Resumo: O território da Praia Grande da Cajaíba, situado em Paraty – RJ, sofre um processo de despossessão desde a década de 1960, com a abertura da estrada Rio-Santos. Este artigo discute os usos comuns vividos politicamente pela comunidade caiçara que ali r-existe há muitas gerações desafiando os limites da propriedade privada da terra, fruto de grilagem. Terreiro, território, memória e usos comum são categorias conceituais centrais mobilizadas na compreensão da reprodução da vida, na produção cotidiana de conhecimento e na cartografia das práticas comunais no processo de retomada do território. O artigo discute, ainda, se a posse assume sua força ontológica e epistêmica ao ser entendida como território da comunidade tradicional.
Palavras-chave: território caiçara,Praia Grande da Cajaíba,política dos comuns.
Abstract: The territory of Praia Grande da Cajaíba, located in Paraty, RJ, has suffered a dispossession process since the 1960s with the opening of the Rio-Santos road. This article discusses the common uses experienced politically by the caiçara community that has re-existed there for many generations, challenging the limits of private land ownership, the result of land grabbing. Terreiro, territory, memory and common uses are central conceptual categories mobilized in the understanding of the reproduction of life, in the daily production of knowledge and in the cartography of communal practices in the process of reclaiming the territory. The article also discusses whether possession assumes its ontological and epistemic force when understood as the territory of the traditional community.
Keywords: caiçara territory, Praia Grande da Cajaíba, politics of the commons.
Dossiê
A política do comum em corpos-territórios caiçaras: uma prática, um porvir e uma afronta à propriedade privada da terra
The politics of the common in caiçara bodies-territories: a practice, a future and an affront to private land ownership
Recepção: 26 Fevereiro 2023
Aprovação: 13 Junho 2023
Este artigo entrelaça estudos sobre o território caiçara refletindo sobre propriedade, posse, território, terreiro, usos comuns e memória. Nestas linhas nos propomos a interpelar a propriedade privada da terra presente em uma comunidade caiçara, apresentando frutos de uma etnografia que alicerça a defesa do território tradicional no movimento da chamada retomada.
Sobre o território e a comunidade caiçara da Praia Grande da Cajaíba, situada em Paraty - RJ, incidem inúmeras formas de violência perpetradas por grileiros que requerem a propriedade privada da terra desde que chegaram com a abertura da rodovia Rio-Santos, na década de 1960.
A grilagem em Paraty opera violências cotidianas sobre a comunidade, ameaçando-a, contratando jagunços armados (mais recentemente os drones também sobrevoam o território vivido caiçara), restringindo os usos comuns, prometendo qualquer acordo estapafúrdio, apresentando-se como ambientalista ou propondo planos de turismo assentados em resorts (in)sustentáveis e milionários que transformariam os caiçaras em mão de obra assalariada em seu próprio território. Tal como ocorre em diversas regiões brasileiras, a grilagem de terras se afirma por meio de expedientes violentos e utiliza-se de artimanhas possíveis no campo jurídico: ora forja títulos de propriedade em conluio com cartórios, ora contesta judicialmente a posse daqueles que sempre viveram, desde seus avós, no território.
Escrever sobre a retomada caiçara na Praia Grande da Cajaíba, nos dias de hoje, passados 20 anos da primeira vez que conhecemos suas gentes, sua natureza e toda a trama da vida, é um processo que reconhece as muitas perdas advindas da grilagem da terra, do êxodo forçado a partir de violências, do contato avassalador com o turismo, dos embates contra uma política ambiental preservacionista preconizada por gestores de Unidades de Conservação a quem ainda custa demais admitir a presença e a vida das chamadas populações tradicionais em seu estreito vínculo com o território e a natureza. Reconhece-se também as continuidades e as recriações na produção da vida e no hacer comunidad (QUINTERO WEIR, 2020) que descortinam que a vida-semente ali continua a brotar. Na circularidade ontológica e epistêmica, há algo recomeçando ou algo que não cessa de morrer e renascer contrariando à grilagem.
Entenderemos o movimento de retomada do território caiçara na Praia Grande da Cajaíba em consonância com Nêgo Bispo (2019, 2020), Eloy Terena (2018) e Arturo Escobar (2016).
Eloy Terena, advogado, reivindica a legitimidade das retomadas de terras indígenas, tendo a Constituição Federal de 1988 como instrumento legal.
As retomadas de terras são instrumentos próprios e legítimos dos povos indígenas para (re)territorializar espaços que forma alvo da conduta territorial do Estado – ou seja, terras que foram invadidas ou retiradas – e fazer valer seus direitos étnicos esculpidos na Constituição Federal. Diferentemente do olhar capitalista, para os povos indígenas o território não tem valor de mercado, mas sim valor de uso – e uso coletivo. O espaço é local das possibilidades. (TERENA, 2018: 12)
Retomada também é um termo utilizado por Arturo Escobar (2016), que defende a ocupação ontológica dos territórios como mote para as retomadas após processos de despossessão. O cerne das retomadas, para o autor, compreende as ontologias relacionais inspiradas na cosmopolítica zapatista de “Mundos donde quepan muchos mundos” (ESCOBAR, 2016: 12). Essa ocupação ontológica dos territórios é pauta das chamadas epistemologias do sul que rompem com explicações monolíticas de um mundo único e está presente na agenda de muitas comunidades indígenas brasileiras. Tonico Benites (2018), antropólogo ava kaiowá, afirma:
A única possibilidade que está colocada para as famílias indígenas é a reconquista de seus tekoha mediante a estratégia da luta e da reocupação ou retomada (jah jaike jevy). A vitória já obtida através dessa prática de reocupações, bem como os vários casos de ocupações sustentadas por longos períodos, reforçam a decisão adotada e indicam que, apesar dos inúmeros sofrimentos, as ações do Aty Guasu continuam a ser apoiadas pelos protetores da natureza e dos cosmos. (BENITES, 2018: 25)
Por sua vez, Nêgo Bispo, Quilombola do Saco do Curtume, no Piauí, propõe a ação de “contracolonizar” e relatar os saberes orgânicos de sua comunidade - das gerações que não findam porque a ancestralidade é presente nos corpos-terreiros - e consagra a força da circularidade dos corpos e do conhecimento da geração avó no enunciado: “começo-meio-começo” (BISPO, 2019, 2020). Essa assertiva, além de guardar sujeitos ontológicos, desmonta qualquer pretensão moderna de tempo linear profano, alijado do espaço e dos corpos, e reitera a ideia de que os territórios devem ser retomados.
Este artigo, objetivando discutir, no movimento da retomada, a posse em sua força ontológica e epistêmica, fortalecendo o território da comunidade tradicional, encontra-se organizado em quatro seções. Na primeira, há o relato etnográfico da presença da comunidade
no território; na segunda, apresenta-se o tempo das violências (papéis, palavras, leis e propriedade); na terceira parte, discorre-se sobre a política dos comuns e seus reflexos na posse vivida; corpos-territórios constituem o âmago da quarta parte.
Os comunitários caiçaras da Praia Grande da Cajaíba vivem, em seu território, na interface bruta entre a propriedade privada da terra (e suas vilanias, como processos de reintegração de posse e contratos de comodato), a posse individual, as terras de uso comum e a sobreposição com uma Unidade de Conservação que ali chegou na década de 1990.. No reconhecimento de suas educadoras e de seus educadores populares, caiçaras que “sentipensam”. assentadas e assentados em seus territórios tradicionais, atestamos a produção cotidiana de um conhecimento, vivida a partir de relações comunais, que sustenta a abundância de muitas formas de vida humanas e não-humanas, contestando a lógica capitalista de produção da propriedade privada da terra que produz a escassez.
Na Praia Grande da Cajaíba, a mestra Dona Benedita Maurício dos Santos (Dona Dica) e sua família, o mestre Seu Altamiro dos Santos e sua família perseveraram frente à grilagem e, hoje, ainda sem verem seus processos solucionados, cuidam de netos que brincam livres, colocam o cerco de pesca na água, transformam sazonalmente os ranchos de cuidado com os aviamentos de pesca em ranchos de turismo - os quiosques - e cultivam quintais e roças. A integridade de seus corpos, em conformidade com a mata atlântica, cria um laço do corpo-território ao território-floresta e ao mar nessa porção sul do estado do Rio de Janeiro, em Paraty.
A pergunta que suscita mais conversa é: você é nascido aqui? Dela se originam tantas outras como: onde está enterrado o seu umbigo? Onde moraram seus pais e os avós? Onde foi a primeira casa deles, como viviam aqui...? A resposta “sou nascido e criado e com os filhos todos
enraizados” já denota que a conversa será longa, perpassará nascimentos, criação, educação (vivida no cotidiano em presença dos avós, com fazeres e saberes), trabalho, alianças, cuidado com a natureza, mutirões (um princípio dos comuns) e festas, desaguando em como se resiste e se dá continuidade à cultura enraizando-se, por meio dos filhos, no chão caiçara, um território contestado..
Saber a idade cronológica de cada morador caiçara que vive ou viveu na Praia Grande da Cajaíba. não expressa exatamente o vínculo com o território ou com a vida porque o tempo não é plano, não é linear e não se encontra desvinculado do espaço. O tempo - já anunciou também Carlos Rodrigues Brandão (1999) - tem seus marcadores longos, curtos, médios e próximos ligados pela memória à natureza e à vida. Dona Bidica, antiga moradora da Praia Grande, contava que, por ser quase parteira, cuidava das crianças que nasciam, cuidava de seus umbigos e banhos e também das mulheres em puerpério. Acompanhando o crescimento de cada criança, tornou-se madrinha de muitas. Ela sempre se referia à ocorrência de um acontecimento relacionando-o ao nascimento de uma criança da comunidade: “Quando nasceu o Titinho, quando Maria teve Anildo, no tempo de Mariana...”. Crianças nascendo e vingando marcam a vida do território e da comunidade e isso não é pouco, pois se encontra na ordem do encantamento e dos laços com a vida e com a reprodução social da comunidade. Os umbigos das crianças caiçaras são enterrados em lugares sacralizados que marcam o território vivido, protegendo as crianças de serem mesquinhas ou sovinas.
Há ainda associações do tempo e do espaço com casamentos, com a chegada do pastor de uma Igreja Evangélica, com algum grande aguaceiro que mudou a geomorfologia da barra do rio na praia, com a cheia da cachoeira. Outros tempos, os mais longos, são referidos como “no tempo dos antigos”, na “épa da fartura”, “no tempo em os homens entendiam a língua dos bichos”. Dona Silvana relatava:
Meu pai conta de uma rede... dois mil, três mil tainha, tiravam a barrigada de ovos, secava pra tomar com café, era uma beleza, tinha fartura, e o resto dos peixe eles enterravam, as tainhas vinham pulando, inté bonito. Era uma coisa demais, ninguém dava conta de vender em Paraty. Era a épa de fartura. (CAVALIERI, 2003: 30)
A partir da ideia de trajetórias coetâneas. de Massey (2008), aprendemos que tempo e espaço são coetâneos quando a memória habita os corpos dos comunitários assentados em seus territórios. Ou seja, tempo e espaço tornam-se coetâneos entre si, há uma trajetória que coexiste. Os corpos, por sua vez, são mais que uma expressão individual de uma cultura, são territórios que se interconstituem entre si, com o tempo e com a natureza de forma circular: “começo-meio-começo”, como adverte Nêgo Bispo (2019).
Há, ainda, na narrativa dos moradores, o tempo das festas, da chegada da bandeira do Divino na comunidade, o tempo dos mutirões, o tempo da abundância ou a “épa de fartura”, como dizia Dona Silvana..
Ainda em relação ao tempo, Seu Maneco de Dona Silvana, certa vez perguntou: “E o que é esse negócio de 1998?”. Se a conversa sobre ser “nascido e criado. é longa e prenhe de significados, a explicação sobre o calendário gregoriano foi bem desencantada e carente de sentido. Era ele, Seu Maneco, quem sabia contar as histórias do tempo em que os homens ainda entendiam a conversa dos bichos..
Estamos aqui a afirmar que a vida e os vínculos da comunidade em seu território são ontológicos e vividos a partir de perspectivas comunitárias. A chegada da estrada Rio-Santos, na década de 1960, transformou-os (quase mesmo que digo deformou-os) em despossuídos. Juridicamente passaram a ser entendidos como os posseiros - como se ser posseiro fosse crime e não é - pois não detinham a propriedade privada da terra. Foi chegado o tempo das violências que perduram nos dias de hoje.
Perguntar sobre papéis – em que a idade, por exemplo, poderia ser comprovada - causa constrangimento a alguns na Praia Grande da Cajaíba. Papéis, as “peles de imagem”, como assevera David Kopenawa (2015)., molham e estragam. Papéis podem expulsar comunidades de
seus territórios, papéis importam àqueles que têm a cultura letrada e não àqueles que por meio da oralidade vivem. Papéis e propriedade privada são coisas do branco., do estrangeiro que ali chegou - e continua a chegar porque o processo da colonialidade insiste na produção intensa e contínua de invisibilidades e apagamentos. Papéis receberam, nas décadas de 1960 e 1970, “uma firma” - um carimbo dos dedos – e, desde então, quase como mágica, essa “firma” é aceita pelos tribunais como assinaturas de cidadãos de direito sem nenhum questionamento acerca das condições em que foram colhidas. Como nos adverte Célia Xacriabá (2020)10, papéis aceitam qualquer tinta, menos a do jenipapo e a do urucum, estas mais afeitas aos corpos, abrigos de espíritos e negadas como epistemologias.
Muitos caiçaras de Ubatuba, Ilha Bela, Paraty, Caraguatatuba, após ‘firmarem” algo (termo utilizado bem frequentemente por eles que sabem que não assinaram, que este mundo das assinaturas não lhes pertence), sem poder ler e escrever, acreditando nas palavras de alguém de fora, viram-se réus em processos de reintegração de posse ou foram expulsos de forma sumária aceitando qualquer acordo. Como muitos relatam, “saíram de suas casas a troco de pinga” e/ou viraram comodatários em seus próprios territórios.
Priscila Siqueira (1984), em “Genocídio dos Caiçaras”, relata como alguns caiçaras contavam rindo que algum branco chegara e quisera comprar a posse e eles vendiam porque comprar e vender a terra só poderia ser um absurdo. Terras não são propriedade de ninguém, terras são territórios nos quais se vive, aos quais se pertence. Milhares de caiçaras perderam suas terras e ficaram perdidos ao “firmarem” algum documento, ao existirem em terras devolutas ou, ainda, ao venderem considerando que essa obra-manobra só poderia ser uma brincadeira de branco que certamente não os prejudicaria. Espanto nos causa não a percepção dos caiçaras sobre a compra e venda por meio de ‘firmar’ papéis, mas sim o fato recorrente de juízes aceitarem o teor dos contratos, sejam eles de compra e venda, sejam de comodato. Não basta grilar as terras, é necessário violentar todo o sistema jurídico.
Na Praia Grande da Cajaíba, em virtude de não terem o letramento completo, muitos tiveram a digital colhida - firmaram - nas “peles de imagem” que hoje compõem os processos judiciais de reintegração de posse contra eles. Nesse território, também foram utilizados os expedientes de compra e venda ou, ainda mais cruelmente, a estratégia do contrato de comodato no qual os moradores, a troco de nada, “firmam” um papel assumindo-se como “moradores de favor”, reconhecendo o recém-proprietário de terra, que chegou de repente, em meados da década de 1950 ou 1960, como o dono11.
Em dissertação de mestrado, Cavalieri (2003) apresentou, recorrendo ao trabalho etnográfico, diversas entrevistas com os moradores sobre o processo de grilagem e os contratos de comodato:
O Gibrail dizia: vende porque eu compro leite pra sustentar as crianças. Meu sogro, que é meu tio, também vendeu e não viu uma lata de leite. As crianças ficaram niquiladas, um com dez mês, o outro com um ano e meio. Morreram. Falou que dava mais dinheiro e nunca mais deu nada. Titio vendeu e fomos para Angra, lá tinha medo dos fugidos, aí o titio foi buscar a gente e moramos na Praia Vermelha. O Gibrail comprou o pedaço de um e vai pegando mais na frente.
(...) Ele já pombou aqui comigo. Eu queria criar mais galinha pra comer, queria plantar, o Jorge [capataz à época] não deixava, trouxe a polícia, tirou retrato e tudo, dizia que queria botar pra baixo, jogar a casa embaixo (...) Eu acho que a casa está assinada, ele veio buscar e disse pra assinar pro Manuel e pro Bidico.
[...]
Então, a história da minha assinatura foi assim: eu fui em Paraty, aí ele foi e eu tava de frente ali com... ali no finzinho, aquele restaurante que ele tem ali, aí ele foi e me chamou: Vem cá, vem cá, cê mora na Praia Grande? Ele sabia que eu morava na Praia Grande e falei: Moro sim; Cê quer assinar..., assina aqui, assina o negócio, aqui, provando que cê mora lá na praia Grande; Eu não sabia de nada, né? Aí eu não sabia assinar, não sabia de nada, aí eu fichei o papel e deixei lá, com ele. Ai quando vi [muitos anos depois] ele já tinha botado testemunha, botado tudo, na minha presença não foi nada disso. Como é que pode, né? (CAVALIERI, 2003: 33/34)
Somente histórica e politicamente é que podemos circundar tal ímpeto excruciante com o qual a grilagem de terras opera na afirmação da propriedade privada da terra e de seu comércio.
Com a consolidação dos Estados Modernos, o Estado foi estabelecido como agente fundamental e a forma mercadoria tornou-se central. O Estado garante a reprodução da relação mercantil no modo de produção capitalista, instituindo juridicamente uma tríplice aliança entre
(i) sujeito de direito, (ii) objeto e (iii) contrato. De acordo com Parker (2017), a forma jurídica tornou-se reflexa da forma mercadoria.
No Brasil, como bem sabemos, a Lei de Terras foi instituída em 1850. Até essa data, todas as terras da colônia pertenciam à coroa portuguesa, sendo a cessão de uso concedida aos capitães-donatários das capitanias hereditárias, os quais, por sua vez, concediam o uso àqueles que estivessem dispostos a cumprir os ditames da exploração, do extrativismo e da ocupação territorial. Foi a partir dessa lei que a terra no Brasil passou a ser mercadoria, ou seja, passou a ser comprada e vendida como outra mercadoria qualquer. Em uma lógica profundamente colonial, foram homens brancos, varões, que tiveram acesso ao registro das terras e ao início de seu processo de mercantilização (Gustavo Caboco, artista da etnia Wapichana, cunha o termo “Coma Colonial., que nos parece muito pertinente, tanto quanto o “Assombro Colonial. de Luis Rufino)12. O proprietário de uma terra privada, sujeito de direito possuidor de um objeto, passou a ter direito de excluir todos que tinham acesso à terra como um bem comum e de explorá-la à exaustão, corroborando com a escassez de água, de saúde, de alimento e de floresta que vivenciamos hoje.
Aos posseiros, legítimos moradores (a Lei de Terras e a Constituição Federal de 1988 assumem a existência deles, mas na prática são criminalizados, quase sempre tornados réus), caberia, naqueles tempos, o registro de seus pedaços geométricos, suas posses, nas paróquias, mas poucos o fizeram. Diga-se de passagem, em consonância com Massey (2008), que a geometrização traduz uma concepção bem primária de espaço, aquele que serve à cartografia dos Estados-Maiores em consonância com a reprodução do capital.
Quando Marx afirmava que as mercadorias não iriam sozinhas às prateleiras, certamente não poderia entender, porque seu contexto era outro. A forma como a terra-mercadoria foi levada ao mercado para ser negociada, aprofundou as assimetrias dos lugares de poder causadas pela colonização nas latitudes sul. A invenção dos sujeitos de direito, apregoando que todos são iguais diante do mercado para comprar e vender, já vem sendo debatida, à luz da crítica à teoria do valor, em alguns poucos fóruns de direito.
Larissa Parker (2017: 208)13, advogada e mestre em filosofia, por exemplo, ao se debruçar sobre a mercantilização da natureza, adverte que a Teoria Geral do Direito se organiza ainda, fortemente, a partir da forma mercadoria entendida como produto da relação de um modo de produção específico no qual as trocas mercantis só podem ocorrer com a generalização do sujeito de direito (livre e igual). Ressalta que esse sujeito de direito é adjetivado: branco, varão, europeu e proprietário14. Regulados por contratos, assegurados pelo Estado, sujeitos de direitos puderam comprar e vender objetos. De acordo ainda com Parker (2017: s.p.): “Puderam compor a história das coisas humanas, continentes inteiros, no período colonial, como objetos de apropriação de um determinado sujeito de direito”. Centenas de milhares de não-sujeitos de direitos, portanto objetos de direitos, foram comercializados no processo de escravização que provocou a diáspora de África por séculos.
A mercadoria-terra, fundamento do Estado Moderno Burguês, que organiza os contratos a partir da propriedade privada da terra, seria aquela que asseguraria a riqueza e a liberdade para alguns sujeitos de direito, ainda assombra aqueles que se sentem pertencentes à terra e ontologicamente resistem de forma coletiva em seus territórios.
A mercadoria-terra consolida-se também pela grilagem de terras, chaga brasileira que vem sendo esquadrinhada pela geografia, pela história, pela sociologia, em busca de caminhos para a questão agrária brasileira, que nos últimos tempos se funde com a questão ambiental. Para a mercadoria circular, contratos precisam ser forjados. Em conluio com tabeliões de cartório, a grilagem descobre brechas na cadeia dominial de títulos coloniais e/ou títulos que passaram a existir a partir da Lei de Terras ou, ainda, descobre as terras devolutas da região e passa a registrá-las em seu nome, forjando contratos de compra e venda. Após o registro, ou durante esse processo, o grileiro cria estratégias de controle, submissão (na tentativa de subalternizar) ou de expulsão (como os contratos de comodato ou os processos de reintegração de posse) a fim de legalizar seus títulos de propriedade privada e branqueá-los - lembrando de quem seria o branco para Kopenawa (2015), Brum (2021) e Hernández (2020), já citados.
Como afirma Maurício Torres (2018): “A concepção da propriedade como direito quintessencial cumpre a vital função ideológica de legitimar socialmente a privatização de terras públicas, inclusive quando ilegal e a expropriar povos e comunidades tradicionais” (TORRES, 2018: 286).
Em contraponto à propriedade, Dona Bidica, ex-moradora da Praia Grande, em 2003 (século XXI, portanto, mais de 150 anos da Lei de Terras), ao descrever as posses dos moradores, contava: “Esta nesga de terra é da Belinha, casada com o Benedito onde tá construída a barraca verde. Pega do pé de baixo, pega o barranco, passa na toca grande, atravessa a cachoeira e volta pro pé de araçá.” (CAVALIERI, 1999: 54).
Na Península da Juatinga, as posses são relatadas como sendo da família. São as avós ou os avôs que cedem um pedaço da posse para que os filhos e os netos construam suas casas. Seus marcos fronteiriços, como o de Belinha, descrito acima, referem-se ao conhecimento assentado nos corpos-territórios, à ocupação tradicional e ao costume vivido.
Na disputa contra a cartografia do Estado em sua relação promíscua com a reprodução do capital, mapas outros são criados por meio da proposição da cartografia social. Diferentemente do registro fraudulento, muitas vezes criado no processo de grilagem nos cartórios, a posse assume sua força ontológica e epistêmica ao ser entendida como território da comunidade tradicional.
Como aponta Almeida (2018), nos mapas advindos da cartografia social, há uma série de símbolos e narrativas que anunciam formas políticas de organização e categorias de autodefinição. É ele que sustenta:
Uma distinção necessária para início de conversa: a proposição de uma “nova cartografia social”, enquanto orientadora de práticas de pesquisa, distingue-se do sentido corrente do vocábulo “cartografia” e não pode ser entendida como circunscrevendo-se a uma descrição de cartas ou a um traçado de mapas e seus pontos cardeais com vistas à defesa ou à apropriação de um território.
(...) Ao contrário de qualquer significação única, dicionarizada e fechada, a ideia de ‘nova” visa propiciar uma pluralidade de entradas a uma descrição aberta, conectável em todas as suas dimensões, e voltada para múltiplas experimentações fundadas, sobretudo, num conhecimento mais detido de realidades localizadas. A verificação in loco de situações empiricamente observáveis remete, sobretudo, a relações de pesquisa e de confiança mútua entre os investigadores e os agentes sociais estudados, que se referem aos chamados povos e comunidades tradicionais. (ALMEIDA, 2018: 58)
Na cartografia social criada com o Projeto Povos15 emergem no território da Praia Grande da Cajaíba: área de fundeio, poita, área de pesca, igreja, camping, mangue, núcleo familiar, ocupações históricas, restinga, roças (atuais e antigas), agroflorestas, casa de farinha, sertão, várzea, cachoeira, trilha, captação de água, campo de futebol antigo, manejo florestal, manejo madeireiro, praia... O mapa a serviço da comunidade revela a implosão da posse individual e da propriedade privada da terra, ao mesmo tempo que traduz os usos comuns.
Há uma diversidade de processos de territorialização vivida e imaginada por quilombolas, caiçaras, quebradeiras de coco, atingidos por barragens, comunidades ribeirinhas, castanheiros, seringueiros, beiradeiros, faxinalenses... Indicamos, entre outras, três características que emergem nesses processos: serem comunidades tradicionais, terem práticas comunais em boa parte do território, conviverem com a natureza de forma mais íntegra e política.
Os caiçaras também são inseridos na chave comunidade tradicional. Esse tema já foi e continua sendo muito deslindado, vez que, desde o final da década de 1980, muitos autores se ocupam dele. Há inúmeros dispositivos legais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, a Constituição Federal, o Decreto nº 6040, que Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), e o Sistema Nacional das Unidades de Conservação (SNUC) que, juntos, conformam um arcabouço de proteção diante da despossessão. Não é o foco deste artigo16 entrar no debate sobre quem é tradicional ou não porque queremos refletir sobre as práticas comunitárias, presentes no recorte do território caiçara que vivenciamos e que contrariam a propriedade privada da terra.
Sobre o tema ficam, contudo, duas provocações vindas de mulheres com marcante ascendência indígena na América Latina. Julie (Truduá) Dorrico (2022), indígena, brasileira e wapichana17, afirma:
O começo de 1500 não é nosso.
Tampouco o conceito de primitivos, pré-modernos, tradicionais. Nem toda essa linguagem que decreta início e vícios coloniais.
Não é nosso Marco, ou as Fronteiras, ou as Aldeias, ou qualquer parâmetro de hierarquização.
Não tem mais ou menos brasileiro – fronteira simbólica desse Estado-nação.
Se negociamos todos esses códigos, reconhecendo-nos indígenas, brasileiros e comunidades, é porque acreditamos em uma civilização anterior. Já vivida por nossos o´ma´kon - que são gente/bicho/gente.
Como bichos congregamos a floresta, e lutamos contra o garimpo e toda lei, decreto, e políticas governamentais que estimulam a devastação.
Sempre seremos, com orgulho, bicho-gente em qualquer enredo da colonização. É nosso direito viver na floresta segundo nossos ancestrais.
(DORRICO, 2022: s.p)
Silvia Cusicanqui, socióloga, docente na Universidad Mayor de San Andrés, na Bolívia, reivindica sua ascendência andina – aymara especialmente - na crítica ao multiculturalismo que, segundo ela, tornou-se teórico, racializado e exotizante nas academias. Em suas palavras:
Ao falar de povos situados “na origem”, nega-se a coetaneidade dessas populações, excluindo-as das disputas da modernidade. Outorga-se a elas um status residual, de fato convertendo-as em minorias, reduzidas a estereótipos indigenistas do bom selvagem guardião da natureza. (CUSICANQUI, 2021: 97)
Sua aposta é por um mundo mais borrado, tecido mais mestiço, ch’ixi, em suas palavras, que aposte na diferença (e não nos essencialismos) e na força da autodeterminação das culturas, suas epistemologias e ontologias e que seja, sim, em seus modos de ser e produzir, contra o Estado.
Códigos negociados com Dorrico (2022) e mais insubmissos e ch’ixi, com Cusicanqui (2021), retornamos ao território caiçara, que, assim como o tempo, não é linear, não é sinônimo de terra, de posse ou propriedade na forma de polígono que possa ser mensurada por qualquer órgão do Estado.
O território guarda a coetaneidade (MASSEY, 2008) de inúmeras trajetórias - eu diria humanas e outras que humanas, trajetórias de tempo e espaço - e é multidimensional (HAESBAERT, 2021). Ele é abrigo (da cultura, por exemplo), é criação (fonte de vida), é disputa e poder (por ele se luta e ele é, inclusive, disputado pelo Estado). É memória, é natureza, é natureza e cultura juntos. É materialidade e ancestralidade (ter o umbigo de toda a família enterrado num lugar), é ofício e pertencimento.
Os movimentos sociais e as comunidades ditas tradicionais, no processo de reprodução de muitas formas de vida, gestam seus territórios, buscam uma forma de gestão que questiona, na prática, as formas hegemônicas e coloniais. Em boa parte da península da Juatinga, onde se encontra a Praia Grande da Cajaíba, mata, mar, mangue, restinga, águas doces, roças... são apropriadas e produzidas “no comum” e conformam um continuum não homogêneo, não geométrico.
É Silvia Cusicanqui, citada por Rogério Haesbart (2021), quem assevera:
(…) la noción de territorio tiene una dimensión de autopoiesis del espacio, de creación de espacios que son reconocidos como espacios habitados, como espacios vivos, como marcas de la relación entre humanos y naturaleza, la noción de territorio es más una semiopraxis del territorio que una concepción nominalista o política o basada em fronteras. (…) Es un espacio productivo, pero a la vez un espacio de autogobierno, es un espacio en que se reproduce la vida a traves de un pacto tácito entre humanidad y todo el mundo inanimado. (CUSICANQUI, 2013, apud HAESBAERT, 2021: 135)
Como vimos no mapa gerado pela cartografia social18, o mar também é território de uso comum. Os caiçaras se reportam a ele o tempo todo, as famílias que moram à beira-mar estão todo o tempo mirando-o. Reconhecem, muito antes de uma pessoa de fora imaginar, uma canoa ou um barco a motor no horizonte. Enxergam cardumes na “espuma” das ondas. A cada dia, deve ser analisada a possibilidade, ou não, de navegação; a cada 6 horas observa-se a maré tornando mais fáceis o embarque e o desembarque e ditando os momentos de pesca. O mar comunica-se com os ventos e somente estes anunciam se é possível navegar. Mar e vento estão abertos à leitura daqueles que ali vivem. Mar, praia, mata e caiçaras formam o espaço vivo e se constituem mutuamente; a leitura não se restringe às ‘peles de imagens’, dirige-se a todo espaço visível e invisível19 e sua coetaneidade com o tempo.
Seu Maneco da Praia Grande gostava de contar a história do “sueste”: uma direção de vento e um lugar mítico. Certa vez, por volta de 1997, ele afirmou: “No Sueste não tem país nenhum, não tem nada é muito longe. Se tem alguma coisa não é coisa de gente, de ser vivente”. Quando contava essa e outras histórias, com pés na areia, seu olhar ora era manso, ora provocador. Olhar de quem vivia na margem, no entre mundos entre a floresta, o mar e a civilização branca, conhecedor de saberes profundos que fundam um território20.
No mar, cada família sabe seu ponto de cerco (lugar onde se coloca a rede de pesca de cerco) o qual é respeitado e negociado pelas outras famílias e comunidades vizinhas. São quatro visitas diárias nas quais geralmente os homens na Praia Grande saem com a canoa de um pau só levando um filho ou neto para que aprendam e ajudem no ofício de pescar. Ter um cerco no mar garante mais que peixe para alimentação. Há alegria no olhar de uma criança que afirma saber visitar o cerco com o avô, equilibrar-se na canoa, pegar o peixe, nomeá-lo.
A negociação sobre o ponto do cerco guia-se pelos acordos e costume, costume que também garante que não haja excesso ou desperdício de pescados. Para Anna Tsing (2018), “lugares familiares implicam formas de identificação e companheirismo que contrastam com a hiperdomesticação e a propriedade privada que conhecemos”21 (TSING, 2018: 5). Na relação com o mar e com a mata, percebemos mais fortemente as relações de companheirismo entre os caiçaras e formas de vida outras que humanas. É política e amorosamente que os acordos intra e interespecíficos ocorrem.
Enredando mar e terra, a praia. No final da década de 1990, as mulheres da Praia Grande da Cajaíba, quando moravam mais no interior da comunidade, iam para a praia no final da tarde ver os parentes, trocar produtos da roça por peixes. A reciprocidade da economia moral (THOMPSON, 1998) realizava-se muito na praia.
Nos últimos 20 anos, alguns ranchos de pesca transformam-se, na época do verão, em quiosques que vendem comes e bebes para os turistas que chegam atraídos pela beleza natural. O quiosque é o lugar do comércio e este ganha cada vez mais espaço sobre os ranchos de pesca, lugar do encontro para remendar rede, guardar os aviamentos da pesca, a canoa, o motor. Os quiosques – com a chegada da luz elétrica há cerca de 10 anos – têm freezer para armazenar o peixe que pode tanto ser consumido na própria comunidade, como ser vendido na cidade. A praia, lugar de encontro entre mar e terra, hoje, recebe os visitantes e turistas; no final da década de 1990, recebia toda a comunidade em processos de trocas.
Na Juatinga, quase todas as famílias caiçaras têm roça de mandioca. Cuidar dela é um serviço das mulheres. São elas que vão diariamente à roça, quando os homens estão no mar, para manter a roça livre de pragas, para cultivar outros alimentos, para fazer armadilhas, com as crianças, para que cotias não invadam o cultivo. Nos meses de inverno, nos quais não é possível navegar no mar e pescar, a roça torna-se lugar de trabalho de toda a família, os homens ajudam na parte mais pesada de derrubada e de plantio.
O cultivar mais presente nas roças é o da mandioca, mas também podem ser encontradas bananas, batatas doces, abóbora, palmito, mangas... A roça é cultivada pela família e, aqui
também, todos sabem onde se localiza cada roça. As capoeiras existentes hoje atestam a presença das roças mais antigas dos moradores que já não se encontram mais na Praia: roça da Dona Bidica, roça da Juvenia, roça da Dona Silvana e roça da Maria. A toponímia indica as posses praticadas, sendo essa mais uma diferença entre as posses vividas nos territórios e a propriedade do ‘branco’ registrada em cartório e responsável pela escassez, miséria e violência.
Os homens conhecem o interior da mata e, ao serem perguntados do que mais sentem falta quando estão no mar pescando, respondem com frequência: “da mulher, da casa e da mata, do ‘silêncio’ da mata”.
Na mata, os homens vão caçar, rezar, fazer canoa e descansar após uma temporada de pesca embarcada. A mata, ao que parece, é o pedaço do território caiçara que guarda mais mistério. Seu Maneco de Martin de Sá conhecia o jequitibá mais antigo dessa porção da mata. Escolheu um mirante na mata, distante duas horas de sua casa, para orar. Já Seu Maneco de Praia Grande contava histórias de bichos, histórias de macacos que escapavam da caça ludibriando os caçadores, histórias de onça e de como se livrar delas.
A mata também não tem dono, é de uso comum. Muitas vezes, na demarcação das posses, seja para fins jurídicos ou ambientais - como o zoneamento das Unidades de Conservação -, ela é esquecida pelos planejadores ou advogados como parte integrante do território.
Desde 2012, Delmy Hernández, ainda estudante, tornou-se co-fundadora da Colectiva Criticas del Território desde el Feminismo e vem deslindando as opressões que recaem - e continuam recaindo e recaindo – sobre os corpos entendidos como territórios, os primeiros territórios a serem violados desde o início da invasão colonial até os planos neoliberais implicados com o extrativismo que avança sobre os territórios indígenas22. A autora, a partir de estudos e trabalhos com mulheres de comunidades campesinas e indígenas, perguntou: “Qué
pasa con el cuerpo de las mujeres? ¿Los cuerpos feminizados en contextos comunitarios reclaman la misma autonomía que en entornos urbanos donde el paradigma individual es una premisa? (HERNÁNDEZ, 2020: 45). Corpo-território passa a ser, para a autora, uma categoria conceitual em construção e uma metodologia apropriada e recriada pelas mulheres.
No Brasil, a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA) assume a pauta antipatriarcal e incorpora, desde a Marcha das Mulheres, a noção de corpo-território. Em 2019, a I Marcha das Mulheres Indígenas reunidas em Brasília lançou o documento “Território: nosso corpo, nosso espírito”:
Somos totalmente contrárias às narrativas, aos propósitos, e aos atos do atual governo, que vem deixando explícita sua intenção de extermínio dos povos indígenas, visando à invasão e exploração genocida dos nossos territórios pelo capital. (…) Por isso, o território para nós não é um bem que pode ser vendido, trocado, explorado. O território é nossa própria vida, nosso corpo, nosso espírito. (I MARCHA DAS MULHERES INDÍGENAS, 2019)
Dando ainda mais ênfase à força das mulheres e trazendo o debate de gênero para as questões de território, Célia Xacriabá pronuncia “corpa-territória”, demostrando que território é territória e categoria política de muitas camadas de vida e luta.
Considerando o sequestro transatlântico de corpos negros e de corpas negras tão violados e violadas e entendendo, junto com Nêgo Bispo (2019), a circularidade da ancestralidade e sua presença na reprodução da vida, Luis Simas e Luis Rufino (2019), na proposição de uma pedagogia das encruzilhadas, dialogando profundamente com matrizes do candomblé, propõem o termo terreiro.
Os quintais caiçaras, presentes no território caiçara e interligados entre si, eram chamados de terreiro. O termo terreiro23, que definia esse espaço feminino contíguo a casa, hoje é interditado em algumas comunidades de territórios tradicionais influenciadas por uma matriz cristã, sobretudo dos evangélicos, mas não só deles, que proíbe e reprime a ideia de terreiro, justamente pelo fato de ela estar atrelada à macumba, ou seja, com outros tipos de saberes transladados de África e aqui plasmados e praticados.
Simas e Rufino (2019), tratando de terreiro, defendem-no como invenção:
Lembremos que os terreiros são as saídas táticas, a partir da prática do tempo/espaço por aqueles que rasuram as lógicas da desterritorialização e na aniquilação. Dessa forma, a experiência do desterro se dá via retirada compulsória e também pelas vias da
descredibilização do ser e de seus saberes enquanto possibilidades. Para a maioria dos seres que não repousaram nas cadeiras dos privilégios arranjadas sobre os alpendres da Casa Grande, resta inventar terreiros como atos de desobediência, transgressão e continuidade. (SIMAS & RUFINO, 2019: 78)
Para os autores, o nosso corpo é o primeiro terreiro a ser vivido, inventado e perpetuado. Quando chegaram aqui, as diferentes culturas de diferentes territórios africanos com seus corpos-terreiros fabularam terreiro na praia, na mata, na montanha, na rocha, no quilombo, nos sertões.
O corpo, suporte de saberes e memórias, é também terreiro. O corpo é também um tempo/espaço onde o saber é praticado. O corpo-terreiro ao praticar seus saberes nas mais variadas formas de inventar o cotidiano reinventa a vida e o mundo em forma de terreiros. (SIMAS & RUFINO, 2018: 53)
Dessa forma, reconhecemos os terreiros como tática, como estratégia de sobrevivência contra uma ordem instituída que nos separa da natureza. Terreiro é lugar de corpo, bem como o corpo é o primeiro lugar do terreiro.
São os corpos-terreiros, corpos-territórios, corpas-territórias que engendram uma comunidade. Com contradições, movidas por práticas comunitárias, que parecem se esfacelar, mas estão presentes, a comunidade de Praia Grande persiste.
O que vimos afirmando neste artigo é que a retomada e a produção de territórios e territorialidades, de corpos-terreiros e corpos-territórios, ocorrem por meio de relações comunais negociadas por muitos sujeitos visíveis e invisíveis que ontologicamente se voltam contra as cercas da propriedade privada. Ainda que todo o projeto colonial, todo projeto liberal e neoliberal, insista em levantar as cercas, a vida vivida em alguns territórios, pautada no comum, segue na dura negociação cotidiana, insubmissa, nas margens.
Ailton Krenak (2020), importante filósofo brasileiro, da etnia Krenak, inspira-nos na arte de estar na academia em diálogo com as comunidades com as quais nos colocamos parceiras na prática de produção de conhecimento, de território e de comunidade.
A gente resiste de um lugar fundado na nossa memória. Esse é o lugar de potência de onde nós pensamos o mundo também. O nosso mundo e esses mundos todos que circundam a gente quando as pessoas discutem outros mundos possíveis, estão cogitando essa possibilidade de, para além da realidade cotidiana que a gente vive, você também
pensar outros mundos. Mundos onde a experiencia da vida, do contínuo da vida, seja uma imprevisibilidade. (KRENAK, 2020: 97)
No processo de retomada do território, contra a cerca da propriedade, a memória é viva e nos deixa esquecer da violência que recai sobre os corpos quando a terra precisa ser liberada para o mercado. A violência recai sobre cada corpo, recai sobre a comunidade toda.
Todas as famílias que moravam no chamado sertão ou vargem da comunidade da Praia Grande da Cajaíba foram expulsas no começo dos anos 2000: Dona Ivone e Seu Lisiário, Japão, Patrocínia e Seu Luis, Orlando, Dona Juvenia, Bidica e Dedé, Mariana e Severo, Dadá e André. As que moravam na praia também foram expulsas: Seu Filhinho e Maria, Adelaide e Caju, Norvino e Domingas, Flávio, Seu Maneco e Dona Silvana. Por expulsas entendemos aqui, como já vem sendo relatado, processos de reintegração de posse, acordos em troca de ninharia de dinheiro, ameaças de derrubar a casa daqueles que tinham o contrato de comodato, pressões e interdições cotidianas.
Na Praia Grande da Cajaíba, a luta contra a propriedade privada da terra continua. Os processos na justiça estão em curso ameaçando aqueles que vivem por meio da tradição oral, aqueles que retomam, pois estão ancestralmente ligados ao território. A palavra, grande vetor de forças etéreas, diferentemente das letras nas “peles de imagens”, é usada com força e prudência pela comunidade. Cada entrevista dada, cada compartilhamento de vida com as pesquisadoras, cada movimento do corpo mostra que o território vivido pela comunidade dá acesso aos mundos, aos muitos mundos existentes que não podem sucumbir diante da violência da propriedade privada e de seus mecanismos jurídicos e epistêmicos que levam à escassez.
Luis Rufino (2018) é um dos autores do livro Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas onde aparece a ideia de assombro colonial e de corpo-terreiro que será tratada mais adiante.