Dossiê
Da coalizão ao movimento: metamorfoses no presidencialismo brasileiro e a crise da democracia
From Coalition to Movement: metamorphoses in Brazilian presidentialism and the crisis of democracy
Intellèctus
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
ISSN-e: 1676-7640
Periodicidade: Semestral
vol. 21, núm. 2, 2022
Recepção: 10 Agosto 2022
Aprovação: 08 Novembro 2022
Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar as mudanças ocorridas no presidencialismo multipartidário brasileiro e como essas mudanças se coadunam com a atual crise da democracia sentida em escala global. Os dados apontam para uma forte fragmentação do sistema partidário e para uma mudança no perfil da representação no Congresso Nacional. A junção desses fatores, ao fortalecimento das instituições de controle e o crescente descrédito atribuído a classe política, configuraram a partir de 2018 aquilo que se denomina aqui, Presidencialismo de Movimento, fundado em bases distintas do tão propalado presidencialismo de coalizão.
Palavras-chave: Crise da Democracia, Presidencialismo de Coalizão, Presidencialismo de Movimento.
Abstract: The purpose of this article is to analyze the changes that have occurred in Brazilian multiparty presidentialism and how these changes are consistent with the current crisis of democracy felt on a global scale. The data point to a strong fragmentation of the party system and to a change in the profile of representation in the National Congress. The combination of these factors, the strengthening of control institutions and the growing discredit attributed to the political class, shaped, from 2018 on, what is called here Movement Presidentialism, founded on different bases from the so-called coalition presidentialism.
Keywords: Crisis of Democracy, Coalition Presidentialism, Movement Presidentialism.
Introdução
O ciclo dos organismos vivos compreende quatro estágios: (1) nascer, (2) crescer, (3) se reproduzir e (4) morrer. Recentemente vários autores da política comparada tem evocado o quarto estágio do ciclo de vida dos seres vivos para descreverem o atual momento das instituições democráticas em distintas localidades do mundo.
A metáfora do ciclo de vida parece promissora para o entendimento de como a ciência política se apropriou da democracia enquanto objeto de análise. Assim, os estudos dos processos de democratização, sob as diversas vertentes teóricas, (ALMOND E VERBA, 1963, O’DONNELL; SCHMITTER E WHITEHEAD, 1986; HUNTINGTON, 1994), nos remete a ideia da
formação (nascimento) dos regimes democráticos. Os estudos relacionados a qualidade da democracia (DIAMOND, MORLINO, 2004; MORLINO, 2014), nos mostram como as práticas democráticas ganham corpo (crescem) nas determinadas localidades. Já os trabalhos sobre inovações democráticas (FUNG E WRIGTH, 2003; AVRITZER, 2012; MANSBRIDGE; PARKINSON,
2012) nos mostram que a reprodução e a intensificação das práticas democráticas, propiciaram políticas públicas mais informadas e inclusivas. Por fim, a atual conjuntura política tem legitimado trabalhos que evocam essa dimensão finalística dos arranjos democráticos atuais. A partir dessa curta genealogia da teoria democrática algumas perguntas parecem inevitáveis. Até que ponto a lógica inexorável da natureza se aplica as democracias? Ou seja, se o “fim” não uma questão de si, mas uma questão de quando?
Mesmo se constituindo enquanto organismo vivo, não há evidências para um fatalismo das instituições democráticas. Os processos de crise, ruptura, ou mesmo de “morte” são construções históricas e políticas. E é nesse diagnóstico que o presente trabalho está interessado. “Como as democracias morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, “O povo contra a democracia”, de Yasha Mounk, “Como a democracia chega ao fim” de David Runciman e “Crises of Democracy” de Adam Przeworski, são expressões contemporâneas do esforço analítico de diferentes estudiosos, em ampliar a massa crítica dos diagnósticos sobre as perspectivas atuais das democracias. As experiências recentes de países como, Hungria, Filipinas, Bolívia, Venezuela e Estados Unidos apontariam para um processo de esgarçamento das instituições democráticas e o consequente questionamento dos fundamentos da democracia liberal. A partir desse diagnóstico perguntas surgem como inevitáveis. O Brasil se enquadra nesse cenário? Os choques a que foi submetida a democracia brasileira foram suficientes para abalarem suas estruturas?
Qual o grau de resiliência da democracia brasileira aos constantes embates pelos quais passamos no passado recente?
No prefácio à edição brasileira de “O povo contra a democracia”, Yasha Mounk caracteriza a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 como o evento mais significativo da república brasileira desde a queda da ditadura militar. Na perspectiva do autor, o questionamento recorrente às instituições da democracia liberal, por parte do presidente, aponta para a superação do processamento democrático dos conflitos políticos e a instauração de uma ordem pautada pela criminalização das oposições e pelo desrespeito aos poderes constituídos.
É nesse debate que o presente trabalho se insere. Assim, nas páginas que se seguem, defende-se a ideia que o Presidencialismo de Coalizão, sustentáculo da democracia brasileira durante 30 anos, não é a prática de relacionamento entre os poderes adotada pelo atual presidente. A lógica da “Coalizão”, pautada na estabilidade e na institucionalidade para a produção de políticas públicas, foi substituída pela lógica do “Movimento”, onde a execução da agenda governamental não é o objetivo. O foco está no fortalecimento de uma rede de apoiadores que seriam responsáveis por fortalecer um projeto específico de poder. O chamado aqui de Presidencialismo de Movimento apresenta quatro características básicas, Polarização, Mobilização, Intolerância, Antipolítica.
Assim, para caracterizar as metamorfoses do presidencialismo brasileiro e como isso se relaciona com a atual crise da democracia, o presente trabalho está dividido em seis seções. A primeira discute a relação entre os sistemas de governo e democracia. A seguinte apresenta os fundamentos e as mudanças institucionais pelas quais o presidencialismo de coalizão brasileiro passou. A terceira discute alguns aspectos fundantes da fragilidade da democracia brasileira. A quarta analisa os resultados das eleições de 2018. A quinta se atém ao surgimento do chamado Presidencialismo de Movimento. E a sexta procura relacionar as dimensões do Presidencialismo de Movimento à crise da democracia. Por fim são apresentadas as considerações finais.
1. Sistemas de Governo e Democracia
O debate entre sistemas de governo e democracia orientou grande parte da produção acadêmica da ciência política contemporânea. As primeiras análises destacaram a grande dessemelhança entre os processos de tomada de decisão e as cadeias de delegação entre os sistemas presidencialistas e parlamentaristas. O cerne do debate está na separação de poderes,
enquanto no parlamentarismo a harmonia seria a lógica, já que o poder Executivo, se constitui a partir do Legislativo. O conflito definiria o presidencialismo, já que os poderes se constituiriam de maneira autônoma. Sartori (1997) enfatiza essa dicotomia na medida em que destaca a discricionariedade dos presidentes em nomear e demitir ministros, apontando para uma sobreposição do chefe do Executivo sobre os demais atores políticos. Esse caráter deletério da unipessoalidade presidencial também destacado por Lijphart (1992).
O crítico mais fervoroso dos sistemas presidencialistas foi o cientista político espanhol Juan Linz (1990). Na acepção do autor os presidentes possuem mandatos fixos que independem da confiança do parlamento, a partir dessa engenharia institucional existiria uma competição por legitimidade entre os poderes. A principal consequência seria o desincentivo a formação de governos de coalizão. Inversamente, em sistemas parlamentaristas a interdependência entre os poderes fomentaria a composição de uma agenda única de políticas públicas. Fato que evitaria medidas unilaterais do chefe do Executivo e a passividade do Legislativo às propostas formuladas pelo presidente.
Shugart e Carey (1992) acrescentam outra dimensão ao conflito latente entre Executivo e Legislativo, sob a égide do presidencialismo. O elemento indutor da não cooperação estaria vinculado aos poderes legislativos dos presidentes. Assim, presidentes fortes seriam estimulados a ação unilateral. Na América Latina o incentivo a ação unilateral dos presidentes seria informado pela baixa disciplina partidária dos atores no legislativo e a não predisposição destes para se dedicarem a temas de cunho nacional. Mainwaring (1993) incluiu ao arranjo deletério dos presidencialismos latino-americanos o multipartidarismo. Segundo o autor a lógica não cooperativa entre os poderes, o desincentivo a formação de coalizões e o multipartidarismo seriam o alicerce das ações unilaterais dos presidentes.
Se olharmos especificamente para o caso brasileiro, o debate sobre a relação entre sistemas de governo e democracia se fortaleceu em nossa academia a partir do estabelecimento da Constituição de 1988 e como esta formatou o arcabouço institucional da nova estrutura democrática que se inaugurava. O trabalho que funda essa dimensão diagnóstica do novo arranjo, é o trabalho de Abranches (1988). O autor aponta para o caráter peculiar do presidencialismo brasileiro, que ao combinar a representação proporcional, o multipartidarismo e o presidencialismo, abriria as portas para a formatação de um governo baseado em “grandes coalizões”. Se formaria assim, o chamado Presidencialismo de Coalizão. Essas “grandes coalizões”
na acepção do autor, teriam um carácter bidimensional, uma dimensão partidária e ou outra dimensão regional, está pautada na relevância histórica das lideranças regionais. Assim, o federalismo seria a engrenagem que explicaria o superdimensionamento das coalizões no presidencialismo brasileiro. Os presidentes constituiriam seus gabinetes tanto a partir de critérios partidários, quanto a partir de critérios regionais. As consequências desse arranjo seriam a instabilidade das decisões governativas e a perda de qualidade das políticas públicas. Assim, a natureza heterogênea das coalizões trariam para o núcleo do poder constantes crises políticas.
Nesse sentido, trabalhos imediatamente posteriores a Abranches (1988) apresentaram certa descrença sobre o futuro da democracia brasileira sobre o égide do presidencialismo de coalizão. O trabalho de Lamounier (1996) é um exemplo desse pessimismo institucional que rodeava alguns estudiosos da política brasileira. Segundo o autor a permissividade do sistema eleitoral proporcional; o sistema partidário, com elevado fracionamento e a não existência de controles verticais no interior de cada partido; a proporcionalidade partidária que orienta a ocupação de postos no interior do Legislativo e a estrutura federativa que confere autonomia aos três entes, estariam no cerne da debilidade institucional brasileira. Assim, a constituição de vários atores com poder de veto posicionaria a democracia brasileira mais afeita ao bloqueio do que a tomada de decisões.
As afirmações expostas acima foram fruto de intenso debate acadêmico, especialmente a partir de meados da década de 1990. Uma segunda geração de estudos problematizou, não apenas a capacidade preditora da variável “sistemas de governo” na consolidação, ou não, dos regimes democráticos, como também questionou a incapacidade governativa do presidencialismo de coalizão. Esse debate será o tema da próxima seção.
2. Estabilidade e Previsibilidade: os fundamentos do presidencialismo de coalizão no Brasil
Como dito anteriormente, segundo Linz (1990) a competição entre os poderes inviabilizaria a formação de governos de coalizão em sistemas presidencialistas. Estudos mais recentes apontaram justamente o contrário. Cheibub, Przeworski e Saiegh (2004) mostraram que a formação de governos em sistemas presidencialistas e parlamentaristas não segue uma
lógica distinta. Os autores demonstraram empiricamente que a organização do gabinete para a obtenção de apoio no parlamento é um mecanismo presente nos dois sistemas.
A possibilidade de formação de governos de coalizão sobre a égide do presidencialismo brasileiro já estava presente no trabalho fundante de Abranches (1988). Porém, a questão da estabilidade ainda era um ponto em disputa. Os trabalhos de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi apontaram para uma governança não deletéria dos fundamentos do presidencialismo multipartidário brasileiro. As prerrogativas constitucionais conferidas ao presidente. e a centralização dos trabalhos legislativos nas lideranças partidárias, colocariam o chefe o Executivo em posição privilegiada na coordenação das ações governamentais. Assim, os poderes de agenda do presidente são apontados como mecanismos de resolução de conflitos internos a coalizão e viabilizariam um pacto cooperativo entre os poderes na formulação e implementação de políticas públicas.
Os trabalhos de Figueiredo e Limongi demonstraram que a ingovernabilidade imputada aos fundamentos do presidencialismo de coalizão brasileiro não encontrava ancoragem na realidade. Os recursos à disposição do chefe do Executivo e a centralização do processo legislativo, conduziam a uma governança partidarizada das ações governamentais. Assim, a formação de coalizões não só era possível, como foi o fator estabilizador do sistema político brasileiro. Partidos passaram a integrar coalizões presidenciais com o objetivo de influenciar a agenda do governo (FREITAS, 2016).
Assim, cinco conclusões podem ser abstraídas do cenário exposto pelos trabalhos de Figueiredo e Limongi:
- Conclusão 1: A formação de coalizões estabilizou o sistema político brasileiro;
- Conclusão 2: O Executivo orientou o processo produção legal;
- Conclusão 3: O partidos negociam com o Executivo em bases partidárias;
- Conclusão 4: A Coalizão passou a ser a mola mestra da formulação e implementação de políticas públicas;
- Conclusão 5: As políticas públicas eram o foco da ação governamental. Em uma ação consertada entre o Executivo e a Coalizão.
Porém, como sabemos as instituições são dinâmicas e muitos dos arranjos descritos por Figueiredo e Limongi (1999) sofreram modificações incrementais que mudaram a lógica constitutiva do presidencialismo de coalizão brasileiro. A discussão dessas mudanças é o tema da próxima subseção.
Porém, como sabemos as instituições são dinâmicas e muitos dos arranjos descritos por Figueiredo e Limongi (1999) sofreram modificações incrementais que mudaram a lógica constitutiva do presidencialismo de coalizão brasileiro. A discussão dessas mudanças é o tema da próxima subseção.
2.1. Presidencialismo de coalizão e mudanças institucionais
O trabalho de Mahoney e Thelen (2010) aponta para uma chave analítica importante para o entendimento da mudança institucional. Os autores partem da ideia de que as instituições são mecanismos distributivos de poder. Assim, o conflito distributivo entre os atores permite que mudanças graduais sejam levadas a cabo. O modelo proposto aponta para um componente dinâmico nas instituições que permite que hajam mudanças, ainda que graduais, sobretudo quando há alterações na força dos atores políticos.
O livro “O Presidencialismo de Coalizão em Movimento”2 procurou captar esses componentes dinâmicos que levaram a mudanças nas estruturas do presidencialismo de coalizão e a uma reinterpretação do modus operandi de sistema político brasileiro. Alguns aspectos merecem destaque por apresentarem diálogo direto com as interpretações de Figueiredo e Limongi (1999):
Nesse sentido, o trabalho de Guimarães et. al. (2019) é um bom exemplo. Os autores apresentam um quadro detalhado das principais mudanças ocorridas a partir do governo de Dilma Rousseff:
1) Cargos
- Redução da discricionariedade dos partidos na indicação de ocupantes dos cargos, em razão de uma centralização da palavra final sobre nomeações na Casa Civil;
- redução do número de cargos de direção e assessoramento superior disponíveis para indicações partidárias em razão do aumento dos cargos ocupados por servidores efetivos.
2) Compartilhamento de Políticas Públicas
- Centralização de políticas públicas no Partido dos Trabalhadores (PT). Fato que mitiga a participação dos parlamentares nos processos de formulação de políticas públicas.
3) Orçamento
- Redução na execução orçamentaria das emendas individuais ao orçamento federal;
- Implantação do Orçamento Impositivo que retira do poder executivo a discricionariedade na execução das emendas.
4) Poderes legislativos do presidente
- Novas regras para a edição de Medidas Provisórias (MP). As novas regras restringiram a possibilidade de reedição e os temas de sua abrangência, fragmentaram o processo de negociação, deslocando do relator, para a comissão mista o cerne do processo de discussão da matéria. E ampliaram o poder de agenda do presidente da Câmara dos Deputados ao permitir que ele defina o que é estranho as medidas provisórias em apreciação.
É importante destacar que essas quatro dimensões não esgotam nas mudanças ocorridas no presidencialismo de coalizão brasileiro. Mas apontam para uma mudança na relação Executivo/Legislativo. Se nos primórdios o Executivo era o autor protagonista, mais recentemente o Legislativo se coloca com ator privilegiado (ALMEIDA, 2015).
Sob esse prisma, uma pergunta se coloca como chave no atual cenário. Até que ponto as mudanças ocorridas em nosso presidencialismo de coalizão, que propiciaram um poder Legislativo mais atuante, contribuíram para o atual estado da democracia brasileira? Em linhas gerais o parlamento pode funcionar como fator desestabilizador, tal qual foi sob o comando de Eduardo Cunha, ou como fator estabilizador tal se coloca sob o controle de Rodrigo Maia. A priori não há nada que vincule o atual momento da democracia brasileira ao protagonismo político do poder Legislativo. Assim, a crise pela qual passamos pode tangenciar o parlamento, mas este não é núcleo desagregador. Isso não significa dizer que a governança de nosso presidencialismo multipartidário seja algo trivial. Muito pelo contrário, ela se tornou muito mais complexa. Porém, os dilemas da democracia brasileira parecem estar em outras dimensões.
3. O fim de um ciclo
A estabilidade do presidencialismo de coalizão brasileiro foi colocada à prova a partir de junho de 2013. Manifestantes ocuparam as grandes cidades brasileiras. Porém, uma pergunta aparece sem resposta até o momento, o que levou a chamada “explosão das ruas” naquele ano. O aumento das tarifas de transporte público na cidade São Paulo, os efeitos colaterais dos gastos exorbitantes com a estrutura para a Copa do Mundo que se vislumbrava, a debilidade dos serviços públicos, a sensação de privação relativa de uma nova classe média que se formará. Por
mais paradoxal que possa parecer, todos esses fatores explicam e ao mesmo tempo não explicam 2013. A complexidade do fenômeno é algo intrigante, diferentes grupos, com ideologias distintas e reivindicações difusas se colocaram contra o poder constituído. O fato inconteste é que a partir desse momento o sistema político brasileiro começou a dar sinais claros de fragilidade.
Contudo, as eleições de 2014 caminharam dentro da normalidade institucional, apesar do forte embate entre as candidaturas, o pleito chega ao final com a reeleição de Dilma Rousseff. A partir de então o consenso democrático que orientou as elites políticas brasileiras foi colocado de lado e um certo pretorianismo institucional passou a orientar as ações de vários atores políticos. A contestação do resultado eleitoral pela chapa derrotada é prova disso. A aceitabilidade dos resultados eleitorais, pilar básico de qualquer arranjo democrático, já não era realidade no Brasil.
Assim, o desapreço das elites políticas pela democracia, os escândalos de corrupção que se avolumavam, o fortalecimento da operação Lava Jato, sem falar na forte crise econômica, consubstanciada pelo elevado déficit fiscal, levaram a formação de uma forte coalizão social contrária ao governo que se instalará em 2014. A partir daí novas manifestações foram organizadas, desta feita com objetivos claros. A anatomia do movimento estava dada, grandes manifestações de rua, panelaços, hostilidades misóginas a presidenta e o consequente questionamento a legitimidade do governo. A materialização desses atos se daria com o impeachment em 2016.
Nesse sentido, um ponto chave para o entendimento do processo que levou ao fim do ciclo de estabilidade da democracia brasileira, passa pelo entendimento da ação de instituições como o Poder Judiciário e o Ministério Público. As mudanças ocorridas em um passado recente, vinculadas a autonomia dessas instituições ajudam a entender dada relevância. De início é importante destacar que a Constituição de 1988 instituiu um Ministério Público (MP) accountable, ou seja, a instituição foi dotada de uma discricionariedade limitada. O “princípio da legalidade3” e a ideia do “promotor-natural4” são exemplos desses mecanismos de chechs and balances e discricionariedade limitada que atuavam sobre as ações do MP no Brasil (KERCHE, 2018).
Ao longo dos governos petistas o MP ampliou o seu empoderamento institucional. Suas ações se tornaram mais discricionárias, a formação de “forças-tarefas”5, o foco em ações criminais, em detrimento das civis para o combate a corrupção e a “Lei da Delação Premiada” (Lei 12850/13), são exemplos dessa robustez institucional (AVRITZER & MARONA, 2017). Esse processo resultou naquilo que Marona e Barbosa (2018) chamam de protagonismo judicial que tem como decorrência a diminuição no grau de accountability entre as instituições do sistema de justiça e a redução das fronteiras institucionais existentes entre os atores constituídos.
A operação Lava Jato é a expressão reflexa desse novo momento do Ministério Público. A organização da Força Tarefa em 2014 tinha como foco o combate a corrupção e ao crime organizado. Porém, suas ações se diferenciaram em muito da lógica estabelecida pela Constituição de 1988. O controle político sobre suas ações foi solapado e foi instituído por um populismo penal, alicerçado na cobertura midiática do cotidiano da operação (MARONA & BARBOSA, 2018). Assim, o combate à corrupção levado a cabo pela Lava Jato se deu fora da arena política. As burocracias judiciárias drenaram a legitimidade dos atores democraticamente eleitos, fato que retirou o conflito político da esfera democrática e o levou para esfera penal.
A ação do Poder Judiciário também foi informada por esse novo momento das instituições de controle na democracia brasileira. A atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) nos últimos anos é um exemplo latente. Segundo Hubner (2019) a atuação do STF na atualidade se dá sobre o binômio “ativismo judicial” e “judicialização da política”. Uma corte ativista é uma corte que constantemente transpassa o imperativo da divisão de poderes. Já a transferência do conflito político para a arena jurídica, é o que define o fenômeno da judicialização. O que se percebe é uma incapacidade da sociedade em processar seus conflitos políticos em arenas próprias. Nesse sentido, a ação superdimensionada do STF contribui para a retirada de legitimidade das instituições representativas com forte impacto na democracia brasileira.
Assim, as manifestações multifacetadas de 2013, o questionamento ao resultado do pleito de 2014, o pretorianismo institucional de parte da elite política, até então responsável pelo equilíbrio democrático, uma crise fiscal sem precedentes, denúncias de corrupção, o empoderamento político das instituições do sistema de justiça e a consequente perda de legitimidade dos atores políticos, esses pontos ajudam no entendimento da crise atual da
democracia brasileira. Suas consequências foram sentidas nas eleições de 2018, e esse será o tema da próxima seção.
4. As Eleições de 2018
Se não bastasse todo o cenário descrito na seção anterior, cenário este, que impactou diretamente o processo eleitoral, do ponto de vista institucional as eleições de 2018 operaram em bases distintas dos pleitos anteriores. Duas medidas merecem destaque: (1) a redução do período de campanha de 90, para 45 dias; (2) o fim do financiamento empresarial das campanhas eleitorais. O impacto dessas duas medidas nos resultados eleitorais é algo de difícil mensuração. Contudo, a lógica de se fazer campanha sofreu uma forte modificação. O Horário Gratuito de Propagando Eleitoral (HGPE) também foi reduzido de 45 para 35 dias. E as redes sociais passaram a fazer parte das estratégicas para alcançar os eleitores.
Com uma nova formatação institucional e com um sentimento forte de antipolítica, as eleições de 2018 apresentaram resultados que levaram a uma nova formatação do sistema político brasileiro, com a derrota veemente de alguns atores e o surgimento de novos, todos como subproduto da realidade que se impunha. Alguns resultados merecem destaque: (1) a desestruturação do sistema partidário; (2) a vitória de Jair Bolsonaro.
4.1. A desestruturação do sistema partidário
O resultado eleitoral de 2018 rompeu com a estabilidade da disputa presidencial no Brasil. Desde 1994, PT e PSDB protagonizaram as disputas presidenciais. E esse protagonismo organizou a política brasileira em torno dessas legendas, conferiu previsibilidade as escolhas e institucionalizou o sistema partidário brasileiro. Contudo, a partir de 2018 o quadro partidário foi profundamente alterado, propiciando uma nova correlação de forças entre os partidos políticos. O primeiro ponto a se destacar é que a eleição de 2018 apresentou uma alta taxa de renovação nas duas casas legislativas.
O gráfico 1 mostra o comportamento da taxa de renovação, medida pela razão entre o número de novos deputados e o número de cadeiras em disputa. Com relação a eleição para a Câmara dos Deputados a eleição de 2018 apresentou a maior taxa de renovação, desde a eleição de 1994, o indicador chegou a 52%. Com relação ao Senado a taxa de renovação também atingiu
seu maior níveis, desde a eleição de 1994. A eleição de 2018 apresentou um valor de 58% de renovação.
O aumento das taxas de renovação no Congresso Nacional a partir de 2018 configurou um realinhamento das forças no parlamento brasileiro. Os dados da tabela 1 apresentam um enfraquecimento parlamentar de partidos tradicionais, tais como, MDB, DEM e PSDB. As eleições de 2018 desidrataram o centro-político brasileiro, o maior exemplo dessa desidratação é o caso de MDB, o partido fator estabilizador da democracia brasileira até 2015, elegeu a maior bancada nas eleições de 2014, 77 deputados, já em 2018 apenas 34 parlamentares.
Realinhamento Partidário na Câmara dos Deputados
Fonte: Abranches (2018)Os dados da tabela 1 apontam para outro dado marcante do processo eleitoral em 2018, o aumento da fragmentação partidária. Em 2018 os cinco maiores partidos obtiveram apenas 41% das cadeiras, em comparação ao pleito do 1994 onde os cinco maiores partidos detinham 70% das cadeiras, esses dados apontam para uma crescente fragmentação da representação. Esse ponto vai ao encontro daquilo que foi diagnosticado por Melo (2019), segundo o autor a Câmara vem sendo composta nos últimos anos por um grande número de partidos médios. Esse fato gera a necessidade de se formar coalizões mais amplas, fato que fragiliza o partido formador e potencializa o poder de negociação desses partidos.
Nesse sentido, o gráfico 2 apresenta o aumento no número de partidos representados na Câmara dos Deputados, nos respectivos anos eleitorais. Em 1994, no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) 21 partidos conseguiram representação na câmara. Já em 2018, 31 partidos se fizeram representar.
No Senado a situação não é diferente. Apesar da representação se dar pela via majoritária, o número de partidos representados também aumentou fortemente. Em 1994 apenas 10 partidos conseguiram representação. Já em 2018, 22 partidos se fizeram representar em nossa casa federativa.
Os custos institucionais do aumento da fragmentação partidária, ainda não foram mensurados pela literatura. Por outro lado, não há razão para supor a neutralidade desse evento. Do ponto de vista intuitivo a pulverização de pequenos e médios partidos, dificulta a formação de coalizões parlamentares e reduz, por exemplo, os efeitos positivos do Colégio de
Líderes, fator estabilizador do sistema, na medida amplia os atores em negociação e o poder de veto dos mesmos (FREITAS E PERES, 2019). A partir do enfraquecimento do Centro, a Direta se coloca como força política importante, e há um processo de mudança no padrão de recrutamento político.
Bancadas Informais (2018): Ideologia
Elaboração própria com base em dados do DIAP.Os dados da Tabela 3 apresentam o status das ocupações na Câmara dos Deputados. As eleições de 2018 marcaram o crescimento de bancadas informais ligadas ao setor de segurança e aos evangélicos, esses grupos se alinharam fortemente a candidatura de Jair Bolsonaro. Assim, através dos dados é possível afirmar que o crescimento dos setores da Direita e da Extrema-Direita está ligado ao fortalecimento desses grupos.
Bancadas Informais (2018): Ocupação
Elaboração própria com base em dados do DIAP.A análise dos resultados eleitorais para o Congresso Nacional em 2018, já traziam em seu bojo qual seria o signo da eleição presidencial. O pleito para o maior cargo da república foi decidido em dois turnos. Com a prisão de Lula da Silva, devido aos desígnios da Operação Lava Jato, o caminho para a vitória de Jair Bolsonaro estava pavimentado, sob um discurso de extrema-direita, o candidato do até então inexpressivo PSL (Partido Social Liberal) se colocou como outsiderao sistema político, mesmo tendo uma carreira longeva de Deputado Federal. O então candidato Jair Bolsonaro se aproveitou do sentimento antipolítica que assolava bom parte da sociedade brasileira e venceu as eleições, inaugurando um novo momento na política brasileira.
4.2. A vitória de Jair Bolsonaro
A vitória de Jair Bolsonaro confirmada em 28 de outubro de 2018, sacramentou o desalinhamento partidário do sistema político brasileiro. A polarização PT e PSDB, marca das eleições presidenciais por 20 anos, não era mais realidade. O polo petista ainda conseguiu disputar o segundo turno, porém, os tucanos foram relegados a um plano subterrâneo, já que seu candidato apresentou um desempenho pífio nas urnas, mesmo contando com o maior tempo de televisão.
Assim, com a irrelevância do tempo de televisão, a eleição de Jair Bolsonaro inaugurou uma nova forma de se ganhar eleições. Com uso abundante das redes sociais, meio pouco regulado, fato que possibilita a veiculação de opiniões e práticas extremadas, o candidato cultivou e angariou seguidores e construiu uma forte polarização contra seus adversários, que se tornariam inimigos.
Segundo Abranches (2018), o contexto de polarização radicalizada levada a cabo por Bolsonaro no processo eleitoral pode ser entendido em duas dimensões. Uma delas é a ideia de Polarização Afetiva marcada, pelas manifestações de ódio com forte conteúdo emocional, essa junção gerou um sentimento de pertencimento aos que aderissem ao movimento bolsonarista. A outra dimensão segundo o autor, é o Comportamento Antipolítico, no qual o outro deve ser eliminado, adversários se tornam inimigos, nesse contexto as identidades passam a se sobrepor às preferências. Assim, o que temos é a formação cada vez mais evidente de “polos diametralmente opostos na interpretação da sociedade, da religião e da política” (Abranches, 2018: 16). As identidades formadas sob a égide da polarização afetiva colocam os debates
programáticos em segundo plano. Vide que o candidato eleito em 2018 não foi submetido ao contraditório, suas propostas não foram publicizadas e sequer debatidas pelos demais candidatos.
Nesse sentido, a polarização radicalizada levada a cabo pela candidatura de Jair Bolsonaro e sua articulação com aspectos estruturais e conjunturais do sistema político brasileiro, nos ajudam a entender, não apenas o processo eleitoral, com também o governo que se instalara.
Aspectos estruturais e conjunturais da eleição de 2018
Fonte: Elaboração própriaContudo, a lógica empregada na campanha foi levada para o Palácio do Planalto a polarização, marca da disputa eleitoral se configurou com prática de governo.
Os fundamentos do governo Jair Bolsonaro
Fonte: Elaboração própriaUm diagnóstico inicial nos mostra que as práticas políticas do atual governo se fundam na polarização como ferramenta de ação política. Ocorre um desapreço pelas políticas públicas e
um crescente processo de desinstitucionalização das ações governamentais, áreas como: meio ambiente, educação, saúde, direitos humanos e política externa, são bons exemplos. Inicialmente o governo não se ancorou em partidos políticos, a previsibilidade e a estabilidade das práticas do presidencialismo de coalizão não foram adotadas. A formulação de políticas públicas foi subjugada a um segundo plano. A atenção está na mobilização constante dos apoiadores, estes sim, o foco das ações governamentais.
A partir do exposto acima algumas perguntas precisam ser respondidas. Qual a lógica da atuação política do atual governo? Qual o impacto das práticas do governo Bolsonaro nas instituições da democracia brasileira? Qual a relação desse governo com os fundamentos da crise da democracia, apresentada por estudos recentes? Essas perguntas serão respondidas nas próximas seções.
5. A metamorfose no presidencialismo brasileiro
Antes de mais nada, é importante destacar que os resultados até aqui colocados, apontam para uma complexidade da governança do presidencialismo de coalizão brasileiro. Os processos de tomada de decisão passaram a envolver mais atores e mais arenas com poder de veto. O foco principal dos governos de coalizão que se instalaram no Brasil desde 1994 estava na formulação de políticas públicas. Presidentes eleitos formam coalizões para implementarem sua agenda e partidos entram em governos para viabilizarem suas políticas. Esse acordo gerou estabilidade e previsibilidade às decisões governamentais e promoveu importantes ganhos em políticas públicas para a sociedade brasileira.
Segundo Freitas (2016) uma coalizão governamental exige:
- Um acordo interpartidário, onde o Executivo divide seu poder ao distribuir pastas ministeriais para dois ou mais partidos;
- Um acordo intrapartidário entre o líder do partido que recebeu uma pasta e os membros deste partido.
Assim, o presidencialismo de coalizão se institucionalizou no sistema política brasileiro, a partir de um acordo partidário. Nos últimos 20 anos de nossa democracia a formação de coalizões sob a égide do presidencialismo foi tônica da formação de governos. Porém, essa não é a lógica do grupo que chegou ao poder em 2018. O atual presidente mostra que é possível
construir um governo a partir de outras bases, que não as canônicas do presidencialismo de coalizão. A mola mestra da coalizão são os partidos e não os indivíduos. Quando os partidos são subjugados ao arranjo governativo, um novo paradigma se forma. Assim, o constante processo de desinstitucionalização das ações governamentais, o desapreço pela formulação políticas públicas, o incentivo a um processo deletério de polarização e uma constante mobilização dos apoiadores, constituiu uma nova prática governativa, chamada aqui de “Presidencialismo de Movimento”, formatado em quatro dimensões:
O Presidencialismo de Movimento
Fonte: Elaboração própria5.1. As quatro dimensões do fenômeno
Dimensão 1: Polarização
A polarização é a alma do “Movimento”. Ela formata o “nós contra eles” e constrói a lógica de ressentimentos que definem suas ações;
Dimensão 2: Mobilização Constante
A mobilização constante é a força motriz. Ela articula os membros e coloca a engrenagem em movimento;
Dimensão 3: Intolerância Política
A intolerância política é o mecanismo de vazão da polarização e da mobilização. Assim, a intolerância é alimentada pela polarização e efetivada pela mobilização;
Dimensão 4: A Antipolítica
Antipolítica é a expressão reflexa pelo desprezo a democracia, suas conquistas, seus atores e suas instituições.
Claramente as quatro dimensões do “Presidencialismo de Movimento” apontam em sentido contrário a lógica democrática. Elas acatam frontalmente um binômio importantíssimo para a democracia, a díade competição/participação. A essência competitiva da democracia é subvertida pela constante deslegitimação dos adversários, fato que compromete a essência participativa do processo democrático. Tendo como referência o impacto do Presidencialismo de Movimento nas instituições democrática, a próxima seção será dedicada a qualificar esse impacto. Para tanto abre-se um diálogo com a literatura sobre a crise da democracia na atualidade. Pretende-se discutir como a operação do Presidencialismo de Movimento se adequa à dicotomia ruptura/degradação presente em diversos trabalhos.
6. O Presidencialismo de Movimento e a Crise da Democracia
Como apontado na introdução do presente trabalho, vários estudiosos têm se dedicado a produção de diagnósticos que ajudem no entendimento da crise pela qual a democracia passa em escala global. A partir do exame comparado de diferentes processos, trabalhos como o de Levitsky e Ziblatt (2018), Mounk (2018), Runciman (2018) e Przeworski (2019), são bons exemplos desses esforços.
Adam Przeworski cientista político polonês, radicado nos Estados Unidos, e muito influente na academia brasileira se dedica a décadas ao entendimento dos processos de democratização e de ruptura democrática. Seus trabalhos têm defendido a capacidade preditora de variáveis como, riqueza, inflação, desigualdade, e renda, na consolidação das instituições democráticas. Em sua obra mais recente, “Crises of Democracy”, esses aspectos permanecem, porém, acrescidos de uma visão histórica dos processos que levaram a ruptura democrática em países como a Alemanha da República de Weimar e o Chile de Salvador Allende. Um dos focos do autor está na análise de como os processos de ruptura podem nos ajudar na compreensão dos aspectos definidores da atual crise da democracia.
Em uma visão complementar a de Przeworski (2018), atores Levitsky e Ziblatt (2018), Runciman (2018) e Mounk (2018) trabalham com o conceito de degradação. Que se liga a ideia de uma erosão lenta das práticas e das instituições democráticas. Assim, na visão desses autores,
os colapsos brutais, consubstanciados pelos golpes de estado, seriam substituídos pelo ataque contínuo, constante e dosado aos fundamentos da democracia liberal. Com efeitos tão deletérios quanto as rupturas.
Nesse sentido, a lógica de ação do Presidencialismo de Movimento é claramente pautada pela degradação, o foco de suas ações está no contínuo e perene ataque as instituições democráticas. A formação de coalizões se tornou desnecessária. Ainda mais, com o deslocamento do mediano do Congresso Nacional para a direita. A anatomia do Movimentose dá pela polarização, pelo ressentimento gerado, pelo constante embate institucional. É obvio que as instituições da democracia liberal vão tentar contê-lo. Porém, é esse embate que o alimenta. Sob esse prisma, a democracia sempre perde.
Ao tomarmos como referência o debate entre ruptura e deterioração, o Presidencialismo de Movimento é a expressão reflexa da deterioração. A ruptura seria o início do fim, pois estancaria a polarização e eliminaria o ressentimento.
Considerações finais
O presente trabalho procurou caracterizar as mudanças ocorridas no presidencialismo multipartidário brasileiro e como essas mudanças, materializadas pelas eleições de 2018, se coadunam com a atual crise de democracia sentida em escala global. A personificação desse processo no Brasil se dá pelo aqui chamado Presidencialismo de Movimento. Entendido aqui como uma prática, caracterizada pelo desapreço as instituições democráticas. O Presidencialismo de Movimento corroeu o tão propalado presidencialismo de coalizão e seus fundamentos ligados à previsibilidade, à institucionalização e às políticas públicas. A polarização, a mobilização, a intolerância e a antipolítica dão anatomia a essa nova configuração tão deletéria à nossa democracia.
Assim, algumas conclusões podem ser abstraídas desse processo:
Conclusão 1: O sistema de governo não é um bom preditor para a consolidação das instituições democráticas. Vide os resultados do presidencialismo de coalizão brasileiro nos últimos 20 anos;
Conclusão 2: O presidencialismo de coalizão passou por mudanças institucionais importantes. Porém, não há evidenciais de que essas mudanças expliquem o processo de deterioração democrática pelo qual estamos passando;
2013;
Conclusão 3: Os sinais de fragilidade da democracia brasileira são sentidos a partir
Conclusão 4: O protagonismo de instituições como o Ministério Público e Supremo
Tribunal Federal auxiliaram na corrosão da classe política. Fato tão deletério para as instituições democráticas;
Conclusão 5: As eleições de 2018 implodiram o sistema partidário. Propiciaram a crescimento político da direita e da extrema-direita;
Conclusão 6: A eleição de Jair Bolsonaro marca uma mudança profunda no presidencialismo multipartidário brasileiro;
Conclusão 7: O processo de deterioração da democracia brasileira é visível, constante e dosado.
A partir das conclusões apresentadas um novo ferramental teórico e metodológico deve ser criado pelos estudiosos brasileiros. Analisar o Presidencialismo de Movimento a partir dos paradigmas do presidencialismo de coalizão pode obscurecer aspectos importantes dessa nova configuração. Infelizmente o Movimento corrói nossa democracia e nossas teorias.
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Notas