lá não vai ter nenhuma paróquia que possa nos receber. Você entende isso?
Paloma: E se eu arrumar o lugar?
Mulher: Mesmo assim é longe. Como é que a gente vai levar o altar todo, os santos? Vai custar caro isso (Paloma, 2022).
O "você entende isso", dito pelo padre Luiz, ressalta que as normas da Igreja Católica não autorizam a realização do casamento, mas ele, enquanto representante de Deus, poderia fazer o casamento em outro lugar. Obstinada em ter seu direito assegurado, Paloma aceita. Antes do casamento de Paloma, há o ataque transfóbico contra Kelly. Zé, na reunião que as amigas fazem para lembrar da colega que faleceu, pergunta: "E tu quer casar ainda assim é, Paloma?". E ouve como resposta: "Agora é que eu vou casar mesmo e aí Kelly vai estar lá comigo" (Paloma, 2022). Há um discurso que prioriza o cuidado de si, que, para Foucault (2010), implica uma conversão do olhar, quando é preciso converter o olhar, do exterior, dos outros, do mundo etc. para "si mesmo". Quando nem Estado, nem Igreja garantem a proteção necessária, para os dissidentes, resta a resistência e a reivindicação por seus direitos. A contraconduta aqui estabelece uma subjetivação com foco na insurgência de grupos marginalizados para conquista de direitos. Com toda estratégia de poder para silenciar a população transgênera, Paloma não promove uma mera repetição de sofrimentos, destacando a saga da protagonista para concretizar seu sonho desde as ações mais de protesto, como a carta para o papa, até a singela inscrição de seu nome na barra do vestido de uma noiva.
Depois do casamento concretizado, durante o café da manhã da pousada em que estão hospedados em lua de mel, Zé e Paloma assistem a um telejornal. Eles ouvem:
A pequena cidade de Saloá, no interior de Pernambuco, acordou assustada com a notícia que correu o mundo: o casamento da travesti Paloma Lima com o pedreiro Zé Cícero. Os dois se casaram em uma cerimônia católica com direito a vestido branco, véu e grinalda. Saloá está revoltada por estar sendo conhecida como a cidade dos travestis (Paloma, 2022).
Na reportagem, ouve-se um morador dizendo: "Isso é o fim do mundo. Como é que pode uma coisa dessa, sei não, viu?" (Paloma, 2022). Depois, outro morador fala: "Em todo canto que eu vou, só se fala dessa travesti, dessa Paloma. Isso é uma esculhambação com o nome da nossa cidade" (Paloma, 2022). Depois de assistirem à reportagem, Paloma chama Zé para a praia, mas é culpada pelo marido por tudo que está acontecendo.
Zé: Você acha que eu vou ficar servindo de chacota?
Paloma: O que, Zé? Chacota? Tu acha que eu sou uma chacota é, Zé? Isso é que tu tá dizendo? Que a tua mulher é uma chacota? Que tu prefere ficar do lado dos teus amigos, um bando de viado encubado?
É isso que tu tá dizendo é, Zé?
Zé: Acorda, Paloma! Em que mundo é que tu vive?
Paloma: O que Deus une, homem nenhum separa, viu. Agora, se tu prefere ficar dando ouvido pra essas pessoas aí, pra opinião dos outros, ao invés de ficar do lado da tua mulher, de quem te ama, pegue o beco viu. Vá embora, frouxo.
Zé: Sou frouxo mesmo.
Paloma: Vai te lascar, vai tomar no cu, tu, tua mãe, teus amigos, tudo. Vão tudo pro quinto dos infernos, viu, que lá é lugar de gente como vocês que não aceita o jeito das pessoas de ser.
Zé: Taí o que tu queria. Estragasse foi tudo [joga o anel na mesa]
Paloma: Vai te lascar, viado encubado. Dá o teu cu (Paloma, 2022).
"Vão tudo pro quinto dos infernos, viu, que lá é lugar de gente como vocês que não aceita o jeito das pessoas de ser" (Paloma, 2022). Quando ela diz isso, depois de ser abandonada pelo marido, recorre, mais uma vez, a sua fé. O julgamento do alto é que vai colocar quem não a aceita no lugar correto. É um convite também para o espectador que decidirá se está contra ou a favor dela.
Considerações Finais
De acordo com Preciado (2020), o cinema funciona como uma tecnologia do sexo e da sexualidade, produzindo as diferenças sexuais e de sexualidade que pretende representar. Paloma ocupa esse lugar na filmografia do cinema pernambucano e também nacional. A produção de Marcelo Gomes explora a subversão de gênero a partir de sua protagonista em uma sociedade que limita a compreensão sobre o tema.
Ao discutir esse assunto, o filme desperta processos de subjetivação voltados para novos entendimentos sobre gênero e direitos da população LGBTQIAPN+. O foco na contraconduta de gênero da protagonista serve como combate à heterossexualidade normativa e ao enclausuramento identitário (Duarte, 2016). A contraconduta tem conotação positiva porque traz consigo a possibilidade de o sujeito conduzir a si mesmo em meio ao governo exercido por outros. Paloma, à revelia do lugar em que mora, que se sente desonrado com a sua existência, do Estado, que não a protege, da Igreja, que não lhe assegura direitos, parte em busca da concretização de seu sonho.
Foucault (2008) identifica no gesto da contraconduta uma decisão do sujeito em recusar certas formas de governo. É uma conduta, um cuidado de si, contra interferências externas com efeitos políticos não hegemônicos. Paloma traz um "movimento que mobiliza as práticas para criar outras possibilidades de agir no mundo, a partir da interpelação das práticas de poder que tendem ao excesso de governo" (Costa, 2019, p. 69). E, dessa maneira, é preciso que a transgeneridade possa ser abordada com protagonismo em outros filmes para que mais espectadores possam construir subjetivações que reconheçam e garantam os direitos das pessoas trans.
Referências
Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Argos.
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