Dossiê
Recepção: 13 Março 2023
Aprovação: 16 Junho 2023
Resumo: A questão da propriedade privada se demonstra como central para o entendimento das sociedades modernas e capitalistas, na medida em que a base de sustentação deste sistema político, social e histórico – o capitalismo moderno, tem no valor particular a justificativa para a individualização da posse de terras. Nesse sentido, temos por objetivo apresentar neste artigo a forma como a crítica à propriedade foi feita pelo cineasta Leon Hirszman (1937-1987) no filme Maioria Absoluta (1962), durante um período da história do Brasil (1960-1964) marcado por intensas movimentações políticas de crítica ao modelo de desenvolvimento capitalista.
Palavras-chave: Cinema, Propriedade, Leon Hirszman.
Abstract: The issue of private property proves to be central to the understanding of modern and capitalist societies, insofar as the support base of this political, social and historical system - modern capitalism, has in private property the justification for the individualization of ownership of lands. In this sense, we aim to present in this article the way in which the criticism of private land ownership was made by filmmaker Leon Hirszman (1937-1987) in the film Maioria Absoluta (1962), during a period of Brazilian history (1960-1964) marked by intense political movements criticizing the capitalist development model.
Keywords: Movie theater, Property, Leon Hirszman.
1. Introdução
O que significa propriedade? Recorrendo a dois importantes dicionários brasileiros, vejamos duas definições básicas para esse termo: a) “Qualidade do que é próprio; Aquilo que é próprio de alguma coisa, que a distingue de outra do mesmo gênero; FÍS-QUÍM Característica de uma substância que lhe confere uma particularidade; Qualidade especial ou virtude particular; caráter.” (PROPRIEDADE, 2023).. Na segunda busca, vemos a seguinte definição: b) “1. Posse legal de alguma coisa; 2. Direito pelo qual alguma coisa pertence a alguém; 3. A coisa possuída;
4. Casa, prédio, campo etc.; 5. Virtude particular; qualidade inerente; 6. Bom emprego da linguagem. = JUSTEZA.” (PROPRIEDADE, 2023)..
Ao recorrer a estes dicionários para entender como os dois trabalham com o significado de “propriedade”, percebemos que ela tem em sua profundidade uma ideia de posse, algo que é próprio e particular. No entanto, a palavra não necessariamente esteve sempre relacionada à posse individual de determinado espaço ou coisa. Nesse sentido, resgatamos a compreensão de que a ideia da propriedade como algo imediatamente relacionado aos bens privados, pessoais e materiais possui uma historicidade.
A mudança do mundo feudal para o mundo capitalista tem como um dos seus principais marcos a transformação da propriedade de terra feudal em propriedade privada, com valor de mercadoria capitalista. Até o século XV, a concepção de propriedade estava calcada na lealdade entre senhores e vassalos, e a terra não podia ser vendida. Entretanto, esta concepção foi sendo, aos poucos, alterada pela emergência da burguesia, dos valores iluministas e da instituição da propriedade privada da terra, tendo a Revolução Francesa, durante o século XVIII, como o auge da mercantilização da posse das terras.
Mas este processo histórico de mudança da concepção sobre propriedade não existiu de forma acrítica. O questionamento a este sistema foi feito em diversos momentos da História, sobretudo por vertentes ideológicas críticas ao capitalismo moderno. Ao retomarmos o pensamento humanista europeu dos séculos XIV e XVI, Thomas More (1478-1535), filósofo
consagrado pela obra Utopia (1516) propõe uma reflexão sobre a propriedade privada e o dinheiro como valores que trazem males aos negócios públicos, que são impedidos de florescer e prosperar, pois os objetivos individuais de enriquecimento estarão sempre à frente dos interesses coletivos, que são características da construção de sociedades.
Para superar esses valores, More recorre ao filósofo Platão, demonstrando a característica da vertente filosófica a que se filiava, o Humanismo, para remontar novas possibilidades de organização social. A bandeira da igualdade aparece, então, como base para a construção social de países e de um futuro em que os seres humanos possam viver de forma harmônica.
O sábio Platão previra facilmente que o único caminho para conseguir a felicidade de uma comunidade consistia em estabelecer a igualdade de todas as coisas. Ora, a igualdade é, segundo penso, impossível, pois, enquanto cada um tiver a posse individual e absoluta dos bens, enquanto um indivíduo se arrogar diversos títulos e direitos para chamar a si tudo quanto pode, de modo a que um pequeno número de indivíduos dividem entre si toda a riqueza, por maior que seja a abundância e a prosperidade, a maior parte do povo viverá na miséria e na indigência. E muitas acontece que são estes que mereciam a sorte dos ricos e não os que entretanto a gozam, pois os ricos são avaros, imorais e inúteis. Em contrapartida, os pobres podem ser simples e modestos, e mais úteis ao Estado pelo seu trabalho diário do que a si próprio. Por isso, estou plenamente convencido que não pode haver distribuição equitativa e justa das riquezas, nem a felicidade perfeita entre os homens, a menos que a propriedade seja abolida (MORE, 1973: 57 grifo nosso)
Desta forma, More retoma as elaborações de Platão demonstrando como a busca pela igualdade a partir da derrubada da propriedade percorreu a literatura em diversos momentos históricos. Ao resgatar estes autores clássicos, percebemos como a crítica à propriedade privada se deu mesmo no espaço geopolítico (continente europeu) em que produziu a ideia de posse individual das terras.
Com isso, nos interessa perceber como o filme Maioria Absoluta e a leitura de Leon Hirszman formulam visões de mundo que conjugam a exposição dos problemas brasileiros e a realidade da divisão desigual da terra, isto é, como Hirszman questiona a propriedade e como propõe saídas para a solução da questão? O filme Maioria Absoluta propõe visões sobre a má divisão da terra? Como a arte contribuiu para a reflexão crítica sobre a concentração fundiária durante a década de 1960? Estas são algumas questões que pretendemos trabalhar ao longo deste artigo.
2. Revisitando os anos 60: Maioria Absoluta, revoluções e Reforma Agrária
“O tema deste filme não é alfabetização, mas o analfabetismo, que marginaliza 40 milhões de irmãos nossos”. (MAIORIA, 1964: 01-21)
Filmado em 1963, Maioria Absoluta é um documentário e teve sua conclusão dias após o golpe de 1964, só podendo ser exibido no Brasil em 1982.. Possui 18 minutos e 35 segundos, caracterizando-se como curta metragem, e tem como objetivo principal representar as mazelas sociais vividas por segmentos sociais invisibilizados e marginalizados – a maioria absoluta – partindo do problema do analfabetismo. Dirigido por Leon Hirszman, com montagem de Nelson Pereira dos Santos, fotografia e câmera de Luiz Carlos Saldanha, produção executiva e som direto de Arnaldo Jabor e narração de Ferreira Gullar, o filme faz parte de um arco mais amplo de elaborações coletivas e coproduções, uma iniciativa que marca a década de 1960. Além disso, contou com patrocínio do Ministério da Educação, o que demonstra um incentivo do governo federal, à época presidido por João Goulart (1919- 1976), em sua produção.
Ao apresentar o problema do analfabetismo, a intenção da produção é mergulhar nos problemas que envolvem a má distribuição de renda no Brasil, que gera, segundo as imagens elaboradas pelo cineasta, pobreza, doenças e desigualdades. Para tal, esbarra na questão do latifúndio e da concentração fundiária, compreendida por José de Souza Martins (2011) como uma doença estrutural brasileira, na medida em que a propriedade da terra e capital se encontram, estabelecendo na concentração da terra um modo de acúmulo da riqueza. Em outras palavras, essa doença estrutural se expressa na desigualdade e na pobreza.
As filmagens foram realizadas no Estado da Guanabara e nos interiores de Pernambuco e Paraíba. Neste período, a região Nordeste era palco de grandes movimentos de contestação à divisão desigual da terra, com alguns governos locais progressistas, como o caso de Miguel Arraes (Pernambuco). É também nesse contexto em que há o crescimento das Ligas Camponesas e a elaboração de propostas educacionais para combater o analfabetismo, a partir, por exemplo, do trabalho de Paulo Freire.
A narrativa é elaborada em formato de entrevista direta entre o entrevistador (cineasta) e os entrevistados (personagens). Dessa forma, a escolha artística em realizar as entrevistas no interior brasileiro torna o meio rural como cenário, envolvendo a representação da ruralidade, desde a música que envolve as primeiras cenas do filme – semelhante a uma romaria, manifestação religiosa cultural presente no interior do Brasil –, até as entrevistas diretas com os trabalhadores rurais.
Fernão Pessoa Ramos (2004) demonstra como Maioria Absoluta se consagrou como pioneiro na cena dos documentários durante a década de 1960. Esse pioneirismo se destaca, por exemplo, pelo uso do gravador Nagra, que chega ao Brasil no final de 1950 e possibilita a gravação sincrônica entre som e imagem. Para Ramos (2004), “esta tecnologia abriu um novo horizonte técnico, estilístico e ético na cinematografia brasileira dos anos de 1960” (RAMOS, 2004: 83), culminando na conformação do Cinema Direto/Verdade no Brasil.
O contexto ideológico que cerca o surgimento do Cinema Direto/Verdade mostra, portanto, a confluência de um salto qualitativo tecnológico, acompanhado imediatamente de uma revolução estilística, que desemboca no estabelecimento de uma nova ética para o documentarista. (RAMOS, 2004: 83).
Uma das características mais marcantes dessa vertente cinematográfica é o espaço de reflexão dado pelas câmeras, elemento que irá atribuir à geração do Cinema Novo. uma concepção artística de ação política. Em Maioria Absoluta, este aspecto fica evidente quando Leon Hirszman realiza as entrevistas e há um espaço de reflexão para o entrevistado, como também para o espectador. A voz off assertiva de Ferreira Gullar orienta a interpretação de quem assiste por interpelar as imagens com uma narração questionadora aos depoimentos e à realidade social do país. Uma voz que não aparece na filmagem e que direciona a sequência narrativa através de um processo reflexivo sobre as imagens.
A epígrafe que abre este texto é também a primeira frase do curta-metragem, quando a voz de Gullar afirma ser um filme sobre o problema do analfabetismo, e não da alfabetização. Utilizando imagens de uma sala de aula em alfabetização, abre-se um horizonte de possibilidades de explorar a fonte a partir da indagação sobre os precedentes da Ditadura Militar.
O ponto principal do filme em tratar sobre a questão do analfabetismo é levar o espectador às profudezas do problema, que não reside no “simples” fato de 40 milhões de pessoas não saberem ler e/ou escrever. Na narrativa – idealizada pelo cineasta, o analfabetismo possuí raízes mais complexas que estão relacionadas à fome, às doenças e, principalmente, à concentração fundiária, problema social estruturante da realidade brasileira. Tal realidade social é demonstrada por uma entrevista direta com um dos trabalhadores rurais entrevistados, fato que o vincula à tradição cinematográfica do Cinema Direto/Verdade.
Pai de sete filho, comprando e morando na terra, vem pra cooperativa, agricultor da terra, e um quilo de farinha, pra almoçar… Isso é um horror, isso é uma vergonha pra
minha cara. Isso é um horror, isso é uma vergonha. Agora, todos camponês, esse mundo de terra e eu vou comprar um quilo de farinha. Um quilo de farinha quem pode comprar é o povo da cidade, porque o operário não planta, mas o camponês aqui dentro. E quem é que faz isso? É o latifundiário, que priva a terra, bota na terra dela e não deixa o camponês plantar (MAIORIA, 1964: 16:16-16:44[grifo meu]).
Dessa forma, a fonte e o período histórico descritos retomam memórias, na compreensão de que estas constituem o tempo em que viveu o cineasta e a produção da fonte. O entrelaçamento entre história e memória não se dá de forma automática, na medida em que há uma relação conflituosa entre as formas de narrar o passado e o próprio passado. A História, após a disciplinarização no século XIX, possui protocolos científicos próprios que monitoram os próprios modos de reconstituição do passado (SARLO, 2007). Os depoimentos presentes na fonte constroem uma narrativa mediada pelo roteiro cinematográfico e pela percepção dos segmentos agrários sobre a situação social do Brasil. Nesse sentido, ao utilizarmos o filme hoje, quando o vemos na atualidade, podemos perceber a representação de “visões do passado” e construções narrativas sobre o período descrito.
A leitura do contexto de produção nos insere em uma tradição teórica que concebe a análise da produção com as lentes do próprio período em que foi realizada. John Pocock (2011) demonstra a centralidade da investigação do contexto de produção, na medida que a reconstituição das ideias, práticas sociais e situações históricas do período formam uma lente de interpretação da fonte. O contexto, nesse âmbito, está presente na fonte assim como a fonte revela vestígios sobre o momento em que foi produzida, e revela também o modo como ela atuou na própria construção do contexto. Com isso, o contexto demonstra-se como parte intrínseca à fonte, e não meramente como um cenário que pode ser descolado de sua lógica (PALTÍ, 2007).
Afinal, que terreno fértil é esse que, em solos brasileiros, se propagava como forma de crítica à exclusão social? Como estas movimentações se davam em torno da política brasileira e em outros países do mundo?
2.1- A efervescência política e cultural dos anos 1960
Os "incríveis anos 60”, como caracterizado por Heloisa Buarque de Hollanda (2004)
foram marcados pelo engajamento e por uma conjuntura de efervescência política que proporcionou uma mobilização por parte de artistas, intelectuais, preocupados em discutir os rumos do Brasil (HOLLANDA, 2004). O relato da historiadora5 se demonstra como referência, pois propõe um trabalho historiográfico, sem perder a dimensão do testemunho subjetivo como forma de recuperar a memória (SARLO, 2007).
Todavia, ao analisarmos os “incríveis anos 60” no Brasil nos deparamos com as inspirações internacionais com as quais os intelectuais e artistas brasileiros dialogavam. Na busca por uma história global não globalizante (BOUCHERON, 2015), buscamos realizar conexões entre a realidade brasileira, latino-americana e dos países chamados “terceiro-mundistas”19. Partilhando dessa visão de história, que compreende a existência de eventos históricos simultâneos e interligados, buscamos perceber como o momento descrito por Heloisa Buarque de Hollanda (2004), de crítica ao modelo capitalista vigente, poderia ser vivenciado de diferentes modos por países distintos. A perspectiva não globalizante, portanto, expressa na experiência política possíveis conexões.
Nesse sentido, as décadas de 1950 e 1960 são marcadas pela ebulição política e cultural, principalmente no então “Terceiro Mundo”6, com guerras de libertação anticolonial nos países do continente africano, a guerra do Vietnã e a Revolução Cubana (ARAÚJO, 2012). Com destaque para esta última, a queda da ditadura de Fulgêncio Batista em Cuba e o governo revolucionário de Fidel Castro inspiravam os países latino-americanos, sobretudo na experiência da Reforma Agrária (PAZ, 2011). Mas não apenas no âmbito de agendas políticas essa efervescência demonstra-se presente: iniciativas culturais como o Tercer Cine argentino dos cineastas Octavio Getino e Fernando E. Solanas (2010) apontam para a descolonização do olhar sobre a realidade argentina, situando o cinema nacional como parte desse processo, traçando assim um paralelo com o Cinema Novo no Brasil.
No Brasil, o pano de fundo da emergência participativa desse período tem como característica principal as contradições provenientes da modernização do governo Juscelino
Kubitscheck (JK) (1951-1961), marcado pela aceleração industrial brasileira e pela participação política em um país que pouco convivera com um ambiente democrático (AVRITZER, 2018).
No plano propriamente político, o país atravessava um momento de crise aguda. A intensificação do processo de industrialização nos anos 50, as pressões de uma “nova modernidade” colocadas pelo capitalismo monopolista internacional, parecem causar problemas para um país acostumado a funcionar com estruturas moldadas por uma economia agrário-exportadora [...]. Todos participam direta ou indiretamente do poder, mas sem conseguir definir uma hegemonia (HOLLANDA, 2004: 16).
Para além da ampliação da participação política, há nesse contexto a tônica da modernização, da corrida do Brasil para alcançar um modelo econômico que não se baseasse apenas nas relações agrárias. A industrialização e a urbanização significavam o progresso, e o país precisava encarar uma corrida para que entrasse em acordo com o seu próprio tempo moderno. Essa visão fazia com que os debates políticos girassem em torno do desenvolvimento e “mobilizava indivíduos com perspectivas políticas bastante distintas no debate público em prol da transformação do país” (GUIMARÃES, 2017: 159).
O modelo econômico proposto pelo governo JK tem como marca uma mudança substancial em relação aos governos anteriores, a partir da valorização do novo setor industrial e da abertura de novas estratégias para o financiamento da indústria no Brasil (MENDONÇA, 1986). Se antes predominava a economia agrária exportadora, JK propõe o incentivo à produção de bens de consumo duráveis como setor prioritário para a acumulação de capital, com destaque para o setor automobilístico, a construção naval e o de mecânica pesada.
Dessa forma, a mudança no modelo econômico dá-se, sobretudo, pela sua forma em relação aos governos anteriores. Durante o governo JK, o Brasil começou a se inserir no que Enzo Faletto e Fernando Henrique Cardoso (1970) iriam designar como “modelo do capitalismo dependente-associado”, que tem como característica uma maior abertura ao capital estrangeiro, através dos empréstimos e dos investimentos diretos na economia. (MENDONÇA, 1986).
Ao pensarmos na construção da capital federal, Brasília, e no Plano de Metas (“50 anos em 5”), nos propomos a perceber uma outra face dessa modernização: as condições de vida das populações pobres. O engajamento de intelectuais e artistas durante esse período se dá, sobretudo, pela crítica ao modelo econômico adotado por JK, conformando uma dualidade entre maior participação política pela abertura de horizontes de expectativas do período e
acentuação das desigualdades sociais. No entanto, é preciso salientar que antes mesmo do boom de produções críticas às contradições provenientes da modernização de JK, já há um cinema que pensa e busca retratar as desigualdades sociais no Brasil, a exemplo de Rio, 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos.
Após o fim do mandato de JK, Jânio Quadros é empossado no dia 31 de janeiro de 1961 como presidente do Brasil, eleito pela União Democrática Nacional (UDN), partido de fortes vínculos com a elite latifundiária e de caráter conservador. A campanha de Jânio se caracterizou pelo combate à corrupção, sob uma perspectiva moralizante da sociedade brasileira e da ineficiência dos órgãos burocráticos dos governos anteriores (FIGUEIREDO, 1993). Através da simbologia da “vassourinha”, Jânio representava a expressão dos setores conservadores na sociedade brasileira, que estão presentes no filme Maioria Absoluta (1964).
Nesse sentido, Marcelo Ridenti (2000) nos auxilia a perceber a importância da arte como fonte histórica ao afirmar que a história de uma sociedade pode ser também contada pela produção artística, tematizando as diferentes linguagens artísticas como forma de investigação do próprio período. No curta-metragem, ao iniciar as entrevistas em uma praia no Rio de Janeiro com sujeitos de classes abastadas, o cineasta Leon Hirszman parte da seguinte pergunta: “qual é a causa do problema brasileiro?”, demonstrando os diferentes níveis e percepções sobre a realidade social do Brasil.
Hirszman: Pode falar Entrevistada 1: Falar o quê?
Hirszman: Qual é a causa do problema brasileiro? Entrevistada 1: Não há crise Entrevistado 2: A grande crise brasileira é um problema moral e parodiando um escritor e político brasileiro do passado diria que nossa constituição deveria ter somente um artigo e um parágrafo: todo brasileiro deve ter vergonha na cara (MAIORIA..., 1964: 01:38-02:38).
Nesta passagem da fonte, podemos perceber o jogo de narrativas e olhares sobre a realidade brasileira durante a década de 1960, e o público ideológico com o qual Jânio Quadros se respaldou. Destacamos este momento, sobretudo, pela polarização que irá marcar o país após a renúncia de Jânio Quadros sete meses depois de sua posse, em agosto de 1961. Segundo a Constituição de 1946, em caso de renúncia do presidente assumiria o vice-presidente, que naquele período era escolhido de forma separada. Em 1961, João Goulart foi eleito com 38% dos votos como vice-presidente do Brasil, com base na política trabalhista e representando um
legado de Getúlio Vargas (ARAÚJO, 2007). A posse de Jango representa, portanto, um alinhamento ideológico próximo aos grupos nacionalistas e progressistas, conformando um ambiente propício para a crítica ao modelo econômico vigente e à desigualdade social.
A posse de Jango, marcada pela vitória da Campanha da Legalidade, conferiu ânimo aos grupos nacionalistas e de esquerda que colocaram, na ordem do dia, a pauta das reformas estruturais. Entre as principais reformas estavam a fiscal, a administrativa, a universitária e, principalmente, a reforma agrária. Do programa de reformas faziam parte também políticas nacionalistas, como o controle sobre o capital estrangeiro e o monopólio de setores estratégicos da economia. Entre todas essas bandeiras, a reforma agrária era a mais contundente (ARAÚJO, 2007: 94, grifo nosso)
O grifo no trecho acima destaca para a importância da Reforma Agrária nas agendas políticas da década de 1960 e a forma como essa pauta movimentou diversos setores da sociedade brasileira. A experiência da Revolução Cubana representou um espelho aos movimentos de esquerda no Brasil e na América Latina, como possibilidade concreta de contrapor à estrutura latifundiária que estruturou a grande maioria dos países latinoamericanos.
Em meio à ebulição dos anos 1960, há duas experiências chaves que conectam formulações teóricas às ações políticas, as quais merecem destaque: o Centro Popular de Cultura (CPC), vinculado à União Nacional dos Estudantes (UNE), e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).
O CPC se constituiu como uma iniciativa cultural com vistas a construir um centro de propagação de ideias políticas revolucionárias, através da relação entre arte e política. Situado em primeiro momento no Rio de Janeiro, a finalidade do Centro era difundir e formar um patrimônio cultural genuinamente nacional - conforme definido pelos próprios membros do CPC
– e com isso combater a alienação causada pelo subdesenvolvimento, através de uma linguagem política pedagógica desses intelectuais acerca da realidade cultural do povo brasileiro (ORTIZ, 1986; SOUZA, 2004). A ampliação do CPC para outros estados do Brasil, como Bahia e Pernambuco, se dá quando o grupo começa a espraiar as produções e tomar corpo no âmbito artístico e universitário. A vinculação à UNE dá-se através do projeto UNE Volante (1962), que tinha por objetivo difundir a luta pela reforma universitária aos estudantes brasileiros.
Cabe destacar que o CPC não nasceu do nada, mas que está relacionado a uma experiência anterior: o Teatro de Arena (1953). A ebulição política do período impactou diretamente na leitura de parcela dos artistas do Arena, a exemplo de Oduvaldo Vianna Filho,
que foi um dos fundadores do CPC. Vianninha, como era chamado, começou a discordar do modelo administrativo implantado pela direção do Arena. De início, buscou não romper com o Teatro, mas sim relacionar as produções às entidades estudantis, sindicatos e partidos (SOUZA, 2004). No entanto, o público vinculado às classes abastadas não ficou satisfeito com a mudança de perspectiva das produções, tornando, assim, o rompimento de Vianinha com o Arena algo inevitável. Dessa maneira, a produção da peça A mais valia vai acabar, seu Edgar (1960) simboliza as novas perspectivas do Arena, que culminaram na construção do CPC. Nesse âmbito, cabe relacionar a proximidade que o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) teve com o CPC.
A questão do nacional e do popular envolvia as produções do grupo, que se utilizava das linguagens artísticas plurais para apresentar suas ideias. Mesmo com um breve período de existência (1962-1964), o CPC produziu uma série de obras fílmicas, literárias, canções e peças teatrais, demonstrando a intenção dos artistas em atuar em diversas áreas do campo cultural. No cinema, destacamos pelo menos duas produções elaboradas pelos cepecistas: os filmes Cinco vezes favela (1962) e Cabra marcado para morrer (1964/1984). Maioria Absoluta (1964) se insere como uma obra que envolveu os artistas cepecistas, mas não há um registro que firme sua elaboração como diretamente ligada ao CPC.
As ideias nacionalistas propagadas pelo CPC estavam vinculadas às formulações intelectuais do ISEB, também constituído no Rio de Janeiro. O ISEB não era um movimento de concepção única do nacionalismo e, portanto, possuía vertentes que estavam ligadas a um nacionalismo de esquerda, mas também existiam os nacionalistas de direita7. As formulações do ISEB que respaldaram o CPC estão fincadas no que podemos chamar de nacional-marxismo ou mesmo nacionalismo de esquerda ou revolucionário. A relação entre as proposições isebianas e do CPC acontecia a partir da utilização de reflexões formuladas pelos intelectuais membros do ISEB, tais como Álvaro Vieira Pinto, Alberto Guerreiro Ramos e Hélio Jaguaribe. As categorias mobilizadas apontavam para a ideia de subdesenvolvimento, semicolonialismo e consciência alienada. Para Renato Ortiz (1986), o ISEB abre novas perspectivas intelectuais ao pensamento social brasileiro ao apontar que o Brasil não era apenas economicamente dependente dos países centrais, mas também culturalmente. Isto é, os intelectuais do CPC deveriam despertar no povo a
consciência através de uma produção artística que expressasse a verdadeira cultura nacional.
O isebianos recebiam críticas dos grupos marxistas vinculados à USP, principalmente pela defesa do nacionalismo e de um suposto populismo, pois para estes a ideia de nação obliterava a consciência da classe trabalhadora em relação à sua própria condição de classe, sendo, assim, uma lente de análise insuficiente para a superação dos problemas sociais brasileiros.
No entanto, Renato Ortiz aponta uma questão de fundo que nos leva a pensar sobre a importância do ISEB no cenário cultural brasileiro e na concepção do nacionalismo como algo relevante às formulações sobre a Revolução Brasileira. A questão se dá pela imbricação entre as formulações teóricas e os múltiplos cenários culturais, como o CPC, o Movimento de Cultura Popular (MCP), o Cinema Novo e a bossa nova, demonstrando certa dominância das ideias isebianas no campo artístico.
Para pensar essa relação, Ortiz aponta para um diálogo (não direto) entre as ideias do martinicano Franz Fanon e os isebianos. Isto é, não quer dizer que Fanon e os intelectuais cariocas estivessem filiados à mesma tradição intelectual, mas há dois pontos conceituais de convergência que situam os processos históricos e os discursos políticos: a alienação e a situação colonial. Esses conceitos são utilizados por Fanon e pelo ISEB dentro de um ponto de vista político de superação da condição colonial dos países africanos e do Brasil, a partir da tomada de consciência sobre a realidade para a superação do colonialismo.
Um dos exemplos da presença do ISEB no CPC está nas marcas teóricas da Canção do Subdesenvolvido (1962) produzida por Carlos Lyra (1933) para o disco O povo canta. A música possui conceitos chaves das elaborações isebianas, como a noção do Brasil como um país colonial, o subdesenvolvimento, a crítica aos Estados Unidos, a partir da leitura sobre o imperialismo, e busca recontar a história do país pelo ponto de vista da exploração. Os trechos destacados abaixo demonstram a utilização das categorias isebianas pelos cepecistas:
O Brasil é uma terra de amores Alcatifada de flores
Onde a brisa fala amores Em lindas tardes de abril Corri pras bandas do sul Debaixo de um céu de anil
Encontrareis um gigante deita do Santa Cruz… hoje o Brasil
Mas um dia o gigante despertou Deixou de ser um gigante adormecido E dele um anão se levantou
Era um país subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido (refrão) E passado o período colonial
O país passou a ser um bom quintal E depois de dar as contas a Portugal Instaurou-se o latifúndio nacional, ai!
Subdesenvolvido, subdesenvolvido (refrão) (...)
O povo brasileiro embora pense, dance e cante como americano Não come como americano
Não bebe como americano (CANTO..., 1962).
Disto isto, a partir da exposição do quadro intelectual e artístico da década de 1960, como o nosso cineasta Leon Hirszman demonstra a realidade social? Com quais setores ele dialoga? Como Maioria Absoluta dialoga com as aspirações políticas e culturais do período?
3. Leon Hirszman e a crítica à propriedade privada através de Maioria Absoluta
Quem está por trás das câmeras de Maioria Absoluta? Se entendemos a produção fílmica como objeto da análise histórica, chegamos à compreensão do cineasta como um produtor de pensamentos e histórias. A respeito da relação entre História e Cinema, existe um vasto arcabouço teórico, que vem se consolidando na historiografia desde a segunda metade do século XX.
A ampliação da noção de fontes históricas durante a década de 1970, amparada na chamada Nova História, eleva o cinema à categoria de “novo objeto”, incorporando as produções como possibilidades de pesquisa para o ofício do historiador. (MORETTIN, 2003). O cinema compreendido enquanto documento histórico trouxe consigo também a necessidade de que os historiadores incorporassem novos métodos de análise (KORNIS, 1992; FERRO, 2010) que levassem em conta os sons, jogo de luzes e sequência de imagens como escolhas dos diretores, que se tornam, assim, também escritores de histórias.
Leon Hirszman nasceu no dia 22 de novembro de 1937, no subúrbio do Rio de Janeiro, e morreu a 16 de setembro de 1987 em decorrência da AIDS. Foi um cineasta marxista, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), judeu e um dos criadores do CPC da UNE.
Seu pai, Jaime Hirszman, nascido na Polônia, tinha como forte característica o ateísmo e o comunismo, visão política que se aprofunda quando chega ao Brasil (SALEM, 1997). Essa relação com as ideias de fim da propriedade privada e do bem comum que caracterizam o comunismo também está presente na trajetória de Leon Hirszman, que optou por seguir a
filiação ideológica de seu pai, quer seja pelo tempo histórico em que viveu, quer seja pela inspiração paternal. Em entrevista à Helena Salem (1997), a mãe de Leon, Sarah Hirszman, apresenta a forma como as ideias comunistas e de esquerda se mantêm na vida do cineasta.
- O seu marido gostava muito de política, não é verdade?
- Ele era da esquerda. Na cidade, quando precisavam esclarecer uma coisa, era só seu Jaime Hirszman. Procuravam ele para esclarecer, explicar. Já vem isso do berço (SALEM, 1997: 26-27, grifo nosso)
Sarah também foi uma figura presente na vida do cineasta e referenciada em suas obras. Caracterizada por Helena Salem como uma mulher forte e poderosa, influenciou Leon a se formar em Engenharia antes de se dedicar ao cinema. Ainda que fosse conservadora, a mãe esteve representada nas construções arquetípicas das personagens femininas na obra de Leon. Mesmo com sua visão política diferente de Leon, o patrimônio religioso judeu foi resguardado pelo cineasta.
A herança comunista, a religião e a vida no Lins de Vasconcelos, bairro popular da Zona Norte do Rio de Janeiro, conformaram um cineasta com intersecções entre a esquerda, o popular e a religião, características que são fortemente observadas em sua vida artística. Hirszman tem sua obra profundamente vinculada à temática brasileira popular e ao mundo do trabalho como cenário e matéria prima para a construção dos personagens e da narrativa de seus filmes. Títulos como o seu primeiro filme, Pedreira de São Diogo (1961-62), Nelson Cavaquinho (1969), São Bernardo (1972), Cantos do Trabalho (1970), Eles não usam black- tie (1981), ABC da greve (1990), além da fonte principal desta pesquisa, Maioria Absoluta (1964), expressam e representam as contradições vivenciadas no mundo do trabalho, tendo como agente a classe trabalhadora (SALEM, 1997; HAMBURGER, 2017). Cabe destacar também outras obras cinematográficas de Hirszman, que trazem diferentes formas de abordagem se comparadas ao conjunto de filmes notadamente de esquerda, como A Falecida (1965), Garota de Ipanema (1967) e América do Sexo (1969), o que demonstra a amplitude do repertório artístico de Hirszman e suas diversas faces.
3.1. Hirszman: cineasta intelectual?
Leon Hirszman, a despeito de ser um cineasta, ou justamente por isso, pode ser
concebido como um intelectual ao produzir determinada visão de mundo sobre a narrativa fílmica vinculada à concepção política comunista, uma vez que foi membro do PCB. O seu ofício arraigado pelo marxismo, portanto, não retrata meramente a realidade, mas formula um ponto de vista sobre a sociedade em meio a outras visões de mundo que se confrontam na dinâmica concreta da produção de ideias artísticas.
A abertura para a concepção do cineasta como intelectual e produtor de História está atrelada à renovação da História Política, sendo esta percepção um ponto de partida para compreender a relação entre História, Cultura e Política. François-Xavier Guerra (2003) aponta como os estudos da História Política tradicional, elaborados ao longo do século XIX, buscaram centrar suas análises nas relações intra-estado, tendo como alvo dos estudos históricos as fontes que designavam as elites e os grandes políticos do Estado.
Durante mucho tiempo [...] los actores fundamentales han sido los grandes hombres, y más generalmente los que tenían un papel rector en la sociedad: gobernantes, hombres de guerra, eclesiásticos, etc. La historia era ante todo la narración de sus acciones dentro de la propria coletividad - la politica interior - o en relación con otras colectividades - la política exterior -. Esta manera de abordar la historia era profundamente reductora, pues no sólo eliminaba a la intensa mayoría de los actores sociales, sino que también atribuia a esos grandes personajes una extraordinaria libertad de acción al separarlos del conjunto de la sociedade” (GUERRA, 2003: 229).
A mudança historiográfica na concepção de fontes e sujeitos que formam a História Política está atrelada também à crítica feita pela Escola dos Annales a partir da década de 1960. Os Annales defendiam a ampliação do fazer histórico, se contrapondo à ideia da Grande História, que atribuía confiabilidade apenas aos arquivos como fontes históricas, e valorizava os grandes feitos e o Estado, além de integrar outros campos das ciências humanas à análise histórica, como a Antropologia e a Sociologia. Dessa forma, os Annales buscavam atribuir espaço à história do cotidiano, das relações sociais e da cultura, ampliando a categoria de fontes e os olhares sobre os processos históricos.
Com isso, a História Política enquanto campo historiográfico começou a entrar em crise. No entanto, a política seguiu, segundo Xavier Pujol (2007) aponta, como parte intrínseca aos processos históricos. Isto é, mesmo antes do movimento de renovação deste campo, a política não deixou de fazer parte da historiografia. Para enfrentar esse imbróglio, segundo os historiadores da História Política, seria mais eficaz revisar as concepções metodológicas do que
abandoná-la.
Durante os anos 1970 e 1980, há um movimento de retomada da História Política, caracterizado pela ampliação das fontes e a relação com outros campos das ciências humanas, incorporando, por sua vez, a crítica dos Annales. Um pilar de mudança da concepção desse campo está atribuído à própria ampliação do que significa a política no cotidiano das sociedades. Se durante o século XIX a História Política concebia a política apenas como aquilo que estava inserido na dimensão institucional, na segunda metade do século XX, a política passa a ser percebida nas relações sociais, no cotidiano e no fazer artístico.
Foi justamente nesse movimento que podemos perceber a incorporação das fontes fílmicas e do cinema como campo de reflexão histórica. A renovação da História Política, portanto, nos possibilita atribuir um olhar específico sobre o cinema e o cineasta.
Há um segundo caminho atrelado a essa vertente historiográfica, que é a possibilidade de estudar a vida e a trajetória de homens e mulheres, os quais não estão necessariamente vinculados às altas patentes de poder político, conforme a História Política tradicional trabalhava. Nessa possibilidade, encontramos com Leon e a nossa afirmação de caracterizá-lo como um intelectual, por toda a sua trajetória, associada a um modo de conceber e realizar o cinema, que está atrelado ao cinema engajado. No entanto, o que torna Leon Hirszman um intelectual? Os estudos sobre os intelectuais se configuram como um novo campo na História Política e que nasce a partir da própria renovação desta, a partir de 1970. Jean François Sirinelli (1996) aponta que a definição do intelectual parte de dois lugares: o primeiro, por uma noção ampla, que abrange sujeitos para além dos intelectuais tradicionais das universidades, e inclui personagens envolvidos com ações socioculturais, por exemplo, os quais podemos chamar de mediadores e criadores culturais; e o segundo, baseado na compreensão do engajamento. Aqui, compreendemos, portanto, Hirszman como conjunção destas duas acepções, pela sua condição de artista-criador, e pelo seu engajamento político nas obras.
A relação entre cineasta-intelectual não é autoexplicativa, uma vez que a caracterização do intelectual se dá, muitas vezes, relativamente às produções acadêmicas e de ordenação das ideias que pairam sobre determinada sociedade. Nesse sentido, Jorge Myers (2016) nos auxilia na ampliação da categoria de intelectual, ao englobar sujeitos como artistas que formulam sobre a sociedade utilizando a linguagem artística.
Uma formulação muito sucinta poderia ser a seguinte: a história intelectual consiste em uma exploração da produção douta realizada pelas elites letradas do passado, enfocada a partir de uma perspectiva que considera a própria condição de inteligibilidade histórica dessa produção como derivada de sua reinserção (por parte do pesquisador) em um contexto social e cultural – simbólico e material – historicamente específico que, na maioria dos casos, será o contemporâneo dessa produção. Cabe esclarecer que entendo por “produção douta” um universo de produção que não se limita ao campo da escrita, nem das disciplinas acadêmicas, mas que também abarca todas aquelas formas de expressão humana que utilizam linguagens que não costumam ser evocadas pelo termo “escrita”: desde as artes plásticas, incluindo a arquitetura, até a música culta e popular, passando pelas matemáticas e suas aplicações; mesmo as artes cênicas e cinematográficas apareceriam abarcadas por essa formulação (MYERS, 2016: 24-25).
Nessa compreensão, Hirszman se insere em um quadro amplo e complexo de sujeitos - os intelectuais - que têm suas trajetórias de vida marcadas pela reflexão e formulação sobre a sociedade, seja de forma escrita, cantada ou interpretada. Na ampliação do entendimento sobre os intelectuais, Angela de Castro Gomes e Patricia Hansen (2016) caracterizam também esses homens e mulheres como envolvidos na vasta produção de conhecimentos e comunicação de ideias. Esses sujeitos, por sua vez, atuam conectados com outros atores e organizações sociais, englobando projetos políticos e culturais, formando, assim, uma projeção das próprias ideias políticas. Nesse entendimento, é possível perceber o papel cumprido por Hirszman ao articular seus filmes a projetos culturais, como o CPC da UNE, de forma a pulverizar em diversas esferas determinada visão política.
Diante desta concepção, tratamos Hirszman como um intelectual orgânico, conceituação do filósofo marxista Antonio Gramsci (1989) para caracterizar sujeitos que produzem ideias no âmbito da formulação teórica, da cultura e da administração pública, a partir de sua vinculação com a classe em que está inserido - na leitura gramsciana, com a classe trabalhadora.
Gramsci, ao buscar superar o determinismo econômico soviético e o dogmatismo, auxilia-nos ao perceber como as ideias de determinada sociedade conservam certa autonomia em relação às estruturas políticas. (BOURDÉ; MARTINS, 1990). Nesse quadro teórico, inserimos a concepção sobre o papel dos intelectuais na sociedade de classes, objeto de estudo a que Gramsci se dedicou em parte de sua obra. Os intelectuais na leitura de Gramsci são produtos da burguesia capitalista, mas não se restringem a ela, rompendo com a concepção do intelectual como pessoas da elite e da alta cultura, consolidando a ampliação da compreensão dessa categoria. Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político. (GRAMSCI, 1989: 3-4)
Desta forma, percebemos que Hirszman estava vinculado ao grupo social do meio artístico e do cinema engajado, sendo este seu principal meio social.
Percebemos na produção fortes características do pensamento de esquerda do cineasta. Hirszman, um comunista filiado ao PCB, faz jus à sua visão de mundo ao apresentar o camponês como agente transformador da realidade. Há espaço ainda para a expressão da dualidade de classes, da crítica ao latifúndio e às heranças do Brasil colonial, marcas da leitura Fanoniana e Isebiana. Na passagem a seguir, é possível perceber essas marcas na formação do olhar de Hirszman, formando o conjunto de ideias expressadas no filme e na vida do cineasta.
No ano de 1500 foi descoberto o Brasil, no ano de 1534 D. João III de Portugal dividiu o Brasil em capitanias que foram dadas a pessoas de sua corte. A partir de 1535, os donatários distribuíram estas terras a outros nobres e outros homens ricos. Para trabalhar a terra, eles importaram escravos aos quais eram negados todos os direitos (MAIORIA, 1964: 10:57-11:21).
Desta forma, percebemos a forte influência da crítica à propriedade privada da terra, esta calcada no conjunto do pensamento latinoamericano e terceiromundista com fortes críticas ao passado colonial. O Brasil e a obra de Hirszman se inserem neste repertório cultural e político.
Cabe destacar, por último, uma passagem em que a crítica à propriedade da terra
demonstra-se mais uma vez e explicitamente atrelada à exclusão de participação social da população analfabeta. Ao final da filmografia, há uma imagem sobrevoada de Brasília, especificamente da Esplanada dos Ministério, naquele período recém inaugurada como capital do Brasil. Tal imagem tem por objetivo apresentar aos espectadores o centro das decisões políticas. No entanto, a imagem acompanhada da narração de Ferreira Gullar ganha um forte teor crítico ao demonstrar como parte importante da população que trabalha sobre a terra não tem acesso aos bens que dela são gerados.
Dos 40 milhões de brasileiros analfabetos, 25 milhões, maiores de 18 anos, estão proibidos de votar. No entanto, eles produzem o teu açúcar, o teu café, o teu almoço diário. Eles dão o país a sua vida, os seus filhos. E o país o que lhes dá?” (MAIORIA, 1964: 16:52-17:11).
Com isso, a participação de Hirszman no PCB, no CPC e nos círculos artísticos de esquerda indicam a forma como ele enxerga o mundo. Desta maneira, o filme acaba por trazer cargas deste teor ideológico e conta um tipo de história do Brasil. Esta formulação sobre a História do Brasil, feita através do jogo de imagens e narrações que são fruto da escolha do cineasta, nos mostram o papel de Leon Hirszman enquanto um intelectual, que escolhe formas de ler, interpretar e formular sobre os processos históricos sociais – sendo este um papel fundamental dos intelectuais.
4. Conclusão
A crítica à propriedade privada foi feita em diversos momentos da História, no Brasil e em diversos países. A década de 1960 marcou um período crítico e questionador, em que artistas e intelectuais elaboraram importantes produções culturais e de conhecimento teórico para difundir concepções ideológicas que questionassem as desigualdades brasileiras.
Dessa maneira, percebemos o curta-metragem Maioria Absoluta como parte deste repertório artístico que tratou de importantes debates políticos da época, como o analfabetismo e a crítica ao latifúndio, sendo essa a raiz identificada como um dos principais problemas brasileiros, que culminava nas doenças, na fome e no analfabetismo.
A crítica ao latifúndio desaguou na própria crítica à propriedade privada da terra, na medida em que esta estruturou a sociedade brasileira em seu processo de colonização. O filme trata desta temática e retoma as origens históricas da conformação do latifúndio no Brasil, que teve como base a propriedade privada da terra.
Nesse sentido, o filme em questão está na esteira de produções da década de 1960 que apontavam os problemas brasileiros e que tem no Centro Popular de Cultura (CPC) e no Cinema Novo – movimento no qual Maioria Absoluta está inserido, importantes iniciativas de produções culturais que aglutinavam os debates políticos teóricos com a inovação proposta por estes intelectuais para o cinema brasileiro.
Leon Hirszman, cineasta que circulava por estas iniciativas culturais, comunista, contribuiu em sua carreira artística para a conformação da leitura de Brasil. Por construir narrativas reflexivas sobre questões concretas da sociedade, Hirszman pode ser entendido como intelectual, ainda que sua produção esteja calcada no audiovisual e não na produção literária. Por isso, entendemos a categoria de intelectual a partir de um significado mais amplo, que inclui sujeitos que não necessariamente estão vinculados à produção escrita, mas que refletem sobre as questões por diferentes ferramentas linguísticas.
A concepção teórica elaborada por Hirszman expõe os problemas sociais brasileiros e identificam a propriedade privada da terra como uma das questões que precisam ser encaradas como um entrave para o desenvolvimento social e econômico do Brasil e dos brasileiros. Nesse sentido, Hirszman tratou em Maioria Absoluta o latifúndio como um dos amálgamas da pobreza em que a maioria absoluta do povo brasileiro vivia – ou vive.
Fontes
MAIORIA absoluta (1964). Direção: Leon Hirszman. Roteiro: Leon Hirszman. Narração: Ferreira Gullar. Rio de Janeiro. 20min, sono., p&b. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=B-iWyTrjcCY. Acesso em: 19 ago. 2022
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Notas