Comunicação, Gêneros e Sexualidades

Usos da linguagem neutra na comunicação de pessoas trans: um estudo exploratório

Ariel Borasio Giagio
Faculdade Cásper Líbero, Brasil
Luís Mauro Sá Martino
Faculdade Cásper Líbero, Brasil

Esferas

Universidade Católica de Brasília, Brasil

ISSN-e: 2446-6190

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 1, núm. 27, 2023

revesferas@gmail.com

Recepção: 29 Dezembro 2021

Aprovação: 23 Junho 2022



DOI: https://doi.org/10.31501/esf.v1i27.14323

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Resumo: Este artigo estuda o uso da linguagem neutra na comunicação de pessoas trans ou não-binárias, buscando compreender algumas das condições e situações de seu uso. A partir de entrevistas com esses falantes, observou-se que (1) a linguagem neutra fundamenta a definição da autoimagem; (2) espaços transcentrados são exceções de acolhida para essa fala que, por sua vez, (3) estabelece um forte vínculo comunitário. Esses pontos são discutidos a partir das ideias de Foucault sobre gênero e discurso.

Palavras-chave: Comunicação, Linguagem Neutra, Não-binariedade, Gênero.

Abstract: This paper studies gender-neutral language use by trans or non-binary people, in everyday communication, in order to outline the conditions related to it. Grounded on nine interviews, it suggests that (1) neutral language defines self-image; (2) trans-centered spaces are the welcoming place to neutral language; (3) gender-neutral communication establishes a strong community tie. These finds are framed on Foucault’s ideas on gender and discourse. Keywords: Communication. Neutral Language. Non-binarity; Gender.

Keywords: Communication, Neutral Language, Non, Non-binarity, Gender.

Resumen: Este artículo estudia el uso del lenguaje neutro en la comunicación de personas trans o no binarias, buscando comprender las condiciones y situaciones de su uso. A partir de entrevistas con estos hablantes, se observó que (1) el lenguaje neutral subyace a la definición de autoimagen; (2) los espacios transcentrados son excepciones bienvenidas para este discurso que, a su vez, (3) establece un fuerte vínculo comunitario. Estos puntos se discuten a partir de las ideas de Foucault sobre el género y el discurso.

Palabras clave: Comunicación, Linguage Neutra, No-binariedad, Genero.

Introdução

A emergência representacional de formas de vida e modalidades de existência heterotópicas, no sentido dado a essa ideia por Foucault (1988), vem sugerindo uma crescente e imbricada relação entre a afirmação da existência de corpos não-hegemônicos progressivamente mais visíveis e presentes no espaço público e a elaboração de discursos próprios, dentro de uma trama de identidades na qual a afirmação de si encontra resistências em proporção semelhante, como sugere a bibliografia sobre o tema (Flanigan, 2013; Bailey; Kelly, 2015; Erdocia, 2022). Nesse contexto, observa-se a progressiva construção de uma agenda de pesquisa relacionada às identidades trans e não-binárias, relacionada a aspectos corporais, discursivos e políticos (Petry; Meyer, 2011; Cannone, 2019; Silva et alli, 2020; Paniza; Moresco, 2022; Righetto, 2022; Costa; Rosa; Fontanari, 2022; Boffi; Guijarro-Rodrigues, 2022).

A observação, mesmo inicial e assistemática, dessa bibliografia, permite notar tanto seu aspecto de deriva e trânsito entre disciplinas quanto sua distribuição temporal concentrada a partir de 2020, como é possível notar nas datas das referências. Cobrindo campos distintos, da Administração à Psicologia, passando por estudos de Comunicação, essa variedade sugere a existência de tentativas de aproximação com um tema interseccional e interdisciplinar referente à constituição de sujeitos trans e não-binários.

Nesse cenário, a problemática relativa ao uso da chamada “linguagem neutra”, às vezes utilizada de maneira intercambiada com “linguagem não-binária” ou “linguagem inclusiva” parece vir, aos poucos, se afirmando como um tema de interesse (Martinez-Guzmán; Iñiguez-Rueda, 2017; Brown; Cheek, 2017; Vacarezza, 2018; Seidel, 2021).

Enquanto fenômeno metadiscursivo, a utilização de linguagens neutras ou não-binárias parece se inscrever no âmbito de uma discussão mais ampla, em particular, às críticas à chamada “ideologia de gênero”, contra a qual determinados grupos concentram forças. Se, de um lado, seria quase um truísmo indicar as características políticas da linguagem enquanto constituinte de qualquer formação discursiva, por outro lado talvez seja importante observar o quanto a discussão sobre pronomes e declinações “neutras” – expressão, por si só, discutível – vem ganhando espaços institucionais e midiáticos.

O uso da palavra “neutra” para adjetivar linguagem pode partir da premissa da polaridade suposta entre os dois gêneros. Se homem e mulher existem em dois extremos, o meio seria neutro – e, de certo modo, seria necessário colocar quase todos esses termos entre aspas, como maneira de indicar algo de flutuante em seus sentidos. Ao mesmo tempo, essa linguagem se apresenta como uma tentativa de questionar visões valorativas hierárquicas a respeito de gênero, em que um seria positivo e o outro negativo.

O movimento que incentiva a substituição de “alunos” por “alunos e alunas”, questionando a flexão masculina como a universal também faz parte da construção da linguagem neutra. Somado a isso, faz-se substituição de termos por seus sinônimos não-generificantes. Veja-se, por exemplo, no trabalho a partir de propostas como as de Cassiano (2019), um esforço pela substituição de “homens e mulheres” para “pessoas”, ‘alunos e alunas” para “estudantes” e “professores e professoras” para “corpo docente”. Nesse mesmo aspecto, há omissão de artigos definidos e prioriza-se voz passiva e a redução de adjetivos em favor de verbos, por exemplo, transformando "Você está animada?" para "Você se animou?".

Se o aspecto macro vem sendo objeto de maior interesse, a dimensão comunicacional da linguagem neutra não parece ter recebido a mesma atenção – não só no caso brasileiro, como se nota a partir de Pauwels e Winter (2006), Flanigan (2013), Bertoša e Pišković (2018), Shajan (2018), Lo e MacDonald (2021) ou Burnett e Pozniak (2021).

O que significa, no tecido das relações comunicacionais interpessoais, a utilização de linguagens neutras e/ou não-binárias? A linguagem, lembram Pelinka (2007) ou Morita (2009), é um poderoso elemento na construção política da identidade de pessoas e grupos, bem como da criação de vínculos e definição das fronteiras com a alteridade. “O ser humano é um ser de linguagem, logo, a forma que a comunicação se dá é efeito da nossa cultura e também age na constituição subjetiva. Importa pensar na disseminação do termo trans, enquanto o cis é desconhecido”, indica Cannone (2019, p. 23).

A utilização cotidiana de linguagens neutras ou não-binárias se conecta aos grupos sociais de onde emergem enquanto marcador de diferença, não apenas no aspecto específico dos proferimentos linguísticos, mas também como forma de autorrepresentação e de se estabelecer quando um ser em relação com os outros (Lomotey, 2015; Shotwell; Sheng, 2021).

Moscheta et alli (2016, p. 518) assinalam que os estudos sobre pessoas e comunidades trans raramente se debruçam sobre as “estratégias interventivas dedicadas a fazer frente aos danos decorrentes da desigualdade, opressão e discriminação de pessoas LGBTs”. Por isso mesmo, não está no foco aqui a discussão sobre os termos “transgênero” ou “pessoas trans”, remetendo-se para Souza e Carrieri (2010), Silva et alli (2020), Alós (2021) ou Righetto (2022). Do mesmo modo, não se entrará aqui na discussão propriamente gramatical ou linguística a respeito do tema, sua validade histórica ou semântica. Como recorda Bagno (2007, p. 46), “toda variedade linguística atende às necessidades da comunidade de seres humanos que a emprega”.

Este artigo é uma abordagem exploratória sobre os usos da linguagem de gênero neutro por pessoas autoidentificadas como transgênero ou não-binárias. O objetivo é delinear algumas relações entre essa forma de comunicação e questões identitárias, na trilha de Martino (2010), ressaltando as possibilidades de uso da linguagem como afirmação política e de representatividade no espaço democrático, como recordam Moscheta et alli (2016).

Em outros termos, busca-se conhecer a comunicação via linguagem neutra no dia a dia de seus falantes como estratégia de autodeterminação e autonomia. Destaca-se as condições em que isso acontece e, mais ainda, suas dimensões comunicacionais enquanto constitutivas de sujeitos em relação com o mundo que, a partir dessa relação com a linguagem, se afirmam como protagonistas – na medida em que encontram, igualmente, resistências.

Um problema metodológico se impunha de saída: como compreender seu uso em situações de comunicação, definida, seguindo Braga (2010), como a tentativa de interação, mediada ou não, entre pessoas? Uma saída poderia ser, na tradição dos estudos etnográficos, acompanhar as interações nas práticas cotidianas de comunicação. Isso poderia trazer uma riqueza de detalhes da observação, fornecendo um panorama da questão. No entanto, o momento de realização da pesquisa, início de 2022, ainda não permitia isso na medida em que se estava saindo, aos poucos, do isolamento relacionado à pandemia de Covid-19.

Como possibilidade, optou-se ouvir o relato de pessoas trans sobre o uso de linguagens neutras e/ou não-binárias em suas interações cotidianas a partir de entrevistas conduzidas por uma das autorias deste texto. Foram feitas nove entrevistas, oito online e uma presencial, com pessoas não-binárias entre abril e junho de 2022. Assim como no caso de Moscheta et alli (2016), uma estratégia para encontrar as pessoas entrevistadas foi a rede pessoal e profissional de contatos de uma das autorias da pesquisa, mantendo-se a perspectiva de que a sensibilidade do tema demandava um contato prévio mais próximo.

As entrevistas foram semi-estruturadas, na medida em que essa possibilidade combina um roteiro previamente estabelecido com a abertura para a fala das pessoas entrevistadas – moradoras da cidade de São Paulo, entre 20 e 38 anos, que usam linguagem neutra no seu dia-a-dia. Seis tinham ensino superior completo e três eram graduandas. Apenas uma se identificou como negra.

Dados os limites de espaço de um artigo, informações biográficas e de contexto, se mencionadas, precisaram ser reduzidas ao mínimo. Entende-se, como princípio metodológico da entrevista, a partir de Szymanski (2008), que a fala de cada pessoa implica autoridade sobre sua própria identidade, bem como na exposição de sua trajetória – no caso, em relação à linguagem neutra, desde os primeiros contatos até as condições de uso em determinados ambientes. Narrativas pessoais, lembra Critelli (2012), passam pelas escolhas de linguagem. Foram, assim, mantidos os nomes que as pessoas, informadas e de acordo com a realização da pesquisa, forneceram.

As entrevistas foram transcritas e, a partir disso, procedeu-se a uma análise temática, identificando pontos comuns e particularidades, assinaladas pelas pessoas entrevistadas. Isso permitiu chegar a três temas, ao redor dos quais este texto se organiza, após (1) uma breve contextualização teórica; (2) a escolha e utilização de pronomes não-binários e condições de seu uso; (3) os espaços de uso e a formação de laços comunitários entre pessoas não-binárias e (4) aspectos da não-binariedade expressos para além do discurso.

Em termos teóricos, o texto se organiza sobre alguns pressupostos de Foucault (1988), sem intenção exegética ou explicativa, mas como suporte para a compreensão das falas. Foram buscados também estudos sobre identidades trans. Optou-se por intercalar trechos representativos das entrevistas com as referências consideradas pertinentes à sua compreensão.

Linguagem e sexualidade: aproximações com o neutro

No primeiro volume de sua História da Sexualidade, Foucault (1988) estuda os modos como a linguagem, a partir das formas de elaboração de silenciamentos, autocensura e de produção de discursos com contextos e vieses específicos, tem um lugar importante na construção da repressão sexual no âmbito da burguesia a partir do século XVII. O autor aponta que a linguagem atua como mecanismo de conservação de ideias, especialmente as que mantêm as normas vigentes. Em termos contemporâneos, isso pode ser verificado, por exemplo, na prevalência de transfobia e na dificuldade de aceitação de pessoas não-binárias em situações cotidianas, vistas, nas representações mais comuns do imaginário social, como existências abjetas, conceito de Kristeva trabalhado por Oliveira (2020).

Foucault (1988) mostra como, discursivamente, a sexualidade é construída para ser invisível e imperceptível. Isso também se aplica ao gênero. Em geral, a expressão de gênero masculina e feminina devem, tradicionalmente, dizer respeito à biologia da pessoa e seu gênero deve ser facilmente identificado por interlocutores. Gênero, aponta Vergueiro (2015), é uma ferramenta de inteligibilidade e de tratamento interpessoal que, com uso prolongado, se tornou invisível na linguagem do dia-a-dia.

Logo, ao se falar tomando a transgeneridade como ponto de vista, usando pronomes como “elu” e “ile”, quebra-se a fluidez sócio-normativa da discursividade – o falante precisa pedir para seu uso ser respeitado pelos outros.

A expressão de não-binariedade, seja visualmente ou pelo uso da linguagem neutra, torna aparente a arbitrariedade das normas de gênero e força quem interage com pessoas não-binárias a questionar saberes cristalizados.

Observa-se, a partir de Foucault, que o silenciamento de um tema não se dá necessariamente a partir da proibição de sua expressão, mas também dentro de um ordenamento disciplinar (1988, p. 27) estabelece que não é o silêncio, mas o modo como se fala sobre algo que cimenta um entendimento sobre o tema:

Censura sobre o sexo? Pelo contrário, constituiu-se uma aparelhagem para produzir discursos sobre o sexo, cada vez mais discursos, susceptíveis de funcionar e de serem efeito de sua própria economia (Foucault, 1988, p. 27).

No caso das questões de gênero, observa-se isso em sua discussão a partir de discursos médicos e jurídicos. Nesses contextos, parece se organizar a partir de uma perspectiva de modo cisgênero e binário, mas ocultando sua arbitrariedade, fluidez e seu horizonte de possibilidades. Para Cannone (2019, p. 22), isso instaura “o clássico tripé discursivo do Direito, da Medicina e da Religião, basicamente por meio da ideia de punição, tratamento e pecado”.

O discurso se constitui como aparelhagem que constrói a binariedade como estrita e inevitável de gênero e estabelece uma exclusão entre feminilidade e masculinidade, apesar da sua complementaridade (Vergueiro, 2015). Essa aparelhagem é visível na gramática da Língua Portuguesa, que só permite dois pronomes, masculino ou feminino, dirigidos ao indivíduo desde o nascimento. Isso é sentido em outras línguas: “Sou obrigado a escolher sempre entre o masculino e o feminino, o neutro e o complexo me são proibidos; (...) Assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação” (Barthes, 2004, p. 12).

A estrutura da língua é parte desse dispositivo de controle que reforça a cisgeneridade binária, pré-discursiva e permanente (Vergueiro, 2015). Uma língua com dois pronomes generificados força a distinção entre pessoas “homem” ou “mulher” e impede a conceitualização de outras possibilidades. A inexistência de um pronome que não insinua gênero torna a fala um discurso coercitivo de categorização de pessoas em homens e mulheres.

Esse é um aspecto de destaque da linguagem neutra: um uso da gramática, das normas, conhecidas por sua rigidez, para expressar fluidez. Não são apenas substantivos isolados como “todes” ou adjetivos flexionados com “e”, mas toda a lógica por trás que obriga o entendimento de, pelo menos, um terceiro gênero. Note-se que isso se dá, também, na utilização de modos de falar que não indicam gênero dentro da Língua Portuguesa.

Isso demanda um pensamento crítico e atento por trás de cada palavra. Usar uma linguagem que não força gênero no português pode ser difícil e contra-intuitivo, especialmente no começo; fazer isso com sucesso requer atenção em todas as palavras, antes que elas sequer saiam da boca de quem fala. O começo do uso é também dificultado, em parte pelo local restrito da comunicação em que podemos falar de transgressões de gênero.

Essa redução também ocorre na transgeneridade não-binária. De tanto calar sobre possibilidades além de homem e mulher, impõe-se silêncio sobre a não-binariedade com a própria estrutura da língua. E, de outra forma, a legislação contemporânea (Seidel, 2021).

A definição de si na escolha da linguagem

Na experiência vivida de pessoas não-binárias, essas imposições se manifestam em um processo de auto-aceitação, alongado pela falta de entendimento da própria condição. Mesmo quem tem mais prática, reconhece que é uma variação muito recente e algumas palavras nunca foram “neutralizadas”, então a criatividade precisa ser exercitada. Uma das pessoas entrevistadas explica:

Isso permite inclusive que a gente teste, isso é uma das coisas mais bonitas da linguagem não-binária. O que eu acho bonito nesse processo é que quebra os eixos das cis-normas. Um dos eixos da cis-norma é justamente a finalidade e o outro eixo é a permanência. Então, que maravilha não estar procurando uma permanência. (...) Nesse aspecto tem muito respeito. Quando há uma dúvida, é muito bonito, porque as pessoas perguntam: “ai, como que eu falo agora?”. Um amigo meu, essa semana estava dizendo “não sei porque você está reclamando sabe? Você é super ‘bôe’ [neutro de bom/boa] nisso”. E a gente riu por causa do som. As tentativas estão acontecendo (Lux).

Como recorda Bento (2021, p. 164), “o gênero só existe na prática e sua existência só se realiza mediante um conjunto de reiterações cujos conteúdos são frutos de interpretações sobre o masculino e o feminino”. Nas palavras da autora (2021, p. 164), “o ato de pôr uma roupa, escolher a cor, compor um estilo são ações que fazem o gênero, que visibilizam e posicionam os corpos-sexuados, os corpos em trânsito ou os corpos ambíguos, na ordem dicotomizada dos gêneros”. Lux traduz esse sentimento:

A transição de gênero é o primeiro passo, que tem a ver inclusive com um aspecto um pouco inconsciente: na época, eu não conseguia elaborar e nomear isso como não-binariedade ou como uma aproximação da transmasculinidade (...). Há um conforto, uma sensação de pertencimento quando a gente tem modos verbais de comunicar esse lugar, que não é o masculino e não é o feminino. Se eles não me contemplam, porque que a gente não pode usar outros? Até meus trinta anos, eu usava principalmente os pronomes femininos. Isso não particularmente me incomodava. Eu acho que esse não-estranhamento está relacionado ao fato de eu não imaginar que uma outra forma de existir era possível, era imaginável. Então, quando você não sabe que é possível, como que você pode desejar?

A transição de gênero para pessoas não-binárias pode incluir o pedido de que pessoas usem pronomes neutros para se referir a elas. Mas qual escolher? Inicialmente, o uso de alternativas como “el@”, “elx” e “él” era mais recorrente, mas hoje em dia a comunidade não os usa com frequência. Esses pronomes começaram sendo pensados para evitar a invisibilização de outros gêneros com o uso do masculino generalizante/universal, não só para incluir pessoas não-binárias.

Dois pronomes neutros foram mais mencionados: “ile/dile” e “elu/delu”. Apenas duas pessoas entrevistadas usavam “ile”. A escolha entre “ile” ou “elu” parece ser por gosto pessoal:

Eu acho o “elu” legal pq o U não marca gênero na nossa língua. “Ile” ainda assim tá acabando com E que já é marcação, em alguns casos, de gênero masculino. Então o U que tá ali, quase uma vogal esquecida, acho que ela representa bem (Rob).

O que eu gosto mais é “elu” e “delu”. Eu comecei com “ile” e “dile”, mas no final das contas pouco se usam esses pronomes. É mais a questão do “e” na flexão de gênero das palavras (Aren).

Quando se escolhe um pronome, define-se a conjugação dos adjetivos. Para Vacarezza (2018, p. 12), “el lenguaje también puede ser el ámbito para la costosa creación de una posición nueva, precaria e imposible de inscribir en el sistema alfabético”. Assim, a escolha de pronomes como “ile” e “elu” é indicada como necessária pelas pessoas entrevistadas, algumas das quais começam a transição permitindo o uso de todos os pronomes.

Quando me afirmei não-binárie, usava todos os pronomes, neutro, masculino e feminino. Só que as pessoas ainda me chamavam muito no feminino (...).E aí cortei o feminino, falei tipo “não, então, se tá todo mundo no feminino perdeu essa possibilidade, não deixo mais” (Morgan).

Quando comecei a minha transição de binário para não-binário, passei por um estágio que muitas pessoas não-binárias passam que é “não me importo com pronomes, você pode me chamar do que você quiser”. Acho que tem uma parte que é uma questão de tentar agradar o cis, porque você pensa: “as pessoas não vão querer me chamar pelo pronome que quero de verdade, vou fingir que não me importo com isso”. (...) Na minha cabeça, sempre pareci muito um homem e por causa disso, mesmo na época que falava que não me importava com os pronomes, o único pronome que as pessoas acabavam usando para mim era o ele. Comecei a pensar “isso me incomoda” (Pedro).

A afirmação da multiplicidade de pronomes não comunicou efetivamente ao seu círculo social a mudança interna. As pessoas ao redor escolheram continuar usando o pronome que lhes era familiar. Vacarezza (2018) mostra como as utilizações da linguagem são parte constituinte das performatividades de gênero de pessoas trans e cis identificadas com o feminino a partir da utilização de escolhas gramaticais, de um lado, e do nome próprio, de outro. No primeiro caso, observa-se que o aspecto de utilização é, fundamentalmente, um elemento de transposição de fronteiras entre a expectativa de uma associação entre linguagem e biologia, rumo a uma performatividade ancorada na produção de si mesmo.

Contudo, para muitas, nenhum dos pronomes binários as contempla, tornando o dia-a-dia comunicacional desconfortável. Assim, na visão que emerge de algumas entrevistas, o pronome neutro é o único confortável.

O processo de escolher exclusivamente o “ile” tem a ver com uma certa linha demarcatória do que nesse lugar foi muito difícil de conquistar, para mim, foi muito difícil de imaginar, foi muito difícil de realizar (Lux).

Outro ponto presente nas falas é a mobilidade entre pronomes. Morgan conta que houve uma época em que brincava usando, na mesma frase, diferentes pronomes para si. É esperado que depois de um tempo haja uma consolidação de um ou dois pronomes principais a serem usados. Mesmo assim, é possível que todos os pronomes sejam usados para se referir a pessoa, apenas em contextos diferentes. Por exemplo, entre outras pessoas trans, usa-se o neutro, mas com a família ou no trabalho o “ele” ou “ela” são usados.

Fora de círculos interpessoais de pessoas trans, algumas pessoas não-binárias optam por usar pronomes binários como opção secundária, devido à novidade dessa linguagem. Aled[1], que usava “elu” e “ela” conta que:

Eu sentia até dificuldade de falar pras pessoas que mesmo usando pronomes femininos eu quero deixar bem claro que eu não sou uma mulher, que eu não me identifico com o gênero feminino, que não é essa minha identidade de gênero. Quando você se referir a mim no feminino, pensa que é uma pessoa: não uma menina, uma mulher. É difícil pras pessoas entenderem até isso. Então os pronomes neutros são os que mais acabam acolhendo.

Entre as pessoas entrevistadas, essa prática é acompanhada por um sentimento de resignação. Ao mesmo tempo que essa ambivalência permite uma convivência pacífica em ambientes transfóbicos, é vista como uma renúncia do direito de ter seus pronomes respeitados. Ela vem de um cansaço de corrigir os outros constantemente e uma tentativa de se blindar contra transfobia, aplicando a lógica “não podem errar meu pronome se eu usar todos os pronomes”. Como indicado na citação anterior de Pedro, a aceitação de todos os pronomes não leva em conta o peso social do uso de cada um e não refletiu de fato seus desejos. Mesmo assim, para outras pessoas, como Morgan, pode ser por si só uma expressão da sua fluidez. A ambivalência entre pronomes indica a transitoriedade prazerosa entre o espectro da feminilidade e masculinidade.

Deste modo, a construção de um círculo social transcentrado se mostra muito importante justamente pela resistência ao uso pela sociedade geral. Pessoas com experiências similares se amparam emocionalmente e ajudam pessoas que assumiram recentemente sua identidade não-binária, tema do próximo tópico.

Entre coerção e comunidade: espaços de uso da linguagem

Frente a essa estrutura que impede a auto-realização, tanto pela dificuldade de conceitualização da não-binariedade quanto pelas interpelações e rejeições do dia a dia sofridas por pessoas trans, a intercomunicação e apoio entre pessoas não-binárias é um pilar que sustenta o bem-estar das pessoas que usam essa variação. Marcus fala desse acolhimento:

Comecei a falar sobre essa experiência com pessoas não-binárias, com pessoas que já estavam mais por dentro disso, já entendiam melhor isso, e recebi o acolhimento Falaram: “se você quiser experimentar e quiser que eu te chame assim, eu posso te chamar assim”, e aí eu falei, “pô, acho que eu quero, sabe?”. Acho que foi primeiro dentro desse espaço de continência, desses espaços puros, experimentando como eu me sentia com Morgan me chamando assim no pronome neutro e eu mesme conjugando adjetivos e coisas assim. E a partir daí, começando a me sentir um pouco mais apropriade disso, aos poucos comecei a liberar isso pro meu círculo mais íntimo, e depois fui expandindo (Marcus).

A permissão e companhia dessas pessoas foi importante para elevar a auto-confiança, que lhe permitiu construir um novo lugar nas interações sociais. É sintomático, assinalam Lauring e Klitmoller (2017), que a inclusividade, já a partir da linguagem, tem um resultado positivo no conjunto das dinâmicas de grupos e organizações – a inclusão favorece o todo.

A partir de uma perspectiva relacionada com o feminismo, Heilbrun (1979) pondera sobre como os discursos produzidos sobre mulheres as colocavam em papéis específicos de feminilidade e impediam a existência de uma feminilidade ambiciosa.

Similarmente, é demorado e complexo imaginar-se humano e sem gênero, pois todo discurso, até este momento, reflete a binariedade. Sendo gênero uma construção social, e também muito dependente da experiência pessoal, a existência humana tem a possibilidade de ser livre das expectativas de gênero. Em espaços transcentrados, algo similar já acontece:

Depende muito de quem fala, se uma outra pessoa trans usa às vezes o neutro, às vezes o masculino e até o feminino, isso não me ofende - porque isso já transcende aquele lugar do pronome, da linguagem por si só, porque não carrega mais aquela parte da linguagem que oprime e é só uma forma de se referir a mim (Aren).

A imaginação de uma existência humana sem gênero passa por uma linguagem que reconhece um modo de existência e uma corporeidade diferentes, que não é nem homem nem mulher e, a partir desse reconhecimento linguístico, permite a exploração conceitual e prática.

Uma acusação que tem sido muito recorrente em alguns eventos, para falar sobre a não-binariedade, é de que a não-binariedade é uma nova binariedade, porque, se o masculino e feminino são categorias opostas, então, ela é oposta ao binário, aí você tem uma outra binariedade que é o binário e o

não-binário. [Mas] a não-binariedade é recusar os termos do jogo de cisgeneridade. (Lux)

Foucault (1988) adverte que, em contraponto à censura, discursos produzidos na medicina, escolas, entre outras initituições, são excessivos e moldam a percepção e os atos sexuais: “tais discursos sobre o sexo não se multiplicaram fora do poder ou contra ele, porém lá onde ele se exercia e como meio para seu exercício; (...) desenfurnam-no e obrigam-no a uma existência discursiva” (Foucault, 1988, p. 35).

Apesar da linguagem neutra ter partido da comunidade trans e da sua necessidade de reconhecimento e não de fortes instituições produtoras de discursos, quando ela aparece em contextos de família ou trabalho, é preciso justificar sua legitimidade – a existência pessoal em paralelo com a existência discursiva.

Em ambiente de trabalho eu ainda não consigo me sentir confortável pra expor, apesar de terem pessoas no meu trabalho que sabem. Mas pra procurar emprego, eu continuo assinalando como “ela”, porque a gente sabe o que a transfobia faz (Rob).

Meu pai e minha mãe têm extrema dificuldade, mas eles tentam. E pessoas que vivem na cis-hétero normatividade também. E é muito louco, porque as pessoas tomam para si. Elas não entendem que eu não estou falando sobre elas (Aren).

O viés cisgênero também aparece nas tentativas de definição dos termos “trans” e “não-binário”, procurando linhas definitivas e separações claras entre quem é cis e trans, binário ou não-binário. O senso comum referente à transgeneridade trata esses termos como substantivos concretos, exigindo deles uma exatidão inatingível. A pessoa é conduzida a se articular a partir da linguagem binária e em sua negação (como no termo “não-binário”) para ser entendida. Isso dificulta a conceitualização da não-binariedade a partir da língua, especialmente por pessoas de fora da comunidade LGBTQ+, presas à cisheteronorma (Vergueiro, 2015).

Uma memória específica: a pessoa não entendeu nada. Ela chamou de caloura e eu corrigi “caloure”. Ela travou e minha amiga que explicou: “elu é não-binárie”. Acho que tem isso também, o medo de corrigir, a pessoa não entender e eu ter que explicar (Ciano).

A linguagem neutra, quando usada em grupos que a conhecem, valorizam, e sabem como encaixá-la na fala do dia-a-dia, encontra outro espaço, no qual ela não é forçada a motivar políticas, nem mesmo de exploração de gênero. Seu uso abre uma porta conceitual que não é encontrada na nossa língua. Várias pessoas trans não conheciam que era uma possibilidade mudar de gênero até ouvir falar sobre ou conhecer outras pessoas trans.

A gente conhece pessoas novas e aí a gente tem a possibilidade de não ser julgada pelo que a pessoa já [sabia] de você anteriormente (Rob).

E assim, sentem liberdade para explorar partes novas de si:

Importar imagenEu, pela primeira vez em 38 anos, estou deixando meu cabelo comprido. Mas é também a forma de enxergar o mundo. Na hora que eu me compreendi potencialmente como não-binário e percebendo isso de forma prática, eu fui me abrindo e sendo atravessade em todos os meus pensamentos por um raciocínio não-binário. Isso é o mais estrutural, porque para tudo eu passei a incorporar a não-binariedade:na análise de qualquer problema, porque ela às vezes revela muito além do que um padrão binário de análise - isso vai ao intelecto (Toni).

A conceituação da não-binariedade, a partir da linguagem, deriva para a proposta de uma abertura para a percepção de outras formas de auto-censura provenientes de uma epistemologia cisheteronormativa na produção dos discursos – e, nesse sentido, também dos modos de pensar e classificar. Assim, evitam-se bipolaridades e dicotomias, na procura de uma maior multiplicidade de pontos de vista. Assim, quando se refere a essa mudança crucial no pensamento, Toni e outras pessoas não-binárias falam da rejeição do pensamento dicotômico como um todo e em múltiplos aspectos da vida, não só no gênero.A autoexpressão, a livre autorrepresentação e a afirmação das condições de si se apresentam como aspectos fundamentais da identidade (Martino, 2010). Nas palavras de Ferreira (2021, p. 213), “ao compor a verdade sobre si, o sujeito está em relação ao outro, e ao mesmo tempo atravessado por outras relações de poder de uma determinada composição de sociedade de determinado tempo histórico, que chamaremos de regime de verdade”.

Marcus entende a não-binariedade como uma negação de aspirações aos ideais de gênero, que permitem mais liberdade na auto-expressão.

Quando quebrei o binarismo de gênero e tentei entrar na não-binariedade, eu estava de início procurando um ideal andrógino. Pesquisando um pouco sobre isso e conversando com outras pessoas, cheguei na conclusão de que na verdade, cada um tem o seu próprio ideal. E aí eu cheguei num ponto do tipo:

“Mano, para que que tem que ter um ideal?”. E aí, foi esse o momento que eu entendi a não-binariedade (Marcus P.).

Esse é um exemplo do processo pelo qual pessoas não-binárias precisam passar, não só para se entender plenamente mas para conseguir comunicar sua experiência com outras pessoas com eficácia. As pessoas entrevistadas contam que muitas vezes não corrigem interlocutores que usam pronomes binários ou generificantes, apesar do desconforto:

Depende muito da situação, quando é alguma coisa [banal], eu tô no mercado e aí fala "ah moça, pode passar" eu não corrijo (Morgan)

“Pessoas não-binárias não te devem androginia”: não-binariedade além do discurso

Uma frase presente nas entrevistas foi “pessoas não-binárias não te devem androginia”. Essa frase traz a questão: “o que se configura como não-binariedade?”. Costa, Rosa e Fontanari (2022) mostram as dificuldades e problemáticas relacionadas à identificação imediata de gênero, na medida em que as pressuposições relacionadas ao que seria a performance esperada – ou historicamente associada – de uma pessoa são acionadas a partir de convenções elaboradas fora de espaço transcentrados.

Até 2018, pessoas trans precisavam de uma decisão judicial, geralmente com justificativas médicas e psicológicas, para poder alterar o nome. Para ser reconhecida como trans, uma pessoa tinha que convencer aqueles ao seu redor, por exemplo, com laudos médicos e evidências presentes desde a infância (Pompeu, 2018). É possível identificar que pessoas trans e/ou não-binárias buscam uma auto-realização transgênera fora do ideal cisgênero, visto que o próprio processo do SUS permite qualquer combinação de procedimentos (Brasil, 2013).

Eu particularmente me sinto confortável com uma aparência andrógina (...) meu sonho é que as pessoas olhem pra mim e não atribuam gênero a mim. Que pelo menos fiquem confusas a como se referir a mim, às vezes eu consigo alcançar esse objetivo, às vezes não (Aled).

Historicamente, a construção da noção de gênero passa, sobretudo, pela elaboração de uma completa persona social apta a ser facilmente lida, em qualquer circunstância, como “homem” ou “mulher” (Goffman, 1979; Butler, 2008). No nível das micro-relações cotidianas, isso significa a expectativa de que essa classificação seja uma das primeiras formas de identificação da alteridade: a apresentação de si, nas palavras de Goffman (2015), permitem derivar que essa perspectiva de legibilidade seja imediata e inequívoca.

Ao se revestir de signos historicamente ligados a essas representações, reforça-se uma inteligibilidade social. No entanto, e importante observar que esse processo diz respeito sobretudo à preparação para a interação com os outros: trata-se, na visão de Goffman (2012) de um “trabalho de face” voltado para a apresentação social de si mesmo. No caso, uma separação rígida entre o andros e o ginos, palavras do grego antigo para “homem” e “mulher” é indicada como uma das bases epistêmicas da sociedade, responsáveis por garantir a inteligibilidade do social em termos de gênero, expressa, no cotidiano, em classificações como “roupa de homem” ou “acessórios para mulheres”. A “confusão” a que se refere Aled pode ser compreendida na medida em que se trata de um trabalho de face elaborado fora das categorias esperadas de compreensão, e mesmo fora do que seria um “termo médio”, a androginia.

As pessoas entrevistadas indicaram a dificuldade de tratar a questão da androginia, mesmo quando se busca contrapor características masculinas com adereços femininos e vice-versa. Ainda assim é possível interpretar incorretamente esses sinais, levando ao “misgendering”, expressão que, sem tradução exata, se refere ao fato de se categorizando a pessoa em um gênero com o qual ela mesma não se identifica. Aled, para desencorajar essa associação, evita usar pronomes generificados para pessoas desconhecidas:

Se a pessoa chega pra mim e eu não conheço e ela não fala ou se refere a si mesma com determinado pronome, eu não assumo. Porque eu vou olhar como uma pessoa e acabou (Aled).

A busca por adequação de pessoas trans é associada, nas entrevistas, à discrição e imperceptibilidade da sua transgeneridade. Isso é apontado como desejável, pelas pessoas entrevistadas, não só pelo risco de violência associado a ser trans, mas porque corpos “são socioculturalmente significados a partir da ideia de que os padrões cisgêneros de corpos e vivências de gênero são os naturais e desejáveis” (Vergueiro, 2015, p. 61). A ideia de performance de gênero, sintetizam Bofe, Guijarro-Rodrigues e Santos (2022, p. 2), “refere-se à produção de modelos sociais de identidade e práticas pautadas no binarismo homem/mulher e na diferenciação dos corpos”. Seguindo Butler (2007), definem que a performance implica também a perspectiva de uma atuação “ideal” que se espera de um gênero.

Essa combinação parece sugerir o pressuposto de que, se uma pessoa não-binária não é andrógina, a mudança teria sido apenas discursiva. Há, no entanto, facetas menos visíveis da não-binariedade. Bailey e Kelly (2015) recordam que a linguagem corporal se designa por trazer “barreiras sociais implícitas” não só no sentido de trazerem marcas de uma história, mas também no sentido de “subverte-las” enquanto ação e afirmação.

É difícil quando eu me afirmo para pessoas que não entendem tão bem ou que não tem tanto contato com outras pessoas não-binárias. Parece que precisa do referencial visual, né? Eu sei que o corpo importa muito mais: a pessoa precisa ver e confirmar em você que você é aquilo que tá falando pra ela (Morgan).

Considerações Finais

A emergência de identidades não-binárias trouxe a necessidade de discutir uma variação que não fosse constantemente desconfortável aos usuários; por sua vez, o compartilhamento dessa variação com pessoas que nunca sentiram essa necessidade abre portas conceituais que permitem pensar como é viver de um modo considerado impossível pelo imaginário social.

Nota-se que a identidade não-binária não tem um tipo de expressão consolidada. A linguagem neutra contemporânea reflete isso: não há regras específicas, aceitas por todas as pessoas da comunidade; há muita possibilidade e novidade. Ao mesmo tempo, não há aplicações amplas dessa variação.

A dificuldade de utilização dessa variedade em espaços não-transcentrados é muito intensa e merece mais estudos. Isso é verificado no receio de corrigir pessoas, associado ao cansaço depois de tentativas falhas de correção. Além disso, muitas pessoas entrevistadas têm pronomes secundários com os quais se contentam caso seja impossível pedir o uso do pronome neutro.

A dificuldade de uso também indica uma dificuldade de compreensão da não-binariedade como possibilidade de experiência humana:

Por mais que a gente tente fugir e achar alternativas que sejam melhores, é mais que isso, é preciso mudar estruturalmente o pensamento da sociedade. (Aled)

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Notas

[1] A entrevista foi feita em abril de 2022. Em outubro de 2022, em novo contato, Aled contou que voltou a usar pronomes femininos e seu nome de registro, porque agora se identifica como uma mulher desfeminilizada. Foi dito o seguinte: “Eu não desvalido o processo, porque eu acho que foi tudo muito importante. (...) Como tem muita imposição da sociedade sobre nós, sobre como a gente deve agir, como a gente deve ser, acaba confundindo tudo na nossa cabeça, né? (...) Pode manter o nome Aled, porque, por mais que não seja a maneira como eu me identifico agora era como eu me identificava quando a gente conversou.”

Informação adicional

[1]: Este artigo tem como base o trabalho de Iniciação Científica desenvolvida por Ariel Giagio como bolsista do Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero em 2022. Agradecemos aos comentários e sugestões dos pareceres, que em muito contribuíram para esta versão final.

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