Dossiê

O Ideal de Progresso como aspecto da ideologia da precisão

The Idea of Progress as an aspect of the ideology of exactitude

César Henrique Guazzelli e Sousa
SME-Goiânia, Brasil

Intellèctus

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

ISSN-e: 1676-7640

Periodicidade: Semestral

vol. 21, núm. 1, 2022

revistaintellectusuerj@gmail.com

Recepção: 27 Fevereiro 2022

Aprovação: 29 Maio 2022



Resumo: Por cerca de duzentos anos, entre os séculos XVIII e XX, o ideal de progresso se estabeleceu como a noção fundamental em torno da qual se organizou a experiência humana do tempo e o regime moderno de historicidade. Argumentamos que a noção ocidental moderna de progresso, porém, somente pode ser adequadamente compreendida quando a inserimos em uma contextura mais geral, marcada pela crença axiomática e inconteste na previsibilidade e regularidade dos fenômenos naturais e sociais esquadrinhados pela razão humana, que por sua vez perfaz o que Abraham Moles denominou como a ideologia da precisão. A partir desse recorte, buscaremos demonstrar a forma como a noção de progresso se estabeleceu historicamente como um fenômeno alinhado a essa perspectiva, tomando como referência os trabalhos de Abraham Moles e, complementarmente, François Hartog.

Palavras-chave: progresso, ideologia da precisão, modernidade.

Abstract: For two centuries, the idea of progress has been set as the fundamental proposition around which the human experience of time and the modern regime of historicity were organized. Although, the modern idea of progress can only be comprehended adequately when we insert it in a more general context, marked by the axiomatic belief on the predictability and regularity of the natural and social phenomena sifted by human reason, which determines what Abraham Moles denominated ideology of precision. On that perspective, we shall demonstrate how the idea of progress was historically set as a phenomena aligned with that perspective, taking the works of Hartog and Moles as main references.

Keywords: progress, ideology of precision, modernity.

Nos últimos decênios, o ideal de Progresso e os usos da História associados a modelos teleológicos positivos parecem ter se tornado obsoletos, desacreditados e percebidos não como instrumentos racionais/científicos que orientam a ação humana, mas como axiomas falaciosos alimentados por utopias. As pessoas não acreditam mais no Progresso como outrora. O conceito hoje nos parece antiquado, associado a uma racionalidade instrumental e pragmática, que reduz as realizações humanas à ideia de utilidade; também se tornou associado à demagogia, particularmente no campo do discurso político, desgastando-se ainda mais. O otimismo em relação ao Progresso deixou de ser a regra, e aqueles que advogam em seu favor enfrentam cruzadas solitárias.

O traumático século XX, com suas duas guerras mundiais, crises econômicas sucessivas, a racionalização da barbárie (que tem como seu grande paradigma o Holocausto), o hiperestímulo, a anomia, o insucesso em atender a demandas sociais básicas na maior parte do globo e, por último, o duro golpe na utopia socialista em 1989, fez com que o telos da Civilização deixasse de ser um horizonte realizável. Nos tempos atuais, os efeitos da pandemia da Covid-19, assim como o crescente anti-intelectualismo que se multiplica em uma velocidade espantosa, dão ainda mais força a essa afirmação. Na contemporaneidade, os indivíduos se tornaram crescentemente céticos em relação ao futuro ou, ainda, indiferentes.

Hartog (2013) compreende o ideal de Progresso no interior do ‘regime moderno de historicidade’, definindo-o de forma bastante econômica como um regime de historicidade. em que a perspectiva do futuro é dominante. A descrença em relação ao futuro como paradigma de orientação, portanto, significou a reabertura dos tempos venturos ao incerto e ao imprevisível, o que se reflete também no pretérito. Dessa forma, o ocaso do regime moderno de historicidade e, com ele, do ideal de Progresso, incorreu no fim das certezas. O futuro se tornou uma incógnita e a humanidade passou a tatear no escuro, perdida e sem instrumentos para se orientar. E se, desde as considerações de Weber, já não podíamos ignorar a diferença entre uma razão substantiva, capaz de pensar fins e valores, e uma razão instrumental, que se completa no ajustamento entre meios e

fins (ROUANET, 1998), o fato é que a implosão do Progresso como horizonte e como orientação provocou uma forte vertigem.

A partir desses pressupostos, buscarei problematizar o declínio do ideal de Progresso com base na crítica à ideologia da precisão. O conceito foi utilizado por Abraham Moles (1995:16) para definir uma disposição crescentemente científica do Ocidente na qual “a ciência é o único verdadeiro triunfo do pensamento, [...] do inteligível e da coerência universal”. A razão científica exclui de seus domínios fenômenos demasiadamente vagos ou difíceis de manipular ou, pior ainda, submete esses fenômenos aos ditames de métodos que eles não comportam. Para Moles, a ideologia da precisão se sustenta na assunção elementar que assume o que é preciso como tendo o valor de ‘bom’, porque é mensurável, racionalizável e instrumentalizável, tornando-se portanto útil; o impreciso consequentemente é ‘mau’, indigno dos nossos esforços e do nosso pensamento. A ideologia da precisão busca colonizar a nossa irracionalidade – que nos é imanente – com a ideia de razão, propondo um modelo de homem unidimensional. Ela cria sistemas, encontra regularidades, estabilidade, proporção e previsibilidade, aplicando o método da física a todas as coisas, embora “este mundo da física, como ciência da natureza [não seja] o único mundo que ocupa nosso espírito e para o qual devemos nos esforçar para fazer uso da nossa cientificidade” (MOLES, 1995:24).

No regime moderno de historicidade, cativo da ideologia apresentada por Moles, a História se apresentava como um ente monolítico ou, nas palavras de Hartog (2013), “um processo único”, uma “narrativa do unívoco”. Com isso, a História, antes vinculada à função da exemplaridade, tornou-se um instrumento de previsão e, simultaneamente, um conjunto de registros que unificou a experiência humana, dando-lhe um pretérito inconteste e unificado, assim como um futuro comum, positivo e otimista. A noção de Progresso, afinal, deriva de uma confiança na razão humana que ainda não foi acometida por nenhuma dúvida. Para os progressistas é evidente que o pensamento metódico/científico fornece os instrumentos necessários para que a humanidade alcance aquilo que almeja. Mesmo alguns dos críticos mais incisivos e influentes da modernidade europeia no séc. XIX, a exemplo de Marx e Freud, compartilhavam do otimismo generalizado que tomou conta do mundo ocidental, particularmente a Europa, na segunda metade do século XIX. Eles apresentavam os problemas e gargalos da modernidade não para demonizar o Progresso, mas para fornecer soluções que pudessem endossá-lo.

O conceito de Progresso

Não poderemos avançar muito, contudo, sem uma definição minimamente satisfatória de Progresso. Como conceito, ele é um caminho pelo qual muitos passam, mas poucos permanecem. A adequada problematização do conceito nos permite perceber com maior clareza a relação intrínseca existente entre o progressismo – corolário maior do regime moderno de historicidade – e a ideologia da precisão. Robert Nisbet (1980) postula que a essência da noção ocidental de Progresso pode ser sintetizada na percepção de que a humanidade avançou no passado, continua avançando no presente e, certamente, avançará no futuro. Embora existam discordâncias em questões como a direção do Progresso e a natureza das mudanças que o movem para um futuro positivo, três ideias essenciais subjazem à doutrina que o acompanha: uma concepção linear de tempo, complementada pela percepção de que a história tem um sentido, orientado para o futuro; a noção da unidade fundamental da humanidade, que se move unidirecionalmente e coletivamente e, por fim, a ideia de que o mundo pode e deve ser transformado (BENOIST, 2008: 7-8).

O ideal de Progresso é um grande rebento, por um lado, do racionalismo e da confiança inequívoca na capacidade humana de domesticar a natureza. Por outro, na também confiança na ideia de que o homem poderia domesticar a si mesmo. A razão instrumental e o método científico forneceriam os instrumentos necessários para o conhecimento das ‘coisas da natureza’ e das ‘coisas do espírito’. O reconhecimento de padrões, regularidades e relações causais nas ações humanas seria possível pelo método científico. O estabelecimento de axiomas sobre o ser humano também, a partir da observação empírica. Porém, o que se viu foi que a ‘vontade de regularidade’, o ‘desejo de dominar esses padrões’, fizeram com que eles fossem simplesmente pressupostos como certos, sem que existissem de fato.

O homem busca a perfeição, seja de forma utópica, mitológica ou racional. Temos sempre um ideal de perfectibilidade a guiar a nossa relação com o tempo. Quando esse ideal é retrospectivo, apontando o passado como modelo para o presente, temos uma teoria da decadência ou da degeneração; a noção de que já fomos perfeitos (ou quase isso), mas por quaisquer que sejam os motivos, degeneramos. Quando esse ideal é

prospectivo, delegando a realização da perfectibilidade humana ao futuro, entramos no campo das teorias do Progresso.

A partir do supraposto, derivarei quatro questões: a primeira direcionada para o significado do ‘avanço’ da humanidade pressuposto no ideal de Progresso; a segunda se ocupa dos instrumentos utilizados pela humanidade na esperança de antever e controlar o seu próprio destino; a terceira voltada para o objetivo final desse avanço; a quarta inquire a sua natureza. A partir dessas questões, a crítica à ideologia da precisão nos fornecerá uma base sólida para a compreensão da falência da utopia progressista, demonstrando que a articulação de sistemas estáveis, a percepção do mundo como um todo perfeitamente lógico e a interpretação das coisas a partir do binômio problema- solução são horizontes falaciosos. Na esperança de elucidar e resolver problemas fundamentais, acabam por escamoteá-los, contribuindo para a tão alardeada ‘crise da modernidade’ e, com ela, a crise da cientificidade histórica, trazendo consigo a carência de orientação do homem contemporâneo.

Em primeiro lugar, questionemos o significado do ‘avanço’ prospectivo buscado pelos advogados do progresso, assim como os meios (ou instrumentos) que pretensamente garantiriam o desenvolvimento positivo da humanidade. Afinal, a noção mais geral de avanço estaria adstrita ao progresso material, ao desenvolvimento das ciências, da etiqueta, das letras e das artes, ao crescimento econômico ou, ainda, à perseguição dos princípios gerais da justiça, igualdade e liberdade individual? Seria possível estabelecer critérios seguros e válidos para medir e controlar o pretendido desenvolvimento ou avanço? Se, no século XIX a resposta para essa dupla questão seria um sonoro ‘sim’, a partir da segunda metade do século XX o posicionamento tornou-se consideravelmente mais cético.

Nisbet (1979) destaca que a gradual melhoria pretendida pelos progressistas foi debatida em diversos termos e assumida a partir das mais variadas perspectivas desde a contenda entre os Antigos e os Modernos., indo “do mais sublime avanço espiritual até o absolutamente físico e material”. Contudo, ainda segundo o mesmo autor, a noção mais

comum de Progresso, que posteriormente se sobreporia às demais, ligava-se ao desenvolvimento do saber, em especial nas ciências e nas artes, já que estas se caracterizariam como formas de conhecimento prático orientadas para a compreensão da natureza e do homem com o objetivo claro e definido de aprimorar a um e outro. Essa lógica, associada à modernidade, credita a certeza inabalável em um futuro positivo e desejável na instrumentalização da razão, perfazendo uma teleologia que julga-se irrefutável.

Conforme Paz (1984:47), a modernidade caracteriza-se pela eterna negação de si mesma. As suas verdades são sempre revistas e substituídas por outras que, dentro dos parâmetros definidos pela Ciência como instituição, conseguem dar conta dos problemas levantados de maneira mais exitosa. A racionalidade científica traz consigo um princípio que substitui a verdade eterna, atemporal, por uma ‘verdade da mudança’. A certeza de que a capacidade racional humana promoveria a melhoria da vida dos indivíduos e o desenvolvimento das sociedades é, portanto, o fundamento da ideia de Progresso. Em 1751 Turgot (1996), no grande tratado utópico-racional que é seu ‘Plano para dois discursos em História Universal’, afirmou com inabalável certeza que a humanidade não avançava somente nas ciências, nos inventos e nas utilidades materiais. O Progresso se faria sentir também nas maneiras, no código moral, nas instituições, nas leis, na economia e em cada pequeno aspecto da vida humana. Ele seria, nessa perspectiva, uma decorrência natural e irrefreável da vida em sociedade ao longo do tempo.

Dessa forma, o otimismo progressista, advindo especialmente do enorme avanço das ciências, do conhecimento prático e da oferta de benesses materiais nos últimos quatrocentos anos, provocou uma euforia inebriante, que acabou por causar uma inversão que transformou inferência em premissa. Ou seja, a crença no Progresso, advinda da percepção fática de melhoria entre os séculos XVI e XIX, fez com que as pessoas o tomassem como um pressuposto axiomático. O silogismo ‘se estamos melhores hoje do que no passado, portanto progredimos’ foi substituído por outro: ‘nós progredimos, por isso estamos melhores hoje do que estivemos no passado’.

Perrault (apud BURY, 2011:45), ainda na década de 1690, em uma alegoria que seria retomada no século XIX pelo historiador americano Frederick J. Turner, afirmou que as ciências e as artes são como rios, que correm parte de seu curso subterraneamente e, então, “encontram um manancial aberto adiante tão abundante quanto aquele que havia

quando se abismaram sob o solo”. Embora pudesse encontrar formações rochosas, montanhas e outras dificuldades em seu caminho, ele certamente encontraria meios de alcançar o Oceano. Essa construção buscava responder ao problema levantado sobre a Idade Média, que se colocava como uma ‘idade das trevas’ situada entre a grandiosidade dos Antigos e a engenhosidade dos Modernos, o que invalidaria o argumento do Progresso como um avanço lento, contínuo e gradual. Dessa forma, a alegoria acima buscava superar a aparente objeção que a própria História fazia à doutrina do Progresso, comportando a exceção sem contradizer a doutrina geral.

E se a ideologia da precisão endossa a esperança de alcançar esse fim a partir da crescente ordenação do mundo por meio de sistemas lógicos, adota automaticamente o pressuposto de que o homem e o mundo perfazem fenômenos regulares, mensuráveis, puramente racionais e estáveis, assim como a premissa de que o intelecto humano tem a capacidade de compreender e usitar esses fenômenos de maneira total e inequívoca. A soma das mais diversas ciências do homem e da natureza no século XIX em torno de sistemas coesos e eficientes baseados em métodos e objetos bastante específicos e detalhados, portanto, teria como resultado um sistema maior, que é a própria noção de Progresso.

O irresistível otimismo que se instaurou sobre o ocidente durante a modernidade sustentou-se, assim, na convicção apriorística de que o mundo melhorava a passos largos. O desenvolvimento das ciências da natureza e de novas tecnologias, acompanhado pela dominação europeia sobre o Novo Mundo, alimentou esse otimismo ao mesmo tempo em que abria possibilidades para inúmeros futuros avanços e descobertas. A convicção, professada por Bacon e Descartes, de que o destino da humanidade estava ligado à domesticação e dominação da natureza por meio do conhecimento de suas leis, fez com que o cosmos deixasse de ter um sentido em si mesmo, transcendente ao homem. O mundo passou a ser percebido como uma grande máquina, que poderia ser desmontada matematicamente para a compreensão de seu funcionamento e, então, instrumentalizada a favor da humanidade. Com os extraordinários feitos das ciências da natureza, o mundo se tornou um objeto, e o homem o seu senhor (BENOIST, 2008:9). Portanto, o avanço pretendido pelos teóricos do Progresso ligava-se, sobretudo no século XIX, diretamente ao desenvolvimento do conhecimento e das ciências, a partir da crescente racionalização da percepção humana sobre as coisas. O otimismo histórico, no interior da compreensão

de tempo subjacente ao regime moderno de historicidade, é plenamente cativo da ideologia da precisão.

Em relação ao objetivo final do avanço da humanidade, duas possibilidades se abrem. Em uma primeira hipótese, ele seria contínuo e indefinido, tendendo ao infinito em direção ao futuro. Em uma segunda hipótese, esse avanço caminharia para um fim determinado, um momento futuro em que a humanidade gozaria da mais absoluta e plena felicidade, uma utopia que remete à ideia de um paraíso terreno. Para Bury (2011), a consequência apetente do desenvolvimento humano na doutrina do Progresso deveria ser uma condição na qual todos os habitantes do planeta desfrutariam de uma existência perfeitamente feliz no futuro. O mundo não apenas avançaria, mas avançaria em direção a um fim. Nisbet (1980), Shanin (1997) e Benoist (2008) corroboram com essa hipótese, notando que a noção que a ela subjaz baseia-se na comparação entre a ‘História Universal da Humanidade’ e o amadurecimento de um indivíduo desde a infância, passando pela juventude até a maturidade. Porém, como coletividade, o homem jamais experimentaria a senilidade; “abandonando a metáfora, a humanidade jamais irá se degenerar” (JONES, 1961: 14).

Em Condorcet (1796) encontramos um modelo bastante elucidativo dessa premissa. Para o enciclopedista francês, a humanidade avançaria ao longo de nove estágios (pastoral, agrícola, urbano, manufatureiro, etc.) desde uma existência bárbara até o décimo estágio final, onde a perfectibilidade humana seria então plenamente apurada – a Civilização. O caminho da barbárie à Civilização é o Progresso. Este dependeria de leis invariáveis do desenvolvimento, leis estas que emanariam da própria natureza humana. Assim, endossa a premissa básica de Fontenelle, segundo a qual cada geração parte do conhecimento já adquirido pela que a antecedeu, a ele acrescentando novas contribuições

– garantindo o avanço da humanidade. A antecipação do futuro seria possível pela correta compreensão do passado e das leis do desenvolvimento histórico do homem. Esse futuro civilizado, certo e previamente definido, seria marcado pelo total conhecimento da natureza e dos meandros mais profundos do espírito humano. A Civilização, com seu poder unificador, colocaria fim aos conflitos e guerras, às doenças e ao sofrimento. O futuro, na visão vastamente difundida de Condorcet, já seria conhecido, bastando que o homem ajuste os meios necessários para alcança-lo.

Kant também elaborou suas considerações sobre o problema em um trabalho menos conhecido de sua bibliografia, ‘Ideia de uma História Universal com um propósito cosmopolita’. Segundo o filósofo de Königsberg, “todas as capacidades implantadas em uma criatura pela natureza estão destinadas a se desdobrarem completamente e em conformidade com a sua finalidade ao longo do tempo” (1784: 4). Para o canônico autor alemão, a História da Humanidade seria a realização de um plano oculto da natureza para trazer à tona uma constituição política perfeita, um estado das coisas no qual todas as capacidades implantadas no homem pelo meio natural poderiam ser plenamente desenvolvidas. Este desenvolvimento teria sua dinâmica ditada pelo mútuo antagonismo existente entre as diversas capacidades humanas, que em algum momento se assentariam em um estado harmônico por meio de leis gerais que regulariam o seu funcionamento e as suas inter-relações. Esta percepção compartilhada por Condorcet e Kant, posteriormente também endossada por Comte, partia da premissa – vale reiterar - de que o Progresso da humanidade apontava para um fim determinado, para um estado das coisas utópico, um estágio final da História no qual as sociedades alcançariam a felicidade plena, depois de avançar de forma contínua desde um estado primitivo e inferior, ou seja, o estado de natureza.

O último elemento a ser considerado remete à natureza do paulatino avanço da humanidade. Bury nota que, “mesmo que possamos admitir que o curso da civilização tenha permanecido até o momento em uma direção desejada (2011, p. 6)”, ou seja, uma direção na qual constatamos um aumento da ‘felicidade geral’ da humanidade e a diminuição das mazelas que nos acometem, “não podemos provar que essa realização última dependa unicamente da vontade humana” (Idem). Dessa forma, esse avanço poderia chocar-se contra um obstáculo intransponível ou, ainda, ter sido produzido pela Providência ou pelo acaso, o que alijaria o homem das rédeas sobre o seu próprio destino e, portanto, criaria uma cisão entre a ideia de avanço e a de Progresso. Em outros termos, só há Progresso se a humanidade é a senhora de seu próprio destino, a engenheira de seu próprio avanço.

A vertigem da precisão

A maioria dos iluministas não parecia ter muita dúvida de que o destino da humanidade não dependia da Providência ou, ainda, da fortuna. Como vimos em Kant e Condorcet, a partir das duas décadas finais do século XVIII o Progresso havia ido além do resultado da crescente racionalização da sociedade, alcançado o ‘status’ de lei natural. Esse “determinismo universal”, associado à alegoria impressa na fórmula de Laplace – que hipotetizava sobre uma inteligência que, em um momento, pudesse compreender a totalidade da composição e do funcionamento do universo – teve reverberações ainda na década de 1920, com a teoria do conhecimento proposta por Hessen (1980). Segundo o teólogo e epistemólogo alemão, a verdade estaria na equivalência entre o objeto de conhecimento tal qual ele existe na realidade e a imagem desse objeto na consciência de quem o apreende. Contudo, conforme já havia demonstrado Borges (1982), a equivalência entre a realidade per se e a sua racionalização não é possível e, caso fosse, não teria nenhuma utilidade. O conhecimento nunca é uma imagem perfeita do objeto, mas um esquema que o reduz a elementos compreensíveis e manipuláveis dentro de determinadas condições. A ciência é esquema. Ela sempre constrói imagens – imperfeitas, aproximativas e provisórias - que representam o mundo de alguma forma, sem jamais se equivalerem a ele (MOLES, 1995:30).

Ainda na primeira metade do século XX tornou-se bastante claro, para muitos, que a racionalização da vida, o desenvolvimento das ciências, a mecanização, a industrialização, a urbanização, o estreitamento das fronteiras da vergonha e da repugnância, o higienismo e outras práticas diretamente atreladas à adesão ao projeto civilizador como decorrência do progresso da ciência tinham efeitos colaterais nefastos. Pauperização, violência social, neuroses, a desumanização/alienação dos sujeitos, o racismo científico e a barbárie que surgiria com armas cada vez mais arrojadas, além de conflitos bélicos mundiais de proporções absurdas, fizeram com que, na primeira metade do século XX, se tornasse bastante óbvia para a maioria das pessoas a inatingibilidade dos princípios comportados pelo ideal de Progresso.

A fé na ciência começou a desabar quando contraposta com a inequivalência radical entre o futuro projetado pelos teóricos do Progresso e o futuro que de fato foi alcançado. As contradições de fato pareciam insolúveis. A acepção do Progresso como uma lei natural e da racionalização de todos os aspectos da vida como a chave para alcançá-lo já não era mais possível. Esse contexto provocou o ocaso do ideal de Progresso

- emanação maior da ideologia da precisão – provocando um vazio na relação entre o homem, o tempo e o mundo que vários teóricos se prontificaram a desafiar. O existencialismo de Sartre, assim como a proposta de substituição do ‘velho racionalismo’ aqui abordado pela razão vital na filosofia de Ortega y Gasset devem ser compreendidos no interior dessa transformação, dessa radical ruptura epistemológica.

O ideal de Progresso é um grande sistema lógico. Os sistemas lógicos geram estabilidade, criando um território seguro e familiar para que o homem possa se inserir no mundo evitando o sentimento vertigem que resulta de sua ausência. A certeza em relação ao passado e ao futuro é alentadora. Essa ideologia da precisão é caracterizada pela necessidade de articular sistemas. Desde a física newtoniana, as definições ontológicas foram substituídas pelas relações causais. A investigação especulativa sobre a natureza e essência das coisas deu lugar à descrição dos fenômenos e às inferências binomiais do tipo causa-consequência. As ciências funcionariam, nessa perspectiva, como engrenagens bem assentadas umas em relação às outras, formando um maquinismo que, como uma locomotiva, estaria destinado a deslizar sempre adiante sobre um trilho único. Contudo, como vimos, tanto essa lógica sistêmica (que contraposta à imanência das coisas se mostra incapaz de resolver a maioria dos problemas) como as relações sociais que dela se originam não resistem a qualquer inquirição mais séria. Elas só se sustentam sobre um mundo das convenções automáticas, do dado. Quando esse mundo desaba, temos a experiência do absurdo, que corrói as certezas (CAMUS, 2008).

No século XIX, o desenvolvimento do método estatístico prometia fornecer meios seguros e realistas para mensurar e atestar o triunfo do progresso nas mais diversas áreas das atividades humanas. O dogmatismo epistemológico que alimentava as certezas em relação ao futuro foi substituído pelas noções de aleatoriedade, probabilidade e estatística. Até então, prevalecia a crença na assertiva de que “havia um pequeno número de fórmulas matemáticas [...] capazes de descrever a realidade e prever eventos futuros” (SALZBURG, 2009:13). A partir de uma renovada valorização da função erro preconizada por Laplace., a probabilidade buscava dar conta das discrepâncias existentes

entre o observado e o previsto, a partir da manutenção da crença no fato de que todas as coisas são determinadas pelas condições iniciais do Universo.

Porém, no final do século XIX “os erros haviam aumentado em vez de diminuir” (SALZBURG, 2009:14). Os modelos teóricos que sustentavam as mais diversas ciências mostraram-se limitados e insuficientes para dar conta da complexidade da realidade. Assim, a estatística ganhou espaço de maneira muito rápida, pois apresentou-se como um método auxiliar das ciências que se colocou no interstício entre a esperança de previsibilidade – com algum grau de certeza – sobre eventos futuros e a incontornável complexidade e imprecisão de determinados fenômenos, em particular os fenômenos humanos. A distribuição probabilística é, por definição, resultado de uma teoria incompleta, porque reflete a complexidade do próprio mundo que busca esquadrinhar e compreender. Ela fornece dados, instrumentos e previsões para a ação presente com base em possíveis eventos futuros, sem jamais atestar a ocorrência de tais eventos. Assim, como paradigma de orientação, a estatística ofereceu um valioso instrumento para determinadas ciências, ao alinhar as suas práticas com o problema da imprecisão. Contudo, a constituição do sentido histórico orientada para o futuro – o regime moderno de historicidade – não poderia prescindir do pressuposto da certeza.

A ação presente com base em uma possibilidade futura esvaziaria o sentido da ação humana no tempo, a partir do ponto de vista progressista. O agir presente pautado pelo ideal de Progresso, como vimos no sistema de Condorcet, exige uma certeza inabalável no futuro a ser alcançado. Com base em uma cautelosa análise da trajetória de determinada sociedade ao longo dos séculos, seria possível identificar padrões, regularidades e leis que definem as transformações históricas, utilizando-as como referências para ajustar a ação presente e, assim, determinar as condições futuras.

Por isso, embora o paradigma estatístico tenha oferecido elementos valiosos para o estudo de padrões, regularidades e tendências em fenômenos naturais e humanos – dando contributos substanciais em áreas como a economia, a sociologia, a demografia e a genética, entre outros – foi incapaz de retirar a História do embaraço em que se encontrava. Muito pelo contrário ele contribuiu para a chamada ‘crise da História’ de meados do século XX. Afinal, o fim das certezas derivadas do uso do pretérito e do futuro como referências, dando lugar a percepções como a validade das verdades históricas a

partir da construção narrativa e do consenso, objetava a premissa da cientificidade da disciplina.

A História se constituiu, como ciência (aqui associada à noção de História Universal e à premissa da precisão), sobre a promessa de funcionar como uma orientação muito bem marcada e definida para as gerações futuras. Ela, na tradição epistemológica aqui deslindada, seria uma bússola que ora aponta para o passado, por meio do apelo à tradição, ora aponta para o futuro, por meio da crítica, sempre com precisão certeira. Nos dois casos, contudo, o objetivo seria o mesmo: amalgamar o sentido histórico à sua cientificidade, a partir da ideia de que a História existe com a função de nos orientar a partir de procedimentos científicos, quantificáveis, empíricos e comprováveis. A ‘crise da História’ nada mais foi – isso é um lugar-comum - do que a crise da cientificidade histórica amalgamada à premissa do Progresso, e não podemos afastá-la das mudanças epistemológicas ocorridas em meados do século XX e brevemente discutidas no presente texto.

E, se a cientificidade da disciplina hoje é fortemente questionada, nos colocando à beira de um consenso que refuta o seu estatuto científico, nem por isso a História torna- se menos válida ou legítima como instrumento de orientação.. Para que fique claro. O que se buscou aqui não foi reiterar a relação intrínseca existente entre o sentido histórico e a narrativa como instrumento que possibilita a constituição desse sentido (esforço que ocupa um lugar central nos debates da teoria da história contemporânea). Antes disso, buscou-se compreender as razões pelas quais o caráter científico da História – atrelado à noção de Progresso – se tornou indefensável. O ideal de Progresso como truísmo que guiava a experiência temporal humana a partir da adesão à ideologia da precisão soçobrou, e não há muito que se possa fazer sobre isso.

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Notas

1 Hartog (1996) define os ‘regimes de historicidade’ como modos por que se conectam passado, futuro e presente na escrita da história ou, ainda, como um enquadramento acadêmico da experiência do tempo. Os regimes de historicidade, dessa forma, são configurações intelectuais e narrativas que organizam a experiência humana no tempo, dando-lhe sentido e coerência no interior de determinada cultura.
2 Essa contenda foi um acalorado debate que ocorreu no final do século XVIII, opondo os defensores da Antiguidade Clássica como modelo a ser seguido e aqueles que acreditavam que o presente era superior ao passado. Inicialmente concentrada na literatura e no teatro, a contenda posteriormente assumiu um caráter mais amplo, tornando-se central para a compreensão da gênese da noção de Progresso no interior da modernidade.
3 No modelo epistemológico proposto por Laplace, a ‘função erro’ era uma espécie de ‘depósito’ de imperfeições e distorções dos fenômenos observados, o que, segundo ele, seria paulatinamente sanado com o desenvolvimento da Ciência. Ou seja, na perspectiva de Laplace, com o crescente aperfeiçoamento das Ciências, a função erro tornaria-se cada vez menor. O método da estatística que passou a se desenvolver rapidamente no final do séc. XIX, contudo, não podia prescindir da ‘função erro’, definindo-a como uma propriedade atrelada ao grau de imprevisibilidade dos fenômenos observados.
4 Essa orientação associa-se ao ato de narrar. A narrativa transforma o tempo em construto humano; ela se torna significativa no momento em que também se torna indispensável para a existência temporal do homem. E se a intuição do efêmero não pode ser resolvida por meio da ação racional e científica, é porque aponta para um exterior. A refiguração narrativa da nossa existência é, portanto, a chave para a constituição do sentido histórico (DOMINGUES, 1996; RICOEUR, 1994).
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