Dossiê

De crítico a admirador: Gilberto Freyre, segundo Oswald de Andrade

From critic to admirer: Gilberto Freyre, according to Oswald de Andrade

Valdeci da Silva Cunha
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil

Intellèctus

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

ISSN-e: 1676-7640

Periodicidade: Semestral

vol. 21, núm. 1, 2022

revistaintellectusuerj@gmail.com

Recepção: 19 Março 2022

Aprovação: 16 Junho 2022



Resumo: O presente artigo propõe analisar as leituras e apropriações feitas por Oswald de Andrade da produção e do legado cultural de Gilberto Freyre e mostrar que, ao longo dos anos de 1930 e 1940, o escritor paulista, a princípio um crítico às pesquisas e obras de Freyre, tornou-se um admirador de seu trabalho. Nessa empreitada, encontramos Oswald inserido nos principais debates da década de 1940, acerca da identidade nacional brasileira, do lugar do Brasil na América Latina, da importância dos Estados Unidos, do ensaísmo, dentre outros. Utilizaremos, para tanto, as contribuições de Oswald de Andrade à imprensa brasileira presentes em suas Obras Completas. Embora sem um estudo aprofundado sobre a obra de Freyre, encontramos nelas uma ampla rede de referências que nos informam sobre uma viva cultura de trocas intelectuais entre os dois escritores. Este estudo, para tanto, apoia-se nas discussões, propostas e abordagens presentes nas pesquisas da História Intelectual.

Palavras-chave: Oswald de Andrade, Gilberto Freyre, História intelectual, apropriações intelectuais.

Abstract: The present article proposes to analyze the readings and appropriations made by Oswald de Andrade of the production and cultural legacy of Gilberto Freyre and to show that, throughout the 1930s and 1940s, the São Paulo writer, at first a critic of Freyre’s research and works, became an admirer of his work. In this endeavor, we find Oswald inserted in the main debates of the 1940s, about Brazilian national identity, Brazil’s place in Latin America, the importance of the United States, essayism, among others. We will use, for that, the contributions of Oswald de Andrade to the Brazilian press present in his Obras Completas. Although without an in-depth study of Freyre’s work, we find in them a wide network of references that inform us about a lively culture of intellectual exchanges between the two writers. This study, therefore, is supported by the discussions, proposals and approaches present in the researches of Intellectual History.

Keywords: Oswald de Andrade, Gilberto Freyre, Intellectual History, intelectual appropriations.

Introdução

Falar em Gilberto Freyre (Recife, 1900-1987) é evocar o tema da casa-grande e senzala, é ativar os temas da escravidão negra no Brasil, da mestiçagem e da democracia racial. Por outro lado, mencionar o nome de Oswald de Andrade (São Paulo, 1890-1954) é acionar os temas do modernismo no Brasil, das vanguardas artísticas, do pau-Brasil e da antropofagia. E se nos permitem sintetizar ainda mais o que foi exposto já sinteticamente, diríamos que Freyre estaria para a democracia racial como Oswald para a antropofagia, temas que, sem dúvida, foram as suas marcas registradas.

Em 1925, Oswald publicou a sua obra mais lembrada até os dias de hoje, o livro da Poesia Pau-Brasil. Nela, propunha, dentre outras questões, ler o passado colonial, por meio da formulação poética, de nossa formação política e cultural pelas lentes da modernidade e do progresso aplaudidos pelas vanguardas europeias e pela euforia e promessa do mundo pós-Primeira Guerra Mundial. Em 1928, publicou o Manifesto Antropófago, texto que apresenta o escritor envolto com questões políticas, o que emprestou a esse manifesto um tom maior de radicalismo político, especialmente se comparado com o Pau-Brasil (CUNHA, 2017). Por sua vez, Freyre trouxe à luz, em 1926, o Manifesto Regionalista, que se propunha a valorizar os patrimônios culturais em suas dimensões materiais, como igrejas barrocas e engenhos de açúcar, e imateriais, como as festas, os usos e as simbolizações do homem regional (SANTOS, 2011; ALMEIDA, 2017). E em 1933, o seu mais famoso “ensaio” de sociologia, Casa-Grande e Senzala. Nesse, o sociólogo também extraíra uma identidade do povo brasileiro, uma radiografia, mas com o auxílio de teorias e metodologias do campo das ciências sociais, sobre o nosso contato com o branco europeu e o negro africano (GUIMARÃES, 2011; MELO, 2020).

Enfim, dois avatares importantes da cultura intelectual brasileira que atuaram ao longo, um mais, outro menos, de quase todo o século XX. Contudo, pretensioso e com pouco sentido seria propor uma comparação entre a produção intelectual de ambos, por mais que isso não nos pareça completamente impossível e improdutivo. Proponho, então, outro caminho. Em diálogo com a perspectiva de que intelectuais agem, se movem, atuam, se situam a partir e dentro de redes de sociabilidades; e de que em grande medida intelectuais mantêm e movimentam entre si contatos, leituras, comentários, críticas, apropriações ao mesmo tempo que discórdias, inimizades e disputas, analisarei como Oswald fez leituras de Freyre, em sentido mais amplo, e, a partir ou através delas, se

inseriu nos debates intelectuais dos anos de 1930 e 1940. Dentre esses, os que diziam a respeito da identidade nacional brasileira, do lugar do Brasil na América Latina, da importância dos Estados Unidos, do ensaísmo, dentre outros. Ao final desse percurso, esperamos mostrar uma imagem, mesmo que provisória e não conclusiva, da admiração de Oswald de Andrade por Gilberto Freyre..

Ao dialogarmos com a história intelectual, entendemos que ela é fruto da renovação da história política, proposta especialmente pela historiografia francesa dos anos de 1970. Nesse sentido, foi colocado no centro do debate a ampliação da noção de política e, nessa esteira, uma revalorização e renovação dos interesses pelas atuações dos intelectuais. Assim, podemos falar de uma mudança de perspectiva investigativa em pelo menos dois caminhos: (1) o do “estudo de temas já tradicionais como partidos, eleições, guerras e biografias, mas com uma nova perspectiva” e (2) o que privilegiaria “a análise de novos objetos como, entre outros, a opinião pública, a mídia, o imaginário político, a história intelectual e a história dos intelectuais” (COSTA, 2018: 17).

Ao mesmo tempo que se propõe a se mover entre temas já consagrados e novos objetos, como exposto, outro aspecto de suma importância para a pesquisa da história intelectual, em conjunção com as perspectivas de uma nova história política, diz respeito às formas de lidar com as produções intelectuais e os vários arranjos metodológicos que esse objeto móvel e fluido por natureza exige..

Segundo Costa,

Para analisarmos os textos intelectuais, é mister compreendermos que, quase sempre, eles propõem articulações gerais com os grandes problemas do momento e tendem a deslocar-se das questões parciais e específicas para as perspectivas globais, instalando-se na esfera pública e ali construindo sua interlocução. Para além da interlocução com colegas e pares, é necessário pensarmos no interlocutor imaginário dos discursos intelectuais: o povo, o proletariado, o país, o partido, conforme as linhas de fratura política e programática. Esse interlocutor tencionava o discurso para que ocupasse um lugar público e desempenhasse uma função ativa justamente nesse espaço (COSTA, 2018: 21).

Inicialmente, é importante mencionar que Oswald de Andrade não nos deixou nenhum estudo amplo ou sistematizado sobre a obra de Gilberto Freyre. Sua forma de trabalho intelectual se pautou em pequenas apropriações, muitas das vezes fortemente marcado pelo sarcasmo, em que foram comuns a produção de híbridos, não raro com cortes cirúrgicos e apropriações inusitadas. De certa forma, o que poderíamos chamar de uma apropriação antropofágica do legado intelectual que até a ele chegou. Como exemplos, é possível citar a concepção “pau-Brasil” da cultura literária brasileira ou a leitura, via antropofagia, que ele empreendeu, durante quase toda a sua vida, da história social, política e cultural do país. O que encontramos em sua obra, contudo, são pequenos diálogos, flashes, em que ou a figura de Freyre foi evocada, quase sempre em tom elogioso e grandiloquente, ou pequenos trechos de sua obra, principalmente Casa-Grande e Senzala, foram mencionados para a composição de alguma argumentação ou síntese argumentativa. Vale ressaltar, por fim, que em grande medida os textos em que o nome ou a produção do sociólogo recifense estão presentes tiveram como meio de circulação os jornais, boa parte deles de grande tiragem, mídia onde Oswald nunca deixou de atuar ao longo de sua vida.

Da crítica ao elogio e à admiração

Nos anos 1930, Oswald estava às voltas com a sua forma às vezes pouco ortodoxa de ser comunista. Com uma aproximação vista com desconfiança pelo partidão, o PCB, o escritor parece ter se desdobrado para conseguir algum destaque em seus quadros dirigentes ou para, no mínimo, conseguir ser notado pela militância. Ao que parece, se observarmos as suas críticas e ressentimento manifestados nos anos 1940, especialmente após o ano de 1945, que marca a sua desfiliação ao partido, o escritor nos dirá que foram 15 anos perdidos e que tudo não teria passado de um grande equívoco. Nas palavras do próprio Oswald, em tom ressentido, lemos que “durante quinze anos dei a minha vida e a dos meus filhos para ser apenas um obscuro membro do Socorro Vermelho. Prisões, fugas espetaculares, a ruína financeira e até a fome foram os títulos que conquistei nessa gloriosa militância” (CUNHA, 2012: 68).

Uma das evidências do esforço por aceitação do escritor nos quadros da militância pode ser percebido quando do lançamento de seu romance, em 1933, Serafim Ponte Grande. Nele, como lemos uma nota que acompanhou a primeira edição e tem estado presente, desde então, nas edições posteriores, o escritor manifestou, com a rubrica “Obras

renegadas” os seus livros Os condenados, A estrela do absinto, A escada (apresentado como “inédito”), Pau-Brasil, Primeiro caderno de poesia e o próprio Serafim Ponte Grande.

No texto de abertura do livro, lemos um ensaio de autocrítica a seu passado modernista e burguês, pintado com uma forte coloração de raiva e ironia:

Publico-o [Serafim Ponte Grande] no seu texto integral, terminado em 1928. Necrológio da burguesia. Epitáfio do que fui. (...) eu prefiro simplesmente me declarar enojado de tudo. E possuído de uma única vontade. Ser pelo menos, casaca de ferro na Revolução Proletária. O caminho a seguir é duro, os compromissos opostos são enormes, as taras e as hesitações maiores ainda. (...) Seja como fôr. Voltar para trás é que é impossível. O meu relógio anda sempre para a frente. A História também (ANDRADE, 1988: 133).

Contudo, pelo forte caráter “obreirista” e anti-intelectual apresentado naquela conjuntura pelo próprio partido à inserção de representantes da burguesia urbana, Oswald teria a sua aproximação e interesse em conseguir algum lugar nas fileiras do PCB negadas ou mesmo dificultadas pela desconfiança que gerava pela imagem que o seu passado “burguês” ainda representava. Apesar disso, o escritor atravessará todo os anos de 1930, até o ano de 1945, comprometido com as batalhas da esquerda partidária.

Freyre, por seu turno, estava ligado intelectualmente ao combate ao racismo que se esforçava em localizar na presença dos negros no país um dos entraves de nossa inserção no mundo moderno. Segundo Marcos Chor Maio:

Na década de 1930, Gilberto Freyre foi o mais radical crítico do racismo, ideologia ainda presente em parte significativa de nossa elite erudita. Diferente da visão pessimista da produção intelectual brasileira de então, que concebia a maciça presença dos negros e a intensa miscigenação, características visíveis do compósito racial brasileiro, como obstáculos à inserção do país na modernidade (MAIO, 2011: 112).

Conturbada também, mas por razões diferentes, foi a aparição do livro de Freyre e os debates que ele proporcionou nos anos que seguiram a sua publicação.

Para Alex Castro, em “Gilberto Freyre e Casa-Grande & Senzala: historiografia & recepção”:

No momento do seu lançamento, diz Antonio Candido, é difícil de se avaliar a enormidade do impacto da obra: “sacudiu uma geração inteira, provocando nela um deslumbramento como deve ter havido poucos na história mental do Brasil.” Monteiro Lobato compara sua publicação à chegada do cometa Halley – que foi muito mais impressionante em 1910 do que em 1986, cabe dizer, ou não se entenderá a comparação. Freyre oferece uma versão totalmente nova da História

do Brasil, varre do pensamento brasileiro a noção de racismo científico e interpreta positivamente tanto a contribuição negra quanto a mestiçagem (CASTRO: 2012).

Segundo a pesquisadora Kátia Gerab Baggio, Freyre teria inspirado, desde suas primeiras obras, “intensas e agudas polêmicas”:

Foi duramente criticado pelos mais conservadores, nos anos 1930 e 1940, devido ao protagonismo dos anônimos em sua obra, ao elogio do popular, à celebração da mestiçagem étnica e cultural, à linguagem coloquial e explícita − “chula” e “obscena”, para muitos − e à abordagem sobre os hábitos sexuais e a vida íntima no Brasil no período colonial e no século XIX. (...) o autor pernambucano foi rejeitado pelos conservadores e valorizado pelos intelectuais críticos das concepções deterministas, racialistas e racistas, herdadas do século

XIX. Inclusive, foi louvado por muitos intelectuais de esquerda, como Astrojildo Pereira, Jorge Amado, entre outros (BAGGIO, 2010: 16).

E é nesse contexto que encontramos uma primeira referência, retirada do texto “Por Gilberto”, publicado no livro Telefonema, de 1946, de como Oswald dos anos 1940 comenta como foi sua recepção da obra de Freyre nos anos 1930, quando se encontrava às voltas com o comunismo:

Quando eu era comunista de varal, fiz todas as restrições canônicas ao livro de Gilberto. Achei-o hesitante, não concludente, semi-visionário, semi-reacionário e classifiquei-o de jóia da sociologia afetiva. Minha experiência pessoal me conduziu agora a crer, com o admirável [Albert] Camus, que nada há de mais odioso que o pensamento satisfeito e a obra que prova. Nada mais odioso do que a tese na obra de arte (ANDRADE, 1976: 140).

Diferente do afirmado por Baggio, as críticas de Oswald nos anos de 1930 não seriam por seu “conservadorismo”, mas sim por seu posicionamento “de esquerda”, o que, a primeiro momento, o diferenciaria das recepções de escritores e intelectuais como Astrojildo Pereira e Jorge Amado. Nesse sentido, as apropriações feitas por Oswald de Andrade se mostraram mais críticas ao pensamento de Freyre no período em que o escritor paulista se encontrava mais próximo da cultura comunista, ao passo que o seu progressivo desencantamento e distanciamento da militância de esquerda, pelo menos a partidária, teria proporcionado uma mudança de olhar sobre a produção intelectual freyriana. No entanto, do volume de textos publicados nas obras completas do escritor, não encontramos, até o momento, nenhuma outra referência crítica à obra ou a Freyre, nem mesmo algum que desenvolvesse ou desdobrasse os comentários da passagem acima. Ao contrário, as menções encontradas, como veremos, seguiram elogiosas ou mesmo laudatórias, o que não

o impediram de fazer algumas apropriações, ao melhor estilo oswaldiano, às vezes por meio de torções ou inversões da argumentação inicial ou original. Um exemplo pode ser encontrado no ensaio “A marcha das utopias”, de 1953, publicado no livro Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias, nos anos 1970.. Do Casa-Grande e Senzala, Oswald retira a passagem:

Coloquemos em face da agreste moral dos invasores de seu brutal utilitarismo o quadro da nossa displicente salubridade humana, através do mestre Gilberto Freyre: “Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida na rede. Rede parada como senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando com o senhor em viagem ou a passeio debaixo das cortinas e tapetes” (ANDRADE, 1978: 230).

Sobre ela, completaria Oswald: “etc. etc. Falava o Matriarcado”. E ainda: “Que queria o severo holandês invadindo Pernambuco e o Recôncavo senão isso mesmo? Através do açúcar, que lhe davam facilmente o escravo e a cana, uma vida de rede?” (ANDRADE, 1978: 230). Se para Freyre a cena ou imagem pode ser entendida como a representação do patriarcado, para Oswald demonstrava exatamente o seu oposto: uma fala do matriarcado.. A sugestão de leitura que fazemos é que essa situação do “senhor de engenho” produziu uma figura mais decorativa do que efetivamente poderosa e que mantinha o controle da vida de seus súditos e subordinados. Nesse sentido, Oswald parece nos dizer que teria sido nessa brecha que a atuação das mulheres pode ter ocorrido e foram elas que de fato tinham poder, pois agiam enquanto seus senhores não se moviam de suas redes.

Ainda no mesmo livro, encontramos um texto intitulado “Descoberta da África”, sem referência de data. Nele, já em seu primeiro parágrafo, encontramos a apresentação e a defesa dos estudos feitos por Freyre a respeito da presença africana no Brasil:

Há quem afirme que Gilberto Freyre devia ter começado seus estudos sociológicos pela África. Ou melhor, que a sua recente viagem através do Império Português-Negro deveria ter percebido a fixação panorâmica de nossa formação. Não sou dos que pensam assim. É tal a honestidade, a convicção e a

riqueza com que o mestre de Recife faz entrar pelas nossas retinas a água-forte de seus encontros com o Brasil, que seria difícil lhe ter escapado qualquer coisa da alta contribuição africana na composição de nossa originalidade (ANDRADE, 1990: 220).

Ainda para Oswald, a obra Freyre já se apresentava em sua completude, sendo que o contato com o “continente negro” poderia trazer, mas ao que parece sem uma necessidade premente, um complemento ao conhecimento já adquirido e acumulado em seus estudos: “é evidente que essa viagem ao Continente Negro pode completar e enriquecer o amálgama de fatos e observações que juntou até agora em seus livros clássicos. E um dos mais eficientes triunfos de nossa autenticidade é ter o autor de Sobrados e Mocambos restituído, sem um falso pudor dólico-loiro, a realidade de mitivistas - o português, o índio, o negro” (ANDRADE, 1990: 220).

Um pouco mais adiante em seu texto, Oswald nos apresenta uma curiosa aproximação entre o modernismo de 1922 e a questão negra, arranjo que nos parece carregar mais das preocupações do escritor nos anos 1940 do que suas reais conexões dos anos 1920, considerando o momento em que foi escrito (meados dos anos 1940).. Para o escritor, “aliás, foi o Modernismo que primeiro alertou o mundo culto para os cometimentos artísticos do orbe africano. Foi na década de 20 que se expuseram em Paris as estatuetas rupestres de Benin. E chamou-se a um grande período da pintura de Picasso de ‘época negra’”.

Em “Carta a um professor de Literatura”, de 1943, Oswald motivado pela ida anunciada de Érico Veríssimo aos Estados Unidos como professor visitante escreve um artigo, em forma de uma carta endereçada ao escritor gaúcho, em que analisou e opinou sobre o que ele possivelmente encontraria naquele país e em que estado estaria a sua cultura. Para o escritor, “os americanos geralmente não sabem senão aquele fanhoso e incorretíssimo inglês de fox que desilude os meus ouvidos cada vez que me aproximo de um deles, seja banqueiro, escritor ou estrela. Por causa da guerra, vieram os americanos a descobrir ainda a existência de outra língua, a nossa” (ANDRADE, 1976: 81).

Com o objetivo de valorizar a cultura brasileira e o que ela teria produzido de melhor, Oswald elenca para Veríssimo uma lista dos principais “produtos nacionais” da literatura e ciências sociais em que, dentre eles, encontraria Freyre, o “sociólogo da gula brasileira”, qualificativo que expressa um valor positivo por ser representativo do que melhor teria sido produzido no país, junto a nomes como, por exemplo, Castro Alves, Jorge Amado e Mário de Andrade:

Érico, eu indiquei, em cartas aos editores americanos, alguns dos nossos bons autores. Ninguém me acusará de fazer política literária, apontando entre os antigos, Castro Alves ou Euclides da Cunha, o próprio Bilac, como sucesso para datilógrafas histéricas, e entre os modernos o sociólogo da gula brasileira, Gilberto Freyre. Este, um representativo, um grande tropical. Indiquei também você e Jorge Amado. Não se esqueça mais de revelar o nosso admirável Graciliano Ramos, primeiro prêmio de modéstia e não menor da arte de romancear. Os nossos grandes poetas: Carlos Drummond, Manoel, o Vinícius, o Bopp, os mais. Da sua missão espero muito. Sei que você dará lições vivas e explicará aos interessados de última hora pela nossa literatura, que o Brasil não tem Tolstoi do tamanho do sr. Tito Batini, mas tem Machado de Assis e Mário de Andrade (ANDRADE, 1976: 83-84).

Em “Música, maestro!”, texto publicado em 1948, Oswald volta, de certa forma, a se referir aos Estados Unidos, só que agora para fazer uma crítica à produção cultural americana e relativizá-la com papel de certa forma (ainda) revolucionário da Rússia no contexto do pós-Segunda Guerra. Para ele, naquela segunda metade do século XX,

(...) a quinquilharia estética e o mau gosto assustadoramente tomam conta do mundo (...). Se a Rússia Soviética baixa o nível das Belas Artes e castiga os seus maiores gênios musicais (não falemos da pintura!), pelo menos explica e defende o seu ponto de vista. Trata-se de um recuo intelectual, mas de um regresso dialético e político. É um regresso a fim de atender ao retardamento das massas (ANDRADE, 1976: 153).

Se caso soviético ainda caberia uma ressalva, um “pelo menos”, como citado no trecho acima, já que se tratava de um “recuo intelectual”, de “um regresso dialético e político”, por outro lado, a “produção americana”

(...) faz o mesmo, apenas com o fito de lucro, utilizando métodos sinuosos que acabam atentando contra a nossa vida espiritual. Como o perfume caviloso do resedá do cura era enxofre do inferno, o rádio que ronrona nas nossas casas e o pisca-pisca colorido que nos impingem obrigatoriamente, trazem em si a degenerescência de toda a nossa formação já por si tíbia e sem defesa. Indago daqui se existe uma censura cinematográfica para permitir que nossas crianças menores de dez anos vão se contaminar no swing imbecil e nos trejeitos

cretinizantes e imoralíssimos dos atuais desenhos animados (ANDRADE, 1976: 153).

Em nosso caso, contudo, outro caminho se mostrava, na opinião do escritor, mais necessário ou iminente: “urge revigorar”, dizia, “a campanha tradicionalista de Gilberto Freyre em contra-ofensiva aos monopólios americanos que agora já mastigam na sua saliva os nossos pobres e medíocres artistas, com o deslumbramento dos seus cachês doirados” (ANDRADE, 1976: 155)..

Em um artigo publicado também em 1948, intitulado “Conversa de velhos”, encontramos um curioso posicionamento de Oswald em relação ao escritor e crítico literário Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima), por ocasião de uma dedicatória feita em seu primeiro volume de suas obras completas destinada ao escritor paulista:

Alô! Tristão de Athayde! Recebi com agrado e surpresa a sua dedicatória no primeiro volume com que a Editora Agir inicia as suas Obras Completas. “Depois de trinta anos de atritos”, tenho o prazer em constatar a sua generosidade, afirmando que muito do que aí está veio por minhas mãos. E sei prezar a franciscana resistência que tem oposto às brabezas sempre leais com que defronto os seus caminhos (ANDRADE, 1976: 155).

Mesmo afirmando a existência de uma “franciscana resistência” por parte de Athayde em oposição as suas “brabezas sempre leais”, o que não deixa de sugerir de ele possa ter somente as ignorado, Oswald aproveitou-se da ocasião para fazer uma instigante reflexão sobre a sua trajetória e de como ele entendia a participação dos intelectuais na produção cultural brasileira. Contudo, ao invés de um ataque à figura de Athayde e ao que ela representava, encontramos o escritor paulista contemporizador:

Muito bem você afirma, na orelha do seu volume, que viemos a público “no rumor da luta, no clamor das tormentas próximas ou longínquas, no meio de um mundo de guerras e revoluções, de uma sociedade às voltas sempre com o sofrimento, o desespero e a morte”. Ao contrário do que disse Mário de Andrade no Itamarati, nessa grande querela soubemos sempre nos engajar e comprometer. Por isso mesmo, tínhamos que nos aliar ou brigar. Brigamos (ANDRADE, 1976: 155-156).

Em meio a exposição das razões de seus argumentos, encontramos uma referência a Freyre, que aliás nos sugere uma leitura bem curiosa das formas de Oswald pensar as questões regionais do país à luz de sua cultura intelectual:

Atribuo hoje tão dura divergência em grande parte às origens sociológicas que nos separam, você no Rio, eu em São Paulo. Veja como os grandes primários, Graciliano inclusive, tinham que sair do Norte feudal e revoltado. A exceção de Gilberto Freyre confirma, pois, se suas raízes são nordestinas, uma esplêndida cultura universitária diversamente o marcou. Daí ter ele os seus maiores e mais numerosos admiradores em São Paulo. O Rio, meu caro, é a mão-morta por detrás de Copacabana. Talentos como o seu ou como o de Otávio de Faria - o ouvido que melhor escuta através das paredes do Brasil - são vítimas da clerezia que usucape as consciências da velha metrópole lusa, numa tradição de sossego solar que nem a geometria dos arranha-céus e o ronco dos Douglas acordam (ANDRADE, 1976: 156).

As passagens são ricas em alusões e conexões que não iremos explorar agora. Vale destacar, somente, para os nossos objetivos, a afirmação de Oswald de que a admiração dos paulistas por Freyre, mesmo sendo uma “exceção”, estaria vinculada a sua “esplêndida cultura universitária”, quase que apesar de suas “raízes nordestinas”. Entendemos, contudo, que mais do que um ponto de vista reducionista ou mesmo preconceituoso do escritor ao fazer essas afirmações, no centro de seu argumento há a sugestão de que, ao final das contas, o seu alvo era mesmo “clerezia” que ainda roubava as nossas melhores “consciências”, mantendo ainda viva uma certa forma de pensar ligada à tradição da “velha metrópole lusa”. Oswald considerava Freyre como uma figura “esplêndida”, sem dúvidas, mas também sugere que a sua admiração pelos “paulistas” tem a ver com a sua formação acadêmica e formal. A questão nos parece, enfim, mais relacionada às formas de inserção e cooptação dos intelectuais pelo poder do que um posicionamento isolado desse ou daquele escritor. Oswald, então, finaliza:

Nós, aqui em São Paulo, fizemos a revolução modernista muito mais por causa do Matarazzo e dos sírios do que de Graça Aranha ou de D. Júlia Lopes. Infelizmente vocês vivem aí entre anjos e bênçãos que aqui só aparecem em segredo, para o Guilherme de Almeida. É o pif-paf e a promissória que tocam a música dos dias úteis e das noites inúteis na Banderândia (ANDRADE, 1976: 156).

Publicado no livro Ponta de lança (1945), encontramos um artigo intitulado “Carta a Monteiro Lobato”, em que seu livro Urupês completava 25 anos da data de sua

publicação. Nele, Oswald nos traz uma nova perspectiva sobre como ele pensava a obra de Freyre, ao situá-la na trajetória da formação da nossa cultura literária e intelectual, especialmente no que diz respeito à sua história no século XX. Nesse sentido, seria no modernismo onde se encontrariam o epicentro e o olhar de quem o analisa é o ponto de vista de uma memória, com tudo que ela tem direito de carregar: esquecimento, verossimilhança, falsificação, monumentalização:

Hoje, passados cinco lustros, é você [Monteiro Lobato] quem reclama a sua parte gloriosa na recuperação da nacionalidade que alguns daqueles moços iam arduamente tentar nas lutas da literatura. E lendo a frase de sua entrevista: “Os fatos provam que o verdadeiro Marco Zero de Oswald de Andrade é esse livro”, não venho retificar e sim esclarecer. De fato Urupês é anterior ao Pau-Brasil e à obra de Gilberto Freyre (ANDRADE, 1971: 4).

Monteiro Lobato, com Urupês (1918), Oswald de Andrade, com Pau-Brasil (1925), e Gilberto Freyre, com Casa-Grande e Senzala (1933), seriam parte de uma “gloriosa” “recuperação da nacionalidade”, se poderia dizer. Enfim, caminho no mínimo inusitado para/ por se percorrer em busca dos possíveis sentidos de uma construção da nacionalidade brasileira, via cultura literária.

Em “Antes do ‘Marco Zero’” temos uma curiosa resposta do escritor ao “jovem crítico” Antonio Candido que poucos dias antes teria escrito um “artigo” sobre as obras de Oswald até aquele momento. Assim inicia a sua réplica ao que teria escrito o crítico: “Segundo o Sr. Antonio Candido eu seria o inventor do sarcasmo pelo sarcasmo. Meio século de sarcasmo! Contra quê?” (ANDRADE, 1971: 42).

Com o objetivo de contra-argumentar as posições defendidas por Candido, o artigo de Oswald transita entre defesas fundamentadas em opiniões favoráveis de outros críticos, mobilizado pelo escritor em sua defesa, e ataques diretos à sisudez e incompreensão com que o crítico teria se posicionado em relação as suas obras, inclusive se referindo a Cândido como um “chato-boy”.. Para ilustrar uma das formas usadas por Oswald para se defender do crítico, temos:

Bastaria para ilustrar a acusação que ficou no ar de que a geração do Sr. Antonio Candido é séria e a de 22 leviana, a presença nesta do Sr. Sérgio Milliet. Evidentemente há um pequeno equívoco no afirmar que a seriedade no Brasil teria começado com o Sr. Lourival Gomes Machado ou com o Sr. Ciro de Pádua, ou com o próprio Sr. Antonio Candido. Aliás, o Sr. Antonio Candido é mestre nessas descobertas: a poesia brasileira começou com o Sr. Rossini Camargo Guarnieri... (ANDRADE, 1971: 44).

E, agora, com a presença de Freyre como parte de sua estratégia de mobilização de figuras de autoridade para justificar seu posicionamento: “em 22 tínhamos paralelamente a nós Gilberto Freyre. E a autoridade crítica do Sr. Prudente de Morais Neto garante que a brasilidade atual de nossa literatura decorreu de dois escritores - do Sr. Gilberto Freyre e de mim. O grave João Ribeiro já dissera: ‘O Sr. Oswald de Andrade, com o Pau-Brasil, marcou definitivamente uma época na poesia nacional’” (ANDRADE, 1971: 44).

Como analisado anteriormente, no caso de Monteiro Lobato, novamente temos uma construção discursiva em que o próprio Oswald reitera a ligação de sua obra Pau-Brasil ao trabalho de Freyre, mesmo que agora ele esteja supostamente usando uma declaração de outro escritor, João Ribeiro. Agora, Oswald e Freyre são encaixados, em justaposição, como responsáveis pela “brasilidade atual” que era conferida à nossa literatura.

Em “Aqui foi o sul que venceu”, artigo também presente no livro Ponta de lança, o escritor se referiu a Freyre em meio a uma discussão que novamente envolveu os Estados Unidos da América:

Não serei eu quem vá acusar e lamentar que a industrialização americana tivesse ido até à guerra fratricida para libertar os escravos negros do Sul. Mas que fêz ela depois? Não deixa o negro entrar em restaurante, nem andar de bonde, fecha-o no campo de concentração de Harlem e inventa uma forma inédita de se exercerem os direitos do homem branco - a linchocracia (ANDRADE, 1971: 49-50).

A comparação de nosso desenvolvimento econômico e industrial com a história dos EUA justifica-se, na argumentação de Oswald, por ser possível opor, em vários sentidos, a nossa experiência histórica com a daquele país, especialmente com os seus desdobramentos no âmbito da formação racial de ambos os países. Nesse sentido, fica claro um sentimento anti-americano em parte significativa de seus escritos dos anos 1940, especialmente no recorte temporal do final da Segunda Guerra Mundial e início da Guerra Fria:

Percorram-se alguns livros indicativos da nossa progressão civilizada e veja-se como Nabuco e Eduardo Prado estão aí para acentuar a sólida repulsa que sempre nos ocasionou o homem de negócios insensível e frio, com olhos de dólar e unhas de coveiro, falando um slang de dar dor de ouvidos e incapaz de entender o nosso “homem cordial” que muito bem identificou Sérgio Buarque de Holanda em suas Raízes do Brasil (ANDRADE, 1971: 51).

Ainda para o escritor, a América do Norte teve o “condão de despojar das últimas amarras da velha sensibilidade humana o seu burguês nativo, fazendo dele um titão coroado com toda a camelote analfabeta que o nôvo-rico carrega em sua saudade” (ANDRADE, 1971: 49).

Nessa discussão, o tema da mestiçagem aparece como um valor positivo, o que teria nos proporcionado uma certa barreira e autenticidade em nossa forma de nos inserirmos no “mundo moderno”. Nesse sentido, Oswald parece se aproximar das leituras de Freyre sobre a formação histórica do Brasil, especialmente no que diz respeito à conformação de uma “igualdade prática das raças”,. como podemos ler na passagem a seguir:

(...) na própria América do Norte, temos uma faixa irmã - é a Luisiânia latina, católica e mestiça. Com essa podemos coincidir e nos entender. Não sem razão Gilberto Freyre volta para ela os seus amores e preferências. Mas ela representa o Sul, vencido pelo industrialismo setentrional que dá o tom, o relógio e o câmbio ao mundo moderno. Se o Brasil é também o Sul, isto é, a mesma expressão de cultura agrária e sentimental, torrão de boa vontade e pátria do meltingpot, aqui não sofremos ainda a interferência deformadora dos grandes parvenus da era da máquina (ANDRADE, Ano: 51).

Ao mesmo tempo, também podemos perceber uma influência das formulações de Sérgio Buarque de Hollanda, em seu clássico Raízes do Brasil, já mencionado pelo próprio escritor: “ao contrário, entre nós alastrou-se e criou raízes em coordenadas de superior inteligência humana, a característica civilização luso-tropical que nos ensinou a igualdade prática das raças e boa vontade como elo do trabalho, da cooperação e da vida. No continente americano, o Brasil é o Sul sensível e cordial que venceu” (ANDRADE, 1971: 51).

Em “Posição de Caillois”, Oswald se valeu da oportunidade da visita do intelectual francês ao Brasil para apresentar uma discussão sobre o lugar do romance naquele

contexto, anos 1940, e também para situar o lugar da intelectualidade brasileira nesse cenário. Nessa configuração, o nome de Freyre foi referido como um exemplo para elucidar um raciocínio de Caillois sobre o futuro do papel do intelectual “no mundo que se anuncia”:

Todas essas considerações nos trouxe o avião de Caillois, célula desse amável imperialismo humanístico que representam os professores franceses na América. O sociólogo visitante as despertou com as suas declarações sobre o papel do intelectual no mundo que se anuncia. Disse ele muito bem que a solução para o homem de espírito é a monacal. Por que não? Não se trata evidentemente de querer fazer o Sr. Gilberto Freyre ou o Sr. Carlos de Lacerda, e muito menos o poeta Vinícius de Moraes, entrarem para o convento de Monte Athos, onde não pisam os barbeiros nem as manicures (ANDRADE, 1971: 58).

Sobre as orientações para a ação e papel da intelectualidade, Oswald diria: “também não se trata do intelectual se deixar absorver pelo gigantismo social e nele sumir. Perderam-se por acaso os beneditinos, os franciscanos e os tomistas no coletivismo medieval? Ou foram êles a alma vibrante e enérgica da sociedade unida num ciclo e suas vozes autorizadas?” (ANDRADE, 1971: 58).

Em “Sol da Meia-Noite” lemos uma crônica escrita por Oswald em que o escritor recorreu a algumas de suas memórias de infância para trazer à tona uma discussão sobre a cultura alemã, o cinema americano (já que o título do artigo faz referência a um filme baseado em uma obra do escritor John Steinbeck)., o lugar do intelectual, da crítica, do ensaio, dentre outros temas:

Comigo ia se dar, em estilo humorístico, o episódio do aluno que não sabia bem onde ficava a França no mapa, mas a tinha dentro do coração. Uma luta desigual, onde um Davi de calças curtas que, num grito interior e orgânico de autodefesa, encontra uma inesperada saída para estarrecer o didata monstruoso que o procura esmagar. Naturalmente o homem duro chamava-se Germano. Dr. Carlos Augusto Germano Knipeln. E era doutor. Herr Doktorr! Eu hoje, há muito tempo, aliás, sou também doutor. Como todo brasileiro que se preza de pertencer a uma geração de bacharéis em Direito (ANDRADE, 1971: 60).

E para montar a sua argumentação, novamente lançou mão de uma rede de escritores e intelectuais, a fim de demonstrar a validade de sua retórica. E nesse ajuntamento intelectual, novamente encontramos a presença de Freyre, mas agora sendo requerido para a “função” de pesquisador da língua, algo como um etnógrafo de nossa cultura bacharelesca: “Gilberto Freyre que está saindo do seu meticuloso estudo do patriarcado açucareiro, para dar um interesse novo ao nosso primeiro período republicano, deveria fazer a curva clínica da palavra doutor entre nós. Acredito que a disseminação desse qualificativo honorífico é filha de uma compensação urgida pelo nosso analfabetismo” (ANDRADE, 1971: 60).

Mais adiante, temos uma outra menção a Freyre como um dos representantes dos “homens de autoridade” e “ilustração” capaz de fazer parte de uma campanha pensada por Oswald, no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial. No agrupamento pensado, foram incluídos alguns dos principais nomes da intelectualidade latino-americana:

Um sem-número de moços trabalha a novela e o verso, o ensaio e a crítica na mesma labuta sincera e cultivada e na mesma descoberta dos caminhos livres que o futuro indica. A presença de um escritor como o chileno Juan Uribe, que está entre nós, basta para nos dar uma idéia do que representa a cultura nova da América Latina. Conheçamo-nos melhor! Homens da autoridade e da ilustração de Girondo na Argentina, de Gilberto Freyre e Sérgio Milliet aqui, de Neruda no Chile, podiam iniciar uma campanha de aproximação dos intelectuais americanos capazes de superar a da busca de mercados que a guerra indicou para os produtos de nossas fazendas e de nossas fábricas (ANDRADE, 1971: 64).

E ao se pensar o lugar do intelectual nesse contexto espaço-temporal, finalizou com uma passagem que informa um sentido historiográfico instigante, que poderia ser aproximado das principais discussões que hoje orientam as perspectivas decolonialistas das interpretações de nossa formação histórica10: “se no meio da noite colonizadora que persiste nos horizontes nacionais de cada um de nossos povos, um sol se anuncia, é o que a inteligência autoriza. São os intelectuais que representam na América ainda bárbara e inculta, o meio-dia possível de amanhã. Aí estão Maria Rosa Oliver, Jorge Amado, tantos outros” (ANDRADE, 1971: 64).

O surgimento de um “sol” como anúncio de novos dias, de um “possível amanhã”, autorizado pela inteligência dos intelectuais contra uma “América ainda bárbara e inculta”

pode ser traduzido como um objetivo (ou missão?) de seus mais importantes intelectuais. Numa possível lista, obviamente, também constaria, junto com Freyre, Jorge Amado, Maria Rosa Oliver, e “tantos outros”, o nome do próprio Oswald. Essa imagem, aliás, da intelectualidade como farol, como semióforos na condução e iluminação dos caminhos da sociedade nos parece um tropo comum das formas de (auto)percepção e (auto)construção dos intelectuais ou dos meios onde circulavam ou agiam.

Em “O caminho percorrido”, conferência pronunciada por Oswald em Belo Horizonte, em 1944, por ocasião da Exposição de Arte Moderna realizada naquela cidade, temos um bom exemplo dessa percepção:

Abandonamos os salões e nos tornamos os vira-latas do modernismo. Veio 30. O outro grupo tomou os caminhos que levariam à revolução paulista de 32. Os vira-latas comeram cadeia, passaram fome, pularam muros, com exceção do poeta de Cobra Norato [Raul Bopp] que estava no exílio de um consulado. É que a Antropofagia salvava o sentido do modernismo e pagava o tributo político de ter caminhado decididamente para o futuro (ANDRADE, 1971: 97).

Nesse “novo” balanço dos ganhos e caminhos da intelectualidade brasileira, e de como ela teria contribuído para formação de nossa cultura, desde o advento do modernismo com a Semana de 1922, passando pelo estabelecimento do romance nos anos 1930, especialmente o de caráter “social”, assim nos fala Oswald do clima das letras a partir de um olhar dos anos de 1940. Em seu bojo, como não poderia deixar de ser, encontramos novamente a presença de Freyre:

Mas aí já corriam os tempos novos, os do romance social, indicados pela publicação de Bagaceira [José Américo de Almeida] e reivindicando outra fonte de interesse nacional que, paralelamente com Pau-Brasil, segundo a crítica de Prudente de Morais Neto viera do Nordeste. Começara a sociologia nativa e saudosista do Sr. Gilberto Freyre. E surgiu Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo, Amando Fontes, Ciro dos Anjos e tantos outros. O importante desse crescimento de ciclo é o aparecimento de um novo personagem no romance nacional - o povo. É o povo que brota de Suor e de Jubiabá e que vem agora depor sobre a vida do sul, na Fronteira Agreste do romancista Pedro Ivan de Martins (ANDRADE, 1971: 97).

Ainda sobre esse “aparecimento” do povo como “novo personagem no romance nacional” (também poderíamos supor se na vida em sociedade?), diria o escritor que “de 22 para cá, o escritor nacional não traiu o povo, antes o descobriu e o exaltou. Vede o exemplo admirável de Jorge Amado”. Esse caráter de “descoberta”, mais do que de

“aparecimento”, sugere mais uma tomada de posição política dos intelectuais-escritores do que simplesmente um ganho formal ou de estilo de composição literária. Nesse sentido, e para esclarecer a sua posição, é o próprio escritor que nos informa como essa questão estaria sendo equacionada naquele meados dos anos 1940:

Com a guerra, chegamos aos dias presentes. E os intelectuais respondem a um inquérito. Se a sua missão é participar dos acontecimentos. Como não? Que será de nós, que somos as vozes da sociedade em transformação, portanto os seus juízes e guias, se deixarmos que outras forças influam e embaracem a marcha humana que começa? O inimigo está vivo e ainda age (ANDRADE, 1971: 99)

Por fim, para caminharmos para o fechamento dessa junção de apropriações de Freyre nos escritos de Oswald, encontramos duas referências, nos anos 1950, em que o nome de Freyre apareceu nos escritos ou projetos oswaldianos. A primeira foi em “Velhos e novos livros”, texto recolhido no livro Estética e Política, incluído na relação das Obras Completas do escritor, organizado pela professora Maria Eugenia Boaventura. Nesse artigo, datado de 1950, encontramos uma referência que nos diz que Oswald assim considerava como obras centrais para a compreensão da nossa formação histórica, “livros totêmicos”11 em seu dizer: Os sertões (Euclides da Cunha), Casa-Grande e Senzala (Gilberto Freyre), Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Hollanda) e Marcha para o oeste (Cassiano Ricardo).

A segunda, para finalizarmos, veio de uma fonte bem distinta da que analisamos até esse momento: um panfleto de campanha do escritor Oswald de Andrade a deputado federal, no ano de 1950:

Imagem 1: Volante de campanha eleitoral de Oswald, em 1950
Imagem 1: Volante de campanha eleitoral de Oswald, em 1950
Imagem retirada do livro O salão e a selva: uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade, da professora Maria Eugenia Boaventura, 1995, página 241)

Em letras menores, na parte inferior do panfleto, lemos:

Ele é candidato Único dos homens inteligentes, afirmou Maurício Loureiro Gama.

É o candidato dos que sabem ler, acrescentou Osvaldo Moles.

Dele disse Tristão de Atayde, em 1922: “É dos que mais hão de marcar”.

E acrescentou o mestre Gilberto Freyre: “É dos que caminham sempre e decididamente para o futuro”.

Por uma feliz coincidência, encontramos em um mesmo lugar dois dos nomes que estiveram presentes em nossas fontes: Gilberto Freyre, em quem concentramos nosso principal foco de atenção, e Tristão de Atayde, com quem o escritor paulista por décadas manteve relações que variaram entre fortes embates como elogios de ambos os lados. Como podemos perceber, foi exatamente em um desses que Oswald foi buscar, em uma passagem que profetizava sobre o futuro do escritor, como um dos que marcariam época. Sobre Freyre, novamente temos o sociólogo sendo referido por “mestre”, mas com a diferença de que, agora, se trata de uma opinião de Freyre sobre Oswald: “é dos que caminham sempre e decididamente para o futuro”.

Conclusão

Como vimos, o tema desenvolvido no artigo se propôs a analisar as leituras e apropriações feitas por Oswald de Andrade da produção e do legado cultural de Gilberto Freyre. Tentamos mostrar que mesmo feitas de formas e em contextos diferentes, e em condições variáveis, é possível perceber uma visível mudança de perspectiva do escritor paulista ao trabalho intelectual do sociólogo, que percebemos ter ido da crítica, dos anos 1930, para o elogio e admiração dos anos 1940 e 1950. Ao mesmo tempo, acreditamos ter sido possível discutir a forma como o escritor paulista, a partir de uma avaliação sobre a obra do sociólogo, se colocou em relação aos debates da década de 1930 e especialmente do ano 1940, acerca da identidade nacional brasileira, do lugar do Brasil na América Latina, da importância dos Estados Unidos, do ensaísmo, dentre outros.

Contudo, mesmo sem localizarmos um estudo aprofundado sobre a obra de Freyre, encontramos também ao longo das Obras Completas de Andrade diálogos intelectuais bastante sedutores e ricos, mesmo que esparsos, que nos sugeriram uma importante e vibrante rede que nos desafiaram a entender um pouco mais sobre a viva cultura de trocas intelectuais entre os escritores. Este estudo, para tanto, apoiou-se nas discussões, propostas e abordagens presentes nas pesquisas da História Intelectual para que, ao fim, fosse

possível mostrar que, ao longo dos anos de 1930 e 1940, Andrade, a princípio um crítico às pesquisas e obras de Freyre, tornou-se um admirador de seu trabalho.

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Notas

1 Gostaríamos de ressaltar o caráter provisório dessa investigação, uma vez que o estudo em questão, em especial sobre o Oswald de Andrade da década de 1940, a recepção da obra de Gilberto Freyre e apreensões sobre a de sua trajetória, ainda encontra-se em estágio inicial e algumas das indagações que estamos levantando não foram satisfatoriamente resolvidas. Uma delas, por exemplo, seria se houve algum tipo de resposta de Freyre às afirmações e declarações de Oswald, feitas também pela imprensa ou não, já que ambos mantinham uma presença significativa nos jornais e revistas da época.
2 Vários são os autores que têm se dedicado à pesquisa e à discussão de temas ligados à perspectiva de uma história intelectual, ou dos intelectuais. Dentre eles, destacamos os trabalhos de Helenice Rodrigues da Silva, Robert Darnton, Jean-François Sirinelli, Carlos Altamirano, Noberto Bobbio, François Dosse, dentre outros.
3 O texto teve uma edição póstuma em 1966 feita pelo Ministério da Educação e Cultura do Rio de Janeiro, compondo o volume 139 de Os Cadernos de Cultura.
4 A concepção de matriarcado do escritor , como toda ideia que tem seu contexto e rede de sentido, mudou com o tempo, sendo melhor fundamentada, digamos, na retomada dos estudos de Oswald sobre os temas os quais ocuparam seu interesse nos anos 1920 como, por exemplo, a antropofagia, o modernismo ou a utopia. O tema do matriarcado tanto em suas obras como em sua trajetória merece um estudo à parte. Sobre a influência da obra de Johann Jakob Bachofen nas leituras de Oswald sobre o matriarcado, ver: DE CARLI, 2016.
5 Mesmo hoje ainda nos parece razoável afirmar que as temáticas do modernismo brasileiro, especialmente em seu pioneirismo paulista, em 1922, diziam mais a respeito do passado indígena do país, mesmo em sua apropriação mítica, do que da importância, significado e alcance da presença negra em nossa formação histórica. Apenas como um exemplo, no primeiro número da Revista de Antropofagia, em 1928, tivemos a publicação do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, e de um estudo de Plínio Salgado, intitulado “A língua Tupy”.
6 Muito provável que Oswald de Andrade estivesse se referindo à participação de Freyre no movimento regionalista de Recife, que teve o seu surgimento no ano de 1926, com a escrita e leitura do Manifesto Regionalista. É desse ano o surgimento de um Centro Regionalista na mesma cidade. Partes do manifesto e do programa do Centro podem ser lidos em TELES, 1987: 343-345.
7 A referência aos “chato-boys” está no texto “Antes do ‘Marco Zero’”, publicado no livro Ponta de lança (ANDRADE, 1971: 45). Como exemplo de um dos ataques do escritor ao “jovem crítico”, temos: “Sou obrigado a desatar esse maço de cartas de namorado para confirmar o que insinuei: que o Sr. Antonio Candido é que é trêfego, leviano e mineiro (mineiro no caso significa aluno do Caraça e sovina). Pelo menos ele o foi nesse artigo açodado de paixão partidária, mais feito a pedido de diversas famílias, para atirar um salva-vidas ao naufrágio modesto do Sr. Tito Batini, do que para me situar” (ANDRADE, 1971: 45).
8 Essa questão aparece mais acentuada em algumas passagens como, por exemplo: “E por essa razão, aqui o negro labuta, ama e produz irmanado pelo suor que o branco de qualquer extremo da terra vem trazer à construção de uma pátria nova que sempre quis ser livre” (ANDRADE, 1971: 51), tema que, por si só, merece um estudo à parte.
9 O artigo mencionado inicia-se com a seguinte narrativa: “Paramos no burburinho iluminado da Avenida diante de um placard de jornal. Minha mulher leu: “Fontes autorizadas declaram que os alemães estão abandonando a Noruega”. Tínhamos acabado de assistir num cinema a Noite Sem Lua de John Steinbeck. E aquela simples informação telegráfica parecia ali, de repente, como uma aurora boreal no meio do drama tenebroso, de que saímos. A cidadezinha norueguesa ocupada pelos nazistas ia respirar. E nós também” (ANDRADE, 1971: 59).
10 Ver, por exemplo, “Uma breve história dos estudos decoloniais” (QUINTERO; FIGUEIRA; ELIZALDE, 2019). Disponível em: https://masp.org.br/uploads/temp/temp-QE1LhobgtE4MbKZhc8Jv.pdf.
11 De acordo com o ideário oswaldiano, por suposto influenciado pelos estudos de Sigmund Freud, seria necessário a superação dos tabus (valor negativo, traduzidos por empecilhos para a realização plena de alguma vontade ou projeto) em tótens (valor positivo e libertador de amarras políticas, psicossociais etc). A primeira menção dessa proposição encontra-se no Manifesto Antropófago, publicado no primeiro número da Revista de Antropofagia, em 1928. Nele lemos: “Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem” (ANDRADE in TELES, 1987: 355). E finaliza: “A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura - ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade” (ANDRADE in TELES, 1987: 359).
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