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Lusotropicalidade no “mundo português”: olhares cruzados acerca de Gilberto Freyre na História Colonial Lusitana
Lusotropicality in the “portuguese world”: crossed glances about Gilberto Freyre in the Colonial Lusitanian History
Intellèctus, vol. 21, núm. 1, pp. 16-36, 2022
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Dossiê

Intellèctus
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
ISSN-e: 1676-7640
Periodicidade: Semestral
vol. 21, núm. 1, 2022

Recepção: 13 Março 2022

Aprovação: 23 Junho 2022

Resumo: O artigo discute a trajetória de Gilberto Freyre destacando sua produção do lusotropicalismo relacionada à lusitanidade, considerando parte de suas posturas relativas ao colonialismo português. Nesse sentido é possível questionar as fontes acerca da participação de Freyre e da análise de seu discurso em relação às definições imperialistas lusitanas, sobretudo, no que diz respeito às aproximações com os países africanos. Levando em conta a sua obra O Mundo que o Português criou (1940) podemos chegar a intepretações relevantes sobre o viés do hibridismo incutido na ideia de luso- tropical como elemento base para intermediar o contato colonial entre Portugal e seus “súditos coloniais”.

Palavras-chave: lusotropicalismo, lusitanidade, intelectuais.

Abstract: This paper aims at discussing Gilberto Freyre`s work trajectory considering his production on the lusotropicalismo movement related to the concept of lusitanidade, taking for that matter some of the author`s positions on the Portuguese colonialism. Thus, it is possible to question the sources about Freyre`s participation, as the analysis of his discourse concerning the imperialist definitions of the Portuguese government towards de African continent. From his work O Mundo que o Português criou (1940), one might access some relevant readings on the hybridism imposed to the idea of lusotropical as a basis element to mediate the colonial contact between Portugal and its colonial subjects.

Keywords: Lusotropicalismo, lusitanity, intellectuals.

Introdução

Analisar a vida de Gilberto Freyre (1900-1987) não é tarefa fácil; isso sem levarmos em consideração toda a gama de teorias criadas por ele. Nesse sentido, para além das suas obras vamos pensar na realidade das suas análises e no impacto destas ideias no escopo intelectual português na segunda metade do século XX. Não se espera abranger toda a obra deste renomado intelectual, mas dar sentido às suas expressões de lusitanidade, as quais fundamentaram a construção da ideologia colonial portuguesa.

Isso se deu com maior ênfase após a publicação de Casa Grande & Senzala (1933) com o lançamento de O mundo que o português criou (1940), cujas ideias principais seriam desdobramentos do que não pode ser tão desenvolvido em seu primeiro livro. O que pode tornar mais interessante nossa investigação é perceber o quanto a obra O mundo que o português criou pode ter influenciado toda uma dinâmica colonial preocupada com a manutenção da administração no além-mar (PINTO, 2009: 146). Nesse sentido, a temática não manteria seu foco apenas na investigação da produção freyriana, mas também na perspectiva de o quanto essas análises tenham sido utilizadas para sustentar um olhar defendendo a mestiçagem como caminho a legitimar a presença europeia nas colônias africanas, asiáticas e indianas.

Destarte, o papel do Regime Salazarista deve entrar na pauta da nossa interpretação pois vai ao encontro da situação ideológica artificial que coadunou nas opressões dentro e fora da metrópole. As análises se voltam para as colônias pois elas retratam as opressões e mecanismos artificiais de manutenção do império português. As dificuldades econômicas pelas quais Portugal passava entre as décadas de 1960 e início de 1970 perpetuaram as dinâmicas da política da Ditadura portuguesa no seu isolamento, que negava o liberalismo e não investia nas suas estruturas de desenvolvimento industrial, confiando ao máximo na exploração dos seus territórios coloniais (MAXWELL, 2006: 141).

A trajetória de Gilberto Freyre aparece de modo bastante breve, enfatizando as produções voltadas ao pensamento lusitano e como parte de suas teorias tiveram impactos políticos e sociais em Portugal. Levando em consideração o seu papel de “intelectual público”, nota-se como ele foi visto por pelos seus pares e de que modo se envolveu na ideologia autoritária na qual António Oliveira Salazar se baseou para sustentar seu regime. Por isso, é possível se analisar como após lançar as suas noções de

mestiçagem e identidade nacional (bases de seu pensamento), ele atuou de modo a representar seu escopo teórico próprio e irretocável (PALLARES-BURKE; BURKE, 2009).

O segundo tópico ressalta a temática gilbertiana através das novas historiografias, levando em conta os seus contatos com o “mundo português”. Essas obras são fundamentalmente O mundo português que Gilberto Freyre criou (2010) de Victor Villon, O modo português de estar no mundo (2011) de Claudia Castelo, dentre outros acadêmicos responsáveis por promover os debates relevantes sobre a temática. Por meio dessas interpretações dos seus textos podemos compreender como o lusotropicalismo se mistura com a lusitanidade de modo a trazer um debate recente e muito inovador, aproximando a História da África da História das colonizações, possibilitando-nos um cabedal de interpretações que aproximam a teoria pós-colonial da crítica literária, suscitando, assim, intensos diálogos transdisciplinares.

No terceiro e último ponto do nosso escrito demonstra-se a teoria de Freyre em comparação às práticas coloniais lusitanas - base da empresa do Império português. As transformações do capitalismo internacional passavam a afetar Portugal cuja administração superior recusa-se a ceder à integração comercial, retardando, inclusive, sua entrada na Comunidade Econômica Europeia; e mesmo sabendo de seu isolamento Salazar declarava o lema “orgulhosamente sós” (MARTINHO, 2010: 301). Neste tópico enfatizam-se as intersecções entre a ideologia de Gilberto Freyre e as dinâmicas coloniais responsáveis pela manutenção das bases conservadoras do Regime, a saber: a exploração colonial. Um aspecto importante na concepção do pensador pernambucano seria a “climatabilidade” do português. Teríamos ainda inúmeras outras interpretações que podem ter exercido um fascínio para este autor, por isso compreende-se a necessidade e importância de se repensar as relações comparadas das identidades nacionais ou mesmo étnicas (PALLARES-BURKE; BURKE, 2009: 284-5). Vale lembrar que o conceito de lusotropicalismo é utilizado suas conferências de Goa e Bombaim, em 1951, abarcando parte do cabedal teórico desenvolvido nos livros, Um brasileiro em terras portuguesas . Aventura e Rotina ambos lançados em 1953. A mesma conceituação chegava até Coimbra em 1952, em uma de suas palestras e pode-se dizer que “luso-tropicalismo foi muito meditado antes de sua conceituação”, até porque Freyre “tinha o pudor das generalizações, preferia antes analisar do que doutrinar” (FONSECA, 2011: 476).

Concretamente o lusotropicalismo foi iniciado em 1933 com seu conceito mais clássico, não obstante tenha amadurecido sua teoria para divulgá-la como algo mais universal após a década de 1950 (FONSECA, 2011: 476). Além de problematizado e tornado mais complexo, o lusotropicalismo passa a figurar a marca do processo histórico-político brasileiro, chegando a mobilizar elementos culturais adequados a realidade hispânica, pois demonstrava uma métrica da explicação do social e de um caminho trilhado por nossas sociedades (BASTOS, 1987: 160).

A noção do pensamento de Freyre utilizado como propaganda do salazarismo ainda é muito questionada no debate historiográfico. Contudo, por abordar as temáticas do multiculturalismo, do racismo e da identidade étnica o autor pernambucano pode ter se cercado de uma dificuldade geracional tanto quanto cultural, visto que houve uma forte resistência do lusotropicalismo entre as elites colonizadas de além-mar (MEDINA, 2000: 50)..

A dificuldade da imparcialidade fica ainda mais evidente nas interpretações sobre Freyre e a aproximação colonial lusitana, pois são temas bastante sensíveis que não demonstram a resposta da transformação político-social esperada por “intelectuais orgânicos”, tal como definido por Antônio Gramsci. Por outro lado, o pensador Gilberto Freyre foi um reprodutor de suas teorias envolvendo a esperança das trocas culturais e não se debruçou nas consequências políticas que elas poderiam acarretar. Os obstáculos não podem nos afastar da complexidade em analisar a teoria transnacional avant la lettre de Gilberto Freyre, visto que sua visão da cultura lusitana como algo exemplar era um modelo bem-sucedido de empreitada colonial pelo viés da colonização. Essa e tantas outras “ambiguidades” são a expressão do quanto Freyre pode ter confiado na campanha colonial lusitana como um padrão válido, e feito de tudo para levar esse “modelo bem-sucedido” para os territórios de além-mar (VILLON, 2010: 28).

Gilberto Freyre – início de uma viagem

O autor nasceu no dia 15 de março de 1900 na cidade de Recife, tendo uma infância muito comum aos rapazes de classe média de sua época. Como era de costume foi aos dezoito anos de idade estudar nos Estados Unidos com uma bolsa da Igreja Batista. Freyre cursou Artes na Universidade texana de Baylor. Vale notar que se afastou do cristianismo evangélico por conta da estreita relação desse grupo com os membros extremamente xenófobos e racistas da Ku Klux Klan (CASTELO, 2011: 20).

Já aos vinte anos de idade se matricula no Mestrado e passa a ter aulas com professores importantes como Willian R. Shepherd (História da América) e Franz Boas (Sociologia), sendo este último o principal influenciador de suas teorias (CASTELO, 2011: 21). Franz Boas, por exemplo, fez com que ele se interessasse pela relação entre raça e cultura, levando em conta uma ruptura clássica de como a eugenia explicaria as diferenças entre as populações, com parte dessas explicações esboçadas em Casa- Grande & Senzala (FREYRE, 2003: 32).

Além disso, já no início da década de 1920, o pensador pernambucano conheceu Oliveira Lima, sendo influenciado por ele a dar continuidade aos estudos, seguindo a carreira acadêmica. O seu mestrado na Universidade de Columbia teve como título: “Social Life in the Middle of the 19th century”, levando em conta a sua preocupação com a identidade nacional brasileira (CASTELO, 2011: 21). Essa identidade nacional surgia numa mistura pela vontade de se conhecer o país, considerando seus elementos étnicos e ainda suas características socioculturais. Se apropriando da assimilação e da mestiçagem, Freyre via a mistura racial como a solução para os problemas identitários de sua época. Começava a surgir Casa-Grande & Senzala, uma obra magistral, que dentre diversas polêmicas, tratava a colonização portuguesa como “tolerante, aberta e suave o que levou a mestiçagem racial, que não ocorreu nos países colonizados pelos ingleses ou pelos franceses, por exemplo (FIORIN, 2009: 120).”.

Por conta de sua oposição ao golpe de Estado da Revolução de 1930, Freyre precisou se exilar, escolhendo Portugal como moradia. Em dezembro de 1933 publica Casa-Grande & Senzala, apaziguando as relações conflituosas no Brasil e acentuando a

disposição do português para a colonização e consequente mistura racial (assimilação). Nesse momento, o impacto de sua obra é a divulgação dos conceitos de “miscigenação” e “aclimatabilidade” (CASTELO, 2011: 24).

Na perspectiva biográfica percebe-se o quanto a vida e obra de Gilberto Freyre se entrelaçam, e como o escritor foi relevante para a intelectualidade brasileira, sobretudo, no que se refere à realidade sócio-histórica. Seu papel de protagonista e, ao mesmo tempo, divulgador das nossas ideias fez com que ele fosse um dos primeiros pensadores brasileiros a transitar nos espaços acadêmicos internacionais. Nesse sentido, podemos lembrar de seu posicionamento e das situações que o levaram a exilar-se:

[...] seu exílio voluntário de 1918 e 1923, seguindo por um exílio forçado entre 1930 e 1931 (ao fugir da perseguição política depois da revolução de 30, ele foi para Portugal e para os Estados Unidos), moldou sua perspectiva para sempre e o fez uma espécie de exilado, permanentemente por toda a sua vida adulta (PALLARES-BURKE; BURKE, 2009: 154-5).

Como enfatizado por Maria Lúcia Pallares-Burke e Peter Burke (2009: 305) as interpretações do autor foram possíveis graças às formas de ver o mundo pelo olhar do exilado, de um modo mais “pós-colonial”, ou seja, fora de sua zona de conforto e ausente dos debates e das produções mais correntes do saber proposto pela intelectualidade brasileira. O que se acredita é que essa perspectiva de “exilado” tenha continuado por parte de sua vida adulta, dando-lhe certa autonomia e segurança na manutenção dos seus conceitos.

Com seu retorno ao Brasil, em 1934, organizou o 1ª Congresso Afro-brasileiro em Recife e, em 1936, publicou o livro Sobrados e Mucambos – decadência do patriarcado rural e desenvolvimento urbano e, em 1937, publicou Nordeste – aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil (CASTELO, 2011: 24). Sua produção intelectual florescia cada vez mais e, fortemente influenciado pela antropologia cultural, o pensador pernambucano adentra cada vez mais nas características da formação da sociedade brasileira.

Gilberto Freyre ocupou um espaço importante no debate intelectual historiográfico por utilizar-se de um grande aparato histórico na construção de suas teorias e, nesse sentido, dialogar com a sociologia, antropologia, diplomacia e ainda com as relações econômicas da sociedade brasileira. Casa-Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936), além de se complementarem, englobam uma pesquisa consistente

sobre as hierarquias sociais, as estruturas familiares e a permanência das formas patriarcais da sociedade brasileira (THOMAZ, 2015: 16).

O caráter de tropicalização defendido por Freyre trazia um protagonismo para o Brasil, visto que ele acreditava na possibilidade de tornarmos “o homem civilizado de regiões frias consciente dos valores estéticos dos trópicos” (PALLARES-BURKE; BURKE, 2009: 292). Assim sendo, o tropicalismo em si próprio teria a capacidade de fazer um imperialismo revertido, tendo o Brasil como protagonista na mestiçagem como modelo de mistura cultural e racial a ser seguido por países europeus, africanos e asiáticos (PALLARES-BURKE; BURKE, 2009: 292).

Em seu livro Arte, Ciência e Trópico Gilberto Freyre estabelece inúmeras relações entre as constituições da nossa expressão cultural e seus impactos em outros contextos nacionais, buscando a aproximação entre Brasil, Portugal e os países africanos de expressão portuguesa. Exalta o quanto a cultura estava atrelada aos fatores simbólicos que uniriam as civilizações tornando-as mais múltiplas e mistas quanto mais se investisse no entrelaçamento de suas caracterizações (FREYRE, 1980: 8). Essa parte de nossa viagem em relação a Gilberto Freyre vai terminando, contudo, é preciso notar o quanto os livros O mundo que o português criou, de 1940 e Aventura e Rotina, de 1953, figuram como excelente representação de seu papel como intelectual transnacional, bastante comprometido com a cultura lusitana em vários aspectos. Obras das quais podem ser apreendidos os aspectos até aqui discutidos, em seu diálogo com as relações sociais e culturais envolvendo Brasil, Portugal e os países que a época eram colônias portuguesas (África, Ásia e Índia). Essa complexidade do pensamento de Freyre foi algo bastante contundente por romper com a divulgação das ciências, as quais enfocavam as justificativas do preconceito e para o autor a solução era nada mais, nada menos do que o “multirracial” (CASTELO, 2011: 25). Se no começo de sua trajetória o intelectual pernambucano foi julgado como comunista e associado às revoluções de esquerda, já na década de 1950, era tido como um conservador, muitas vezes associado ao passado de autoritarismo do Estado Novo (PALLARES-BURKE; BURKE, 2009: 183). Freyre viaja para conhecer as colônias de Ultramar (Goa, Angola, Moçambique, Guiné Portuguesa, Cabo Verde entre outros), atendendo ao chamado oficial da metrópole – Portugal.

Lusotropicalismo e Lusitanidade

Algumas referências sobre Gilberto Freyre nos têm feito pensar para além das críticas realizadas pela geração da Universidade de São Paulo (Florestan Fernandes e Fernando Henrique), ou mesmo sobre a suavização das relações escravistas no Brasil. Freyre foi considerado um dos primeiros especialistas brasileiros a ter uma carreira acadêmica e uma formação intelectual capaz de delinear as estruturas socioculturais do nosso país (PALLARES-BURKE; BURKE, 2010: 300). Com isso, foi natural que as críticas viessem, o que se provou saudável para os debates historiográficos, entendendo- se que a academia precisa cada vez mais desses espaços de discussão.

O percurso deste intelectual era bem claro quanto à esperança de encontrar um tipo de colonização que havia sido bem-sucedida, a lusitana. A percepção de que os portugueses tinham essa capacidade de acolhimento e de misturar-se com outros povos, de modo a se desfazer dos preconceitos foi o que incentivou o pensamento de Freyre. Assim, o lusotropicalismo nada mais era do que essa mistura étnica que unia a experiência portuguesa, ao elemento indígena e negroide, cuja essência seria a mestiçagem, uma “interpenetração de valores e costumes”, influenciada pelo alcance da “dualidade étnica” e de “cultura” da qual somente os portugueses poderiam levar com eles (CASTELO, 2010: 35).

A percepção do lusotropical perpassa algumas dinâmicas bastante complexas como a acusação de que o pensador pernambucano teria contribuído para o fortalecimento da perspectiva de que o colonialismo português teria sido o “menos violento” diante dos seus paralelos europeus. Isso foi bastante impactante para a historiografia colonial porque além de apagar os conflitos da História do Império português deu relevo ao ideal da suposta “vocação miscigenadora” dos portugueses (GUIMARÃES, 2016 :145). Por outro lado, tem-se uma retomada da perspectiva do hibridismo atrelada diretamente ao ideal lusotropical. Contudo, essa percepção não pode representar uma simplificação das dinâmicas coloniais, mas demonstrar uma apreciação transnacional do pensamento freyriano quando se detém em suas noções de mestiçagem e assimilação.

A ideologia do hibridismo estimulada por Freyre, não pode ser reduzida tão somente ao lusotropicalismo, mas deve ser compreendida dentro da complexa moldura de uma triangulação transatlântica, na qual as concepções

de hibridismo são apropriadas e lidas pela ditadura portuguesa e por intelectuais africanos em busca por emancipação cultural e política. Tais apropriações estão repletas de ansiedades, ambiguidades, ruídos desleituras, emulações e hesitações (MELO, 2014: 70).

O olhar de Freyre buscava desfazer as bases do “racismo científico”, o qual preconizava o fracasso de uma civilização, relacionando-o ao caractere afrocêntrico.

Vale dizer que enquanto ele foi considerado um intelectual “difícil de classificar”, busca-se encontrar nele o quanto as perspectivas políticas podem ter deturpado esse conceito, e, no seu tempo-espaço, ele tenha sido capaz de estabelecer uma teoria visando apaziguar tantas dualidades (BURKE, 2017: 206). O papel de Freyre ficaria caracterizado durante muito tempo como o de um sociólogo comprometido com o lusotropicalismo, teoria responsável por romper com as justificativas estritamente naturalistas ou marxistas. Se Casa Grande & Senzala foi uma obra que divulgou o conceito é nas décadas posteriores que esse pensador vai continuar divulgando-o como “pedra angular” da sua produção e crença na miscigenação cultural (MEDINA, 2000: 49). Do mesmo modo, o pensamento gilbertiano tentou acalmar situações de conflitos entre um mundo branco-europeu pautado no caráter de domínio do homem pelo homem, em outro universo mais abrangente, miscigenado, ligado ao espaço afro- asiático, ainda a ser estudado e pensado coletivamente (BURKE, 2017). Nesse sentido tem-se a proposta pós-colonial desse pensador segundo Peter Burke (2017: 206),

Freyre não deu à sua discussão da tropicalização um entorse político. Nem usou a frase “descolonização do conhecimento” que esteve em voga nos anos 1980 e 1990, juntamente com conceitos como razão colonial e pós- colonial. Todavia, e esta é certamente a questão mais importante, Freyre partilhou a preocupação pós-colonial de escapar ao eurocentrismo. Não apenas criticou tais teorias, como também ofereceu ideias positivas e concretas sobre o que podia substituí-las.

Na referida citação percebe-se que a teoria de Gilberto Freyre, levada em consideração do ponto de vista dos seus escritos voltados à lusofonia, acabou suplantando uma teoria racial excludente em um momento que o Brasil não estava mais sob domínio colonial e os brasileiros poderiam ser protagonistas do seu pensamento intelectual. Dessa maneira, há, sim, um viés subalterno na construção do seu pensamento, e as influências dos conceitos de “hibridismo” e da relação entre o

“cultural-biológico” surgem como novidades para uma época de um debate ainda muito maniqueísta.

Como a sua principal motivação era difundir uma determinada identidade cultural Freyre pode ter investido fortemente no ideal de hibridismo não só no plano cultural, mas no seu aspecto biológico. Essas noções estavam profundamente ligadas aos conceitos sociológicos que originaram não só o lusotropicalismo, mas a tropicologia. Isso fez com que o próprio Roger Bastilde afirmasse certa vez que a lusotropicologia como ciência era muito mais que uma apologia de Portugal, mas ainda uma “hispanotropicologia”, visto que valorizava um contexto latino-americano (FONSECA, 2003). O seu ideal de transculturação pode ter fundado não só um debate teórico mais ainda uma perspectiva capaz de realizar as análises de uma determinada modernidade e seus parâmetros de hibridização decorrentes de perspectiva transnacional/ globalizante (PALLARES -BURKE-BURKE, 2009: 304-5).

Voltando à colonização como elemento aglutinador do lusotropicalismo podemos compreender que a proposta de colonização lusitana estava fortemente atrelada ao catolicismo, uma ferramenta ideológica importante nas empreitadas coloniais dos séculos XVI, fortemente utilizada pelos povos ibéricos (CASTELO, 2011: 36). Esse ideal lusotropicalista foi uma das maiores difusões dos debates intelectuais sobre a mistura racial e o conceito foi o que impulsionou o escritor de Casa-Grande & Senzala, pois deixou bem claro o quanto tinha acreditado e validado esse “olhar afetivo” (e o tanto generalizante) dos nossos colegas lusitanos (NETO, 2009).

O luso-tropicalismo esteve longe de ser completamente aceito pelo Estado Novo. Ainda que bastante instrumentalizado nos fóruns internacionais, o rechaço a qualquer mistura com as culturas africanas é evidente na fala daqueles que estiveram no front da colonização portuguesa (MELO, 2014: 70).

A ideia de que o lusotropicalismo tenha sido amplamente aceito de pronto não é correta; contudo, o Regime Salazarista vai se apropriar das temáticas de dois livros de Freyre: Integração portuguesa nos trópicos (1958) e O luso e o trópico (1961). As duas publicações foram incorporadas ao Estado Novo português (1930-1973) para divulgação da propaganda, funcionando como legitimação de sua política colonial (CASTELO, 2011: 37). A sensibilidade de Gilberto Freyre pode ter sido eclipsada pelas duras críticas sofridas, sobretudo, pelas gerações que o precederam, entretanto, há

importante ressalva a ser feita: Ele acreditava fielmente na ligação entre brasileiros, africanos e portugueses em afinidades socioculturais e esse fator afetivo era capaz de encontrar algo de semelhante nos azulejos portugueses que decoravam as casas coloniais no Recife. Dessa maneira, os relatos de viagem sobre o continente africano só fizeram reforçar a riqueza dessas raízes em comum (VILLON, 2010: 77).

Em grande medida a paixão pela lusitanidade e a formulação do lusotropicalismo se coadunaram bastante, ocasionando a divulgação de valores europeus, africanos e brasileiros, mesmo que envolvidos em generalizações. Para Freyre as suas percepções teóricas poderiam contribuir para divulgar a língua portuguesa e o cristianismo, gerando os alicerces da lusitanidade. A crença na cultura lusitana se torna alguns de seus traços mais relevantes para entendermos os dois conceitos (CASTELO, 2011: 38).

Em linhas gerais podemos encontrar a definição de lusotropicalismo de Freyre nas percepções da intelectualidade africana que veio a refratar o conceito como foi o caso de Baltazar Lopes, Mário de Andrade e Amílcar Cabral. Assim, através da análise do lusotropicalismo,

podia-se concluir que o lusotropicalismo seria, ao mesmo tempo, um conceito, uma teoria, um sistema e um método de colonização, consistindo na vocação congénita do português para ser atraído pela mulher de cor nas suas relações sexuais; o desinteresse do português em relação à exploração económica dos trópicos; a manutenção de relações sociais com os habitantes dos países tropicais no sentido da mobilidade vertical na vida social e política (MEDINA, 2000: 54).

Essa junção da crítica a tudo que viesse do Estado Novo, com as perspectivas ideológicas do tropicalismo se somam ao debate da empreitada colonial levando em consideração a exemplaridade da lusitanidade em relação aos outros povos. Ou seja, era como se o lusotropicalismo se aliasse a esse sentido de Império português (totalmente anacrônico) alimentando o sentido da colonização lusitana em uma perspectiva interna e da política externa da metrópole (PINTO, 2009: 159).

No sentido político e do direito a administração salazarista se isolava cada vez mais das dinâmicas internacionais, optando por perpetuar o colonialismo a todo custo.

Introduzindo à pressa alterações na Constituição portuguesa com o fim de escapar à obrigação das Nações Unidas, o colonialismo fascista de Portugal conseguiu, além disso, cortar todas as possibilidades de informação não- oficial acerca das suas „províncias ultramarinas‟ (MEDINA, 2000: 54).

Portanto, por meio dessa “comunidade de além-mar imaginada” Portugal mantém a sua lógica protecionista que vai perdurar até a Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974. Nesse sentido, ainda não é possível dizer que a intenção do intelectual pernambucano era de defender fielmente o patriotismo lusitano e tampouco desfazer-se da experiência histórica brasileira com sua antiga metrópole colonizadora. Disso, depreende-se o quanto “Salazar queria afirmar Portugal e Freyre afirmava o Brasil.” Esta era a principal “diferença entre as duas práticas discursivas dentro de um mesmo campo ideológico – o lusotropicalismo (PINTO, 2009: 154).”

Gilberto Freyre: a encruzilhada entre o Estado Novo e as colônias

A historiografia brasileira começou a se interessar pela influência transnacional de Gilberto Freyre na antiga metrópole e com isso repensar os elementos da colonização (língua, religião, civilidade) de forma diferente do que já havia sido produzido pelas empreitadas inglesa e francesas. A noção lembrada por Omar Ribeiro Thomaz (2005) de “bom povo português” vai ao encontro de uma antropologia colonial voltada para uma perspectiva mais humanista, direcionada para uma renovação teórica. Essa era a maneira encontrada para se desfazer do ideal expansionista predatório, demonstrando que devido a sua tradição colonizadora o lusitano poderia ser bem-sucedido na tarefa de divulgar sua noção de civilização e cultura (THOMAZ, 2015: 16-7). Essa noção da facilidade de assimilação das diferentes culturas não foi utilizada somente para a empreitada colonial, mas conseguiu incentivar alguns dos administradores portugueses na crença pela união intercultural (VILLON, 2010). Não precisamos expressar o quanto Freyre esteve distante da luta pelos povos coloniais e tampouco sua postura de alinhamento com o ideal europeu, contudo convém lembrar do elemento africano nas expressões do pensamento deste autor. Nas palavras de Victor Villon (2010: 63) tem-se:

O colonizador lusitano possuiria uma grande agilidade. Teria sido ele o agente criador e móvel dentro de seu império; pois com uma população escassa, Portugal teria que movimentar seus homens a todo tempo. Assim procedendo, a influência portuguesa, na obra freyriana, não conter-se-ia no que teria vindo diretamente do Reino de Portugal para cá, ela estaria indiretamente presente nas outras contribuições. A influência dos povos

africanos em momento nenhum é desprezada, mas é o português que filtra que transporta e reinventa o que fora trazido de África.

Já em meados da década de 1960 eram as forças armadas que animavam as incursões ao continente africano, na medida em que o impacto do isolamento estava refletindo no campo econômico. Angola e Moçambique acabaram se tornando as esperanças de investimento para a metrópole e nesse sentido ainda se tornava mais difícil abandonar seus territórios ainda bastante lucrativos (MAXWELL, 2006: 139- 140).

A História de Portugal foi marcada por uma ditadura de mais de cinquenta anos, tendo ocasionado grandes dificuldades e mudanças político-econômicas que não acompanharam o resto do mundo. Contudo, compreender o autoritarismo lusitano é importante para relacionarmos a ligação entre o construto teórico do colonialismo, com os sustentáculos do Estado Novo, bem como as necessidades daquele momento histórico.

Fruto de processo social e politicamente distintos de superação autoritária do poder do Estado liberal burguês, os regimes fascistas, nas suas diferenças, não constituem, todavia, um conjunto de realidades atomizadas e historicamente ininteligíveis, conclusão a que, como vimos, poderia conduzir a abordagem tipológica do fascismo (ROSAS, 2019: 83).

O fascínio de Freyre pelo “mundo que o português havia criado” contrastava com o poeta António Sérgio e o líder carismático António Oliveira Salazar. Como já abordado, as estruturas binárias na realidade de Freyre (Casa Grande e Senzala; Sobrados e Mucambos; Aventura e Rotina) podem demonstrar a sua ambiguidade naquilo que Ricardo Benzaquen de Araújo pontuou mais tarde como “antagonismos em equilíbrio” (ARAÚJO, 2005; COSTA E SILVA, 2001: 13). Dito de forma mais simples ele percebia por meio da aproximação com Portugal uma alternativa possível para garantir a diminuição dos conflitos ocasionadas pelos contatos culturais, os quais em geral eram carregados de tensão.

Em agosto de 1951, Gilberto Freyre faz um périplo na metrópole e nas possessões africanas e asiáticas, atendendo ao convite do governo, sendo Sarmento Rodrigues o responsável pelo convite. Este último foi administrador na Guiné Bissau e um grande africanólogo português, que criou o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (COSTA E

SILVA, 2001: 16). . Como aponta Alberto da Costa e Silva no prefácio de Aventura e Rotina (2001) Gilberto Freyre foi seduzido pelo governo salazarista e se identificava com ele, porque percebia que por trás do governante habitava um intelectual contido. Especificamente sobre seu convite por Sarmento Rodrigues, (ministro de Além-mar) em 1950, para visitar Portugal e os territórios coloniais, podemos destacar (COSTA E SILVA, 2001: 18): “Foi pena que na África não o deixassem demorar o olhar sobre o que mais podia interessá-lo. A impressão que nos fica é a de que dele não se afastaram um só momento as autoridades coloniais.” Essa expressão do historiador e diplomata Alberto da Costa e Silva demonstra o quanto essas viagens de Freyre eram conduzidas pelas autoridades portuguesas não permitindo que Freyre tomasse as suas próprias conclusões acerca das realidades coloniais.

Retomando a construção tipológica do fascismo português, ela pôde ser sustentada de diversos modos, contudo, a aceitação de grande parte da sociedade foi algo que nos chama bastante atenção. A partir da primeira metade do século XX, muito em função da ascensão do nazismo e do fascismo, outros países (incluindo o Brasil) incorporaram regimes totalitários. No terreno ideológico e político Portugal encontrou campo fértil e a justificativa econômica também foi aplicada, visto que havia uma classe média bastante desiludida com a situação do país, demonstrando a periferização econômica, social e política lusitana (ROSAS, 2019: 86-7). Através da sustentação da necessidade de uma ditadura, António Oliveira Salazar retomou a justificativa das colonizações do antigo império português do ultramar para reascender a empreitada colonial do século XX. Contudo, como lembra o referido historiador: “o movimento de libertação das ex- colônias e as populações africanas, antes e durante a guerra colonial, deve merecer consideração específica, tema que só agora começa a ser abordado na historiografia académica (ROSAS, 2019: 220).”

A utilização de um discurso de integração foi usada de forma retórica pela administração superior lusitana, levando o ministro de ultramar Adriano Moreira, em 1961 a recuperar o conceito de lusotropicalismo e exaltar a necessidade de uma “imigração inspirada na diversidade „multirracial‟ que bem poderia conduzir a uma manobra inspirada na „democracia racial‟ de Gilberto Freyre” (ALMEIDA, 2014: 150). Assim, para Castelo (2011: 14) a teoria lusotropicalista não só sustentou a identidade

nacional lusitana, mas apoiou uma autoridade científica para a metrópole, até então inexistente.

Uma Ditadura Salazarista que caminhava na contramão dos processos de descolonização e defendia a colonização que se estenderia do “Timor ao Minho” apostando todas as fichas na exploração dos recursos nos territórios de Ultramar. Isso ocorreu dentro da metrópole com o consentimento da intelectualidade que se opunha ao regime de Salazar. A militância de esquerda só passa a defender a emancipação dos territórios de ultramar a partir de 1969 (COSTA E SILVA, 2001: 22).

Visando entender como o regime autoritário português perdurou tanto tempo no poder é necessário compreender a forma como isso se deu (apesar do contexto histórico já abordado). De acordo com o historiador Francisco Carlos Palomanes Martinho (2010), o Estado Novo português perdurou através da utilização de quatro pilares, dentre eles: o corporativismo, o nacionalismo, o autoritarismo e o colonialismo. O corporativismo se ocupou de organizar as lideranças sindicais, deixando-as mais próximas do controle do Estado. O nacionalismo foi incentivado para propor as bases populares, conclamando grande parte da população a acreditar em um “imenso Portugal”, e, aliado a ele, o autoritarismo foi utilizado na metrópole e nas colônias visando a manutenção desse projeto mais amplo. Por fim, a colonização foi um dos alicerces nos quais mais se investiu e vamos nos deter um pouco nele.

A administração do governo Caetano investiu na mudança da nomenclatura, visando escamotear a empreitada colonial. Assim, os territórios viraram parte das “províncias de além-mar” e o ideal colonial foi mantido, para esconder toda a violência e as resistências coloniais (MARTINHO, 2010: 295). A construção de uma comunidade lusitana pode ser analisada como algo retórico ou mesmo utópico, contudo, certamente não havia um tipo de consulta aos povos nas colônias, somente a imposição dos representantes portugueses destes territórios de além-mar. Uma medida para tentar frear as demandas pela independência foi a “política de autonomia progressiva” das colônias portuguesas adotada por Marcelo Caetano – último líder do Estado Novo – dessa maneira as elites coloniais obtinham prestígio e melhores condições nos seus países (ALMEIDA, 2014: 13). A empreitada colonial portuguesa foi se intensificando à medida que os alicerces do corporativismo e do nacionalismo iam se enfraquecendo no território da metrópole. Assim, o autoritarismo foi exercido nas províncias visando

recuperar a identidade nacional lusitana já abalada, buscando resgatar o passado expansionista português (MARTINHO, 2010: 295-6).

Deixar de lado as colônias, sobretudo, as africanas era algo inevitável, pois não havia mais poder entre as forças armadas e mesmo uma logística para a manutenção dos territórios onde ocorriam em grande parte as táticas de guerrilha. Ainda é possível se estabelecer uma relação profunda entre as demandas contrárias ao Regime de Salazar na Metrópole e nos territórios coloniais da África ou ainda em como se daria a saída desses espaços, como aponta Maxwell (2006: 139): “o conflito inicialmente delimitado era, no fundo, entre a mudança revolucionária e a mudança evolucionária na Europa, e entre a descolonização imediata e a saída gradual da África.”

Como lembra José Marques Guimarães (2014: 145), passadas décadas da ditadura Salazar – Caetano ainda não se produziram reflexões as quais orbitem nas esferas das produções coloniais portuguesas. Vale dizer que as reflexões dos impactos do fascismo português nas colônias ainda trouxeram à tona preceitos teóricos servindo a metrópole, e o trabalho de Freyre pode ter contribuído para o fortalecimento dessa “vocação miscigenadora” ainda hoje. As perspectivas historiográficas interpretativas da colonização têm sido esquecidas e levadas a um silenciamento em que “estatuto do indigenato”, responsável pela manutenção de um trabalho forçado até 1961 é ainda silenciado (GUIMARÃES, 2014: 145-6). Dentre as contradições da teoria colonial lusitana está a recepção do lusotropicalismo e as práticas excludentes, repressoras e racialistas nas colônias. Durante sua viagem às antigas colônias pode-se perceber que Freyre queria uma participação mais bilateral e não uma perpetuação daquela situação colonial. Ele almejava que as índias portuguesas fizessem parte da comunidade luso- portuguesa, como o Canadá era em relação à Grã-Bretanha. (COSTA E SILVA, 2001: 21). De acordo com Costa e Silva (2001: 22), durante os anos de 1951 e 1952 somente a Índia já era independente, sendo que faltariam ainda alguns anos para que os países africanos rumassem para isso. Somente anos depois de Gana se tornar independente (em 1958) que a ideia de uma comunidade comum (ligada ao autoritarismo colonial) surgiria como uma resposta possível para aqueles territórios.

Como ressaltado por Guimarães (2014), a revisão historiográfica portuguesa ainda está para ser feita, contudo há um descompasso entre o que Freyre divulgou como projeto para uma comunidade lusófona e o que as autoridades sob os auspícios de Salazar e Caetano executaram nos seus territórios coloniais (CASTELO, 2011: 15-6).

Ainda ficam algumas questões: se Gilberto Freyre tivesse a nacionalidade portuguesa, será que combateria o Regime Português? Ele silenciaria diante do “medievalismo” e a “onipresença da polícia”? Uma coisa foi certa, não havia como apoiar o Regime de Salazar visto que em trinta anos no poder (até a guerra de guerrilha angolana em 1961) ele inda não havia pisado em nenhum território africano (COSTA E SILVA, 2001: 18- 9).

O Regime Salazarista foi algo concreto, então os seus alicerces ainda demorariam a ruir, sendo a teoria lusotropical uma alternativa provável a ser incorporada a uma já desgastada ideologia colonial lusitana. Em termos da relação entre ideologia colonial e a teoria gilbertiana temos:

[...] a colaboração de Freyre em jornais portugueses e a recorrente referência à teoria, sempre que Portugal se sentia acossado nas mais altas instâncias da política internacional, pareceram traduzir a existência do compromisso ideológico entre Estado e cientista social. De futuro, apesar de o sociólogo brasileiro reiterar que a sua tese não continha quaisquer finalidades político- ideológicas, não mais a máquina de propaganda do regime a esqueceria (FREYRE, 1980: 8-13 apud NETO, 2009: 67).

Considerações finais: fim da travessia?

Apesar de muito ter sido produzido sobre esse autor é interessante observar como essa teoria pode ter sido umas das que mais projetou não somente uma ideia (mesmo utópica) de “lusitanidade”, mas também acreditava no sucesso da “brasilidade”. De certa maneira, através dessa retomada de parte da obra de Freyre é possível compreender o discurso colonial português, no qual defende-se a noção de uma colonização menos violenta e a vontade de se assimilar às outras culturas. Esse modo de Freyre atentar à riqueza dos traços culturais portugueses faz com se perceba a beleza dos azulejos entre Lisboa e Recife. Essa noção da cultura portuguesa relacionada com uma colonização que foi vitoriosa em termos ideológicos, (o caso exemplar do Brasil e Portugal, neste sentido), para ele era o melhor exemplo (VILLON, 2010: 91).

Para esse fim da travessia é necessário relembrar o quanto esse ensaio é uma busca pelo pensamento de Gilberto Freyre levando em conta as dificuldades atuais de situá-lo na nossa trajetória de lutas político-culturais, sobretudo, em relação aos direitos pela igualdade de condições, em um país tão partilhado como o nosso. Não nos cabe aqui “reabilitar” o pensamento gilbertiano mas compreender as nuances de sua escrita, de sua

atuação política e de seu projeto de Brasil. Esse projeto estaria bem claro no conceito de “democracia racial” cujo presente ensaio não recuperou, mas sim o lusotropicalismo – o alicerce basilar dessa concepção.

Convidamos o leitor a se voltar às falas e conferências de Freyre, pois elas precisariam ser melhor esboçadas aqui, levando em consideração o todo produzido durante essas viagens. Apesar disso, apreender o caráter pós-colonial de Freyre foi fundamental por exaltar a sua ruptura com um pensamento determinista ao extremo, responsável por dividir e classificar raças e culturas, excluindo o elemento africano.

É preciso ter um olhar crítico em relação ao pensamento de Freyre, levando em consideração que ele não atualizou as suas conjecturas e não se preocupou com a inserção de suas teorias no diálogo intelectual após a década de 1960 no Brasil e fora dele. Por outro lado, o polímata brasileiro foi também crítico a falta de sensibilidade das concepções miscigenadoras lusitanas. Essas inquietações diante das percepções culturais estiveram presentes nas suas viagens:

E anotou que o Estado português e boa parte dos novos colonos estavam abandonando o jeito muçulmano de estar na África, e não mais se deseuropeizavam nem se misturavam aos africanos, nem casavam com mulheres africanas, nem adotavam valores africanos de cultura (COSTA E SILVA, 2001: 19).

O olhar transnacional de Gilberto Freyre pode dizer muito mais sobre a lusofonia do que sobre as influências ao Regime Salazarista, visto que sua disposição era para a miscigenação e havia uma forte idealização do “modo português de estar no mundo”. A identidade nacional/cultural foi durante muito tempo o foco de suas análises e produções, mas a sua crença no hibridismo pode ter feito com que continuasse a defender a criação de uma sociedade transnacional (PALLARES-BURKE; BURKE, 2001: 305).

Gilberto Freyre pensava então numa grande comunidade de língua portuguesa, integrada pelo Brasil, e, ao que parece, estava tão seduzido por esse projeto aglutinador que julgou ser possível que as possessões de Portugal ficassem fora do desmanchar dos impérios europeus na África e na Ásia, que ele considerava iminente (COSTA E SILVA, 2001: 22).

O Gilberto Freyre do lusotropicalismo transita por muitos espaços: as colônias de ultramar, os construtos ideológicos do salazarismo, o mito de uma democracia racial,

mas na intersecção de uma narrativa transnacional foi muito pouco trabalhado. E as análises radicais do seu trabalho caminham para a invisibilização deste autor, um personagem muito importante não só na História do Brasil e História contemporânea, mas na História Global.

Sua imaginação sociológica foi umas das maiores movimentações para a divulgação do lusotropicalismo e outros conceitos voltados à nossa identidade. Contudo, a “impossibilidade de lançar conceitos novos e fecundos” pode ter sido um dos motivos de tantas críticas, usos e abusos das teorias de Freyre, ou seja, a dificuldade de renovação dos conceitos de mestiçagem, hibridismo e lusotropicalismo (PALLARES-BURKE, BURKE, 2009: 308-9).

Em relação ao colonialismo português e a nossa história recente a concepção de Gilberto Freyre não foi combativa como nós esperaríamos, contudo, ela pode vir a representar uma nova postura epistemológica de acordo com suas viagens, seu pensamento e suas atitudes políticas em relação ao “outro”. Freyre se apropriava das heranças da comunidade lusófona, através de um olhar sócio-histórico levando em consideração a capacidade das misturas entre os povos. Se tratou essas aproximações como contributos intelectuais ou fortaleceu as divisões do autoritarismo ainda há um extenso debate a ser realizado, e ainda algumas lacunas constam na construção dessa narrativa.

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Notas

1 Como ressalta João Medina no seu artigo “Gilberto Freyre Contestado: o lusotropicalismo criticado nas colônias portuguesas como álibi colonial ao Salazarismo” (2000), há uma movimentação por parte de intelectuais como Baltazar Lopes, Mário Pinto de Andrade, entre outros no que diz respeito à aceitação tácita desse conceito de lusotropicalismo voltado às suas realidades africanas.
2 Não nos cabe aqui adentrar na questão, mas Gilberto Freyre foi um contumaz defensor do regionalismo, se voltando durante muito tempo para a análise do nordeste como um todo e isso pode ter o excluído do debate direto com os centros de produção do saber do sudeste.
3 Para o autor Freyre teria sido seduzido pela possiblidade de realizar as viagens para os territórios da África e da Ásia (COSTA E SILVA, 2001: 17).


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