Dossiê
Rolé na Penha: memórias e referências culturais em uma ecologia dos saberes*
Rolé na Penha: memories and cultural references in an ecology of knowledge
Intellèctus
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
ISSN-e: 1676-7640
Periodicidade: Semestral
vol. 20, núm. 1, 2021
Recepção: 15 Fevereiro 2021
Aprovação: 22 Junho 2021
Resumo: O artigo propõe uma reflexão sobre a ecologia dos saberes, tendo como objeto de pesquisa o projeto escolar Rolé na Penha. O qual permeia as memórias locais, saberes e referências culturais do bairro, dos alunos e dos professores, observando-o enquanto experiência e narrativa do cotidiano escolar, em uma perspectiva da pedagogia crítica. O Projeto é oriundo de uma escola de comunidade periférica na cidade do Rio de Janeiro, onde a educação configura um importante espaço de diálogo no combate às desigualdades sociais, em uma perspectiva decolonial, em que cada indivíduo tem o direito de assumir o seu lugar enquanto sujeito com toda a sua história e opções que lhes são peculiares.
Palavras-chave: Ecologia dos saberes, experiência, projeto escolar.
Abstract: The article proposes a reflection on the ecology of knowledge, having as research object the school project Rolé na Penha. Which permeates local memories, knowledge and cultural references of the neighborhood, students and teachers, observing it as an experience and narrative of everyday school life, in a perspective of critical pedagogy. The Project comes from a school in a peripheral community in the city of Rio de Janeiro, where education is an important space for dialogue in the fight against social inequalities, in a decolonial perspective, in which each individual has the right to take his or her place while subject with all its history and options that are peculiar to them.
Keywords: Ecology of knowledge, experience, school project.
Introdução
O presente artigo é parte da pesquisa doutoral, que observou práticas pedagógicas de professores de História da rede municipal da cidade do Rio de Janeiro, em relação às memórias e aos patrimônios, que compõem as referências culturais locais das comunidades escolares. O projeto escolar Rolé na Penha foi desenvolvido para trabalhar a memória, história local e educação patrimonial a partir do Ensino de História. Uma proposta de guiamento elaborada pelo professor junto com seus alunos, a partir de uma construção coletiva das memórias e referências culturais do bairro da Penha, na cidade do Rio de Janeiro. Neste bairro, mais especificamente na favela da Vila Cruzeiro, em que está localizada a unidade escolar onde nasceu o projeto.
Os conceitos de experiência e narrativa pensados por Walter Benjamin (1994) são utilizados para a compreensão do Rolé na Penha enquanto prática no cotidiano escolar, uma vez que o projeto é realizado em uma escola periférica e contribui para o enfrentamento das desigualdades sociais e raciais. Mediante o que se tem como hipótese, o projeto escolar Rolé na Penha pode ser analisado como uma proposta decolonial de ecologia dos saberes, pensamento elaborado por Boaventura de Souza Santos (2018, 2019). Sob uma perspectiva da educação como prática de liberdade, com entusiasmo na formação do sujeito, em um processo de descolonização do eu e dos padrões socialmente assimilados dos saberes euro-centrados; através dos olhares de Paulo Freire (2005, 2014), bell hooks (2017), Stuart Hall (2006) e Grada Kilomba (2019).
O objetivo deste artigo é propor uma reflexão, lançando mão de uma perspectiva teórica sobre a apresentação de uma prática de um projeto escolar, para que, posteriormente seja realizada a análise. Outros objetivos ao longo do texto podem ser elencados para elucidar a relevância: da construção coletiva do projeto a partir das demandas dos alunos; a identificação das referências culturais locais; a narrativa sobre o bairro por ser construída a partir das memórias; a possibilidade de ressignificação do espaço pelos alunos, e, da contribuição para um empoderamento do grupo a partir das memórias e patrimônios.
O artigo foi estruturado em sessões, sendo as primeiras referentes ao embasamento teórico: experiência e narrativa na educação, educação como prática de liberdade para seus sujeitos e proposta da ecologia dos saberes por uma descolonização da educação; em seguida estão as das práticas escolares: despertamento para a necessidade da escuta
profunda, uma escola, uma comunidade, um bairro e Rolé na Penha: construção, narrativa e experiência educativa; e as reflexões e considerações.
A experiência e narrativa na educação
O termo experiência remete a práticas e vivências, na sua etimologia a palavra de origem latina se refere à ação de conhecer fora dos limites. Um termo importante para os estudos da educação, principalmente no cotidiano escolar. As memórias, experiências e linguagens dos alunos que integram o contexto escolar são fundamentais para que o processo de ensino e aprendizagem seja estabelecido. A educadora Carmen Lúcia Vidal Pérez, que organizou um livro sobre Experiências e narrativas em Educação (2017), discorreu sobre o cotidiano escolar, elucidando que este requer prática e teoria caminhando lado a lado, uma ajudando e complementando a outra.
No livro a autora explica que a linguagem é a própria experiência para Walter Benjamin. O pensador Walter Benjamin (1994) falou da experiência, a partir da denúncia de sua pobreza. Para o autor a experiência era transmitida, pelas narrativas, como um legado dos mais velhos aos mais novos, para que em seu devido tempo ela pudesse ser utilizada. A experiência seria, portanto, essencial para o lidar com a vida. Benjamin relatou que os que voltaram dos campos de batalha da Primeira Grande Guerra, estavam pobres de experiências comunicáveis. Isso por terem passado por experiências desmoralizantes como, a da fome, falta de moradia, com paisagens diferentes, que evidenciavam a fragilidade do corpo humano. Em seguida, teria acontecido gradualmente, e cada vez mais, um distanciamento da experiência em detrimento do “atual” e suas muitas informações novas e científicas, teriam deixado as pessoas vazias das experiências narradas.
A reflexão da experiência, a partir de sua falta, principalmente em ambientes de experiências desmoralizantes é essencial para pensar a educação em locais periféricos que sofrem com as desigualdades sociais. Muitas vezes, nas vivências da fome, da violência, da falta de moradia e tantas outras ausências, há uma dificuldade de vislumbrar e valorizar experiências e memórias comunitárias. O que se constitui em um apagamento dos rastros dos vencidos, para que a narrativa dos vencedores e elites sociais seja privilegiada.
A narrativa é para Walter Benjamin (1994) a faculdade de intercambiar experiências. Para o autor a arte da narrativa consiste em narrar a partir da experiência, ou seja, do vivido. Contudo, evidenciou a diminuição dos narradores, das pessoas com palavras duráveis, ou que conseguiriam lidar com os jovens, partindo da sua própria experiência. Isto estaria ocorrendo pelo excesso de notícias impregnadas de explicações, recebidas todos os dias, o que empobreceria de histórias surpreendentes e de experiências. Já a narrativa evita explicações, o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor, pois este é livre para interpretar e, assim sendo, a narrativa atinge a amplitude que não há na informação.
A educação como prática de liberdade para seus sujeitos
A proposta de educar a partir da realidade do educando, suas memórias, vivências e reflexões é a prática de uma educação problematizadora, em uma relação de ensino aprendizagem onde educador e educando estabelecem uma relação de contínuas trocas, onde ambos refletem sobre o seu papel e assim podem ensinar e aprender coletivamente. De acordo com Paulo Freire (2014), para a educação realizar-se como prática de liberdade é necessário que se supere a contradição dicotômica entre educador e educando. Através da construção coletiva e dialógica do conhecimento, é possível estabelecer uma relação contínua para o ensino aprendizado, no qual o professor aprende enquanto ensina e o aluno não é somente um receptor de conteúdos adquiridos. Ambos, educador e educando, se tornam sujeitos desse processo educativo.
Ao falar de sujeito, considera-se a concepção do sociólogo Stuart Hall (2006). O autor historiciza o conceito e anuncia que no tempo presente estaríamos vivenciando as nuances do sujeito pós-moderno. Um sujeito que está se tornando fragmentado, por suas várias identidades, muitas vezes sendo elas contraditórias ou mal resolvidas e não possuindo assim uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade, assim, se tornaria, uma “celebração móvel”, formada e transformada continuamente, que “é definida histórica, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente.” (HALL, 2006: 13). O autor conclui afirmando ser uma fantasia a formulação de uma identidade plenamente unificada, completa e segura.
Considerando que a importância da educação é estabelecida, enquanto processo dialógico e coletivo, e, a variedade de identidades com as quais o sujeito pode se reconhecer ao longo da vida, faz-se necessário ressaltar que a educação como prática de liberdade não é aquela que olha para o indivíduo isolado do mundo ou para o mundo isolado do indivíduo. Ela é uma experiência de educação que percebe o mundo e o homem a partir de suas relações intrínsecas, sem a possibilidade unilateral da reflexão. As condições de vida e visões de mundo do educador e dos educandos precisam ser evidenciadas e respeitadas para que possam se conectar. Como o educador esclarece: “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2005: 78).
As experiências educativas do educador Paulo Freire permitiram que ele afirmasse a relevância das vivências locais no processo de ensino aprendizagem. Suas práticas igualmente, lhe possibilitaram declarar que o ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural, que é fundamental na prática educativa e, portanto, não deve ser desprezada. A ideia de assunção denota, para Paulo Freire (2005), um assumir- se. A educação, de acordo com a pedagogia crítica, permite aos educandos e educadores uma experiência profunda, em que cada um se assume enquanto sujeito; e assim sendo, podem se relacionar e respeitar o lugar um do outro, na prática da alteridade. Neste mesmo sentido interpretativo, a educadora Carmen Pérez (2017) menciona que a experiência na educação está associada à percepção da e ao encontro com a diferença, permeada pela alteridade.
Entender a identidade cultural em sua perspectiva plural, que vislumbra as várias identidades formadoras do sujeito e que podem ser atualizadas e / ou ressignificadas, coaduna com a compreensão de Stuart Hall de que as nações modernas são híbridos culturais (2006: 62). E com o reconhecimento e valorização das diferenças culturais dos grupos étnicos e seus sujeitos. O que vai de encontro com uma ideia unificadora e estática das identidades culturais, enquanto nacionais; o que pode ser perigoso, já que remeteria a um mecanismo de poder social através da cultura. De acordo com os estudos foucaultianos de uma genealogia do sujeito, esse poder disciplinar funcionaria amplamente nas instituições coletivas e seriam replicados nas diversas esferas sociais, e produziriam seres humanos tratados como “corpos dóceis” (HALL, 2006). Portanto, é importante considerar, perceber e reconhecer a realidade do aluno, em suas identidades plurais, e partir de onde ele observa e assimila o mundo, como modo de enfrentar a desintegração do sujeito em corpos dóceis.
Para corroborar a importância de dialogar com a realidade dos alunos e compreender a educação como prática de liberdade, a contribuição da educadora negra norte-americana bell hooks no livro Ensinando a transgredir: A educação como prática de liberdade (2017) é essencial. A autora relatou sobre sua própria experiência escolar, universitária e docente, abordou questões do racismo, da mulher negra feminista e propôs uma pedagogia com entusiasmo. Para hooks a escola é um lugar de êxtase, prazer e perigo. Suas práticas pedagógicas nasceram da interação e complementariedade entre as pedagogias anticolonialista, crítica e feminista.
A trajetória de bell hooks (2017) é marcada pela luta através de práticas pedagógicas e uma escrita que milita, no que ela chama de ensinar a transgredir, dando voz e lugar aos que sofrem com o tipo de educação extremamente opressora, como se o conhecimento fosse um depósito de uma pessoa sobre outras, uma educação bancária. A partir de suas observações escolares, ela percebeu que os alunos negros se viam como passivos e reativos em relação aos brancos. Essas evidências comportamentais têm a ver com o modo que a educação é realizada. A educadora considerou profundas diferenças entre a educação que trabalha em prol de reforçar a dominação vigente e a que se desenvolve como prática de liberdade.
O entusiasmo não é algo inerente à educação. O qual precisa ser gerado, e para que ele exista, é importante perceber que as práticas pedagógicas não podem ser entendidas de maneira generalizada, fixa ou absoluta, ou possível de serem aplicadas em quaisquer circunstâncias. Há que se respeitar as particularidades, demandas de cada turma, realidades escolares diversas e mesmo de cada aluno. E, principalmente, entender que o entusiasmo nasce do esforço coletivo e está profundamente afetado pela nossa relação com o outro, pelo interesse no outro, em ouvir o outro e reconhecer sua presença. Bell hooks constatou que a educação está em uma grave crise, em que nem professores querem ensinar, nem alunos querem aprender. Contudo, a autora acredita que a sala de aula permanece como o espaço no que se oferecem as chances mais radicais da academia e é o lugar onde a transgressão educativa pode acontecer.
A proposta da educação como prática de liberdade é uma maneira de ensinar, na qual qualquer pessoa poderia aprender. E, para isso, faz-se necessário que alunos e professores se encarem como seres humanos integrais, dotados de conhecimentos sobre como viver no mundo, para além dos conteúdos curriculares escolares (HOOKS, 2017). De igual modo, em seus escritos, Paulo Freire (2005) apontou para a relação intrínseca entre o indivíduo e o mundo e que não há como isolá-los.
A proposta da ecologia dos saberes por uma descolonização da educação
A educação escolar e institucional passou por transformações, e existem diferentes formas de abordagens e didáticas para o trabalho educativo. Durante muito tempo vigorou a compreensão da escola como ambiente de ensino programático dos conteúdos e que seus alunos, ali estariam, para o acúmulo de conhecimentos. Desde o início do século XX, os pressupostos da Escola Nova trouxeram uma renovação das didáticas e percepção, além do lugar especial do aluno nos processos educativos (VIDAL, 2010). A pedagogia crítica que foi inaugurada em meados do século XX postula a necessidade de se abandonar os pressupostos de uma educação bancária, que entende que o conhecimento poderia ser depositado no aluno, para dialogar e construir conhecimento coletivamente; em uma pedagogia da autonomia, em que tanto educando como educador ensinam e aprendem coletivamente, sobretudo, quando se trata dos oprimidos daquela sociedade.
Ao falar sobre um reconhecimento da realidade do aluno e suas experiências, considera-se que haja variedade de conhecimentos. Essa é uma perspectiva de compreensão social. O sociólogo português Boaventura de Souza Santos tem sido um defensor da importância de se reconhecer todos os saberes, especialmente os das populações que têm sofrido com supressões dos direitos básicos à vida. Boaventura (2019) afirma que para que seja possível uma justiça social no/do mundo, urge que se realize uma justiça cognitiva global. Ele aponta para a necessidade de mudanças epistemológicas.
A partir de seus estudos, apresenta os três principais modos de dominação moderna: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcalismo. Para Boaventura de Souza Santos (2018) essa tríade opera concomitantemente, apresentando graus maiores ou menores para cada caso, a depender da situação específica. O que é possível por um alicerce eurocentrado de conhecimentos válidos, que denomina epistemologias do Norte. Para lidar com tal circunstâncias, o sociólogo pontua a necessidade das epistemologias do Sul. Não se trata aqui, de uma divisão geográfica, mas de uma linha abissal “que separa as sociedades e as formas de sociabilidade metropolitanas das sociedades e formas de sociabilidade coloniais e nos termos da qual aquilo é válido, normal ou ético do lado metropolitano dessa linha não se aplica no seu lado colonial” (SANTOS, 2019: 24-25).
Essa linha é a corrente moderna de pensamento eurocêntrico, baseado em um sistema de distinções visíveis e invisíveis, posto que as invisíveis alicerçam as visíveis, sendo a principal característica deste pensamento abissal, a impossibilidade de copresença dos dois lados. De acordo com o autor há uma obrigação da outra orientação política e epistêmica, uma vez que existe o conhecimento desde o Sul e com o Sul, que são aqueles que lutam contra os modos de dominação e suas articulações. O Sul, a que ele se refere, é o geopolítico, formado por países e grupos sociais que têm sido sujeitados aos sistemas de opressão e exclusão. A exigência de uma perspectiva diferenciada de sentido e prática, se daria a partir da luta contra os mecanismos de opressão, pelo reconhecimento de inúmeros conhecimentos oprimidos e subalternizados (SANTOS, 2009).
As epistemologias do Sul, nesse sentido, enquanto conjunto de procedimento se apresentam como uma necessidade para enfrentar as imposições das epistemologias do Norte, eurocêntrica, em que as ciências colocam o Norte como a solução e o Sul como sendo o problema. Desta forma, a emergência do Sul não trata da busca de um lugar de hegemonia, mas sim de uma equidade na legitimação dos saberes, até que por fim, a separação entre Norte e Sul seja desnecessária. O sociólogo defende a possibilidade de um pensamento pós-abissal, que seria viável levando em consideração as muitas condicionantes existentes e se daria a partir do reconhecimento da exclusão social em seus amplos sentidos.
Para que as epistemologias do Sul sejam possíveis, faz-se necessário um duplo empenho, em desfamiliarizar as epistemologias do Norte e validar conhecimentos produzidos por aqueles que sofrem violências e injustiças advindas dos três principais modos de dominação moderna. Um dos princípios para que isso seja possível, é o entendimento de que todas as formas de conhecimento são incompletas e que mesmo ao juntar conhecimentos variados, os aumentaríamos em volume, contudo, perceberíamos igualmente a sua incompletude. A questão não versa sobre eliminar diferenças entre norte e sul, mas sim nas hierarquias de poder que nelas habitam. A proposta é que a universalidade abstrata dê lugar a uma pluriversalidade. Um tipo de pensamento que promova a descolonização.
Como procedimento metodológico para as epistemologias do Sul, Boaventura de Souza Santos sugere uma prática que ele nomeia de “sociologia das ausências”. Nela há um resgate dos saberes suprimidos, silenciados e marginalizados, buscando evidenciar práticas, saberes e agentes existentes, que a linha abissal tentam silenciar enquanto
inexistentes nas exclusões sociais advindas da tríade de opressões modernas. A identificação e denúncia dessa linha abissal abririam a possibilidade para a diversidade epistemológica do mundo. Nessa diversidade, compreende-se o que Boaventura chama de “ecologia dos saberes”, entendido como “o reconhecimento da copresença de diferentes saberes e a necessidade de estudar as afinidades, as divergências, as complementaridades e as contradições que existem entre eles, a fim de maximizar a eficácia das lutas de resistência contra a opressão” (SANTOS, 2019: 28).
O estímulo a uma ecologia dos saberes, entre os conhecimentos científicos e os artesanais, populares, os não científicos, alinhada a uma tradução intercultural seriam os meios das epistemologias do Sul para um alargamento do entendimento da diversidade do mundo através da ampliação do presente. O sociólogo ainda destaca que há uma urgência em se estabelecer um “pensamento alternativo de alternativas”, formado por um processo de “tradução intercultural capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre diferentes experiências possíveis e disponíveis.” (SANTOS, 2018: 58)
Logo, a ecologia dos saberes como um caminho para descolonizar o pensamento, contribui para a educação como prática de liberdade, cujos contextos específicos e temporais, nos permitem traçar uma relação com a pensamento de Walter Benjamin (1994), quando este declara que a sociedade perdia, como um todo, com a desvalorização da experiência e a suposta falta de tempo geradas por um sistema produtivo que não dá a devida atenção à narrativa e à produção de saberes artesanais. Portanto ideia de uma ecologia dos saberes viabilizando a experiência, reafirma a importância da reflexão de Benjamin.
O despertamento para a necessidade da escuta profunda
Os autores referenciados até aqui tratam de uma questão comum, dar lugar ao outro. Walter Benjamin (1994) evidenciou a importância da experiência e da narrativa como heranças que passam de geração para geração. Paulo Freire (2005) e bell hooks (2017) denunciaram os processos educativos impositivos, repressores e militaram por um entendimento da educação construída dialógica e coletivamente. Boaventura de Souza Santos (2009, 2018, 2019) busca caminhos nas pesquisas sociológicas para validar as
epistemologias daqueles que sofrem opressões e supressões de direitos, pelo capitalismo, colonialismo e patriarcado.
Contudo, para que isso seja possível há um exercício essencial: a escuta profunda. Não é um ouvir enquanto faculdade da pessoa ouvinte, escutar implica um ato de vontade. A escuta profunda é uma experiência complexa e importante na educação. Para corroborar tal questão, Boaventura de Souza Santos cita os educadores Paulo Freire e Katherine Schultz. Esta última propõe que a escuta tenha centralidade no ato de ensinar, com o que os professores escutam para ensinar e os alunos falam para aprender. Esse escutar exige proximidade e intimidade, em que ambos, quem ensina e quem aprende, em seus conhecimentos de si e compreensão da realidade, compõem o ponto de partida do ensinar (SANTOS, 2019: 253). O exercício é fundamental para o despontamento e percepção do educador como agente coletivo de transformação, principalmente os que desenvolvem trabalhos nas periferias, sobre a realidade social e suas desigualdades.
Para ilustrar a reflexão, trazemos a experiência de uma professora de História, coletada durante a pesquisa. A professora de História, com vinte e sete anos de atuação na rede municipal de Educação do Rio de Janeiro, iniciou como docente em uma escola no bairro da Pavuna. Na época, início da década de 1990, havia muitos alunos mais velhos nas turmas, porque não tinha uma faixa etária limite, nem um encaminhamento à Educação de Jovens e Adultos-EJA por uma disparidade da idade / série. Em uma de suas primeiras aulas, a professora explicou que a história possuía muitos vestígios, entretanto, um de seus alunos indagou o significado da palavra vestígio. Indignada com um aluno por não saber o significado de tal palavra, ao chegar em casa relatou o ocorrido ao seu pai. Diferente do esperado, o pai questionou a própria filha sobre como ela, que sofrera desde a infância de dislexia, se espantara com a falta de compreensão do seu aluno, mencionando ainda, sobre a importância de sempre lembrar de onde viera e das suas dificuldades. Dito isto, deu-lhe a tarefa de encontrar meios de fazer o aluno entender o que eram os tais “vestígios”. Ao retornar à escola, a professora buscou usar a realidade dos alunos para dar aula. A escola não tinha água, nem vidros nos primeiros anos de sua atuação e está localizada em uma favela do bairro. Na aula, ao propor um pensar coletivo com a turma, sobre o que eram os vestígios das vivências no morro, na comunidade local e para mostrar que haviam compreendido o significado da palavra, alguns alunos tiraram do bolso algumas cápsulas de bala de revólver, como sendo os vestígios de suas vivências. Eles pareciam, finalmente, ter compreendido quais eram os vestígios históricos de que a professora estava falando.
A professora mencionou essa situação como fundamental para sua mudança de percepção, entendendo que era necessário empenhar-se para adentrar no universo do aluno e conhecê-lo a partir de uma escuta profunda. Essa experiência impactou em toda a sua trajetória docente e a fez estar cada vez mais próxima dos seus alunos, buscando o diálogo que permite ensinar e aprender. Assim como foi essencial ao professor na escola da Vila Cruzeiro se aproximar, ter intimidade com seus alunos, escutar profundamente sobre suas histórias, memórias e saberes, para que coletivamente pudessem construir o projeto Rolé na Penha, que está mais abaixo apresentado.
Olhar, observar e ouvir professores, narrando sobre mudanças de percepções sobre a realidade dos alunos para melhorar e até tornar possível o processo de ensino aprendizagem, traz à baila um processo de (trans)formação. docente que denominamos descolonização do eu, inspiradas na proposta da artista interdisciplinar e professora negra portuguesa Grada Kilomba. Segundo a autora, que pesquisa sobre o racismo cotidiano, “descolonização refere-se ao desfazer-se do colonialismo. Politicamente, o termo descreve a conquista de autonomia por parte daquelas/es que foram colonizadas /os e, portanto, envolve a realização da independência e da autonomia” (KILOMBA, 2019: 224).
Uma escola, uma comunidade, um bairro
A Escola Municipal Bernardo de Vasconcelos, construída em 1966, atende a aproximadamente quatrocentos alunos, divididos em dez turmas, do sexto ao nono ano do Ensino Fundamental, nos turnos matutino e vespertino. Ela é uma das cento e sessenta e seis unidades de educação pertencentes a 4ª Coordenaria Regional de Educação (CRE). A Secretaria Municipal de Educação do município do Rio de Janeiro (SME/RJ) está dividida em onze coordenadorias para cuidar do total de aproximadamente mil quinhentas e quarenta unidades. A Bernardo, como costuma ser chamada por alunos e professores, é uma escola em área de risco, que frequentemente sofre com a violência do entorno, e, muitos dias letivos precisam ser suspensos para garantir sua segurança.
A escola está localizada na Vila Cruzeiro, uma das favelas que compõe o Complexo da Penha, na zona norte do Rio, com cerca de 8.600 habitantes conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010. A Vila Cruzeiro teve um processo de construção anterior a muitas favelas na cidade, já que seu início remonta ao antigo Quilombo da Penha, lugar de resistência e cultura negra nos arredores da Igreja da Penha; e até hoje imprime seu legado na presença da capoeira, e nos bailes funk, tendo como funkeiro principal o Renan da Penha. Outros nomes são associados à comunidade, como o jogador de futebol Adriano, conhecido como Imperador, que nasceu na região e mantém os laços com o local; o jornalista Tim Lopes também é associado à Vila Cruzeiro, onde foi assassinado.
A unidade escolar, em que se deu o nascimento do Rolé na Penha, passou por um intenso processo de transição, que influenciou para a criação do projeto. No início de 2017 a direção escolar mudou, trazendo consigo o novo Projeto Político Pedagógico – PPP, o Ser e Pertencer e modificações na estrutura física da escola. Para angariar recursos, reuniram a comunidade escolar, que além do auxílio financeiro, compareceu na escola aos sábados a fim de reformarem o espaço degradado, retirando muitas das grades, construindo uma quadra e ampliando o espaço de lazer para os alunos, retirando o estacionamento da escola. As paredes cinzas deram lugar ao colorido da arte do grafite realizado pelo artista muralista Ângelo Campos., morador da comunidade, que além de receber cooperação dos educandos em suas pinturas, fez com que cada parede da escola se tornasse ferramenta educativa, nomeada como Galeria Ser e Pertencer.
O bairro da Penha, localizado na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, que segundo dados do IBGE (2010) possui em torno de 78.600 habitantes, tem uma história entrelaçada com a da igreja. A data de oficialização da Penha como bairro remonta a 22 de julho de 1919, mas sua delimitação territorial foi decretada em 1981. Desde a sua criação, no século XVII, a Igreja da Penha é uma referência para a localidade e população que foi crescendo em seu entorno. A Igreja passou por dois processos de tombamento: o primeiro datado de 1938 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que foi indeferido e o segundo iniciado em 1988 pelo Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), que tombou o bem. Ela foi tombada definitivamente como patrimônio, de natureza material, pelo IRPH do município do Rio de Janeiro, em 1990.
Os representantes da Igreja da Penha, mediante os dois processos de tombamento, se mostraram desfavoráveis ao tombamento do bem.
A origem do bairro da Penha se remete a um mito fundador da Igreja da Penha em 1635. Para sua manutenção, foi criada, em 1728, a Irmandade de Nossa Senhora da Penha, que cuidava ainda dos romeiros e da festa anual para a santa padroeira. A Igreja construída sobre um rochedo, recebeu em 1819, uma escadaria esculpida por trabalhadores escravizados, de 382 degraus no granito do penhasco, por encomenda de uma devota a partir de uma promessa.. A Igreja passou por algumas reformas e ampliações, em 1870, entre 1903 e 1906 e em 1925. A comunidade religiosa passou igualmente por diversas mudanças de categoria, demonstrando seu reconhecimento perante a estrutura da Igreja Católica, sendo atualmente considerada “Basílica Santuário Arquidiocesano Mariano de Nossa Senhora da Penha de França”.
Ao longo de sua história, a Igreja reuniu também em torno de si padres engajados na luta abolicionista. Há relatos de que no século XIX um padre de nome Ricardo, conhecido como o “Vigário do Outeiro”, teria se aliado a José do Patrocínio, chegando a abrigar em sua chácara, o Quilombo da Penha, reduto de negros escravizados e resistentes. No início da República muitos libertos, operários e trabalhadores buscavam diversão nos arraiais da Penha, o que havia de sobra, com violões, charangas e sanfonas, comidas como bacalhau, caldo verde e cozido, além de quitutes de baianas. O local onde estava localizado Quilombo da Penha, deu lugar a comunidade da Vila Cruzeiro, uma das favelas do bairro da Penha.
Tem-se registros de que houve padres que tentaram frear o caráter popular das festividades, contudo este crescia com mais força do que as motivações religiosas. E continuaram a se desenvolver, muitas músicas tornavam‐se composições para o carnaval, com presenças como a do Sinhô, Heitor dos Prazeres, Donga, Pixinguinha e João da Baiana. O final do século XIX demarcou uma maior movimentação na região, pela construção da estação de ferro nas proximidades, cujo percurso, servira inicialmente, para o transporte de gado bovino, e, também, para atrair novos moradores. A primeira metade do século XX foi marcado por festividades extensas, que tomavam grande parte do bairro, aonde iam pessoas de várias localidades da cidade, sendo considerada a segunda maior festa da cidade, a primeira era o Carnaval. Na década de 1920 mais habitantes chegaram
ao bairro, em função do aumento de empregos gerados pela inauguração da indústria de couro, o Cortume carioca, que foi fechado em 1980 em decorrência de novas políticas ambientas.
Nas últimas décadas a violência urbana tem crescido, principalmente nos enfrentamentos entre policiais e supostos bandidos. A cidade tem sofrido como um todo, mas as áreas periféricas muito mais. É evidente a necessidade da ampliação de políticas públicas e recursos para combater as desigualdades sociais e garantir direitos a educação, saúde, moradia e mais ainda para a cultura, com um histórico de desvalorização de sua essencialidade. Contudo, é importante perceber as peculiaridades e complexidade cultural além das generalizações esvaziadas.
O geógrafo, diretor do Observatório das Favelas, Jorge Luiz Barbosa aponta que mesmo reunindo marcadores da cultura carioca, as favelas ainda são consideradas territórios carentes, miseráveis e violentos; e que “tais expressões são redutoras da vida social das favelas e do não reconhecimento da pluralidade cultural destes territórios populares” (BARBOSA, 2014: 223). O geógrafo afirma também que o território é um produto dos enlaces sociais e que a cultura é a prática significante de apropriação e uso do território.
A pluralidade cultural é fundamental para gerar uma criatividade e inventar o futuro, entretanto a padronização da cultura traz uma homogeneização redutora. O que corrobora a importância das relações culturais para a construção do território e sua apropriação em usos e identificações de pertencimento. E pode ser percebido, igualmente, no vínculo dos alunos moradores da Vila Cruzeiro com seu território, reverberadas pelo Rolé na Penha.
Rolé na Penha: construção, narrativa e experiência educativa
No primeiro encontro, o docente definiu o projeto como uma proposta de trabalhar a Memória, História Local e Educação Patrimonial no Ensino de História. O Rolé na Penha é o nome do projeto que aborda essas questões dentro do PPP da Escola. O processo de elaboração do Rolé foi uma experiência que partiu da frustração e transformação do professor, que achou o caminho possível para a mudança através da escuta dos alunos e das suas vivências. O professor de história relatou ingressar à docência
na escola pública, com um perfil conteudista e com uma preocupação premente com o cumprimento da grade curricular. Mas se deparou com o desinteresse dos alunos e com sua falta conhecimento sobre a realidade dos alunos. Algumas situações cotidianas da escola o fizeram perceber, assim como ocorrera com a professora na Pavuna, que ele precisava adentrar no mundo dos alunos e para isso precisava aprender com eles, precisava ser ensinado pelos alunos sobre algo que ele desconhecia.
O primeiro passo foi acessar o modo de expressar dos alunos, a língua usada na comunicação do grupo. Mesmo que a língua oficial seja o português, existem variadas formas de acessar e falar a língua. Cada localidade possui suas peculiaridades culturais, vivas e está em constante movimento, sendo a língua um de seus elementos fundamentais. Muitos autores reconhecem na língua um elemento cultural fundamental para a formação das unidades territoriais, como por exemplo o historiador Eric Hobsbawm (1990). Entretanto, outros autores como Frantz Fanon, Grada Kilomba (2019) e Gabriel Nascimento (2019), adentram a evidenciar como a língua, com suas peculiaridades, pode ser fator de estigma social, preconceitos e discriminações. O pensador negro martinicano Frantz Fanon declarou que “falar é existir absolutamente para o outro... Falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura suportar o peso de uma civilização” (2008:33). O que pode ser exemplificado pelas práticas descritas por bell hooks (2017). Ela diz que através da língua nos tocamos uns aos outros e quando a língua não consegue expressar isso, faz uso do vernáculo negro, como língua contra hegemônica e meio de libertação.
Em um dia de aulas de História, o professor começou a escrever no quadro as palavras usadas pelos alunos e seus significados. Logo percebeu que eram tantas expressões que não cabiam no quadro. Então, decidiram fazer uma versão impressa, com pouco mais de cem expressões e distribuir para todos na escola. Assim foi produzido o “Pega a Visão - Dicionário da RaPAZiada.”, o material teve sua primeira edição em 2017 e teve reedições ampliadas em 2018 e 2019. Essa atividade ajudou não só na disciplina de História, mas facilitou o diálogo como um todo na comunidade escolar, além de servir como material didático nas aulas de português.
A elaboração do glossário configurou um elo importante na relação entre os alunos e professores, configurando um movimento de eliminação de barreiras na compreensão
da realidade dos discentes. A língua é uma expressão cultural da sociedade, mas pode servir também como um aparato de dominação sobre o outro. Ao longo da história, nas dominações dos povos, a língua dos vencedores era imposta aos demais. O professor Gabriel Nascimento fez um estudo sobre o racismo linguístico, em que entende o preconceito racial atrelado ao social e linguístico. Para o autor, “o racismo é produzido nas condições históricas, econômicas, culturais e políticas, e nelas se firma, mas é a partir da língua que ele materializa suas formas de dominação” (NASCIMENTO, 2019: 19).
A segunda iniciativa para o entendimento da realidade dos alunos foi o reconhecimento do território. O professor deu aos alunos a tarefa de desenharem o caminho de casa para a escola, inserindo, em detalhes, o que eles viam e o que fosse importante, como referência para eles nesse trajeto. O docente relatou que a aula foi planejada, porém os resultados excederam a qualquer expectativa, pois todos os alunos desejaram participar. Os desenhos viraram mapas afetivos da localidade e o envolvimento dos alunos na atividade foi enorme, contando inclusive com interações, como a de um querer opinar sobre o mapa do outro.
O professor percebeu que além da linguagem específica, os alunos eram também detentores da geografia local da Vila Cruzeiro. Os mapas afetivos são de imensa riqueza de detalhes e muito interessantes para uma análise da noção de espaço, território e saberes dos alunos. Nestes, vale destacar a incidência de algumas referências, os estabelecimentos de vendas de produtos alimentícios, as escadarias, aglomerações de moradias, becos e locais de tráfico de drogas.
O professor apresentou elementos da história local, iniciando pela Igreja da Penha. Muitos alunos não conheciam a Igreja da Penha, mesmo que o patrimônio integrasse as memórias familiares e afetivas daquela comunidade. Professor e alunos elegeram suas referências culturais do bairro e decidiram realizar atividades de reconhecimento à região, explorando memórias do bairro e guiarem interessados na visitação. A proposta foi a de aliar o conhecimento do território, com as vivências e histórias pessoais, oportunizando a possibilidade de emergir os sentidos experimentados pelo grupo com relação às suas próprias trajetórias no contexto em que viviam.
Para que o Rolé na Penha fosse criado, o professor precisou passar por um processo de descolonização do eu, transformando sua própria ação e valorizando as memórias e história locais. O que asseverou que, “para educar para a liberdade, portanto, temos que desafiar e mudar o modo como todos pensam sobre os processos pedagógicos.” (HOOKS 2017: 193). Modo de conscientização, que Paulo Freire (1994) destacou como
fundamental na educação, e que, segundo bell hooks, age para permitir um processo de descolonização, na luta pela libertação como um estágio inicial de transformação, “momento histórico em que começamos a pensar criticamente sobre nós mesmas e a nossa identidade diante das nossas circunstâncias políticas” (2017: 67).
O projeto Rolé na Penha teve suas primeiras atividades no final de 2017. Ele possui atividades na escola – internas – e fora dela – externas –, que ocorriam uma vez na semana, no contraturno escolar. A participação acontecia por adesão, contando no início do ano letivo com aproximadamente setenta alunos e em torno de quarenta no final do ano escolar. Nas atividades internas há, inicialmente, um curso de quatro aulas, isto é, um ciclo de formação para os alunos interessados em serem monitores na visitação. O momento da formação e os dias do Rolé interno, na escola, são fundamentais, pois há um intercâmbio de experiências, os alunos levam suas memórias pessoais e familiares sobre o bairro e definem quem ficará responsável por apresentar cada referência cultural através das suas vivências e reflexões. Para as atividades externas há um revezamento, contando com cerca de quinze alunos monitores. A cada semana é um dia de aprendizado coletivo, na escola ou fora dela, nas oito referências culturais mapeadas: a Escola Municipal Bernardo de Vasconcelos, o Antigo Castelinho da Penha, a Rua dos Romeiros, o Antigo Cinema São Pedro, o Parque Shangai, a Igreja da Penha, as Quatro bicas e Parque Ari Barroso.
O reconhecimento das referências culturais do bairro realizado pela comunidade escolar é de extrema relevância. Os patrimônios culturais são estabelecidos como instrumentos para preservação e valorização da vida. Pois, é significativo quando as referências culturais partem das vivências e representações comunitárias. Walter Benjamin ao anunciar a pobreza da experiência, questionou especialmente em relação aos patrimônios: - “Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?” (1994: 115). O antropólogo José Reginaldo Gonçalves fez uma importante reflexão, a partir do questionamento de Walter Benjamin, percebendo que há possibilidades desse vínculo acontecer:
Numa perspectiva identificada como ‘crítica da cultura’, o autor apontava a ‘perda da experiência’ como uma característica da modernidade. No entanto, é possível que, se concebemos os patrimônios do ponto de vista etnográfico, se abrimos essa categoria e exploramos suas outras dimensões, podemos encontrar formas de patrimônio cultural no mundo contemporâneo que estejam fortemente ligadas à experiência. (GONÇALVES, 2005: 32)
Rolé na Penha uma experiência de educação patrimonial decolonial
A partir do Ensino de História, das trocas e mudanças nas relações do professor e alunos, das histórias de vida, patrimônios e seus significados na história local e memórias, é que o projeto acontece. O Rolé na Penha vem estabelecendo um processo coletivo de construção de conhecimento naquela comunidade escolar e seus patrimônios. Os patrimônios referenciados no bairro da Penha, não são uma finalidade da atividade, são como um caminho para a ressignificação da História por meio da percepção das referências culturais, da história local, do pertencimento à escola, das memórias afetivas da comunidade e da própria vida. Como apontam Regina Abreu e Rodrigo Silva (2016) a Educação Patrimonial pode ser uma possibilidade de construir caminhos, vivenciar experiências na tessitura da história, para as leituras de patrimônios no plural.
A definição da Educação Patrimonial pelo Iphan, a entende como processos educativos “construídos de forma coletiva e dialógica, que têm como foco o patrimônio cultural socialmente apropriado como recurso para a compreensão sócio-histórica das referências culturais, a fim de colaborar para seu reconhecimento, valorização e preservação” (BRASIL, 2016). A projeto Rolé na Penha contempla tal definição. Sua elaboração aconteceu de maneira coletiva e dialógica e as referências culturais escolhidas pela comunidade escolar contribuíram para a compreensão socio-histórica. Dentre as oito localidades elencadas, somente a Igreja da Penha, no âmbito municipal e o Parque Ari Barroso, na esfera estadual, foram tombados como patrimônios.
Portanto, o Rolé na Penha, enquanto processo educativo que tem como foco os patrimônios e suas memórias em uma região periférica, na cidade do Rio de Janeiro, podem ser entendidos como uma proposta de uma Educação Patrimonial decolonial como projeto ético-político como nos propõe Átila Tolentino (2018), considerando que:
Defender a construção coletiva e democrática do conhecimento e a participação efetiva dos diferentes atores nos processos de apropriação do patrimônio cultural (considerando tantos os agentes institucionais como os detentores das respectivas referências culturais) é trabalhar sob o ponto de vista da ecologia dos saberes proposta por Boaventura de Sousa Santos. Configura, também, reconhecer que o patrimônio cultural é produto das relações sociais e dos significados que os indivíduos lhe atribuem. Por esse
caminho, quebram-se as linhas abissais que construímos, muitas vezes institucionalmente, entre os supostamente detentores do saber(-poder), que falam em nome do Estado e dos institutos de patrimônio, e as comunidades que precisam ser “conscientizadas” acerca da preservação de um dado patrimônio, ao mesmo tempo fetichizado e alheio ao indivíduo, no qual muitas vezes os grupos sociais com os quais estamos lidando não se veem representados. (TOLENTINO, 2018: 56)
Como ressalta Átila, é muito importante que o patrimônio tenha significado para a comunidade a qual ele pertence, que seja fruto de diálogo e não uma imposição institucional. Um exemplo disso foi a eleição das Quatro Bicas, como referência cultural da localidade. Nela existem quatro torneiras, contudo apenas uma em funcionamento, que estão dentro da favela da Vila Cruzeiro e servia aos primeiros moradores da localidade como fonte de buscar água para suas necessidades diárias. Hoje quase todos os moradores possuem água encanada, mas ainda existe um pequeno percentual que depende daquela torneira.
O Rolétem sido importante para além dos seus impactos no cotidiano escolar, rompendo as fronteiras do bairro e da linha abissal. Nos anos de sua execução presencial, em 2018 e 2019, o projeto apareceu na grande mídia, em algumas reportagens televisivas, revistas e jornais, resultando em uma repercussão positiva entre os alunos e seus responsáveis. O projeto teve visibilidade nas sessões de turismo e educação. O que impactou positivamente os alunos, abriu-lhes perspectivas, já que a violência é a principal associação feita pela mídia aos jovens da favela, especialmente na sessão policial. Ou seja, o “comum” em territórios periféricos seria o exercício da necropolítica, conceito do filósofo Achile Mbembe (2020) para explicar que as políticas colonialistas de supressão dos direitos aos menos favorecidos socialmente geram uma política da morte, em que a vida de alguns “importariam” menos do que de outros.
A circulação, dentro do ambiente acadêmico, do professor de História, propiciou que ele recebesse convites para a apresentação da sua prática pedagógica em universidades, quando levou consigo alguns alunos. Durante a pesquisa, em 2019, foi possível observar que os alunos da escola municipal em questão tinham orgulho de estar falando da sua comunidade dentro das universidades e saiam dali com a sensação de que poderiam ocupar aquele espaço futuramente; alunos e professores das universidades emocionados por se perceberem em um lugar de exclusão social, enfatizando que aquele lugar também era deles; em um movimento de identificação com os alunos da educação
básica e o reconhecimento de que tiveram que enfrentar muitas desigualdades para ali chegarem, e, sem a oportunidade de passar por um projeto que lhe permitisse tais ressignificações e enfrentamento. Momentos estes, que se estabeleceram enquanto práticas decoloniais, atravessando os limites da linha abissal, em que alunos da educação básica tiveram seus saberes escutados nas universidades em que se apresentaram.
Considerações
O Rolé na Penha é um projeto construído coletivamente, a partir das demandas dos alunos de conhecer mais, para se apropriarem da história do bairro que atravessa a história de vida da própria comunidade escolar. Nessa perspectiva, o projeto escolar Rolé na Penha busca aliar as referências culturais da comunidade escolar, as memórias e experiências com a localidade. Saberes reunidos em torno das referências culturais, que trouxeram entusiasmo para a sala de aula, para o Ensino de História e que permitiu a educação ser uma prática de liberdade aos sujeitos.
As desigualdades sociais cresceram e têm sido exacerbadas pelo contexto de pandemia mundial do COVID -19 iniciado em 2020. E, no caso brasileiro, que vem passando por uma fragilidade na sua democracia e sofrendo com a insurgência de governos autoritários, é necessário reafirmar e divulgar práticas educativas emancipatórias, com o protagonismo dos sujeitos, que contribuem para a autonomia e empoderamento dos indivíduos oprimidos socialmente.
Projetos e práticas pedagógicas como o Rolé na Penha são fundamentais para elucidar as memórias locais, reconhecer e valorizar seus saberes. A comunidade escolar foi nutrida das suas próprias experiências e narrativas, das suas histórias e memórias cotidianas que trouxeram sentido as referências culturais. E serviram igualmente para escutar, dar voz e legitimar os saberes daqueles que, desde pequenos, sofrem opressão e são invisibilizados pelos modos de produção de não existência. Portanto, entende-se o Rolé na Penha, como uma proposta de ecologia dos saberes. O relato de um aluno monitor do Rolé na Penha, de outubro de 2019, corrobora esse entendimento:
O Rolé mudou bastante coisa na minha vida. Por causa que eu antes, eu mesmo passava pelo bairro não tinha cuidado nenhum porque era apenas o bairro e não gostava de morar aqui. Mas depois do Rolé eu comecei a ver que aqui é
um dos lugares que tem bastante coisa. Que lugares a gente não tem? A gente tem a história local, a gente tem o ar livre, eu tenho o livre direito de falar, de se expressar, coisas que tem lugar que a gente não tem, são várias regras e tal. O Rolé valeu, ajudou bastante nessas coisas, ajudou a escola, a comunidade e a cada um, assim mesmo fazendo várias propagandas, divulgando a história do bairro local. (aluno monitor do Rolé na Penha de 13 anos, do 8° ano)
Em meio a pandemia um relato, ou melhor, uma postagem nas redes sociais, traz esperança e mostra que o Rolé na Penha continua educando, mesmo em tempos de isolamento. Uma das atividades sugeridas pela direção escolar aos alunos, foi que gravassem vídeos falando sobre livros que gostaram de ler e indicariam. Um dos alunos gravou um vídeo na laje da sua casa, no alto da Vila Cruzeiro, a indicação dele foi o livro “Amaro da Maré” que ganhou durante a formação do Rolé na Penha. Segundo ele o livro fala sobre a favela e sua realidade e isso é importante para as pessoas saberem sobre a comunidade.
Finalmente, há que se destacar a importância de práticas pedagógicas que deem lugar às memórias e saberes de cada sujeito na comunidade escolar. A educação escolar não tem, definitivamente, um caráter salvacionista de sua comunidade, mas compreende um meio fundamental para o desenvolvimento social e luta contra as desigualdades. O que só pode ser realizado através de uma educação como prática de liberdade, imbuída de entusiasmo, estabelecendo experiências decoloniais. Em que cada pessoa tenha o direito de assumir-se enquanto sujeito, com suas memórias, histórias e saberes.
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Notas