Dossiê
O ressurgimento do conceito tomista de propriedade como base da resposta católica à questão social
The resurgence of the Thomist concept of property as the basis of the Catholic response to the social question
Intellèctus
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
ISSN-e: 1676-7640
Periodicidade: Semestral
vol. 22, núm. 1, 2023
Recepção: 02 Março 2023
Aprovação: 13 Junho 2023
Resumo: O presente artigo objetiva expor e comentar a importância do conceito de propriedade, tal como desenvolvido por Tomás de Aquino, para o desenvolvimento da resposta dada pela Igreja Católica à chamada questão social. Esse filósofo medieval defendeu, em sua Suma Teológica, que a propriedade particular está em conformidade com o direito natural, desde que permaneça sujeita à função social. Assim, a partir da perspectiva metodológica sugerida por Hans Robert Jauss (2002), buscamos remontar o processo de produção do conceito e, depois, os momentos de apropriação, de modo a demonstrar que a Doutrina Social Católica, formulada, incialmente, por Leão XIII, no século XIX, teve como base a perspectiva tomista de propriedade.
Palavras-chave: Tomás de Aquino, Igreja Católica, Propriedade.
Abstract: This article aims to expose and comment on the importance of the concept of property, as developed by Thomas Aquinas, for the development of the response given by the Catholic Church to the so-called social question. This medieval philosopher defended, in his Summa Theologica, that private property is in conformity with natural law, as long as it remains subject to the social function. Thus, from the methodological perspective suggested by Hans Robert Jauss (2002), we seek to reassemble the process of production of the concept and, later, the moments of appropriation, in order to demonstrate that the Catholic Social Doctrine, initially formulated by Leo XIII, in the century, was based on the Thomist perspective of property.
Keywords: Thomas Aquinas, Catholic Church, Property.
Introdução
O presente artigo tem como objetivo expor e comentar a importância do conceito de propriedade desenvolvido por Tomás de Aquino durante a Idade Média para a elaboração da resposta da Igreja Católica à questão social.
Segundo Hans Robert Jauss (2002: 53), o significado de um ato discursivo só se complementa no momento da sua recepção. No caso de um escrito, esse complemento só acontece no momento da leitura, a partir da relação que se dá entre o texto e o leitor. Dessa forma, para analisar as recepções e as diferentes interpretações que um determinado número de pensadores faz de uma obra, parece-nos necessário expor, sintetizar e contextualizar os dois lados da relação: o texto, considerando as pretensões do autor ao produzi-lo, bem como a conjuntura para a qual o dito texto foi destinado; e o leitor, tendo em vista que este se debruça sobre o texto a partir de um capital de experiência e de um horizonte de expectativa próprio.
Em concordância com a indicação de Jauss, recorreremos ao texto no qual ocorreu a elaboração do conceito tomista de propriedade, ou seja, a Suma Teológica, escrita por Tomás de Aquino entre 1265 e 1273. Depois, versaremos sobre as apropriações desse conceito que aparecem nas encíclicas sociais publicadas nos séculos XIX e XX, principalmente a Rerum novarum, escrita por Leão XIII em 1891.
A Igreja e as “coisas novas”
Durante o século XIX, a Igreja Católica enfrentou uma grave crise de autoridade. As raízes dessa crise, que diz respeito à relação entre a instituição romana e a modernidade, remontam aos séculos anteriores. A Reforma Protestante, a ascensão das ideias iluministas e o surgimento de novas formas de organização social e política, provenientes das revoluções Francesa e Industrial, contribuíram de forma relevante para abalar a hegemonia cultural que a Igreja Católica exercia na Europa desde a Idade Média (SILVA, 2018: 24).
Nas palavras de Marshall Berman (1986: 9), a chegada da modernidade ameaçou tudo o que estava estabelecido. A vida moderna era como um turbilhão que se alimentava por muitas fontes:
(...) grandes descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e do lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção, que transforma o conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal explosão demográfica, que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados indivíduos e sociedades; Estados nacionais cada vez mais poderosos, burocraticamente estruturados e geridos, que lutam com obstinação para expandir seu poder; movimentos sociais de massa e de nações, desafiando seus governantes políticos ou econômicos, lutando por obter algum controle sobre as vidas, enfim, dirigindo e manipulando todas as pessoas e instituições, um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão (BERMAN, 1986, p. 10).
As pessoas que viveram esse turbilhão, com frequência, entenderam que a modernidade atacava as suas tradições e as suas histórias. Esse sentimento fez surgir inúmeros “mitos nostálgicos de um pré-moderno Paraíso Perdido” (BERMAN, 1986: 9).
Nesse contexto, a ameaça de perda dos Estados pontifícios e as constantes afrontas ao poder papal, promovidas por autoridades estatais, forçaram os pontífices a agir de modo a marcar o posicionamento da Igreja frente à sociedade moderna (SILVA, 2018: 24). Os debates sobre as possibilidades de atuação da Igreja, diante dos novos tempos, dividiram os fiéis, os sacerdotes e mesmo o colégio cardinalício em duas correntes de pensamento que, por sua vez, geraram dois movimentos: o primeiro, dos chamados “liberais”, cujo argumento era de que a Igreja deveria iniciar uma renovação que incorporasse aspectos da modernidade que não afetassem diretamente as verdades de fé. Esse grupo minoritário parecia disposto a aceitar, inclusive, o liberalismo político.
Já a segunda corrente, da qual surgiu o Integrismo Católico, compreendia que qualquer concessão às novidades, exporia a Igreja à ameaça das heresias e, possivelmente, geraria novas cisões, como aconteceu na Reforma Protestante. Por verem a modernidade como inimiga, os chamados “intransigentes” defendiam a necessidade de que o pontífice conservasse a sua autoridade espiritual e temporal para combater as inovações.
A partir da queda de Napoleão e da reconstrução da Europa assentada no Congresso de Viena, a Igreja passou a assumir uma postura cada vez mais reativa frente à modernidade. Leão XII (1823-1829), Gregório XVI (1831-1846) e Pio IX (1846-1878) são exemplos de papas, cujos pontificados foram marcados pela oposição aos diferentes aspectos dos novos tempos.
Após o falecimento de Pio IX, o bispo cardeal de Perugia, Gioacchino Pecci foi eleito papa, em 1878. Adotou o nome de Leão XIII (1878-1903). Embora tenha, por meio da encíclica Libertas Praestantissimum (1888), denunciado elementos caros à modernidade, como a liberdade de imprensa, de consciência e de religião, Leão XIII enfatizou que a Igreja poderia tolerar suas existências, para evitar males maiores.
A estratégia de Leão XIII para lidar com as filosofias modernas foi revelada em 1879, ano de publicação da encíclica Aetermo Patris.. Tratava-se de recuperar a filosófica escolástica, sobretudo a filosofia tomista, para, a partir desta, combater o pensamento moderno.
Com efeito, na Aeterni Patris, o pontífice versou sobre a relação entre fé e razão, de modo a demonstrar que, embora limitada, a razão oferece subsídio para a fé. Para Leão XIII, Tomás de Aquino foi aquele que com maior perfeição uniu a fé e a razão. Sobre isso, escreveu o pontífice:
(...) Entre todos os doutores escolásticos, brilha, como astro fulgurante, e como príncipe e mestre de todos, Tomás de Aquino, o qual, como observa o Cardeal Caetano, “por ter venerado profundamente os santos doutores que o precederam, herdou, de certo modo, a inteligência de todos”. (...) Tomás coligiu suas doutrinas como membros dispersos de um mesmo corpo; reuniu-as, classificou-as com admirável ordem e de tal modo as enriqueceu, que tem sido considerado, com muita razão, como o próprio defensor e a honra da Igreja (LEÃO XIII, 1879, n. 3).
Ainda na encíclica, Leão XIII listou pessoas e instituições que faziam bom uso das contribuições dadas por Tomás de Aquino à fé católica. Destacou a Ordem dos Dominicanos; as academias de Paris, de Salamanca, de Alcalá, de Douai, de Tolosa, de Louvaina, de Pádua, de Bolonha, de Nápoles, de Coimbra e outras, nas quais Tomás de Aquino reinava como um “príncipe em seu próprio império” (1879, n. 24). O pontífice ressaltou que Tomás de Aquino sempre fora homenageado nos concílios, em meio aos quais as suas obras eram consultadas para que delas se extraíssem conselhos, razões e decisões (1879, n. 26-27).
Por fim, o papa exortou os católicos para que buscassem restaurar a verdadeira filosofia: aquela que está em acordo com os escritos de Tomás de Aquino (1879. n. 28-32). Em conclusão, escreveu o pontífice:
Veneráveis irmãos, com muito empenho, a que, para defesa e exaltação da fé católica, para o bem social e para a promoção de todas as ciências, ponhais em vigor e deis maior extensão possível à preciosa doutrina de São Tomás. (...) Quanto ao mais, diligenciem os mestres, cuidadosamente escolhidos por vós, para fazer penetrar no espírito dos discípulos a doutrina de Santo Tomás; façam sobretudo notar claramente quanto esta é superior às outras em solidez e elevação. Que as academias que tendes instituído ou
houverdes de instituir para o futuro, expliquem esta doutrina, a defendam e a utilizem para a refutação dos erros dominantes (1789, n. 33).
O esforço de Leão XIII para tornar o tomismo uma espécie de filosofia oficial da Igreja não se restringiu à Aeterni Patris. Em 1879, o papa instituiu a Academia de São Tomás de Aquino em Roma e, em 1892, enviou uma carta para todos os professores de teologia, orientando-os a aceitar como definitivas as conclusões de Tomás de Aquino. Quanto aos tópicos, por ele, não mencionados, o pontífice recomendou que se tomassem como corretas as conclusões que estivessem em harmonia com as opiniões conhecidas do pensador nascido em Roccasecca (DUFF, 1998: 241)..
Ao indicar a filosofia de Tomás de Aquino, o pontífice abriu um grande leque de assuntos e de possibilidades interpretativas aos clérigos e aos intelectuais leigos católicos. O pensador oriundo de Roccasecca foi um autor prolífico. Escreveu mais de sessenta livros, Nos quais, abordou questões teológicas, sociais, políticas, filosóficas e econômicas. Um dos temas para os quais as apropriações de Tomás de Aquino foram mais relevantes na atuação da Igreja, durante o século XX, diz respeito à visão do filósofo medieval sobre a propriedade. Em sua Suma Teológica, escrita entre os anos de 1265 e 1273, Tomás de Aquino defendeu que a propriedade estava em conformidade com o direito natural, mas que deveria se sujeitar à destinação universal dos bens (S. Th., II.-IIae, q. 66). Para melhor compreendermos essa definição, cabe começar explicando o que o autor compreendia como “direito natural”. Depois, versaremos sobre como o tema da propriedade aparece na obra do pensador medieval.
O direito natural e a lei natural, segundo Tomás de Aquino
A filosofia jurídica de Tomás de Aquino foi desenvolvida, sobretudo, em duas partes da Suma Teológica: na correspondente ao Tratado da lei – entre as questões 97 e 108 da Pars Prima Secundae; e na parte relativa ao Tratado sobre a justiça – entre a questão 57 e a 122 da Secunda Secundae..
Tomás de Aquino abordou o direito e, por consequência, o direito natural, enquanto versava sobre a justiça. Para o pensador de Roccasecca, a justiça tem como atribuição ordenar a relação entre os indivíduos, dando a cada um aquilo que é de seu direito (S. Th., II.-IIae, q. 57, a. 1). Assim, a justa relação entre os homens pressupõe igualdade. Essa igualdade pode ser positiva, quando decorre de uma convenção humana, ou se dar em razão da natureza. Neste último caso, tem-se o direito natural (S. Th., II.-IIae, q. 57, a. 2).
A lei, por sua vez, é o título que estabelece o que é o direito. Segundo Tomás de Aquino, a lei é a medida dos atos humanos. Ela que leva o homem a agir ou o impede de desempenhar determinada ação. E como ordenar e proibir são atribuições da razão, a lei é tida como algo racional (S. Th., I.-IIae, q. 90, a. 1).
As ações humanas visam a um fim. Para Tomás de Aquino, o fim último estabelecido por Deus, no momento da criação, é a felicidade (beatitude) (S. Th., I.-IIae, q. 3; S. Th., I.-IIae, q. 90, a. 2).. Logo, conclui-se que a lei é o ordenamento da razão que objetiva à felicidade (SILVA, 2016: 190). E como o homem é um ser social, a sua felicidade depende também da felicidade da comunidade que o cerca. Desse modo, a lei deve, necessariamente, ter como objetivo o bem comum (S. Th., I.-IIae, q. 90, a. 2).
Para o pensador de Rocassecca, existiam vários tipos de lei. A lei eterna é aquela que, concebida pela razão divina, governa o mundo, por meio da Providência (S. Th., I.-IIae, q. 91, a. 1). Enquanto as criaturas irracionais apenas atendem aos seus instintos, sujeitando-se completamente à lei eterna, o homem pode, fazendo uso da razão, ordenar sua vontade e agir livremente (SILVA, 2014: 191). Por ser imperfeito e limitado, o homem é incapaz de apreender completamente a lei eterna. Contudo, segundo Tomás de Aquino, há uma forma de o homem participar dessa lei: usando a razão prática para identificar suas inclinações naturais, e buscar, nessas inclinações, os preceitos básicos que serão considerados em suas ações. É essa participação da criatura racional na lei eterna que o pensador medieval chama de lei natural (S. Th., I.-IIae, q. 91, a. 2).
A razão prática é responsável por orientar a ação, considerando a sua qualidade moral (SILVA, 2014: 193). Segundo Tomás de Aquino, isso é possível porque o homem é capaz de
argumentos de autoridade que a fundamentam. Depois disso, o autor apresenta sua solução e finaliza respondendo a cada um dos argumentos de autoridade contrários à sua tese.
discernir entre o bem e o mal. Ora, se o fim último do homem é o bem, as ações humanas estarão em consonância com a lei natural – e, portanto, com a lei eterna – sempre que guiarem o homem para o bem e que o fizerem evitar o mal (S. Th., I.-IIae, q. 94, a. 2).
Desse princípio básico derivam outras inclinações naturais: preservar a vida; preservar a espécie; a vida em sociedade e a busca por conhecimento (S. Th., I.-IIae, q. 94, a. 2). Essas inclinações, uma vez que constituem fins, os quais podem ser universalmente aceitos como bons, representam o centro da lei natural. Assim, todas as práticas que tiverem como objetivo a materialização desses preceitos serão moralmente aceitas e justificáveis (SILVA, 2016: 194).
Tomás de Aquino explicou ainda que os homens, quando avançam na compreensão da lei eterna, podem acrescentar preceitos ao núcleo da lei natural. Esses acréscimos constituem a única forma pela qual os homens podem modificar essa lei, visto que o seu núcleo é imutável (S. Th., I.-IIae, q. 95, a. 2).
Por fim, o Doutor Angélico descreveu as leis humanas como a verdade prática obtida, por meio da razão prática. Por esse prisma, elas são não só úteis, mas também necessárias. As leis humanas disciplinam os homens, seja por advertência ou por coação. Elas são as responsáveis por adequar os princípios estabelecidos pela lei natural às condições específicas de cada comunidade humana (S. Th., I.-IIae, q. 95, a. 1). Entretanto, o autor da Suma Teológica argumentou que as proposições humanas só merecem a força da lei se estiverem em concordância com a lei natural, do contrário não se trata de leis, mas sim da corrupção delas (S. Th., I.-IIae, q. 95, a. 2).
A propriedade na Suma Teológica
A propriedade não possui um tratado próprio na Suma Teológica. Ela foi abordada por Tomás de Aquino dentro da questão 66 da Secunda Secundae, ainda na parte que corresponde ao “Tratado da justiça”. Nessa questão, que possui nove artigos, Tomás de Aquino versou sobre os pecados do furto e do roubo. No entanto, antes de analisar propriamente os pecados contra os bens alheios, o pensador medieval julgou necessário admitir ou não o direito à propriedade. Assim, o autor dedicou os dois primeiros artigos da questão 66 à discussão desse direito.
No primeiro dos artigos, que tem como objetivo explicar se é natural ao homem a posse de bens externos, o filósofo admitiu que o domínio absoluto de todas as coisas pertence apenas a
Deus. Porém, esse mesmo Deus entregou ao homem o domínio útil dos bens terrestres. Dessa forma, o autor argumentou ser natural que o homem possua coisas, para que, fazendo uso da razão e da vontade, tire delas o seu sustento (S. Th., II.-IIae, q. 66, a. 1).
No segundo artigo, Tomás de Aquino tratou da questão relativa ao modelo de posse. Nesse ponto, o autor se propôs a responder se é legítimo ou não a posse das coisas em separado.. A resposta do autor é afirmativa: a posse das coisas em separado é lícita. Contudo, em sua exposição, o filósofo admitiu que, pelo direito natural, todas as coisas pertencem à totalidade dos homens, uma vez que o domínio útil dos bens havia sido entregue por Deus para o sustento de todos (S. Th., II.-IIae, q. 66, a. 2).
Nesse ponto, aparentemente, surgiu uma contradição. Como o direito natural poderia permitir que um indivíduo possuísse as coisas em separado, se os bens estão destinados a todos os homens? Tomás de Aquino buscou desfazer a aparente contradição, explicando que o homem possui dois poderes sobre as coisas: o de administrá-las e o de usá-las. Quanto ao poder administrativo, o filósofo listou três motivos pelos quais a posse das coisas como próprias faz-se necessária: i- porque o homem é mais solícito administrando aquilo que lhe pertence; ii-, porque ele trata com mais eficiência as coisas que estão especificamente sobre seus cuidados; iii- porque a paz é melhor conservada quando cada homem possui as coisas como próprias (S. Th., II.-IIae, q. 66, a. 2).
Sobre o poder de uso sobre as coisas, o Doutor Angélico enfatizou que o homem não deve possuir as coisas como próprias, de modo a privar os demais de utilizá-las, mas sim como comuns. Em outras palavras, o proprietário deve compreender que as coisas que estão sob sua administração não são suas em absoluto, pois, pelo direito natural, elas estão sujeitas às necessidades alheias (S. Th., II.-IIae, q. 66, a. 2).
Para Tomás de Aquino, a necessidade é a justa medida da propriedade. Nessa perspectiva, é lícito que o homem tome, como próprio, aquilo que lhe é indispensável para sustentar a si e aos seus. No entanto, não é lícito acumular deliberadamente. Sobre isso, o autor explicou que as coisas que um homem possui em excesso são, pelo direito natural, devidas aos pobres (S. Th., II.-IIae, q. 66, a. 7). Por fim, o filósofo medieval ressaltou que “em caso de extrema necessidade todas as coisas são comuns” (S. Th., II.-IIae, q. 66, a. 7).
Em suma, Tomás de Aquino descreveu a propriedade em separado como o modelo mais indicado, por sua eficiência administrativa. Porém, explicou que essa posse, no que diz respeito ao uso, é obrigatoriamente relativa. Ela estará sempre subordinada às necessidades da comunidade.
A perspectiva tomista da propriedade foi matéria de muitas discussões travadas entre os católicos entre o final do século XIX e o início do século XX, afinal, foi a partir dela que a Igreja passou a se posicionar frente às péssimas condições de vida enfrentadas pelo operariado durante a consolidação da sociedade industrial.
A Revolução Industrial e suas consequências
Na segunda metade do século XVIII, teve início, na Inglaterra, uma intensa transformação na forma de fabricar produtos. Trata-se da Revolução Industrial, caracterizada pela introdução da máquina no sistema produtivo, que levou os trabalhadores a venderem a sua força de trabalho para os proprietários das fábricas, nas quais produziam bens de forma acelerada (HOBSBAWM, 2009: 35).
Segundo Marx (2003: 427), o uso das máquinas objetivava baratear a produção das mercadorias, aumentando os lucros dos burgueses. Se antes o artesão precisava ser dotado de força física e de conhecimentos específicos para manipular as ferramentas e aplicar as técnicas necessárias na fabricação dos bens, após a introdução da máquina, o trabalho tornou-se mecanizado e pouco complexo. Mulheres e crianças passaram a realizá-lo em troca de baixos salários.
Nesse contexto, as condições de trabalho nas fábricas eram desumanas. Submetidos a longas jornadas de trabalho, que chegavam a dezesseis horas, obrigados a ficarem de pé, em um ambiente insalubre, realizando movimentos repetitivos, homens, mulheres e crianças, comumente, sofriam deformações na coluna e nas pernas. Acidentes de trabalho causavam mortes e mutilações. Dificilmente um operário chegava aos cinquenta anos em condições de se manter produtivo (ENGELS, 2010: 173-203).
A miséria fez-se intensamente presente nas cidades que passavam pela industrialização. Em estudo sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra industrial, Friendrich Engels (2010: 70- 74) escreveu que os desempregados frequentemente morriam de fome. Os
empregados, embora tivessem as necessidades mais básicas supridas pelos baixos salários, não tinham segurança. Poderiam perder seus empregos e, com ele, seus meios de vida. Além disso, os operários viviam de forma indigna. Habitavam bairros sujos e fétidos, compostos por ruas irregulares, comércios a céu aberto e por pequenas habitações sem ventilação adequada. As péssimas condições de trabalho, de nutrição e de moradia faziam com que os operários sofressem com numerosas doenças, como tifo, tuberculose e escarlatina (ENGELS, 2010: 189). A sorte dos camponeses nos países não industrializados ou em processo de industrialização não era muito melhor. Com frequência, famílias inteiras amontoavam-se em pequenos casebres, desprotegidos das chuvas e dos ventos. A subnutrição era comum, assim como as doenças que dela advinham, como a pelagra (MARTINA, 2014: 28).
A inovação tecnológica possibilitou a indústria moderna. Mas, para Giacomo Martina (2014: 29), outro fator foi essencial para que a sociedade industrial se desenvolvesse de forma a empurrar os proletários para condições indignas: as doutrinas econômicas liberais defendidas por pensadores como Adam Smith (1723-1790), David Ricardo (1772-1823) e outros. De fato, o liberalismo econômico forneceu a justificativa para a ambição e para o egoísmo dos burgueses..
Apesar das justificativas baseadas na doutrina liberal, as duras formas de vida enfrentadas pelos operários, sobretudo quando contrastadas com os luxos experimentados pelos burgueses, geravam insatisfação. Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, surgiram vários movimentos críticos à sociedade industrial. Alguns deles eram reformistas, como a Sociedade de Correspondência de Londres, fundada em 1791, que propunha uma legislação destinada à proteção dos operários (BEER, 2006: 245). Outros, românticos, como o Ludismo, que se caracterizou pela destruição das máquinas (BEER, 2006: 430-431). Os movimentos revolucionários, que pregavam modificações de caráter estrutural, foram os que mais repercutiram. Dentre eles, destaca-se o socialismo marxista, que objetivava a tomada dos meios de produção pelos proletários e, por fim, a construção de uma sociedade que superasse a
propriedade e as classes. Esse socialismo tem como data marcante o ano de 1848, no qual se deu a publicação do Manifesto do Partido Comunista.
A posição católica frente à Questão Social
Diante da experiência vivida pelos operários durante a Revolução Industrial, bem como da emergência dos movimentos sociais, no final do século XIX, a Igreja Católica sentiu a necessidade de se pronunciar de maneira firme. Segundo Eamon Duff (1998: 239), os pontífices, desde a Mirari Vos, de 1932, desconfiavam de qualquer projeto de transformação da sociedade e, desde Pio IX, havia tomado o socialismo como um perigo a ser evitado. Para o historiador irlandês, a retórica papal estava mais interessada na obediência aos pontífices e nos conflitos com os príncipes do que nas mazelas dos operários.
A despeito do descaso dos papas em relação às condições do proletariado e da atuação de uma parcela dos fiéis e clérigos, que promoviam uma aceitação da pobreza acompanhada de uma ação estritamente caritativa, alguns católicos começaram a olhar de forma mais atenta para a questão social (MARTINA, 2014: 36). O despertar dos católicos para os problemas sociais foi intensificado pela experiência da Comuna de Paris, em 1871.. Para Giacomo Martina (2014: 47), o movimento revolucionário fez surgir um grande medo de que, caso a Igreja não propusesse soluções aos problemas sociais, perderia cada vez mais fiéis para o socialismo.
Com efeito, o bispo Ketteler na Alemanha, o cardeal Manning, na Inglaterra, e o industrial Lucien Harmel, na França, encabeçaram movimentos em defesa do operariado. O francês introduziu uma série de mudanças em sua empresa, visando a ornar a vida dos seus funcionários mais digna. Dentre seus feitos estiveram: um modelo habitacional, um sistema de poupança, benefícios sociais e de saúde e um conselho de operários que participava das decisões da empresa. Harmel promoveu peregrinações de trabalhadores a Roma, para chamar a atenção dos outros empregadores católicos e do papa para as necessidades do operariado. Em 1889, sua romaria contou com dez mil trabalhadores (DUFF, 1998: 239).
Desde 1884, pensadores católicos da França, da Alemanha, da Áustria, da Itália, da Suíça e da Bélgica reuniam-se, anualmente, em Friburgo para buscar soluções para a questão social. Em 1888, Leão XIII recebeu os membros da chamada União de Friburgo e discutiu as propostas acumuladas nas reuniões dos anos anteriores. O resultado desse encontro foi a encíclica mais famosa do seu pontificado, a Rerum novarum, de 1891.
Em sua encíclica, Leão XIII tratou com seriedade da situação dos operários, vistos como isolados e sem defesa, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada (2009, n. 2). O pontífice teceu duras críticas à doutrina liberal e ao socialismo. A primeira foi denunciada por possibilitar a acumulação de propriedade e de capital, fazendo crescer o abismo entre as classes sociais e empurrando a maior parte dos homens a uma servidão assalariada (2009, n. 2). O socialismo, por sua vez, foi descartado como solução dos problemas causados pelo capitalismo, pois objetivava concentrar ainda mais as propriedades nas mãos do Estado. Segundo o papa, tal ação, ao contrário de melhorar, pioraria a situação dos operários (2009, n. 3).
A concentração da propriedade esteve entre os temas centrais desenvolvidos por Leão XIII na encíclica. A licitude da propriedade privada embasava as discussões sobre a questão social. Com isso, o papa propôs-se a apresentar a perspectiva católica sobre o assunto. Assim, escreveu: “a propriedade particular e pessoal é, para o homem, de direito natural” (2009, n. 5). O pontífice argumentou que esse direito fora instituído por Deus. Afinal, o homem possui a capacidade de alterar o estado natural das coisas para adequá-las ao seu melhor uso. À medida que aplica trabalho sobre as coisas, ele adquire o direito de possuí-las (2009, n. 5).
Na perspectiva leonina, a mesma lógica deve ser aplicada a terra. Dessa forma, quando um homem trabalha em um campo, com o objetivo de tirar dele o seu sustento, é digno que essa terra torne-se sua propriedade. Leão XIII relembrou ainda que a situação do operário que adquire uma propriedade não é distinta da do camponês. Afinal, as economias feitas pelo trabalhador urbano para comprar um terreno ou uma casa também são frutos diretos do seu trabalho (2009, n. 4-6).
Duas leituras da mesma concepção de propriedade
A perspectiva leonina sobre a propriedade está em concordância com aquela apresentada na principal obra de Tomás de Aquino. Contudo, existem especificidades em cada um dos textos. O pontífice, por exemplo, parece ter enfatizado mais o direito do homem à propriedade particular. O Doutor Angélico, por sua vez, ressaltou o fato de os bens pertencerem, em última instância, à totalidade dos homens.
Tomás de Aquino chegou, inclusive, a defender que não comete pecado aquele que, agindo por extrema necessidade, toma algo alheio para si .S. Th., II.-IIae, q. 66, a. 7). Já Leão XIII salientou que a autoridade divina proibiu até mesmo o desejo dos bens alheios..
Com efeito, pode-se dizer que a Suma Teológica, de Tomás de Aquino, e a Rerum novarum, de Leão XIII, apresentam abordagens que privilegiam pontos distintos de uma mesma doutrina. É forçoso reconhecer que o pontífice não deixou de considerar a utilidade comum dos bens em sua defesa da propriedade. Leão XIII escreveu, tal como Tomás de Aquino, que possuir as coisas como comuns, facilitando seu acesso aos necessitados, é uma obrigação (LEÃO XIII, 2009, n. 6).
Além disso, é importante considerar que Tomás de Aquino e Leão XIII escreveram seus textos em contextos históricos distintos, e visando a responder diferentes questões. O filósofo medieval abordou o tema da propriedade, em sua Suma Teológica, buscando lançar luz sobre questões acerca do furto e do roubo. Ademais, seu texto foi direcionado aos estudantes de teologia. Nele, o termo “propriedade” é trazido de forma genérica, abrangendo a totalidade dos bens externos e não, especificamente, a terra ou os demais meios de produção.
Leão XIII publicou sua encíclica em um momento, no qual o debate em torno da propriedade dos meios de produção estava em voga. Sua enfática defesa da propriedade particular objetivava, dentre outras coisas, responder às ideias socialistas, que preconizavam pela propriedade coletiva alcançada, por meio da luta de classes. A alternativa à exploração dos proletários seria, na visão leonina, a busca pela concórdia entre os trabalhadores e os patrões (LEÃO XIII, 2009, n. 11).
Apesar das particularidades de cada texto, é perceptível que Leão XIII não revolucionou a concepção tomista de propriedade. O mérito do pontífice consistiu em trazer à tona a sistematização desenvolvida por Tomás de Aquino, atualizando os argumentos do pensador
medieval, para responder os embates políticos e econômicos que ocorriam ao final do século XIX.
A Rerum novarum, contudo, foi além de marcar a posição da Igreja frente ao socialismo. Ela, com frequência, é apontada como marco fundacional do que hoje é conhecido como a Doutrina Social da Igreja.
A Doutrina Social da Igreja
A Doutrina Social da Igreja constitui o meio pelo qual a Igreja orienta a ação social dos seus membros, anunciando o que ela tem de próprio e denunciando aquilo que contraria a sua forma de ver o mundo. A Rerum novarum com frequência é tratada como marco inicial da Doutrina Social da Igreja, contudo, não se trata estritamente do primeiro posicionamento da hierarquia católica sobre questões sociais. No passado, os papas já haviam feito intervenções em defesa dos mais pobres. Entretanto, a encíclica leonina fundou uma tradição ainda existente no que diz respeito a uma sistematização de princípios destinados a orientar os homens no combate aos problemas sociais (PONTIFÍCIO CONSELHO DE JUSTIÇA E PAZ, 2011, n. 87).
A função da Doutrina Social da Igreja é assegurar a dignidade da pessoa humana. Compreendendo que a Igreja é uma instituição perene, mas que vive e atua no tempo, o Magistério furtou-se de optar por um ou outro modelo político e econômico, uma vez que eles podem ser superados. Em vez disso, escolheu por elencar princípios permanentes que devem iluminar os católicos para que tomem as melhores decisões frente às questões sociais de cada época. Os princípios fundamentais são: a solidariedade, a subsidiariedade e o bem comum. Mas, destes derivam outros.
A solidariedade é um princípio social que objetiva que todos os homens se percebam como iguais em dignidade e em direitos. Dela derivam temas importantes como verdade, liberdade e justiça (PONTIFÍCIO CONSELHO DE JUSTIÇA E PAZ, 2011, n. 192).
O princípio da subsidiariedade propõe-se a regular as relações entre as expressões agregativas de tipo econômico, social, civil, cultural, recreativo ou qualquer outro. Ele define que as sociedades de ordem superior se coloquem em atitude de ajuda (subsidium) em relação às menores (PONTIFÍCIO CONSELHO DE JUSTIÇA E PAZ, 2011, n. 185-186). Por exemplo, o Estado
deve se colocar em atitude de ajuda em relação aos municípios ou às famílias, mas nunca lhes absorvendo ou fazendo aquilo que as sociedades menores são capazes de fazer. Desse princípio, deriva a participação. Ou seja, a obrigação de todo indivíduo ou corpo social de contribuir para o bem comum, fazendo aquilo que lhe cabe (PONTIFÍCIO CONSELHO DE JUSTIÇA E PAZ, 2011, n. 189). O princípio da subsidiariedade está em oposição ao absenteísmo estatal proposto pelos liberais, da mesma forma, contrapõe-se ao socialismo ao limitar a atuação do Estado, uma vez que ela só é aceita em caráter supletivo.
Do princípio do bem comum, visto como “o conjunto daquelas condições da vida social que permitem aos grupos e a cada um dos seus membros atingirem de maneira mais completa e desembaraçadamente a própria perfeição” (PONTIFÍCIO CONSELHO DE JUSTIÇA E PAZ, 2011, n. 164), deriva a destinação universal dos bens e, por consequência, a perspectiva de propriedade privada defendida por Tomás de Aquino – como direito natural, mas submissa ao bem comum.
O desenvolvimento da Doutrina Social da Igreja no século XX
Como iniciadora da Doutrina Social, a Rerum novarum tornou-se um dos mais relevantes documentos da Igreja. Nesse sentido, Igino Giordani escreveu que a carta leonina representou, para a ação social católica, algo comparado ao que foi o Manifesto do Partido Comunista (1848) para a ação socialista (2009: 3). Com efeito, a Doutrina Social foi descrita, recentemente, como uma série de aprofundamentos e atualizações do núcleo original contido no documento leonino. Seguindo essa lógica, mesmo as encíclicas mais recentes continuam apresentando a propriedade particular como um direito natural do homem, subordinado, no entanto, ao uso comum (PONTIFÍCIO CONSELHO DE JUSTIÇA E PAZ, 2011, n 90).
Em 1931, por exemplo, Pio XI publicou uma encíclica em comemoração ao aniversário da Rerum novarum: a Quadragesimo anno. Por meio desse documento, Pio XI reafirmou a importância de interpretar corretamente a concepção de propriedade apresentada na Rerum novarum. Para Pio XI, naquele tempo, muitas leituras da carta leonina foram feitas no sentido de privilegiar os ricos em detrimento dos proletários. Diante disso, o pontífice comentou minuciosamente os argumentos do seu predecessor, ressaltando que Leão XIII foi enfático ao escrever que a propriedade particular deve atender à função social.
A Quadragesimo anno foi marcada pelo contexto pós-bélico, em que se afirmavam, na Europa, os regimes totalitários. A emergência da União Soviética exacerbou a luta de classes. Pio
XI era um crítico ferrenho do comunismo. Com frequência, tratou os bolcheviques como anticristãos e satânicos (DUFF, 1998: 260). Em contrapartida, os grupos financeiros também incomodavam o pontífice. A crise causada pela quebra da Bolsa de Valores em 1929 demonstrou a urgência de pensar em formas de proteger os trabalhadores das variações do sistema econômico. Talvez, por isso, em uma das seções mais importantes da carta, Pio XI falou sobre a necessidade de criar estruturas intermediárias, como as guildas medievais e os sindicatos, por meio dos quais os grupos poderiam se encarregar de forma natural das tarefas sociais que o Estado procurava absorver. À primeira vista, o pontífice parecia apoiar as corporações fascistas estabelecidas por Mussolini, porém, o papa enfatizou a necessidade de que esses órgãos surgissem de forma livre e voluntária (DUFF, 1998: 260).
Em 1961, João XXIII publicou a Mater et Magistra. Conforme a tradição das encíclicas sociais, o papa iniciou seu documento salientando a importância dos princípios sistematizados por Leão XIII, setenta anos antes. Sobre o tema da propriedade, João XXIII dispôs-se a responder a uma questão do seu contexto: se, mesmo com o surgimento dos sistemas previdenciários e com o aumento da capacidade produtiva, que fazia os homens preferirem ser empregados, ao invés de pequenos proprietários, fazia sentido reafirmar o valor da propriedade privada. (1961, n. 104-108). Para o então papa, sim, fazia sentido continuar defendendo o valor da propriedade, pois ela constitui um direito natural e, portanto, seu valor é permanente (1961, n. 109).
Além disso, João XXIII apresentou a propriedade como condição e salvaguarda da liberdade, justificando que os regimes políticos, que negaram a primeira, acabaram por suprimir a segunda (1961, n. 109-111). Na visão do papa, nada adiantava afirmar e reafirmar o direito natural do homem à propriedade sem insistir na sua ampla difusão. Por fim, João XXIII trouxe à tona que, no pano de fundo da Doutrina Social da Igreja, existe um desejo por uma sociedade em que a maioria dos homens seja constituída por proprietários (1961, n. 113-115).
Em 1991, o Papa João Paulo II publicou a encíclica Centesimus annus, que, como sugere o título, comemorava os cem anos da Rerum novarum. Essa foi a terceira encíclica social de João Paulo II, que já havia promulgado a Laborem exercens (1981), sobre o trabalho, e Sollicitudo rei socialis (1988), sobre o progresso e o desenvolvimento.
Na Centesimus annus, lançada no contexto da queda do Muro de Berlim, João Paulo II reafirmou a doutrina leonina sobre a propriedade, mas deu ênfase à subordinação à função social, estabelecida pela destinação universal dos bens. O pontífice também se propôs a versar sobre a atividade produtiva, que, no passado, tinha como pilar o trabalho individual/familiar sobre uma terra tida como própria. João Paulo II comentou o fato de, em seu tempo, o trabalho artesanal permanecer perdendo espaço frente à proletarização (1991, n. 30-35).
O papa demonstrou entender que a produção de boa parte dos bens de consumo dependia de uma estrutura robusta, fator que exigia grandes indústrias e grandes comunidades laborais. Contudo, para João Paulo II, isso não justificava a alienação dos trabalhadores do lucro obtido com seus esforços. O desejado seria que todos os trabalhadores tivessem a sua importância valorizada, por meio de salários dignos, capazes de atender não só às suas necessidades individuais, mas também às demandas das suas famílias (1961, n. 35-43). Essa é, na visão do pontífice, uma das formas pelas quais a grande propriedade, característica do modelo de produção industrial, poderia atender à função social.
O restante da carta permite concluir que os motivos que levaram João Paulo II a privilegiar a necessidade de observar a função social da propriedade privada estavam ligados à queda da União Soviética. Com o fracasso da experiência socialista, o capitalismo individualista passou a ser mais lembrado como contrário aos princípios da Doutrina Social da Igreja. Nesse sentido, embora assegurasse que a Igreja não defendia, especificamente, um modelo econômico como o ideal e universal, o pontífice relembrou que ela aponta os caminhos para a consolidação de uma sociedade economicamente saudável e humanisticamente responsável (1961, n. 15-21).
Considerações finais
Iniciamos este artigo com o objetivo de expor e comentar a importância do conceito de propriedade desenvolvido por Tomás de Aquino durante a Idade Média, para a elaboração da resposta da Igreja Católica à questão social. Para isso, recorremos à metodologia proposta por Jauss (2002).
Acreditamos ter conseguido apresentar, de forma clara, que a Doutrina Social da Igreja, vertente da doutrina católica que visa a orientar as ações dos fiéis na sociedade civil, teve como
base a acepção tomista acerca da propriedade: que a propriedade particular está em conformidade com o direito natural, desde que esta esteja sujeita à função social.
Com efeito, elucidamos que a perspectiva de Tomás de Aquino sobre o tema foi exposta em um texto destinado aos estudantes católicos, em resposta a uma questão que versava sobre a existência ou não de pecado no ato de roubar para salvar a si ou a outrem. Em contraposição, as apropriações do conceito, empreendidas por diferentes papas, foram feitas em meio a encíclicas que visavam a responder à questão social.
Da concepção tomista de propriedade, surgiram, não só diversas encíclicas, mas alguns movimentos, como o distributismo inglês, que buscava estabelecer uma sociedade de pequenos proprietários, e o solidarismo francês, que visava a um ideal de justiça social, baseado na caridade e no respeito à propriedade alheia.
Fontes
JOÃO PAULO II, Papa (1991). Carta enc. Centesimus annus. São Paulo: Loyola.
JOÃO PAULO II, Papa. (1981) Carta enc. Laborem exercens. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14 091981_laborem-exercens.html Acessado em: 05 jun. 2021.
JOÃO PAULO II, Papa. (1988), Carta enc. Sollicitudo rei socialis. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_30 121987_sollicitudo-rei-socialis.html Acessado em: 20 maio 2021.
JOÃO XXIII, Papa (1961), Carta enc. Mater et Magistra. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_150 51961_mater.html. Acessado em: 08 jun. 2021.
JOÃO XXIII, Papa (1963), Carta enc. Pacem in Terris. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_1104 1963_pacem.html. Acessado em 18 jan. 2022.
LEÃO XIII, Papa (1879). Carta enc. Aeterni Patris. Disponível em: https://www.vatican.va/content/leo-xiii/es/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_04081 879_aeterni-patris.html. Acessado em: 19 maio 2021.
LEÃO XIII, Papa (1888) Carta enc. Libertas praestantissimun. Disponível em: https://www.vatican.va/content/leo-xiii/es/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_20061 888_libertas.html. Acessado em: 18 maio 2021.
LEÃO XIII, Papa (2009 [1891]), Carta enc. Rerum novarum. São Paulo: Paulinas.
PIO XI, Papa (1931). Carta enc. Quadragesimo anno. Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-xi/pt/encyclicals/documents/hf_p xi_enc_19310515_quadragesimo-anno.html. Acessado em 08 jun. 2021.
PONTIFÍCIO CONSELHO DE “JUSTIÇA E PAZ” (2011). Compêndio da Doutrina Social da Igreja. 7. ed. São Paulo: Paulinas, 2011.
Referências Bibliográficas
DUFF, Eamon (1998). Santos e pecadores: a história dos papas. São Paulo: Cosac & Naify.
BERMAN, Marshall (1986). Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda.
ENGELS, Friedrich (2010). A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo.
GIORDANI, Igino (2009). “Apresentação”. In: LEÃO XIII, Papa. Carta enc. Rerum novarum. São Paulo: Paulinas.
HOBSBAWM, Eric (2009). La era de la Revolución: 1789-1848. Buenos Aires: Crítica.
JAUSS, Hans Robert (2002). “A estética da recepção: colocações gerais”. In: LIMA, Luiz Costa (org.). A Literatura e o Leitor. Textos de Estética da Recepção. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Paz e Terra, pp. 67-84.
MARTINA, Giacomo (2005). História da Igreja: de Lutero aos nossos dias. V. III, São Paulo: Loyola.
MARTINA, Giacomo (2014). História da Igreja: de Lutero aos nossos dias. V. IV. São Paulo: Loyola.
MARX, Karl (2003), O Capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Livro I, vol. 1 e 2.
SILVA, Alessandro Garcia (2018). Sob a sombra de Deus: o catolicismo trágico de Octávio de Faria. (Tese de Doutorado em Sociologia). Rio de Janeiro/RJ: UFRJ.
SILVA, Lucas Duarte (2014). “A lei natural em Tomás de Aquino: princípio moral para a ação”. In: Revista Kínesis. Vol. VI, n 188 ° 11, Julho 2014, pp. 187-199.
TOMÁS DE AQUINO (1980). Suma Teológica. Porto Alegre/Caxias do Sul: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes/Sulina/Universidade de Caxias do Sul.
Notas
argumentos de autoridade que a fundamentam. Depois disso, o autor apresenta sua solução e finaliza respondendo a cada um dos argumentos de autoridade contrários à sua tese.