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Retrato da temática LGBTQIA+ na gestão da diversidade da Avon Brasil
Gustavo David Araújo Freire; Maria Ivete Trevisan Fossá
Gustavo David Araújo Freire; Maria Ivete Trevisan Fossá
Retrato da temática LGBTQIA+ na gestão da diversidade da Avon Brasil
Esferas, vol. 1, núm. 27, pp. 1-26, 2023
Universidade Católica de Brasília
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Resumo: Este artigo objetiva analisar a relação histórica existente entre a Avon Brasil e a temática LGBTQIA+, permitindo compreender os desdobramentos envoltos no processo de aproximação – avanços, limites, pontos de tensão. O estudo de caso único, com várias fontes de evidências que integram o corpus, demonstra que a Avon Brasil tem sido vanguardista no fazer a gestão da diversidade sexual e da identidade e expressão de gênero, ao passo em que apresenta limitações no contexto organizacional.

Palavras-chave: Avon Brasil,Diversidade,Gestão,LGBTQIA+,Práticas organizacionais.

Abstract: This article aims to analyze the existing historical relationship between Avon Brasil and the LGBTQIA+ theme, allowing us to understand the developments involved in the approximation process – advances, limits, points of tension. The single case study, with several sources of evidence that integrate the corpus, demonstrates that Avon Brasil has been avant-garde in managing sexual diversity and gender identity and expression, while presenting limitations in the organizational context.

Keywords: Avon Brasil, Diversity, Management, LGBTQIA+, Organizational practices.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar la relación histórica existente entre Avon Brasil y la temática LGBTQIA+, permitiéndonos comprender los desarrollos involucrados en el proceso de aproximación – avances, límites, puntos de tensión. El estudio de caso único, con varias fuentes de evidencia que integran el corpus, demuestra que Avon Brasil ha sido vanguardista en la gestión de la diversidad sexual y la identidad y expresión de género, al tiempo que presenta limitaciones en el contexto organizacional.

Palabras clave: Avon Brasil, Diversidad, Administración, LGBTQIA+, Prácticas organizacionales.

Carátula del artículo

Comunicação, Gêneros e Sexualidades

Retrato da temática LGBTQIA+ na gestão da diversidade da Avon Brasil

Gustavo David Araújo Freire
Hospital Universitário Lauro Wanderley (HULW – UFPB/Ebserh), Brasil
Maria Ivete Trevisan Fossá
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Esferas
Universidade Católica de Brasília, Brasil
ISSN-e: 2446-6190
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 1, núm. 27, 2023

Recepção: 13 Dezembro 2022

Aprovação: 15 Junho 2023


1. Introdução

Pensar a diversidade requer, antes de tudo, reconhecer que se trata de um fenômeno resultante de movimentos das mais diversas ordens que coadunam para uma mesma direção, ao passo em que há outros que agem contrariamente. O que implica dizer que, entre avanços e resistências, ela é resultante de processos impermanentes em constante (des)construção, uma vez que o tecido social é constituído sob fundo de disputas e fragmentações. Importa destacar que os impactos causados pela globalização sobre a identidade cultural e os contornos impulsionados pelo capitalismo e pelo mercado foram capazes de tornar a diversidade um emblema da modernidade-mundo. Isso significa que a forma como ela é problematizada, discutida e percebida é situada em tempos recentes, haja vista que o seu sentido e sua abrangência não eram vislumbrados em outras épocas, mesmo com as diferenças culturais e de povos reconhecidas.

O fato é que a diversidade tem se apresentado como uma questão global e que tem orientado o mercado na forma como deve se posicionar frente a segmentos específicos das sociedades em razão das identidades constituídas, como é o caso das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queers, intersexos, assexuais, dentre outras minorias situadas no invólucro da diversidade sexual e da identidade e expressão de gênero (LGBTQIA+). Uma perspectiva que visa, sobretudo, dois aspectos: incluir e representar. O primeiro está para as práticas de gestão e o segundo para as práticas discursivas materializadas nos produtos comunicacionais. Obviamente, o movimento do mercado visa, consideravelmente, a atender o seu caráter teleológico. O que não exclui, necessariamente, os desideratos sociais. No entanto, há de se fazer uma ressalva em relação às práticas organizacionais que não refletem verdadeiramente o que é projetado no discurso publicitário e/ou institucional, de modo a despertar pontos de tensão e críticas.

Em questionamento às empresas que incorporam o mote da diversidade à identidade corporativa, mas que não congregam verdadeiramente as questões sensíveis e pertinentes do tema à identidade organizacional, surge o termo diversitywashing. A expressão, proferida por Liliane Rocha (2017), diretora executiva da gestão Kairós, faz referência à palavra greenwashing para caracterizar as ações de empresas realizadas para “maquiar” os seus produtos e transmitir a ideia de ecoeficiência, sem que, de fato, exista um planejamento estratégico consistente e eficaz da gestão ambiental e social.

Convém mencionar que os referenciais socioeconômicos e culturais contemporâneos impõem uma preocupação com a circulação e o compartilhamento de informações e da interação adequada da organização para com o ambiente externo, haja vista que as “velhas identidades” são fragmentadas por vários processos, inclusive pela centralidade da comunicação na sociedade. A instauração de uma nova filosofia organizacional sob uma ótica mais crítica passa a nortear a incorporação de atitudes inovadoras. Assim, “as organizações se referem à sociedade por meio da cultura, da ética... e não somente pelo produto” (Luhmann, 2005, p. 25).

Ao observar o mercado brasileiro, é notório os esforços de grandes empresas em explorar a temática da diversidade sexual e da identidade e expressão de gênero por meio, sobretudo, da publicidade na busca de alcançar o público LGBTQIA+, cujos produtos são direcionados para as mídias tradicionais e digitais. Um exemplo é a campanha #SintaNaPele, lançada em 2016 e que tinha por objetivo o lançamento do produto BB Cream Matte Avon Collor Trend. Postado no dia 28 de junho estrategicamente por se tratar do Dia do Orgulho LGBT+, o filme publicitário foi protagonizado pelas cantoras Liniker e Tássia Reis, pela banda As Bahias e a Cozinha Mineira (do projeto Salada de Frutas) e por integrantes do canal das Bee. Trata-se de um elenco composto por artistas expoentes que, a partir de seus trabalhos, “lutam” contra o preconceito destinado às pessoas LGBTQIA+ ao evidenciar o campo das liberdades e do empoderamento, mobilizando, assim, o contexto sociocultural no que tange à diversidade sexual e identidade e expressão de gênero. Grosso modo, estava a se apresentar uma perspectiva de valorização e respeito à pessoa LGBTQIA+, diferentemente do que se tinha visto com mais frequência até então, isto é, situações cômicas e/ou vexatória.

A percepção da unicidade do produto comunicacional acima descrito e do delineamento de um fenômeno em vias de constituição gerou interesse pela temática, desdobrando-se numa pesquisa desenvolvida em nível de doutorado, cujos resultados são, em parte, apresentados aqui. Nesse sentido, tomando como ponto de partida o aspecto midiático do fenômeno já apresentado, este trabalho objetiva analisar a relação histórica existente entre a Avon Brasil e a temática LGBTQIA+, permitindo compreender os desdobramentos envoltos no processo de aproximação – avanços, limites, pontos de tensão.

Isto posto, a pesquisa empírica centra os esforços no estudo de um único caso, sendo caracterizado como holístico, isto é, está voltado para a natureza global do fenômeno (Yin, 2001). Várias foram as técnicas de coletas de dados utilizadas, a saber: registros institucionais disponíveis na Web, com a observação do objeto empírico e a sua precisa descrição; realização de entrevistas com a empresa Zeno Group (assessoria externa) em dezembro/2019 e com gestores da Avon Brasil em janeiro/2020. O Quadro 1 apresenta o perfil dos entrevistados.

QUADRO 1

QUADRO 1
Perfis dos entrevistados

Elaborado pelos autores (2022).

Em se tratando da Entrevistada 1, foram aplicados dois questionários, ambos abertos e compostos por 13 e 7 questões – que foram enviados por e-mail. Nem todas as perguntas foram respondidas por E1, já que a atuação da Zeno Group não compreende todos os processos de interesse da pesquisa, e ainda mais especificamente no que diz respeito à questão global da diversidade na empresa. No caso de E2 e E3, a entrevista aconteceu presencialmente, sendo orientada por dois roteiros que focavam especificamente questões voltadas para cada área de atuação dos profissionais, de modo que um documento continha 14 e o outro, oito apontamentos.

É importante salientar que a Avon é uma empresa fundada, em 1886, por David H. McConnell (nos Estados Unidos), cuja concepção organizacional se deu quando ele era vendedor de livros itinerante. De acordo com o site da Avon (2022), para aumentar as suas vendas, David acrescentava fragrâncias como uma vantagem adicional para as mulheres. O fato é que os brindes geraram mais interesse que os livros, ocasionando na mudança de rumo da empresa, de modo que se instaurou o modelo de negócio de venda direta com foco em produtos de beleza. Inicialmente, chamada de California Perfume Company, a empresa passou a recrutar mulheres para realizar as vendas, cuja primeira revendedora (ou primeira “Avon Lady) é a Sra. Albee (Persis Foster Eames Albee). Tal movimento é tido como um grande avanço para a sociedade, pois aconteceu em um momento em que a mulher não tinha direito ao voto e a ela “cabia” o papel de ser tão somente dona de casa.

Em todo o mundo, ela conta com cerca de seis milhões de representantes da Beleza Avon (como a empresa prefere chamar) e está presente em mais de cem países. No Brasil, ela está em todo o território nacional desde 1958 e, atualmente, o país representa a maior operação da companhia, detendo sua maior força de venda (Avon, 2022). Requer destacar que, em 2020, a Natura &Co adquiriu a Avon Products Inc. Desse modo, a Natura &Co passou a ser o quarto maior grupo do mundo dedicado exclusivamente ao segmento de beleza, juntando-se às marcas: Natura, The Body Shop e Aesop.

Em 2018, a Avon foi vencedora do prêmio Guia Exame de Diversidade, sendo reconhecida como empresa do ano na categoria Gênero. O prêmio busca reconhecer publicamente as melhores empresas por sua atuação em prol da equidade de gênero, equidade racial, inclusão de pessoas com deficiência e da promoção dos direitos LGBTQI+.

2. Diversidade e seus desdobramentos no mercado

“Por que a temática da diversidade tornou-se tão importante nos últimos anos? Porque o mundo se unificou”, diz Ortiz (2015, p. 10) na apresentação de sua obra Universalismo e diversidade: contradições da modernidade-mundo. A questão – cuja resposta beira o contraditório – permeia uma problematização hodierna face aos movimentos econômicos, políticos e tecnológicos desencadeados, com efeito, a partir da segunda metade do século XX em escala global. Sobremodo, destaca-se a dimensão do coletivo - construída juntamente com o processo de globalização social -, “[...] decorrente da expansão dos mercados, das forças produtivas e do próprio consumo de objetos em escala global, servindo de base para a difusão de valores, estilos de vida, gostos, representações sociais [...]” (Retondar, 2007, p. 94). Com isso, realça-se a emergência de uma lógica social que perpassa, expressivamente, a dimensão simbólica e cultural, de modo que o consumismo deixou de ser uma força absolutamente econômica (passando a ser residual), como consequência do desenvolvimento dos modernos sistemas de comunicação social (Retondar, 2007).

Nesse contexto, requer pontuar que, sob as forças econômica, simbólica e cultural, o consumismo, desde o século XIX, passou a sustentar a formação de um discurso, tornando possível o movimento de desterritorialização de valores, visões de mundo, ideologias etc., sendo “[...] marcado pelo deslocamento entre a imagem, a representação e um universo definido de determinação, seja este econômico, social, político, religioso ou de qualquer natureza, e que se articula agora em âmbito mundial” (Retondar, 2007, p. 97). Isso foi possível, a princípio, graças aos sistemas de comunicação social desenvolvidos e tornados globais, além da ação da publicidade enquanto campo autônomo de promoção do consumo. Tal configuração imprimiu uma lógica social nova, de modo que a flexibilidade dos significados e a efemeridade dos sentidos sociais atribuídos às imagens e representações passaram a caracterizar os movimentos formadores do discurso globalizado. Assim, passou a ser estabelecida uma nova ordem de representação em escala transnacional, uma vez que novos agentes passaram a compor os discursos sociais (Ianni, 1999; Retondar, 2007).

De valor universal, a diversidade passou a ser entendida na contemporaneidade de uma maneira até então não conhecida, desvinculando-se de uma estreita relação (até de sinonímia) com a terminologia “diverso” - de variedade, diferente, distinto. Isso, graças, sobretudo, aos processos de globalização que foram capazes de impulsionar novos fluxos na “trama” cultural. Com a facilitação de locomoção de pessoas entre nações, a diversidade se apresentou, a princípio, como uma problemática no sentido das identidades étnicas e nacionais, tendo em vista as nuances que compreendem a contratação da força de trabalho disponível - e, por vezes, discriminada. Perspectiva tratada sob a ótica da gestão da diversidade pelas organizações porque a globalização potencializou os fluxos migratórios (Canclini, 2010).

O que fez com que fosse levantada, na segunda metade do século XX, a discussão acerca da incorporação de uma força de trabalho que se encontrava, predominantemente, à margem da sociedade. Trata-se, conforme Cox e Blake (1991), da gestão da diversidade pelas organizações, isto é, a variedade de questões de gestão e atividades relacionadas à contratação e utilização efetiva de pessoal de diferentes gêneros[1] e origens raciais, étnicas e culturais, com reflexos para a consecução dos objetivos de responsabilidade social. Tal compreensão dos autores tinha por base a análise da demografia da força de trabalho em diversos países (em especial, dos Estados Unidos), cuja previsão para a década de 1990 era o crescimento de uma mão-de-obra em nações com populações predominantemente não-caucasianas[2] . Em seus dizeres:

Os mercados estão se tornando tão diversos quanto a força de trabalho. A venda de bens e serviços é facilitada por uma força de trabalho representacional de várias maneiras. Primeiro, empresas com boa reputação têm relações públicas correspondentemente favoráveis. Assim como as pessoas, especialmente as mulheres e as minorias étnico-raciais, podem preferir trabalhar para um empregador que valoriza a diversidade, elas também podem preferir comprar de tais organizações (Cox & Blake, 1991, p. 49, tradução nossa[3]).

Três décadas depois, a leitura (e porque não dizer prognóstico) de Cox e Blake permanece válida no tocante à dinâmica da gestão da diversidade nas organizações - e, de modo mais particular, no contexto brasileiro -, cabendo, ao mesmo tempo, a necessária atualização acerca do entendimento de gênero e a inclusão da questão da orientação sexual. Em termos específicos, pensar a gestão da diversidade nas organizações é levar em consideração, dentre outros grupos, a força de trabalho de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexos, assexuais e pansexuais. Acrescenta-se ainda que, sob uma mesma bandeira, a reflexão deve ponderar os grupos mais vulneráveis socialmente, a exemplo de travestis e mulheres trans, uma vez que, segundo estimativa feita pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% das pessoas trans já recorreram à prostituição de rua em algum momento da vida, dado o cenário de discriminação e exclusão (Cunha, 2018). A propósito, Benevides (2021) apontou no “Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020” que a maior necessidade desse grupo é o direito ao emprego e à renda, sendo da ordem de 87,3%. Tal dado foi extraído do projeto TransAção[4], desenvolvido no Rio de Janeiro e que tinha como finalidade a distribuição de bolsas de auxílio emergencial no valor de R$ 210,00 pelo período de três meses naquele ano.

O fato é que a diversidade tem se apresentado como uma questão global e que tem orientado o mercado na forma como deve se posicionar frente a segmentos específicos das sociedades em razão das identidades constituídas, como é o caso das pessoas LGBTQIA+. Uma perspectiva que visa, sobretudo, dois aspectos: incluir e representar. O primeiro está para as práticas de gestão e o segundo para as práticas discursivas materializadas nos produtos comunicacionais. Obviamente, o movimento do mercado visa, consideravelmente, a atender o seu caráter teleológico. O que não exclui, necessariamente, os desideratos sociais. No entanto, é necessário considerar a existência de práticas organizacionais que não refletem verdadeiramente o que é projetado no discurso publicitário e/ou institucional. Com efeito, tal prática “abre margem” para o surgimento de tensões e críticas.

Requer considerar a globalização como fator preponderante para a constituição do que vem a se chamar “crise de identidade”, que desloca estruturas e processos centrais das sociedades modernas, desestabilizando os quadros de referência que proporcionavam aos indivíduos um código estável no que compete às nuances do mundo social (Hall, 2006). Percebe-se a emergência de novas identidades na medida em que ocorre a fragmentação do indivíduo moderno, sendo resultante dos impactos provocados pela globalização sobre a identidade cultural. De acordo com Hall (2006), os movimentos para a constituição das sociedades da modernidade tardia (caracterizadas pela diferença) têm início na década de 1960 com os impactos causados pelo feminismo e pela contracultura.

É interessante destacar que a concepção de identidade sexual na contemporaneidade, conforme Weeks (2006), apresenta uma duplicidade de sentidos, pois pode representar tanto um posicionamento de pertencimento - seja pelo viés de unidade pessoal, seja pelo comprometimento político assumido -, como pode ser “fruto” de uma escolha, considerando que as identidades são construídas e situadas no tempo. Além disso, dois vieses (dentre outros) são acionados ao falar em identidade sexual, a saber: como o sujeito se percebe em relação ao seu desejo, e; como ele administra a percepção de si para a sociedade - ou seja, se a sua sexualidade é tornada pública e em quais situações. Com efeito, a afirmação da identidade, diante de um contexto social que reprime a expressão da sexualidade que destoa da heteronormatividade, pode ser considerada como um ato político (Simões & Facchini, 2009).

Nesse sentido, as contribuições de Cuche (1999, p. 177) são oportunas ao destacar que, anterior à identidade cultural, “a identidade social de um indivíduo se caracteriza pelo conjunto de suas vinculações em um sistema social: vinculação a uma classe sexual, a uma classe de idade, a uma classe social, a uma nação, etc.”. Contemplando também os grupos, o processo de um indivíduo se situar em um sistema social se dá em razão da identidade, sendo esta fundamentada em oposições simbólicas. A classe sexual ilustra bem isso quando se tem como referência a heterossexualidade. E que tal perspectiva é extensiva à composição da identidade de gênero, cujas oposições partem do sistema hegemônico binário homem-mulher.

Nas ciências sociais contemporâneas, e na antropologia social, em particular, a reflexão sobre identidade tende cada vez mais a retirar qualquer ilusão de substrato duradouro que o conceito pode implicar: identidades são pensadas em termos situacionais, relacionais e contrastivos; são afirmações de resposta política a determinadas conjunturas, articuladas a outras identidades em jogo, compondo uma “estratégia de diferenças”. (Simões & Facchini, 2009, p. 32-33).

O caráter fluido da identidade está para o que Hall (2006) chamou de “celebração móvel”, isto é, a admissibilidade de identidades diferentes em momentos diversos. Exemplo disso é a cantora Liniker, que já se identificou como sendo homem gay, pessoa não binária e atualmente se apresenta, quando entrevistada, como sendo mulher trans e negra. Uma discussão que percorre questões ligadas à orientação sexual e à identidade de gênero. A propósito, tal exemplificação é oportuna pelo fato de Liniker integrar campanhas publicitárias de nível nacional no Brasil voltadas para a temática da diversidade.

No que se segue, a “diversidade” – consoante à forma como é pensada e discutida hoje – pode ser tida como um emblema da sociedade contemporânea, além de ser uma noção que se aplica às empresas, transcendendo-as e aprisionando-as numa cadeia de significados que lhes escapa (Ortiz, 2015). Está em questão uma “diversidade global” (Ortiz, 2015) na qual o diverso assume-se de maneira explícita, orientando o mercado na construção de um posicionamento estratégico voltado para a exploração de segmentos específicos, sendo explorados em suas comunalidades. Trata-se de ir além da abundância das mercadorias – que culmina num processo de identificação com o caminhar da liberdade individual –, indo ao encontro da concepção e do fenômeno inequívoco da diversidade como valor universal por meio dos discursos e das práticas organizacionais (Ortiz, 2015).

3. Nuances constitutivas da diversidade na Avon Brasil

O pensamento estratégico de ofertar produtos a segmentos específicos da sociedade e tendo como base a contratação de uma força de trabalho representacional não é de hoje. A Avon Corporation (EUA), pelo trabalho de gestão da diversidade desenvolvido, foi apontada como exemplo por Cox e Blake no artigo Managing Cultural Diversity: implications for organizational Competitiveness, publicado em 1991.

A Avon Corporation usou a diversidade cultural para reverter a baixa lucratividade nos mercados do centro da cidade. A Avon fez mudanças de pessoal para dar aos gerentes negros e hispânicos autoridade substancial sobre esses mercados. Esses setores anteriormente não lucrativos melhoraram a ponto de estarem agora entre os mercados norte-americanos mais produtivos da Avon. O Presidente da Avon, Jim Preston, comentou que os membros de um dado grupo cultural são singularmente qualificados para entender certos aspectos da visão de mundo das pessoas desse grupo (Cox & Blake, 1991, p. 49, tradução nossa[5]).

Com base no exposto acima, é possível inferir que as ações organizacionais são orientadas pelo caráter teleológico do mercado (orientado pela obtenção de lucro), de modo a perseguir uma melhor performance para os resultados desejados. Claro que isso se aplica às organizações que visam se adequar e acompanhar as transformações impulsionadas pelos sistemas situados no macroambiente. No caso da gestão da diversidade pela Avon Brasil na atualidade, é interessante apontar que o posicionamento de recrutar profissionais que pertencem a determinados grupos/recortes da sociedade é uma realidade. Exemplo disso foi a contratação de E2 pela Avon Brasil:

[...] minha antiga chefe, que foi quem me contratou, [...] me falou assim: “E2, é o seguinte, [...] você tem todos os [requisitos?], você trabalhou, você tem experiência, blá blá, mas tou contratando você porque você é um homem gay. E eu preciso de um homem gay pra discutir comigo e falar sobre como que a gente vai trabalhar com a população LGBTQ. Então, assim, você, assim, tá sendo contratado porque você é gay, porque você é uma poc. (E2: 29 anos, gerente de Advertising; 15/01/2020).

Para além da formação e da trajetória profissional apresentadas por E2, o fato de ele ser um homem gay foi essencial para que acontecesse a sua efetivação, visto que a Avon Brasil tinha a pretensão de manter um trabalho voltado para público LGBTQIA+, cujo relacionamento teve início em 2015 com a peça “#EuUsoAssim: Outubro Rosa estrelando Candy Mel[6]”. Explicitamente, E2 destacou que a empresa contrata:

[...] as pessoas que podem fazer as coisas certas, que vão ser guardiões das coisas certas, nos espaços corretos, pra que a gente garanta que os nossos valores como empresa sejam sempre reciclados. (E2: 29 anos, gerente de Advertising; 15/01/2020).

É possível apreender que o posicionamento da Avon Brasil na questão da gestão da diversidade vai além de um retorno imediatista e visa também a transformação organizacional frente aos desafios impulsionados pela sociedade. Trata-se de uma estratégia que contribui para a instauração de um ambiente aberto e para que a empresa possa estar em um processo constante de retroalimentação, “oxigenando” suas práticas. Contudo, é importante considerar que a contratação de E2 não é resultado de uma política, mas de um episódio isolado em um cargo de nível estratégico.

Para a Avon Brasil, refletir a diversidade no setor de beleza, segundo o gerente de conteúdo e PR Lucas Fajardo (em entrevista à Promoview, plataforma especializada em Brand Experience), é:

[...] dar voz e representatividade, é ser consciente e responsável, quando o consumidor se sente representado, ele se sente respeitado. O ato de democratizar a beleza está intimamente ligado à ideia de oferecer oportunidades iguais, de forma justa e responsável para todos. Por isso, estereótipos desafiadores estão no centro de muitas de nossas ações e campanhas. (Promoview, 2021, online).

Ao analisar o “Código de Conduta Avon” com o objetivo de compreender se e como a gestão da diversidade está formalmente registrada pela empresa, aponto, a princípio, duas observações. A primeira diz respeito ao texto de apresentação do material que, assinado pelo, à época, diretor executivo Jan Zijderveld[7], evidencia fortemente o propósito de valor da empresa, elevando-a a uma conceituação imagética que vai além da finalidade do lucro.

Um dos principais motivos para ter me juntado à Avon é que fui inspirado pelo propósito da empresa. A Avon é muito mais do que apenas uma marca de beleza — é um movimento global com o claro propósito de empoderar mulheres e fazer diferença na vida das pessoas. (Código de Conduta Avon, 2018, p. 2).

Dentre as intencionalidades vislumbradas, a marca é posicionada como o meio para que a missão de empoderar mulheres seja alcançada, pressupondo que quem acredita na causa se associa à empresa. Em outras palavras, a causa seria a razão de existência da organização, sendo posta como a “engrenagem” que faz tudo ser mobilizado. A propósito, é interessante pontuar que os discursos de E2 e E3 estavam em plena sintonia com o discurso de apresentação do Código de Conduta Avon, uma vez que trouxeram a história da empresa e o seu propósito em vários momentos da entrevista como reforço do posicionamento institucional. Exemplo disso pode ser visto nos trechos a seguir:

[...] a gente fala que a Avon nasceu há 130 anos. E quando a Avon nasceu, a Avon já nasceu com um DNA, uma... uma questão sobre empoderamento feminino [...] e a gente já empoderava financeiramente mulheres, antes mesmo de as mulheres poderem votar, antes mesmo do [...] movimento sufragista. Então, a gente se orgulha de ter no nosso DNA, como companhia, sempre estar pensando à frente do que o mundo está pensando e buscando [...]. (E2: 29 anos, gerente de Advertising; 15/01/2020).

[...] a Avon é uma empresa que ela se criou de maneira... ela é disruptiva, né?!. Ela desafia o status quo. A própria criação dela é um desafio ao status quo. [...] Então isso já era uma coisa disruptiva que desafiava o padrão da sociedade. E assim, é a... basicamente é a cultura que a gente carrega dentro da Avon. (E3: 32 anos, Analista Sênior de Comunicação Corporativa; 15/01/2020).

Os entrevistados destacaram o fato de a empresa ter nascido com um modelo de negócio baseado na força de trabalho da mulher, antes mesmo dela ter conquistado direitos importantes, como o direito ao voto nos Estados Unidos, em 1920.

Como segunda observação, destaca-se que, desde o seu surgimento, a missão da Avon permanece a mesma, e as outras causas são adicionadas e trabalhadas paralelamente, tendo como base os valores institucionais, a saber:

Dentre os valores apontados acima, o “respeito por todos” pode ser tido como um princípio universal, de modo que a questão da diversidade sexual, identidade e expressão de gênero, encontra pleno respaldo para ser trabalhada institucionalmente, isto é, na cultura da organização, refletindo, grosso modo, dois direcionamentos: quem ela é e o que ela quer ser. Importa, por agora, compreender o que ela está a dizer. Inclusive, a pauta tem ganhado cada vez mais força, considerando o contexto social e o interno da empresa. Segundo E2, o público interno da companhia é composto, significativamente, por pessoas LGTBQIA+.

E a gente vai, pra se manter com esse mesmo pensamento, se manter com essa mesma cabeça fresca, de companhia, a gente vai vendo quais são os nossos próximos, as próximas coisas que a gente precisa trabalhar, os próximos movimentos que a gente precisa acreditar. E, dentro dessas... dessas conversas, [...], a gente entendeu que falar sobre movimento LGBT era uma questão muito importante pra gente como companhia - por diversos motivos, é... sendo o maior deles é que o público LGBT faz a companhia, a gente tem uma população LGBT dentro da Avon. [...] Então, assim, é quem vende a Avon é também LGBTQ. E quem consome a Avon é LGBTQ. (E2: 29 anos, gerente de Advertising; 15/01/2020).

É importante salientar que a Avon, diferentemente da questão de raça/cor e gênero, não possui um banco de dados com informações sensíveis[8] acerca de seus empregados no que diz respeito a aspectos como a orientação sexual autodeclarada.

As reuniões e os grupos de discussões internos são a base para se refletir o posicionamento da empresa frente às questões situadas no macroambiente. Para tanto, a constituição de um espaço democrático que permita a liberdade de expressão é baseada no valor “confiança”, devendo os colaboradores atentarem para a prática do ouvir, do compartilhar ideias, do falar franca e abertamente, conforme o Código de Conduta Avon (2018). Ademais, E2 expressou, informalmente após a entrevista, que ser pago por uma empresa para discutir pautas sociais é algo que não conseguia imaginar até ingressar na Avon, e que se sentia realizado porque tinha a oportunidade de colaborar com questões que refletiam aspectos da sua existência.

A Rede pela Diversidade, criada em 2015, surgiu no Brasil e cumpre o papel de “ser um foco permanente na empresa para fortalecer a diversidade em todas as instâncias, e garantir o ambiente de pluralidade que enriquece não apenas o negócio, mas as pessoas” (Avon, 2017, p. 8). Nesse sentido, discussões internas são provocadas visando a orientar as ações e estratégias da empresa, de modo a posicionar a diversidade como um valor universal no âmbito da cultura organizacional. A iniciativa para a constituição da Rede pela Diversidade, ao contrário da experiência de outras organizações globais, não foi “importada” da matriz (geralmente situada em países desenvolvidos) e, a princípio, ela não foi concebida pela alta gestão, sendo resultante de fluxos impulsionados por colaboradores da área administrativa da empresa localizada em Interlagos, São Paulo, conforme E2 explicita abaixo:

Então, esses grupos pela diversidade, eles sugiram de uma maneira até orgânica, não foi fomentado pela liderança, mas foi por, eh... grupos diversos que lá existiam, que entendiam que as pautas minoritárias deveriam ser discutidas mais abertamente na Avon. E eles se juntam voluntariamente pra falar sobre isso. [...] veio de baixo pra cima, ãããã... E foi abraçado pela liderança como algo que, “poxa! se isso é uma discussão que tá acontecendo na sociedade, a gente também tem que discuti-la aqui dentro da Avon”. E isso vai carregar todos os nossos, ããã..., todas as nossas comunicações, seja, enfim, interna, externa. (E2: 29 anos, gerente de Advertising; 15/01/2020).

Os grupos aos quais E2 se refere dizem respeito às iniciativas que surgiram de modo pontual (a exemplo de palestras e grupos de conversa) que, aproveitadas as experiências pela Avon, impulsionou a constituição da Rede pela Diversidade, sendo composta por quatro células, a saber: Gênero; Raça; Pessoa com Deficiência (PCD); LGBT. Em se tratando do material de apresentação da Semana da Diversidade - ano 2017, a Figura 1 ilustra como a Rede está articulada, de modo que cada grupo, que no material é intitulado de célula, é representado por um círculo.


Figura 1
Formação da Rede pela Diversidade Avon 2017
Avon, 2017

Ao analisar a Figura 1, é possível inferir que: I) Gênero é representado pelo maior círculo, pressupondo que se trata da maior causa da empresa. Entendimento que evidencia alinhamento com a razão de existência da Avon; II) Raça, PCD e LGBT são representadas por círculos de tamanhos iguais, dando a entender que as causas estão no mesmo patamar de importância. No entanto, a discussão que perfaz a questão Raça é apresentada com prioridade, uma vez que a empresa possui uma política de contratação que almeja alcançar o patamar de 50% do corpo organizacional composto por pessoas negras; III) Existem pontos de intersecção entre as células Gênero, Raça e PCD, demonstrando relações entre as causas. No entanto, Gênero e LGBT não possuem ponto de intersecção, “abrindo margem” para problematizar a inexistência de uma relação necessária, pois é inconcebível pensar a causa LGBTQIA+ e não a relacionar às questões que versam sobre gênero.

É necessário destacar que as lideranças das células da Rede estão posicionadas em um locus social que as permitem falar e agir no que diz respeito às questões relacionadas aos grupos que estão a representar. Isso significa dizer que, por exemplo, o líder da célula LGBT se identifica com a respectiva bandeira, uma vez que pertence a tal minoria. No entanto, cabe ressaltar que, de acordo com Ribeiro (2017, p. 71), “o lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas”. Desse modo, são configurados lugares de potência. Isso porque o “comum” é construído e mantido pelas vozes hegemônicas.

Acerca da associação dos profissionais às células da Rede pela Diversidade, E1 salienta:

Cada célula possui um líder, escolhido de forma voluntária, em que são propostas ações, atividades e novas políticas dentro de cada um dos temas, de forma que garante a constante transformação cultural da companhia. (E1: 26 anos, executiva de contas; 11/12/2019).

Em caráter complementar, requer destacar a fala de E2:

[...] Na verdade, a gente... não foi nesse sentido que foi a... que foi o pensamento dos líderes, mas por afinidade que acaba conectando uma coisa com a outra, né?. Então, tem a [profissional X] que é de gênero, a [profissional Y] que é a nossa líder de raça, que é uma mulher negra. Tem eu que sou de LGBTQ. Tem [profissional Z] que é do PCD. [...] é mais uma questão de afinidade [...] e a profundidade de conhecimento no assunto pro líder. Pra as outras pessoas que tão na célula, aí são pessoas diversas que tão a... tão associadas aquela célula pra fazer multiplicações culturais. Mas o líder, especificamente, a gente procurou ter é cada pessoa com uma profundidade em cada um desse assunto pra que a gente conseguisse conversar e dialogar. (E2: 29 anos, gerente de Advertising; 15/01/2020).

A discussão sobre lugar de fala não deve ser reduzida à dimensão individual para não incorrer em erro - mas que, obviamente, também não pode ser descartada. Isso porque um indivíduo pertencente a um grupo oprimido pode entoar um discurso destoante, legitimando, inclusive, a opressão. Há de ser considerado, também, a possibilidade de o indivíduo não ter “maturidade” crítica e filosófica para discutir as consequências discriminatórias (Ribeiro, 2017). Assim, o fato de um indivíduo pertencer a uma minoria não implica dizer que, ao proferir um discurso, ele está a ocupar uma posição de representatividade, pois pode estar exercendo o papel de protagonista apenas para si (ou para alguns poucos) e não para a coletividade de modo legítimo. Justamente por ser uma questão delicada o lugar de fala, E2 expressou o seguinte:

[…] E a gente sabe que a gente num... tem todo mundo ali pra falar ao mesmo tempo. Mas dentro de comunicação a gente se preocupa que se não tem ninguém dentro da Avon que é responsável, que tenha aquele lugar de fala e que possa discutir aquilo de verdade, a gente vai buscar alguém pra ser o apoio dessa campanha e que tenha esse lugar de fala. [...] Então, a gente, quando a gente não tem o lugar de fala, a gente entende que a gente não tem, a gente chama as pessoas pra fazer aquilo da maneira certa. (E2: 29 anos, gerente de Advertising; 15/01/2020).

Dado o exposto, é possível visualizar a Rede pela Diversidade como uma ferramenta que visa empreender as vozes historicamente interrompidas, uma vez que possui legitimidade institucional, conferindo um espaço para reflexão e construção de estratégias discursivas acerca do mote de suas células. E que o resultado disso é, consideravelmente, materializado em produtos de comunicação, visando aos públicos que se relacionam com a organização. Se “[...] as opressões estruturais impedem que indivíduos de certos grupos tenham direito à fala, à humanidade” (Ribeiro, 2017, p. 69), a Avon Brasil tem agido contrariamente ao promover a visibilidade da diversidade (ainda que não compreenda a sua totalidade) no matiz da Rede.

Considerando que as ações que promovem a diversidade alcançam uma visibilidade global na companhia, importa salientar que a Avon tem assumido, desde 2018, compromisso junto à

Organização das Nações Unidas no combate à discriminação contra pessoas LGBTQIA+. O trabalho no ambiente corporativo tem como base a instituição de Padrões de Conduta Empresarial nas relações com os stakeholders, sobretudo com fornecedores, parceiros de negócios e consumidores. A Avon ilustra bem isso no seu Código de Conduta Avon e no Código de Conduta Global de Fornecedores ao estabelecer premissas mínimas a serem respeitadas e cultuadas.

Ainda que E2 e E3 não tenham conhecimento sobre as experiências da Avon em outros países no que diz respeito ao tema em discussão, declarações do presidente global da companhia à época, Jan Zijderveld, em comunicado oficial à imprensa quando da formalização do compromisso em parceria com a ONU, levam a compreender que se trata de um posicionamento global da marca. A saber: “[…] Estereótipos desafiadores estão no centro de muitas de nossas campanhas e vamos continuar trabalhando para promover representações positivas de pessoas LGBTI+ em nossos negócios” (Claudia, 2018, online). E2 destaca que a associação à causa LGBTQIA+ se deu por acreditar que a empresa estava pronta para assumir o compromisso.

[…] a gente se preocupa muito lá na Avon de não... não roubar o... roubar o espaço de uma luta que a gente não tá pronto pra roubar ou então de... é se colocar em uma posição que a gente... que a gente não, verdadeiramente, merece. A gente acredita que a gente só pode realmente se comprometer quando a gente... quando a gente tá pronto pra isso. (E2: 29 anos, gerente de Advertising; 15/01/2020).

Com efeito, vale destacar que a Avon é, atualmente, uma das marcas que apoiam a iniciativa do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI (localizado em São Paulo) que, a partir da constituição de 10 compromissos, visa provocar a construção de um ambiente organizacional respeitoso, seguro e saudável para o público em questão, cujas atividades tiveram início em março de 2013. No entanto, seu ingresso se deu apenas em 2017. Sob o mote de temáticas diversas, os encontros realizados visam promover o diálogo e a cooperação entre as empresas para que os compromissos já mencionados possam ser alcançados. Sobre o compromisso institucional ao ser signatária do Fórum, E2 afirma que:

O compromisso institucional aumenta bastante. A gente é colocado bem mais em evidência. Dentro desses fóruns a gente é chamada a falar, a gente é chamada a dar palestra, chamada a participar de painéis. […] é bom pelos dois lados. Primeiro porque a gente é colocado nesse ambiente pra realmente aprender cada vez mais e reciclar o nosso... nosso conhecimento. E também é colocado em ques... em quest.... em posições de serem questionados. (E2: 29 anos, gerente de Advertising; 15/01/2020).

Além disso, os esforços compreendem, inclusive, eventos dedicados à temática - seja por meio de patrocínio, a exemplo da Parada do Orgulho LGBTQIA+ de São Paulo[9], seja pela realização direta de eventos, como a Semana da Diversidade. E, por fim, de acordo com E2 e E3, o posicionamento progressista da empresa encontra barreiras em visões conservadoras por uma parcela do público interno, tratando-se de um retrato similar do que tem acontecido na esfera social, isto é, além dos muros da companhia. Talvez isso encontre respaldo em Giddens (1996), quando da concepção da ideia de ação, considerando que esta não se resume a uma qualidade do indivíduo, mas está intrinsecamente relacionada à essência da organização social ou da vida coletiva.

Considerações finais

Na esteira dos referenciais hodiernos, é requerida, dentre outras características, uma postura socialmente responsável das organizações, implicando, aí, numa preocupação para com a dignidade da pessoa humana. Compreendendo que os discursos e as práticas organizacionais se referem à sociedade por meio da cultura e da ética, a administração e a apropriação da diversidade (em qualquer uma das suas “bandeiras”) pelas organizações (no ocidente) acontecem, necessariamente, em decorrência do processo global de industrialização, urbanização e do surgimento das tecnologias da informação e comunicação, além do movimento de afirmação dos direitos humanos, estes calcados na liberdade individual, na igualdade política e social e na autonomia social. Com efeito, trata-se de um movimento cujos fluxos começaram a ser moldados mais intensamente na segunda metade do século passado.

No caso da Avon, a gestão da diversidade tem acontecido gradualmente à medida em que a empresa acumula experiência e percebe um ambiente favorável para avançar mais ou menos intensamente acerca das pautas que compreendem as minorias da sociedade. Em se tratando da organização nos Estados Unidos, foi um movimento iniciado na década de 1990 e que a literatura acadêmica apresenta o registro da iniciativa. No Brasil, é notório que se trata de um movimento mais recente (com início na segunda metade da década passada), cujos contornos são locais e não há evidências de uma orientação impulsionada pela matriz. Com os desdobramentos impulsionados pelo mercado, é notório que a diversidade passa a compor o campo discursivo a partir de elementos posicionados no contexto sociocultural, com destaque para o que se apresenta como valores sociais, éticos e morais.

O esforço organizacional de investir numa força de trabalho representativa está para o estabelecimento de uma estratégia que visa, a princípio, o alcance dos objetivos organizacionais e que persegue, substancialmente, a obtenção de lucro. O que não é nenhuma surpresa diante do sistema predominante e vigente em muitas sociedades. No caso, o capitalismo. O fato é que, dado o contexto social e os interesses organizacionais, o investimento numa força de trabalho representativa de minorias, a exemplo da Avon, é uma condição sine qua non para o estabelecimento de uma plataforma mercadológica, seja de ampliação ou de sustentação, junto a um nicho de mercado que, por muito tempo, foi “desconsiderado” e esteve plenamente à margem da sociedade.

A lógica da gestão da diversidade na Avon Brasil se desdobrou a partir do reconhecimento. Isto é, primeiro a empresa reconheceu que um dado grupo minoritário (LGBTQIA+), ou parcela dele, era consumidor do seu produto – e que havia espaço para explorar tal nicho. A partir daí, a Avon investiu na contratação de um homem gay que pudesse contribuir com a elaboração de estratégias e gerenciar seus desdobramentos junto aos públicos de interesse. Cuidadosamente, atentou-se para o apelo social do respeito, da inclusão, com observância das discussões acerca das pautas identitárias. Embora haja avanços significativos e representativos, a Avon Brasil apresenta limitação ao não ter uma política de gestão da diversidade que compreenda, minimamente, todas as células contempladas na Rede da Diversidade. O que, obviamente, não se esgotaria na configuração atual dela, uma vez que outros grupos ainda que não contemplados nessa discussão poderiam ser integrados, como o indígena.

Por fim, a Avon Brasil, ao se aproximar da temática LGBTQIA+, tem buscado alcançar um mercado em potencial, bem como instituir novas percepções sobre os fluxos culturais, assumindo uma posição de agente de transformação no que diz respeito à forma que tem buscado representar em suas peças publicitárias. Posicionamentos e desdobramentos orientados, necessariamente, pelo caráter teológico do mercado. Afinal, as sensações de liberdade, empoderamento, realização, dentre outras, são passíveis de serem comercializadas à medida em que estão associadas ao consumo. E que isso deve influenciar, como já tem acontecido na questão racial, sobre a gestão da diversidade sexual e identidade e expressão de gênero pela empresa.

Material suplementar
Referências
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Avon. (2022). Institucional. São Paulo. https://www.avon.com.br/institucional/a-avon?sc=1
Benevides, B. G. (2020). Prefácio. In Benevides, B. G. & Nogueira, S. N. B. (Org.), Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. São Paulo, SP: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2021.
Canclini, N. G. (2010). Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Editora UFRJ.
Claudia. (2018). Avon se junta à ONU para combater a LGBTIfobia em ambientes de trabalho. São Paulo. l1nq.com/DcKiB
Código de conduta Avon. (2018). Código de conduta Avon. https://www.avon.com.br/institucional/etica-e-compliance?sc=1
Cox, T. H. & Blake, S. (1991). Managing Cultural Diversity: implications for organizational Competitiveness. The executive, 5(3), 45-56. https://www.jstor.org/stable/4165021
Cuche, D. (1999). A noção de cultura nas ciências sociais. Edusc.
Cunha, T. (2018). Transexuais são excluídos do mercado de trabalho. l1nq.com/gFqsw Giddens, A. (1996). As novas regras do método sociológico. Gradiva.
Hall, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A.
Ianni, O. (1999). A era do globalismo. Civilização brasileira.
Luhmann, N. (2005). A realidade dos meios de comunicação. Paulus.
Ortiz, R. (2015). Universalismo e diversidade: contradições da modernidade-mundo. Boitempo.
Promoview. (2021). Lucas Fajardo fala sobre como a Avon ‘abraçou’ a diversidade. São Paulo. l1nq.com/NFvpF Retondar, A. (2007). Sociedade de consumo, modernidade e globalização. EDUFCG.
Ribeiro, D. (2017). O que é: lugar de fala. Belo Horizonte, MG: Letramento/Justificando.
Rocha, L. (2017). Diversitywashing. São Paulo. l1nq.com/xzOZ3
Simões, J. A. & Facchini, R. (2009). Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT. Editora Fundação Perseu Abramo.
Yin, R. K. (2001). Estudo de caso: planejamento e métodos. Bookman.
Retondar, A. (2007). Sociedade de consumo, modernidade e globalização. EDUFCG.
Notas
Notas
[1] À época, em se tratando da questão de gênero, os autores fizeram menção apenas à relação binária homem- mulher. Hoje, o entendimento é mais amplo com as discussões acerca da identidade de gênero.
[2] Termo utilizado para definir pessoas nascidas na região do Cáucaso (entre a Ásia e a Europa) ou pessoas de cor da pele branca.
[3] No original: Markets are becoming as diverse as the workforce. Selling goods and services is facilitated by a representational workforce in several ways. First, companies with good reputations have correspondingly favorable public relations. Just as people, especially women and racioethnic minorities, may prefer to work for an employer who values diversity, they may also prefer to buy from such organizations.
[4] O Projeto de Apoio Emergencial para Travestis e Mulheres Trans no Rio de Janeiro foi concebido a partir do cenário provocado pela pandemia do novo coronavírus, covid-19 (Sars-CoV-2), tendo participado 150 travestis e mulheres trans. Mais informações podem ser obtidas em: . Acesso em: 15 fev. 2021.
[5] No original: Avon Corporation used cultural diversity to turn around low profitability in its inner-city markets. Avon made personnel changes to give Black and Hispanic managers substantial authority over these markets. These formerly unprofitable sectors improved to the point where they are now among Avon's most productive U.S. markets. Avon President Jim Preston commented that members of a given cultural group are uniquely qualified to understand certain aspects of the world view of persons from that group.
[6] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?vubYp8HcI1HQ . Acesso em: 08 nov. 2020.
[7] Jan Zijderveld foi anunciado como novo CEO da Avon em fevereiro de 2018, após o anterior ter saído em 90 decorrência do momento financeiro difícil da organização, dada a queda constante das vendas. Zijderveld permaneceu no cargo até janeiro de 2020, quando da efetivação do processo de aquisição da Avon pela Natura &Co.
[8] Trata-se de dados pessoais que requerem uma atenção maior, devendo ser tratadas com base na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Para mais informações, consultar: . Acesso em: 28 fev. 2021.
[9] O primeiro patrocínio da Parada aconteceu no ano de 2019 e se estendeu para os anos de 2020 e 2021, sendo que, nestes dois últimos, os eventos aconteceram virtualmente em decorrência da pandemia causada pelo Sars-CoV-2.
QUADRO 1
Perfis dos entrevistados

Elaborado pelos autores (2022).

Figura 1
Formação da Rede pela Diversidade Avon 2017
Avon, 2017
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