Artigos livres
Oliveira Vianna: um nostálgico do Império do Brasil
Oliveira Vianna: nostalgic for the Empire of Brazil
Intellèctus
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
ISSN-e: 1676-7640
Periodicidade: Semestral
vol. 22, núm. 1, 2023
Recepção: 07 Março 2023
Aprovação: 28 Maio 2023
Resumo: Este artigo enfoca Francisco José de Oliveira Vianna e sua interpretação do Império do Brasil. Nossa questão principal é: qual a representação que o citado historiador produziu sobre diversas facetas do período monárquico. Para cumprir tal objetivo destacaremos como Oliveira Vianna abordou alguns fenômenos históricos do período como a independência do Brasil, o papel histórico de D. Pedro II, a militarização da política nos últimos anos do Império e o contexto e as razões da queda da monarquia. Partimos da análise da obra “O Ocaso do Império”, mas também nos apoiamos em outros textos historiográficos do intelectual em questão.
Palavras-chave: historiografia brasileira, Império do Brasil, independência do Brasil, militarização da política.
Abstract: This article focuses on Francisco José de Oliveira Vianna and his interpretation of the Empire of Brazil. Our main question is: what is the representation that the mentioned historian produced about different facets of the monarchic period. To fulfill this objective, we will highlight how Oliveira Vianna addressed some historical phenomena of the period such as the independence of Brazil, the historical role of D. Pedro II, the militarization of politics in the last years of the Empire and the context and reasons for the fall of the monarchy. We start from the analysis of the work “O Ocaso do Império”, but we also rely on other historiographical texts of the intellectual in question.
Keywords: Brazilian historiography, Empire of Brazil, independence of Brazil, militarization of politics.
A imagem de nosso país que vive como projeto e espiração na consciência coletiva dos brasileiros não pode, até hoje, desligar-se muito do espírito do Brasil imperial; (...) (Holanda, 1988: 132).
Introdução: a concepção de historiografia de Oliveira Vianna
Francisco José de Oliveira Vianna nasceu em Saquarema, no Rio de Janeiro, em 1883, em uma família de origem rural. Ele se formou em Direito, foi também professor de matemática, historiador e sociólogo. Em sintonia com seu pensamento de cunho autoritário, Viana foi um destacado ideólogo do Estado Novo, consultor jurídico do Ministério do Trabalho desde 1932, membro da Comissão incumbida de elaborar o anteprojeto da Constituição de 1934, bem como um dos principais formuladores da política sindical e social do governo de Getúlio Vargas. Em 1937 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. A partir de 1940 tornou-se ministro do Tribunal de Contas da União. Também foi membro do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB). Oliveira Vianna, falecido em Niterói (RJ) no ano de 1951, deixou inúmeras publicações representativas e importantes acerca da história do Brasil, cujo objetivo era interpretar e identificar o caráter do Estado e da sociedade brasileira. Entre as mais conhecidas podemos citar Populações meridionais do Brasil (1920), Pequenos Estudos de Psicologia Social (1921), O idealismo na evolução política do Império e da República (1922), O Ocaso do Império (1925), O Idealismo na Constituição (1927), Problemas de política objetiva (1930), Raça e assimilação (1932), Formação étnica do Brasil colonial (1932), Os Grandes Problemas Sociais (1942), Instituições políticas brasileiras (2 volumes,1949), entre outras. Suas obras transitam pela sociologia, história, antropologia, psicologia social, direito, ou seja, apresentam um caráter transdisciplinar.
Na visão de Ângela de Castro Gomes, Oliveira Vianna, nas últimas décadas do século XX, tornou-se “um clássico do pensamento social brasileiro”. No entanto, segundo ela, sua identificação política com o governo de Getúlio Vargas por muito tempo “desestimulou o debate em torno de sua obra, tachada em geral de reacionária e racista”. Para Gomes, foram
exatamente essas mesmas características que estimularam, mais recentemente, o interesse e reavaliação da obra de Vianna (GOMES, 2009: 146).
Para Francisco Iglésias (2000), por exemplo, Oliveira Vianna, embora seja mais conhecido como sociólogo, “tem certo interesse para a história, embora suas interpretações sejam frequentemente falhas e denunciadoras da falta de entendimento de processo, da mudança” Segundo Iglésias, seu texto mais importante foi Instituições políticas brasileiras, publicado em 1949. Entretanto, ele salienta que Vianna foi mais historiador nas seguintes obras: Populações meridionais do Brasil, Evolução do povo brasileiro . O ocaso do Império, quando realizou uma .análise comprovadora do historiador que poderia ser” (IGLÉSIAS, 2000: 190).
Quanto ao papel do historiador na produção do conhecimento histórico e sua representação em narrativa, Oliveira Vianna (1959) afirmava a possibilidade do mesmo ser neutro, objetivo: “penso ter feito obra de absoluta imparcialidade julgadora” (OLIVEIRA VIANNA, 1959: Introdução). Na sua visão, a função do historiador era “depor dos altares os falsos ídolos e por neles os benfeitores do povo, os criadores reais da sua história – em suma, os verdadeiros heróis, (...)” (OLIVEIRA VIANNA, 1959: Introdução) No próprio término dessa frase Vianna salientava sua intenção de pôr em altares os “verdadeiros heróis”, o que, portanto, já marcava sua subjetividade, seu olhar e escolhas a respeito dos agentes da história e da versão que gostaria de representar. Como todo historiador estuda o ser humano no tempo passado e a partir de um ponto de vista, além de sempre fazer parte de um tempo e de uma sociedade, a história é escrita pela perspectiva de quem a produz e Vianna não seria um caso diferente. Trata-se, portanto, de uma versão, uma representação – escrita por alguém – do ser humano em sociedade no tempo passado. Oliveira Vianna é prova disso, sua visão positiva do Império do Brasil, seu destaque a D. Pedro II como principal “sujeito da história”, bem como sua ênfase na elite agrária como protagonista da história do Brasil nos oitocentos, “os senhores de engenho”, revelam sua subjetividade, suas posições políticas e, em grande medida, seu uso político do passado, ou seja, sua perspectiva de intervenção no presente a partir da identificação de possíveis características da história e sociedade brasileiras que deveriam ser ultrapassadas.
Neste sentido, podemos considerar que Vianna reafirmava a função da história como mestra da vida (historia magistra vitae), expressão cunhada desde a História Antiga por Cícero, que atribuía como tarefa da história colecionar exemplos virtuosos selecionados do passado social. Para Reinhart Koselleck (2006) o conceito antigo de história, como mestra da vida, que concebia a história como relato exemplar fundado nas experiências foi predominante até meados do século 18, quando iniciou-se um processo de transformação do conceito. A partir de então o conceito de história foi se transformando em um coletivo singular, reunindo os acontecimentos (antigo Geschichteem alemão) e o relato (Historie em alemão) no qual, em razão da aceleração do tempo histórico, o passado se distanciava cada vez mais do presente e, portanto, perdia assim seu caráter pedagógico e exemplar. Ou seja, o conceito de história de Oliveira Vianna, assim como de muitos historiadores de seu tempo, e mesmo inclusive até hoje, ainda era o de “história como mestra da vida”.
Neste sentido, em O Ocaso do Império o historiador também anunciava algumas diretrizes de sua investigação, ao afirmar que tentava descrever “a marcha evolutiva das grandes forças políticas que derrubaram a velha estrutura imperial” (OLIVEIRA VIANNA, 1959: Introdução). Sendo assim, ele destacava sua opção por uma história política. Ao enfatizar que não enfocaria dados biográficos nem cronológicos, Oliveira Vianna, no prefácio da obra, salientava que abordaria as “forças políticas”, explicando que das outras forças, as econômicas e sociais, trataria em volume futuro, que seria a continuidade de Populações Meridionais. Ao considerar que havia “duas espécies de historiadores”, Oliveira Vianna observou que o seu objetivo era “historiar ideias”, objetivando “descrever a evolução da mentalidade das nossas elites no momento justo que passam da grande ilusão monárquica para a grande ilusão republicana”.
Como era usual entre os intelectuais brasileiros do final do século XIX e início do XX, Oliveira Vianna foi influenciado por intelectuais europeus. Por Gustave Le Bon e sua psicologia social, que defendia a existência de “alma da raça”. E pela antropologia física de Vacher de Lapouge, que acreditava no protagonismo e superioridade da raça ariana. Vianna também fora tocado pelas ideias da Escola sociológica do engenheiro católico Pierre-Guillaume-Frederic Le Play (1806-1882) e seu método de construção dos tipos regionais a partir do contexto rural, enfatizando a importância de considerar a propriedade
da terra e a família como instituição primordial de caracterização das sociedades, além de seu determinismo geográfico, que via o clima como determinante na explicação das sociedades.
No Brasil, suas principais inspirações teóricas foram Silvio Romero, Euclides da Cunha e Alberto Torres. Destaco este último, considerado o primeiro pensador brasileiro importante sobre o autoritarismo, defensor do estatismo e do nacionalismo. Segundo Bernardo Ricupero, “o autor de A organização nacional é o primeiro pensador autoritário brasileiro, escola, se é que o conjunto desses autores críticos à República formam uma escola, à qual Oliveira Vianna também pertence” (RICUPERO, 2008: 54). Alberto Torres parece ter se decepcionado com as instituições políticas da Primeira República, o que fortaleceu seu pensamento antiliberal.. Para Ricardo Luiz de Souza (2005) suas ideias derivavam do contraste por ele percebido entre a prática política e as ideias liberais, tais como vivenciadas nas instituições políticas das quais participou, como Presidente do Estado do Rio de Janeiro e ministro do Supremo Tribunal Federal.
As críticas de Torres tinham como alvo, por exemplo, a Constituição republicana, que, segundo ele, não era compatível com o contexto social brasileiro e evidenciava a distância entre as instituições de poder público formuladas e as práticas sociais, orientadas pelos interesses pessoais/privados. Torres também criticava a organização federativa:
A Republica e a Federação. . . mas será preciso dizer que a nossa Constituição é uma coletânea de normas espúrias, onde se encontram ideias antagônicas, com relação aos pontos de vista mais importantes; que não tem existência real, na vida do pais; que, em matéria de regime representativo, retrocedemos para muito aquém da aparência de representação, dos tempos da monarquia; e que o nosso federalismo é justamente o oposto da federação, não tendo fundado a autonomia dos representantes dos poderes estaduais e municipais senão para os opor a autonomia dos povos, nos municípios e nos Estados, e a vida nacional, na política, do pais? (TORRES, 1938: 214).
Aqui podemos aproximar Alberto Torres e Oliveira Vianna, pelo diagnóstico que o último fazia sobre o atraso do Brasil, explicado por ele pela distância entre o país legal, a esfera das instituições e da legalidade, e o país real, marcado pelo “insolidarismo”, categoria-chave do autor para explicar a incapacidade brasileira em construir formas de
solidariedade social modernas. Tal incapacidade era resultado, conforme Oliveira Vianna já destacava em seu ensaio de estreia, Populações meridionais do Brasil, publicado em 1920, da nossa formação histórica colonial portuguesa, marcada pelo latifúndio, pelos “clãs feudal e parental”, e, portanto, pela força do poder privado. Para ele, as possibilidades de solidariedade estavam na ação do “clã fazendeiro” como a “única forma militante da solidariedade social em nosso país”. E mais, segundo Vianna, somente a partir dos interesses políticos e num esquema de patronagem política “essas classes rurais que vemos, no ponto de vista dos interesses econômicos, separadas, desarticulada, pulverizadas, integram-se, na mais íntima interdependência, (...)” (OLIVEIRA VIANNA, 2005: 223-224).
Na análise de Maria Hermínia Tavares de Almeida (1999), a colonização portuguesa na compreensão de seu legado por Vianna “não deu lugar a nada que parecesse com a aldeia ou a polis democrática. Ela foi essencialmente antiurbana, privatista e anti-igualitária. O sistema de povoamento e de distribuição de terras favoreceu a dispersão da população pelo território.” (1999: 298). Os detentores de poder eram os senhores rurais – senhores de engenho, o sesmeiro, o “caudilho do pampa”, o “sertanista”, o “fazendeiro” – agentes históricos que detinham o poder a partir da formação da família extensa, que envolvia relações de parentesco por sangue, com a frequente endogamia entre famílias detentoras de posses e heranças imateriais, como o poder simbólico dos sobrenomes e/ou títulos de nobreza. Muito comum também como matriz de poder dessas famílias extensivas era a prática do parentesco ritual por intermédio das relações de compadrio e afilhados. Neste processo histórico colonial foi se constituindo uma cultura política com normas, usos, hábitos e práticas políticas que foram herdadas pelo Brasil do século XIX e ainda eram vigentes na primeira metade do século XX, o tempo histórico em que vivia, fazia política e escrevia Oliveira Vianna. Lembremos, por exemplo, que a obra “Instituições políticas” foi publicada em 1949.
Oliveira Vianna e a independência do Brasil
Conforme observação de Ricardo Salles, a República foi “uma grande frustração” para muitos intelectuais brasileiros. Salles identificou ilustres historiadores que escreveram suas obras durante a Primeira República até meados do século XX que, ao se decepcionarem
com o regime republicano, formularam uma interpretação idealizada do período imperial. Entre eles destacamos Manuel de Oliveira Lima, Pedro Calmon, João Camilo de Oliveira Torres e José Francisco de Rocha Pombo. Mesmo sobre autores que sofisticaram suas interpretações do Brasil, como Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, Salles afirma que:
(...) há senão uma valorização, ao menos uma condescendência extremamente benévola em relação ao período imperial analisado. (...) No caso de Oliveira Vianna, as instituições políticas imperiais e a figura do Imperador D. Pedro II eram contrastadas, positivamente, à ausência de uma formação mais sólida de nosso povo (grifo nosso) (SALLES, 1996: 28).
Nesta perspectiva, como Oliveira Vianna explicou e caracterizou o Império do Brasil? Qual a sua representação da monarquia e da imagem de D. Pedro II nos seus textos? Para analisar essas questões, selecionamos alguns fenômenos históricos importantes do período como objeto: a independência do Brasil, o ingresso dos militares no cenário político e a crise e queda da monarquia e suas supostas “raízes exógenas”, como dizia Vianna. Iniciemos enfocando a independência brasileira. Na obra Instituições políticas brasileiras, Vianna indagava sobre a relação entre a independência e a possível existência de uma identidade nacional:
Isto importa em indagar se, ao proclamar a sua independência e realizar a sua organização constitucional, possuía o Brasil uma consciência nacional (grifo nosso) e, como consequência, uma política nacional; quer dizer: uma política que fosse a expressão das aspirações íntimas do povo, concretização dos ideais coletivos, que este povo houvesse elaborado. Cada Nação, verdadeiramente constituída e consciente do seu papel na História, tem um destino, uma finalidade, um programa, objetivado numa política nacional, que ela realiza por meio dos órgãos do Estado e com os vários recursos que a sua organização de poderes públicos põe nas mãos dos homens das elites dirigentes (OLIVEIRA VIANNA, 1999: 326).
Ou seja, embora fosse um nostálgico do Império do Brasil e considerasse que o Estado brasileiro passou a ser construído a partir da separação de Portugal, Vianna não identificava a existência de uma identidade nacional no contexto da independência. .
Podemos contrastar tal representação de Vianna com a narrativa factual e nacionalista, por exemplo, de um contemporâneo seu, José Francisco da Rocha Pombo:
Seriam umas quatro e meia da tarde (de um belíssimo dia de sábado) quando, a cerca de meia légua do Ipiranga, se encontraram Bregaro e Cordeiro [os mensageiros] com o Príncipe, e lhe entregaram a correspondência (...) Em seguida num largo movimento de alma, diz alto: - ‘É preciso acabar com isto!’. Esporeia o cavalo, e a grande galope, avança para o lugar onde o séquito se achava. (...) D. Pedro exclama: - ‘Camaradas! as Côrtes de Lisboa querem mesmo escravizar o Brasil; cumpre, portanto, declarar já a sua Independência. Estamos definitivamente separados de Portugal!’ E levantando a espada, num repto de entusiasmo gritou com toda a força dos seus robustos pulmões: ‘Independência ou Morte!’ Este grito é por todos muitas vezes repetido, como em acesso de delírio, e reboa – dir-se-ia – pelo país inteiro (POMBO, 1963: 354).
Ao contrário de outros intelectuais e historiadores de sua época, como Pedro Calmon ou José Francisco de Rocha Pombo, que explicavam a independência imbuída de um sentimento nacional, Vianna apontava que a não existência dessa consciência nacional havia sido resultado de uma colonização fundamentada na grande propriedade rural, nos clãs patriarcais dos senhores de engenho, que dominavam politicamente a sociedade por intermédio de suas redes de compadrio e clientelismo. Para ele, “ao nosso povo tem faltado uma ‘mística nacional’” (OLIVEIRA VIANNA, 1999: 327). Nas palavras dele houve apenas alguns efêmeros “estados de consciência coletiva” na história do Brasil. Não havia ao longo do período do Império do Brasil, de acordo com Vianna, uma expressiva consciência nacional, nem mesmo em fenômenos históricos transformadores como a abolição da escravidão, o movimento republicano e a implantação do regime republicano:
O movimento abolicionista pode ser considerado, de um certo modo, também nacional; mas, o seu objetivo foi atingido muito rapidamente, sem sangue, sem luta. Não foi nacional – e já o demonstrei – a propaganda republicana; também não a proclamação da República: um e outro foram acontecimentos que se processaram em pequenos círculos, ou no meio da indiferença do povo (grifo nosso). Os nossos "estados de consciência coletiva" mais altos, mais intensos, mais amplos têm sido efêmeros, frustros, transitórios. Por isto mesmo, pouco fecundos na constituição e estratificação de uma consciência nacional - robusta, clara, definida, atuante (OLIVEIRA VIANNA, 1999: 332).
Na perspectiva de Oliveira Vianna, portanto, o Estado deveria ser o protagonista, forjando a unidade política e a nação, ainda inexistente. Se não havia na sociedade brasileira
uma consciência coletiva, uma identidade, competiria ao Estado construí-la. Neste caminho, Vianna via as elites que apoiaram a Independência e foram protagonistas do Império do Brasil, a aristocracia rural, conforme sua denominação, como os agentes construtores da nacionalidade. Para ele, o poder dessa aristocracia rural era oriundo não “do prestígio das armas”, mas da riqueza, da cultura e do caráter, portanto, sua matriz de poder estava “no poder econômico”, “na força moral” e “no prestígio da inteligência” (OLIVEIRA VIANNA, 1938: 279).
Meditando bem, a obra, que os nossos estadistas da Independência e do Império empreendem, é realmente ciclópica. Eles são forçados a renovar tudo, tanto os métodos de política como os aparelhos de governo do período colonial - e o fazem com capacidade admirável. E a sua atuação, durante os quase setenta anos do Império, pode ser resumida nessa frase sintética: uma luta heroica e continua em prol da unidade nacional contra a formidável ação dispersiva dos fatores geográficos (OLIVEIRA VIANNA, 1938: 281).
Caberia ao poder imperial, principalmente na figura de D. Pedro II, esta função. A construção de uma imagem idealizada de D. Pedro II teve como um dos instrumentos o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado no contexto da política do regresso conservador ainda no período regencial e depois, durante o Segundo Reinado, tão prestigiado pelo próprio imperador, que participava de reuniões e financiava a instituição.. Com o advento da República, como observou Roderick Barman, o Instituto "tomou o devido cuidado de proteger a reputação de seu patrono exilado" (BARMAN, 2012: 565). Oliveira Vianna inicia o prefácio de O Ocaso do Império justamente assim: “Deu-me o nosso Instituto Histórico, de que sou parte mínima, a incumbência de, na comemoração que ele fez do centenário do nascimento de D. Pedro II, historiar os últimos dias do seu grande reinado, (...)” (OLIVEIRA VIANNA, 1959). No mesmo ano, na própria revista do IHGB, em número comemorativo ao centenário de D. Pedro II, Oliveira Vianna publicou dois artigos. Um sobre o mesmo tema do “O Ocaso”, denominado “A queda do Império”; um segundo sobre o monarca e a propaganda republicana; e, ainda, um terceiro sobre a relação entre o soberano e seu gabinete, intitulado “D. Pedro II e os seus ministros”, reproduzido do jornal Correio da
Manhã, de 2 de dezembro de 1925, com muitos adjetivos elogiosos ao rei, que foi descrito como “agente moderador”:
D. Pedro era um homem ameno e polido, de maneiras discretas e brandas, sem a veemência, os impulsos, os desabrimentos do pai; mas sabia, sob o veludo das suas maneiras, mostrar diante de seus auxiliares de governo firmeza, independência, resolução. Não era um rei molengão e menos ainda um rei preguiçoso: atento, meticuloso, exigente, cioso da exação e da regularidade, os seus ministros agiam certos de que tinham sempre sobre eles, minuciosamente policial e inquiridor, aquele olhar vigilante, a cuja visão panóptica, de acuidade quase microscópica, não escapava nada. Ninguém desempenhou mais a sério a sua função constitucional: foi durante 50 anos, o melhor empregado público do Brasil, (...) (OLIVEIRA VIANNA, 1925: 875).
Como observou José Carlos Reis, ao analisar a obra Evolução do Povo Brasileiro, na ótica de Vianna “O Imperador tornou-se a força centrípeta, a força mestra do mecanismo do governo nacional. Sem o rei talvez hoje fôssemos um amontoado de pequenas repúblicas. A lealdade ao rei superou toda desordem e fragmentação” (REIS, 2000: 171). Esta perspectiva era reiterada em vários trechos da obra Evolução, na qual Vianna destacava como protagonistas da separação política de Portugal, além da “aristocracia rural”, os “estadistas da Independência”. E, mais uma vez, salientava o papel político do Imperador D. Pedro I, tanto em 1822 como também no processo de centralização do poder e integridade territorial alcançada pelo Brasil nos oitocentos:
Os estadistas da Independência encontram a mão, por um acaso feliz, uma peça essencial: um Rei. Com ele, vão fazer gravitar em torno do centro fluminense todas as províncias dissociadas, mesmo as mais remotas. Sem ele, o desmembramento do país seria absolutamente inevitável (OLIVEIRA VIANNA, 1938: 287).
Oliveira Vianna, ao criticar a força do poder pessoal das facções políticas que, segundo ele, só pensavam em seus interesses particulares, era um defensor do poder moderador, ou seja, do poder do rei e de um executivo forte. O poder moderador, ao intervir no governo imperial, mudando o partido que estava no poder, segundo Vianna, atuava como árbitro entre as facções e em favor do bem comum, afirmando:
Essa imparcialidade do ´poder pessoal´ os políticos militantes não a podem, ou não a querem compreender. Julgam essa intervenção da Coroa segundo sua lógica
gregária, a sua lógica de homens de clãs: a queda do seu partido é sempre para eles incompreensível e surpreendente (OLIVEIRA VIANNA, 2005: 322).
Fazia questão de enfatizar que o parlamentarismo do Império do Brasil, apesar de se inspirar nos princípios constitucionais britânicos, distinguia-se do modelo inglês, onde o “soberano reinava, mas não governava”. Aqui, segundo Vianna, a aplicação exata desse princípio provocaria o fracasso do sistema político:
O dia em que o Rei se limitasse a sua mera função constitucional e se alheasse das lutas dos partidos, o poderoso mecanismo, que haviam construído e sob o qual mantêm unido e disciplinado todo o país, estalaria em mil fragmentos e, com ele, a Nação. Eles formulam então, com arrogância e firmeza, o principio contrário - da intervenção do soberano, não só no governo do país, como na sua administração: - "o Rei reina, governa e administra" - dizem pela palavra de ltaborahy (OLIVEIRA VIANNA, 1938: 297).
Aliados ao poder moderador funcionavam ainda duas instituições político-administrativas basilares que reforçavam o poder do soberano: o senado vitalício, usualmente de maioria conservadora, que servia como barreira para potenciais princípios liberais existentes na Câmara dos Deputados Gerais, assim como o Conselho de Estado, órgão consultivo, instância última de interpretação da Constituição e de decisão junto ao Poder Moderador.
Este princípio de que era o Estado – configurado pelo poder do Imperador e por suas elites – que teria a missão histórica de centralizar o poder, unificar o território e, finalmente, construir a nação, também era compartilhado por Alberto Torres. Vianna confirmava: o Brasil era ainda “uma unidade a constituir-se” (OLIVEIRA VIANNA, 1949: 114). Ou seja, ele era adepto de um autoritarismo instrumental que defendia que o Estado deveria moldar a sociedade. Para conseguir esse intento, Vianna percebia, de maneira nostálgica, a centralização política do projeto imperial bragantino como a realizadora dessa tarefa, já que a monarquia conseguira garantir a unidade territorial e obstaculizar a fragmentação político-administrativa do Brasil. Segundo Ângela de Castro Gomes, para Vianna “a centralização política garantia uma orientação unitária e nacional da ação política, não se ‘federalizando’ funções por critérios territoriais” (GOMES, 2009: 156).
Além disso, influenciado pelo contexto político de seu tempo, de fracasso do liberalismo clássico de livre mercado, em colapso nos anos 1920-1930, Oliveira Vianna era
um intelectual em sintonia com a onda conservadora e autoritária que se intensificava no período e cuja resposta política foi a ascensão de movimentos conservadores e de extrema direita que culminaram, na Europa e em diversos países pelo mundo, nos Estados autoritários de cunho fascista. A moda da época de combate aos princípios da democracia liberal como o governo constitucional representativo, eleições livres, liberdade de opinião e expressão, entre outros fundamentos, influenciou o pensamento político de Oliveira Vianna. Tocado por algumas dessas críticas, ele fazia a defesa de um Estado forte, politicamente centralizado e nacionalista, tal qual os Estados fascistas que despontavam naquele contexto. Como afirma Eric Hobsbawm, “os 23 anos entre a chamada ´Marcha sobre Roma´ de Mussolini e o auge do sucesso do Eixo na Segunda Guerra Mundial viram uma retirada acelerada e cada vez mais catastrófica das instituições políticas liberais” (HOBSBAWM, 1995: 115).
Assim, em consonância com a ascensão dos Estados autoritários nos anos 1920-1930, para Vianna, o Estado Liberal, puro ou mesmo imperfeito e "deformado", como seria o da Primeira República, impedia a unidade nacional, o que impunha, segundo ele, o recurso "natural" ao autoritarismo como única forma possível de sobrevivência soberana do Brasil e de construção da modernização institucional necessária para alcançarmos o Estado moderno (MEDEIROS, 1974: 35-36).
A queda da monarquia na visão de Oliveira Vianna
Como o próprio título explicita, na obra O Ocaso do Império, de 1925, Oliveira Vianna objetivou diagnosticar as causas da queda do Império do Brasil. Em primeiro lugar, ele identificou quatro grandes forças que determinaram a queda do regime: o abolicionismo, o republicanismo, o federalismo e o militarismo. Parafraseando Machado de Assis e preocupado em não repetir o erro de historiadores que possuem uma lógica como a do hipopótamo que “tem a fome do infinito e tende a procurar a origem dos séculos”, Oliveira Vianna definiu a conjuntura usualmente estabelecida pelos historiadores como a conjuntura de crise da monarquia, que começa entre os anos 1868-1870, quando da queda do Gabinete Zacarias e início do movimento republicano, e termina com o Gabinete Ouro Preto e a queda do Império, em 1889.
A primeira parte de O Ocaso do Império, intitulada “Evolução do Ideal Monárquico-Parlamentar” confere enfoque ao sistema político imperial, com ênfase para a relação entre gabinete-parlamento-Imperador. Oliveira Vianna elogiava constantemente o modelo político monárquico, pois, na sua opinião, não haveria como “engenhar nada mais perfeito como sistema de democracia representativa” (OLIVEIRA VIANNA, 1959: 7). Na sua versão elogiosa do sistema fazia parte também sua idealizada visão da figura de D. Pedro II. O “príncipe”, na forma de tratamento usual de Vianna, era a força reguladora, o agente da conciliação e reajustamento das peças do sistema, como um bom juiz a arbitrar a relação Parlamento-Gabinete. Conforme Oliveira Vianna, D. Pedro era o árbitro imparcial “fora dos partidos e das vicissitudes eleitorais, pela imparcialidade da sua visão alta e larga, (...)” (OLIVEIRA VIANNA, 1959: 15).
Mais adiante, ao comentar o contexto político da lei Saraiva (1881), novamente o autor elogiava excessivamente o imperador. Entre outras positivas qualificações estavam “Espírito liberal e equânime”, “puro homem de bem”, “Soberano visceralmente democrático, cioso de sua dignidade de rei, mas não do seu direito divino (...) ele não teria nenhuma repugnância em acatar a opinião do povo, (...)”. Entretanto, Oliveira Vianna resolvia esta questão afirmando, a partir de uma citação de Louis Couty, que “no Brasil não existe povo”. Devido a “simplicidade de nossa estrutura social” e “ausência de antagonismo de classes”, não tínhamos também opinião pública e muito menos partidos políticos organizados. Segundo Vianna, os partidos políticos no Império “eram simples agregados de clãs organizados para exploração em comum das vantagens do poder” (OLIVEIRA VIANNA, 1959: 31). Os partidos não disputavam o poder para realizar ideias, o poder era buscado como meio de vida, pela possibilidade de lucrar a partir de seus “proventos” morais e materiais. Vianna, posteriormente na obra Instituições políticas brasileiras, na qual ele buscava caracterizar a formação social do povo brasileiro e o “modo de comportar-se na vida política”, também afirmava que “as organizações partidárias atendiam a interesses particulares” (OLIVEIRA VIANNA, 1999: 292-293).
Ao salientar a força social do poder privado, Oliveira Vianna argumentava que a opressão, ao contrário do que muitos liberais pensavam, nem sempre vinha de cima, do Estado, mas poderia vir da sociedade, das facções e seus poderosos “clãs”, já que medidas
de descentralização contribuíam para o reforço dos coronéis e caudilhos, ou seja, do mandonismo local. Como salientou Bernardo Ricupero, na perspectiva de Vianna, “no Brasil o poder central, ao invés de ser inimigo das liberdades locais, como o é na Europa, seria o defensor dessas liberdades contra os caudilhos” (RICUPERO, 2008: 66). Para Oliveira Vianna, portanto, a descentralização política reforçava o poder privado das elites.
Todavia, sua análise era arguta ao afirmar que o poder privado se valia do Estado de uma maneira parasitária. “Vive-se do Estado, como se vive da lavoura, do comércio e da indústria
– e todos acham infinitamente mais doce viver do Estado do que de outra cousa” (OLIVEIRA VIANNA, 1959: 35). Nesta perspectiva, esta caracterização de Oliveira Vianna sobre o Estado e sistema político brasileiro é muito atual nas análises dos cientistas sociais e historiadores das últimas décadas e o aproxima de diversos intelectuais que refletiram acerca da história e cultura política e ressaltaram o caráter patrimonial do poder estatal na história do Brasil. Podemos citar desde os ensaios de Sérgio Buarque de Holanda (1936), Raimundo Faoro (1958), Fernando Uricochea (1978), como até mesmo historiadores mais recentes como Richard Graham (1997), Maria Fernanda Martins (2007), entre outros..
As origens exógenas da crise da monarquia
Interessante que, ao diagnosticar os processos históricos determinantes do “plano inclinado do Império”, Oliveira Vianna ressaltou que tanto as ideias republicanas quanto o federalismo tiveram origem fora do Brasil, ou seja, eram, nas suas palavras, exógenas. Esta é uma das principais críticas presentes ao longo de todo o texto de O Ocaso do Império. Segundo ele, “sob sugestões exógenas”, os republicanos haviam conjugado os princípios federativos e republicanos. Neste aspecto, Vianna elogiava dois ilustres personagens políticos do Império do Brasil que, segundo ele, mantiveram-se monarquistas, mas defendiam uma monarquia federativa: Visconde de Ouro Preto e Joaquim Nabuco.
Na segunda parte do livro, denominada “O movimento abolicionista e a monarquia”, Oliveira Vianna se preocupou em caracterizar o abolicionismo como tendo origem exógena. Ao citar o manifesto liberal de 1869, Vianna salientou que o modelo de sociedade desejada
pelos abolicionistas era aquele das civilizações cultas europeias. Referenciado novamente em Joaquim Nabuco, ele concluía: “não havia nenhuma razão interna, que nos levasse imperiosamente à abolição”, pois, parafraseando Nabuco, os cativos viviam nos latifúndios como aquela “tribo patriarcal isolada do mundo” (OLIVEIRA VIANNA, 1959: 63).
Além disso, Oliveira Vianna fez questão de enfatizar que não foram amplos setores da sociedade os agentes da abolição, mas sim um grupo restrito, com uma base social estreita, vinculada aos centros universitários, parcela do parlamento, jornalistas. Entretanto, sua avaliação sobre o movimento abolicionista mudou quando o autor abordou a década de 1880, afirmando que a questão tornara-se nacional: “Nenhuma ideia teve, com efeito, maior popularidade no país, a não ser talvez a ideia da Independência”. Para reforçar sua tese, acrescentou que os militares e, citando o manifesto que o Clube Militar dirigiu à Princesa Regente, não capturariam mais escravos fugidos, contribuindo assim para o movimento abolicionista. Além disso, Oliveira Vianna, mesmo que seja de maneira tímida, atribuiu aos próprios cativos um papel significativo no processo histórico, considerando que a anarquia havia se estabelecido nas fazendas por obra da ação dos escravos que se rebelaram e “desertaram das senzalas”.
Da mesma maneira que conferiu restrita base social de apoio ao abolicionismo, Oliveira Vianna afirmou, citando mais uma vez Joaquim Nabuco, que o movimento republicano foi a “arte de construção no vácuo”, apoiado pelos elementos cultos das cidades e com força apenas no sul do Brasil, principalmente em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Concebendo a origem do movimento na reação liberal iniciada com a queda do Gabinete Zacarias, em 1868, Vianna compreendeu que o Partido Republicano formou-se a partir de uma corrente “violenta, radical, ultrademocrática” saída do Partido Liberal. Mais uma vez fundamentando-se em Nabuco, Vianna enfatizava que o movimento republicano era inevitável, visto que o Brasil estava na América e que bastava “considerar a ação sugestiva do ambiente americano, de onde, desde o princípio do século, exceto em nosso país, as realezas haviam sido inteiramente banidas” (OLIVEIRA VIANNA, 1959: 87).
Novamente, Oliveira Vianna destacou o “prestigio do exemplo estrangeiro” para justificar a força das ideias republicanas nas últimas décadas do Império. Sua visão elogiosa
da monarquia aqui aparece novamente, ao defender a centralização política obtida a partir da década de 1840, que “nos deu unidade, prestígio, grandeza” (OLIVEIRA VIANNA, 1959: 89).
Nostálgico do Império, Vianna, apesar de afirmar a descrença nas instituições monárquicas no contexto histórico do golpe republicano, observou que não havia um sentimento republicano generalizado e – fazendo um balanço da história republicana – considerou que ela não deu satisfação às aspirações democráticas e liberais. Não nos esqueçamos que a primeira edição de O Ocaso do Império foi publicada em 1925. Este desencanto com a República, como já salientamos anteriormente, era típico em intelectuais brasileiros contemporâneos a Oliveira Vianna, que, para reforçar uma visão negativa acerca da história republicana brasileira, construíram, em contraste, uma representação idealizada do período monárquico brasileiro.
Entre homens de farda e homens de casaca: a crítica à militarização da política
Na quarta parte de “O Ocaso do Império”, Vianna abordou o papel político dos militares na queda da monarquia. Se durante boa parte do período imperial o exército não havia atuado enquanto instituição política, desde o final da Guerra do Paraguai, segundo o autor, houve uma aproximação entre os militares e os partidos políticos. Oliveira Vianna destacou os militares-políticos Manoel Luis Osório (Marquês do Herval), José Antônio Correa da Câmara (Visconde de Pelotas), Luis Alves de Lima e Silva (Duque de Caxias) e Deodoro da Fonseca. Salientando os militares como a única classe com espírito de corpo do período, Vianna dizia que, no interior da instituição militar, se difundia a construção de um imaginário que contrapunha simbolicamente dois grupos: os “homens de farda” e os “homens de casaca”. De um lado, os militares eram “patriotas”, em contraposição aos civis, os “casacas”, vistos como “corruptos”, “podres”, sem nenhum sentimento patriótico.
Entretanto, a partir desta constatação da força dos militares e da sua interferência na vida política, possivelmente percebendo a significativa força dos militares na república brasileira de seu tempo, Oliveira Vianna fez uma defesa intransigente da incompatibilidade
da vida militar com a vida política: homem de espada e homem de partido formam, na sua opinião, uma “entidade ambígua e monstruosa”:
“(...) todas as vezes que um cidadão de farda sentisse pruridos de envolver-se nas lutas dos partidos civis, o que ele deveria fazer, para uma perfeita igualdade com os cidadãos de blusa, era não só despir a farda, mas também a armadura, abandoná-las, deixando uma e outra dependuradas no sarilho dos quartéis. Somente depois desse gesto de renúncia heroica ele teria o direito de penetrar o campo da política e dos partidos civis, e partilhar das crenças e das paixões dos cidadãos sem farda (grifo nosso)” (OLIVEIRA VIANNA, 1959: 134).
Vianna considerava que a psicologia dos cidadãos fardados era de deflagração. Ou seja, eles não aceitavam as regras da vida política, usualmente marcada por ataques pessoais que, na ótica dos militares, tornavam-se ataques à “honra e dignidade da farda”. Desse modo, haveria para Vianna uma incompatibilidade entre os “homens de farda” e a prática política. As vidas militar e civil eram diferentes e inconciliáveis para ele, pois o militar teria a tendência em defender a sua honra e a sua bravura, já a vida política exigiria diálogo, cavalheirismo. Portanto, para Vianna, o militar na política constituiria um “elemento explosivo” que se definiria pelo “ódio ao adversário” (OLIVEIRA VIANNA, 1959: 136-137). Na perspectiva de Vianna, portanto, militares na política criavam um ambiente belicoso:
(...) Nesse ambiente de paixões, só há um dever supremo: o dever da injúria e da difamação. Nenhum princípio de nobreza. Nenhum princípio de hombridade. Nenhuma lei de cavalheirismo. O que importa é negar tudo, mesmo os elementos da vida, ao adversário, (...) cada batalha política é um drama sombrio e pungente, as vezes sangrento, cujo epílogo é sempre a destruição moral, quando não a destruição física do adversário (OLIVEIRA VIANNA, 1959: 137).
Exemplo desta situação, segundo Vianna, foram os conflitos acirrados entre militares e políticos civis, que ficaram conhecidos como a “questão militar” e que, como sabemos, foram determinantes para a queda da monarquia. Em sua ótica, o novo regime republicano havia recebido, em 1889, desse velho regime (a monarquia), “uma nação pacificada, tranquila, obediente, organizada, progressiva, moralizada”, mas, o ingresso e a maior participação dos militares na política trouxera um novo cenário de instabilidade política, como uma “doutrina perigosíssima, tendente a justificar todos os desmandos dos referidos ‘cidadãos fardados’ contra os cidadãos sem farda” (OLIVEIRA VIANNA, 1959:
145). Ou seja, mais uma vez, na crítica à atuação dos militares na política, Vianna tomava partido pela monarquia e fazia a crítica acirrada aos protagonistas do golpe republicano de 1889, pois, segundo ele, os militares “produziram a queda do Império, pode-se dizer que a parte que eles tiveram foi a principal” (OLIVEIRA VIANNA, 1959: 151).
O interessante dessa crítica à militarização da política que Oliveira Vianna fazia é que sua aproximação com o autoritarismo não significava apoiar ou referendar a atuação dos militares na política. Como vimos, ao conceber a descentralização política e a força política do poder privado em tempos coloniais, Vianna defendia, para superar esses obstáculos herdados da colonização portuguesa, sim, um Estado construtor da nação, desde cima, a partir de um ideal de centralização política, através do qual haveria a construção da unidade, da “mística nacional”, expressão usualmente cunhada por ele, mas no qual os militares não seriam protagonistas da vida política. Tal perspectiva defendida por Vianna, como sabemos, não se concretizou, visto que, ao longo da história do Brasil republicano, como evidenciamos até hoje, os militares se apresentam como atores destacados do cenário político brasileiro.
Considerações finais
Oliveira Vianna, a partir de sua perspectiva da história como “mestra da vida” apresentou na sua escrita acerca do Império do Brasil, já quando abordou a independência, as figuras exemplares da história, como D. Pedro I e D. Pedro II que, de certa maneira, constituíram os condutores do processo histórico do período. Sob um olhar nostálgico da monarquia imperial, Oliveira Vianna idealizou os monarcas e produziu uma versão positiva do Império, salientando como legado do governo imperial a centralização política alcançada, a conservação da ordem social e a manutenção e ampliação da integridade de um extenso território.
Por outro lado, ao contrário de muitos intelectuais das primeiras décadas do século XX, que destacavam a existência de uma identidade nacional como uma das causas principais da independência do Brasil, Oliveira Vianna observou que não havia tal
identidade constituída. Neste sentido, ele foi vanguarda na explicação da criação do Estado nacional brasileiro. Além disso, sua abordagem da história do Brasil, ao enfatizar a força do poder pessoal, dos poderosos senhores de terra, dos clãs familiares, explicitou a ausência ou papel coadjuvante da maioria da população, principalmente dos setores sociais populares, como agentes históricos nos eventos políticos transformadores da nossa história como a independência e mais ainda a crise da monarquia e a implantação da República. E, mesmo a elite política que protagoniza esses eventos, é vista de maneira crítica por Oliveira Vianna, já que ela movia-se a partir de ideias e projetos políticos “exógenos” como o republicanismo e o federalismo, ou seja, nada originais e que não faziam muito sentido ou tinham dificuldade de serem adotados em uma sociedade dominada pelo poder privado e pelo mundo rural. Outra contribuição fundamental e, ao mesmo tempo, sentida por quem vivia no contexto da Primeira República, foi seu alerta e crítica a militarização da política, vista por ele como algo extremamente negativo para o sistema político brasileiro.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Maria Hermínia de (1999). Oliveira Vianna. Instituições políticas brasileiras. In: MOTA, Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico. São Paulo: Ed. Senac.
BARMAN, Roderick (2012). Imperador cidadão. São Paulo: Unesp.
BOTELHO, André (2007). Sequências de uma sociologia política brasileira. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 50, n. 1.
BITTENCOURT, André Veiga (2011). O Brasil e suas diferenças. Uma leitura genética de Populações Meridionais do Brasil. Rio de Janeiro: PPGSA/UFRJ.
CALMON, Pedro (1940). História da Civilização Brasileira. 4ª ed. aumentada. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
DIAS, Maria Odila da Silva. A interiorização da Metrópole. In: DIAS, Maria Odila da Silva (2005). A interiorização da Metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda.
FAORO, Raimundo (1958). Os donos do poder: formação do patronato brasileiro. Porto Alegre: Editora Globo.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho (1997) [1964]. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo, Editora Unesp.
GOMES, Ângela de Castro (2009). Oliveira Vianna: um statemaker na alameda São Boaventura. In: BOTELHO, André e SCHWARCZ (Org.). Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras.
GRAHAM, Richard (1997). Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ.
GUIMARÃES, Manoel Salgado (1988). Nação e civilização nos trópicos: o IHGB e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, v. 1, p. 3-27.
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal (1995). Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). Revista do IHGB. Rio de Janeiro, a. 156, nº 388, p. 459-613, jul-set.
HOBSBAWM, Eric (1995). A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras.
HOLANDA, Sérgio Buarque de (1988) [1936]. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
IGLÉSIAS, Francisco (2000). Historiadores do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Belo Horizonte: UFMG.
MEDEIROS, Jarbas (1974). Introdução ao estudo do pensamento político autoritário brasileiro 1914/1945, Revista de Ciência Política, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, abril/junho.
MOTA, Lourenço Dantas (1999). Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico. São Paulo: Ed. Senac.
KOSELLECK, Reinhart (2006). Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio.
LEAL, Victor Nunes (1997) [1949]. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o sistema representativo no Brasil. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
MARTINS, Maria Fernanda (2007). A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional.
OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de (2005) [1920]. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal.
OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de (1959 [1925]). O Ocaso do Império. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.
OLIVEIRA VIANNA, Francisco de (1925). D. Pedro II e os seus ministros. Revista do IHGB, v. 98, n. 152
OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de (1938). Evolução do povo brasileiro, Evolução do povo brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de (1999). Instituições políticas brasileiras. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal.
PIMENTA, João Paulo (Org.) (2022). E deixou de ser colônia: uma história da independência do Brasil. São Paulo: Edições 70.
POMBO, José Francisco da Rocha (1963). História do Brasil: Revisada e atualizada por Hélio Vianna. 11ª ed. – São Paulo: Melhoramentos.
QUEIRÓZ, Maria Pereira Isaura de (1976). O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo, Alfa-Ômega.
REIS, José Carlos (2000). As identidades do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV.
REIS, José Carlos (2006). As identidades do Brasil 2. Rio de Janeiro: Ed. FGV.
RICUPERO, Bernardo (2008). Sete lições sobre as interpretações do Brasil. São Paulo: Alameda.
SALLES, Ricardo (1996). Nostalgia Imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Topbooks.
SCHWARCZ, Lilia M (1993). O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Cia. das Letras.
SCHWARCZ, Lilia e BOTELHO, André (2009). Um enigma chamada Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras.
SOUZA, Ricardo Luiz de (2005). Sociologias, Porto Alegre, ano 7, nº 13, p.302-323, jan/jun.
WEFFORT, Francisco (2006). Formação do pensamento político brasileiro. São Paulo: Ática.
TORRES, Alberto (1938). A organização nacional. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
URICOECHEA, Fernando (1978). O minotauro imperial. São Paulo: Difel.
Notas