Artículo de investigación

A personagem e a ação na dramaturgia de José Saramago. Uma leitura de A Noite

CHARACTER AND ACTION IN JOSÉ SARAMAGO'S DRAMATURGY. A READING OF A Noite

Luciana de Cassia Camargo Pirani
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ, Brasil

Anuario de Letras Modernas

Universidad Nacional Autónoma de México, México

ISSN: 2683-3352

ISSN-e: 0186-0526

Periodicidade: Semestral

vol. 26, núm. 1, 2023

revistas.investigacion@filos.unam.mx

Recepção: 31 Janeiro 2023

Aprovação: 03 Março 2023



DOI: https://doi.org/10.22201/ffyl.26833352e.2023.26.1.1895

Resumo: As obras A Noite (1979), Que farei com este livro? (1980), A segunda vida de Francisco de Assis (1987), ln nomine Dei (1993) e, por fim, Don Giovanni ou o dissoluto absolvido (2005) constituem o conjunto de dramaturgia publicado por José Saramago. Nesses textos ficcionais, as relações entre o eu e o outro promovem a ação, não distante do que acontece na vida. Este trabalho analisa a articulação entre a ação, a criação e o desenvolvimento da personagem dramática saramaguiana em A Noite. O objetivo é identificar se as ações praticadas pelos personagens vão além do motivo e causa última da existência do personagem dramático, se dialogam com princípios de uma ideologia ética que infl nciaria, e de que forma, a estética de Saramago. Perante esta hipótese, para além das obras acima referidas, contribuíram para esta análise textos não ficcionais de José Saramago: Discursos de Estocolmo, Cadernos de Lanzarote, Carta de Deveres e Obrigações dos Cidadãos, associados às obras de Patrice Pavis, Edélcio Mostaço, Robert Abirached e Luigi Pirandello. A opção pelo diálogo entre ficção, não ficção e os textos dos referidos teóricos contribuiu para a compreensão das peculiaridades do texto teatral e de seus elementos, em especial, o personagem e a ação; compreender os conceitos de ideologia, ética e estética, bem como identificar a ideologia ética de Saramago e como ela se manifesta na estética do texto dramático por ele produzido. A análise sugere que a transição entre espaços nas obras de José Saramago pode ser entendida como uma estratégia que vai além da realização artística do personagem. O movimento e a ação importam para o exercício da ideologia ética de Saramago: o dever de ter deveres para com o outro, não basta ser personagem, é preciso ser cidadão, é preciso ser personagem-cidadão.

Abstract: The plays A Noite (1979), Que farei com este livro? (1980), A segunda vida de Francisco de Assis (1987), In nomine Dei (1993), and finally, Don Giovanni ou o dissoluto absolvido (2005) constitute the body of dramatic works published by José Saramago. ln these fictional texts, the relationships between the self and the other encourage action -not unlike real life. This article about A Noite analyses the links between the action, creation, and development of the Saramaguian dramatic character. The text aims to identify whether the actions practiced by the characters go beyond the driving and final cause for the existence of the dramatic persona and if the dialogue contains principles of an ethical ideology that may have influenced Saramago's aesthetics. Given this hypothesis, in addition to the works mentioned above, we look at some non-fictional texts by José Saramago associated with the works of Patrice Pavis, Edélcio Mostaço, Robert Abirached, and Luigi Pirandello: Speeches from Stockholm, Notebooks from Lanzarote, and Letter of Duties and Obligations of Citizens. The dialogue between fiction, non-fiction, and theory contributes to understanding the theatrical text's particularities and its elements, manly character and action, and the concepts of ideology, ethics, and aesthetics. Ultimately, this article shows how to identify Saramago's ethical ideology and its manifestations in the aesthetics of his dramatic texts. This analysis suggests that the transition between spaces in José Saramago's plays can be seen as a strategy that goes beyond the artistic realization of the character. Movement and action play an essential role in the practice of Saramago's ethical ideology: the duty to have duties towards the other; being a character is not enough, one must be a citizen, a character-citizen.

Keywords: Playwriting , Saramago, José, Ethics in literature, Characters and characteristics in literature, Dramatic criticism.

Palabras clave: Dramaturgia , Saramago, José , Ética en la literatura, Personages literarios, Crítica teatral

Saramago e o teatro: Eu não sou dramaturgo!

Para dar início a este texto, recupero uma orientação aristotélica, para se ter em mente quando tratamos do personagem e da ação no teatro e, do pensamento de José Saramago a respeito do outro, da relação do eu e do outro: Tudo o que se move, é movido por outro. A relação de José Saramago com o teatro não foi amor à primeira vista, poderia ser considerado um encargo, em suas entrevistas compartilhava que os textos teatrais que escreveu não nasceram de forma espontânea como os romances ou os poemas: foram encomendos em alguns casos relutados e só elaborados após muito pensar. Dizia com frequência que não se considerava um dramaturgo. No entanto, após a autoconcessão para a escrita desse gênero, Saramago teve cinco peças publicadas e encenadas. São essas: A Noite (1979), Que farei com este livro? (1980), A segunda vida de Francisco de Assis (1987), ln nomine Dei (1993) e Don Giovanni ou o dissoluto absolvido (2005). Mesmo sendo um gênero preterido por ele, possibilitou a criação de personagens que se situam em tempos de suspensão do olhar, da vida, e da crença no humano como a noite da Revolução dos Cravos, o período inquisitorial em Portugal, o egoísmo e a falta de empatia atemporal das capitalismo mascarado no fazer do bem das grandes companhias religiosas; a Revolta Anabatista em Münster e a necessidade de redenção pelo amor, pela comPreensão do outro.

Em seu discurso De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz (2013), Saramago trata da importância da personagem e aborda o contexto do tempo histórico das peças. Ao falar de Camões -personagem de Que farei com este livro? sublinha a humildade orgulhosa e obstinada do autor de Os Lusíadas em publicar seu livro mesmo diante dos ignorantes de sangue e casta, da indiferença desdenhosa de um rei, dos fidalgos da corte, de castas e censores do Santo Ofício. (Saramago 2013: 78). No mesmo discurso Saramago compartilha os horrores da guerra religiosa na cidade de Münster ao tomar ciência da luta entre Protestantes anabatistas e católico, constatou que "o labirinto das crenças religiosas, essas que com tanta facilidade levam os seres humanos a matar e deixar-se matar, identificou a máscara horrenda da intolerância […] Pois cegos Pelas suas crenças não foram caPazes de comPreender mais clara das evidências: que o Deus de ambos era um" (2013: 86).

Na peça de estreia, A Noite (1979), a ação se desenvolve na redação de um jornal de Lisboa, na noite de 24 Para 25 de abril de 1974. Noite da Revolução dos Cravos. A censura, a ânsia de liberdade/verdade e o debate ético compõem o conflito que se instaura no jornal e promovem a ação das dezoito Personagens. Em Que farei com este livro? (1980), o enredo se desenvolve entre abril de 1570 e março 1572. Neste, a personagem Camões busca apoio e permissão para publicar Os Lusíadas. O conflito entre o poder e a arte em um contexto de censura inquisitorial movem a peça. Já o texto concluído em janeiro de 1987, A segunda vida de Francisco de Assis, tem início com o retorno de Francisco de Assis à companhia por ele criada. Ao regressar à vida pela segunda vez, encontra uma ordem muito diferente da que tinha deixado. O conflito está entre a prática capitalista da nova ordem (companhia) e o resgate dos valores primeiros quando da criação dessa por Francisco de Assis. Passados seis anos, surge ln nomine Dei (1993). A rebelião protestante na Alemanha do século XVI, marcada pelo fanatismo e, principalmente, pelos excessos na disputa pelo poder entre católicos e anabatistas na cidade de Münster, estabelece a intriga da peça. A última obra publicada, Don Giovanni ou o dissoluto absolvido (2005) o protagonista vive seu inferno terreno ao ter seu diário de conquistas consumido pelo fogo e conhece a redenção pelo amor.

Diante dos embargos que são impostos às personagens dramáticas saramaguianas, essas são convocadas a ter e reconhecer os seus dramas, tormentos para que possam agir -qualidades essenciais da personagem dramática. Questão defendida por Pirandello (1977: 13-15) pois para esse dramaturgo cada produto da fantasia, cada criação da arte deve, para existir, levar em si o seu próprio drama, isto é, o drama do qual e pelo qual é personagem. O autor de Seis personagens à procura de um autor adverte que mesmo sendo o drama a razão de ser personagem, esse não é proveniente da personagem, mas, sim do autor. O drama do autor José Saramago nos chega em diferentes momentos do conjunto da sua obra, mas o fragmento a seguir é o que melhor explicita o compromisso dele com o outro, com o tempo e comunidade em que está inserido. "Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a Palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicamos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres" (Saramago, 2013: 90).

Pensando na dialética do drama do autor e no drama da personagem este trabalho tem o intuito de identificar se as ações praticadas pelas personagens na peça A Noite vão além da causa motriz e final para a existência da personagem dramática, se dialogam com princípios de uma ideologia ética que influenciaria e, de que modo, a estética saramaguiana. Para que essa análise se efetivasse foi necessário compreender as peculiaridades do texto teatral e seus elementos, em específico, personagem e ação; entender os conceitos de ideologia, ética, estética, bem como, identificar aideologia ética de Saramago e como se manifesta na estética do texto de A Noite. A escolha pelo diálogo entre os textos dramáticos de Saramago e os não ficcionais -Discursos de Estocolmo, Cadernos de Lanzarote, Carta dos Deveres e Obrigações dos Cidadãos associados a os textos teóricos Anne Ubersfeld (2013), Décio de Almeida Prado (2014), Edélcio Mostaço (2020), Patrice Pavis (1999), Renata Pallottini (1989) e Robert Abirached (2011) dão suporte a discussão aqui proposta.

A ação, a personagem dramática e a personagem saramaguiana

A importância da personagem para o teatro está no fato de que "a personagem constitui praticamente a totalidade da obra: nada existe a não ser através dela" (Prado, 2014: 84). As discussões a respeito da validade dessa afirmação há muito são tratadas, pois a contenda está na importância da personagem ou da ação para o texto teatral e entrar nessa seara não é o propósito. O que se pretende aqui é descrever as especificidades de cada um desses elementos do texto dramático e verificar se ambos contribuirão para a compreensão da ideologia ética e da utilização desses recursos na estética do drama saramaguiano, pois a combinação desses elementos acaba por desvendar o propósito das personagens durante a ação dramática. Mesmo porque segundo Patrice Pavis (1999): "Toda personagem de teatro realiza uma ação; inversamente, toda ação, Para ser encenada, necessita de protagonistas […]. Provem dessa constatação a ideia fundamental para o teatro e para qualquer narrativa de uma dialética entre ação e caráter" (286). Essa relação, ainda segundo Pavis (1999) Pode ocorrer de três formas. A Primeira delas é "a que a Personagem é um agente e o essencial é mostrar as diferentes fases de sua ação numa intriga bem encadeada". A segunda, quando a ação é a consequência e a Personagem atinge um Ponto sem volta em sua essencialidade não se define Por sua essência, qualidade, asPectos físicos e morais. Nesse caso, é determinada Por um meio socioeconômico que se basta e só se envolve na ação Por via de consequência, sem intervir em seu desenrolar. E, Por fim, a ação e o actante se comPlementam, a Personagem se identifica como actante de uma esfera de ações que de fato lhe Pertencem; a ação se modifica à medida que é realizada Pelo actante. (Pavis, 1999: 286).

A condição para que a ação ocorra e que se tenha um herói é a de que esse Passa a atuar em um esPaço que não lhe Pertence, Por lhe ser desautorizada a sua Permanência. Estar em domínio alheio ProPulsiona o mecanismo da ação, e essa só terá fim quando a Personagem reencontrar seu estado original ou outro em que o conflito não exista. A ação está atrelada ao aParecimento e a solução das contradições e conflitos entre as Personagens ou entre uma Personagem e uma situação não aPenas no nível da intriga, mas na transformação da consciência do herói e o modo como a exPressa em gestos e discurso. (Pavis, 1999: 4, 287). Essa é a PercePção de Renata Pallottini (1989), ao tratar da ação defende que:

essa deflui do conflito; duas posições antagônicas, uma vez colocadas dentro de uma peça, onde serão defendidas, pelas palavras, sentimentos, emoções, atos dos personagens, que tomarão atitudes definitivas em consequência de suas posições, acabarão fatalmente por produzir ação dramática. Ora, quem conduz a ação, produz o conflito, exercita a sua vontade, mostra os seus sentimentos, sofre por suas paixões […] vence ou morre é o personagem. O personagem é um determinante da ação, que é, portanto, um resultado de sua existência e da forma como ela se apresenta. (11)

As palavras, os discursos, podem ser percebidos como ações no teatro. São modos de fazer, de agir. Os termos Palavra e iniciativa são recorrentes na obra de José Saramago e aqui são retomadas do fragmento anteriormente citado "Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicamos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres". (Saramago, 2013: 90). O fragmento faz parte de um texto não ficcional, mas não pode ser deixado de lado quando se consideram algumas especificidades do autor do texto teatral. Para Anne Ubersfeld (2013) deve ser considerado que o autor -formalmente- está presente no texto por meio das didas cálias, mas alerta que "a escrita teatral nunca é subjetiva, na medida em que por sua própria vontade o autor recusase a falar em seu próprio nome e o diálogo é sempre a voz do outro e não somente a voz de um outro, mas de muitos outros" (7). No caso do teatro de Saramago vemos, se considerarmos que o autor se recusa a falar em seu próprio nome, e teria apenas as rubricas como expressão, a voz do autor vai sendo suprimida, e o que se tem é a ocupação do discurso dos personagens. Quanto a questão do diálogo, esse parece ser o elemento a ser considerado nesse caminho do fazer teatral de Saramago, afinal é nas personagens que surgem todas as vozes que o autor se encontra. A voz de Saramago e da sociedade, como ele mesmo gostava de dizer "O que eu digo é que eu tenho, como cidadão, um compromisso com o meu tempo, com o meu País, com as circunstâncias, digamos, do mundo" (Aguilera, 2010: 345). Essa escolha, demonstra o que já reconheceu Prado (2014: 95): à medida que o autor se exprime através das personagens, não pode deixar de lhes atribuir grau de consciência crítica que em circunstâncias diversas elas não teriam ou não precisariam ter. Essa relação vigorosa de Saramago com suas personagens foi por ele reconhecida e corrobora com prado, a ponto de dizer que "A minha impressão, ainda hoje, é que fui eu, autor, assunto pelas minhas personagens, assumido, tomado, possuído por elas, como se as criaturas pudessem, afinal de contas, criar o criador. Desconfio que podem, para não dizer que é essa a minha convicção" (Aguilera, 2010: 194). Não se trata de uma fala aleatória, mas que ecoa em diferentes épocas de sua obra. Por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel temos as seguintes declarações de Saramago

[T]enho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei. Creio que sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar. (1998: 76)

E até mesmo no encerramento do seu discurso do Nobel "A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho mais voz que a voz que elas tiverem" (Saramago, 2013: 87). E essa voz ou vozes que formam a dramaturgia saramaguiana é permeada pela consciência crítica do Nobel português. O humanismo saramaguiano, em certa medida, reverbera o humanismo de outro escritor: Sartre. Semelhança identificada pelo estudioso da obra de José Saramago, Professor Pedro Fernandes de Oliveira Neto (2018), segundo ele, para os dois autores, literatura é engajamento, defesa da liberdade, da responsabilidade e da bondade. Assim como tem a capacidade de desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade (s/d).

Por fim, A Noite

Como disse anteriormente, A Noite é a primeira peça a ser publicada e encenada. O enredo se desenvolve na redação de um jornal matutino de Lisboa, na noite de 24 para 25 de abril de 1974. Noite da Revolução dos Cravos -movimento que derrubou o regime salazarista em Portugal de forma a estabelecer as liberdades democráticas promovendo transformações sociais daquele país. O texto está organizado em dois atos nos quais dezoito personagens1 estão envolvidos na Produção do jornal da manhã seguinte.

A ação tem início com a fala do chefe da redação, Abílio Valadares, que aguarda o contato com o Exame Prévio para o fechamento da edição de 25 de abril. Era preciso a aprovação do órgão de controle para colocar na prensa os fatos. Os diálogos da peça são longos e, em certa medida, morosos. O que faz pensar que se trata da falta de experiência de Saramago com o gênero dramático o que pode realmente ter ocorrido, visto que se identifica um controle da ação por meio das extensas rubricas. No entanto, numa leitura mais atenta, a desconfi nça surge em relação aos resultados dessa falta de experiência, Pois Percebe-se que essas características contribuem para a construção do clima apático, tenso e asfixiante condizentes com o tempo histórico da ação marcado pela censura.

VALADARES: (Falando para o telefone). Ligue-me ao exame prévio, se faz favor. (Pousa o auscultador. Passa os olhos por um papel entre muitos que tem sobre a secretária) Torres! (Aproxima-se Torres, homem de meiaidade, sóbrio de gesto) Ficou-me aqui esta notícia. É do correspondente da Guarda. Se ainda houver tempo, entra hoje. Se não, fica para amanhã. Dê-me um jeito nisso. (Torres, sem uma palavra, volta ao seu lugar. O telefone de Valadares toca). Está? É do Exame Prévio? Fala Valadares, do … Ligue-me ao senhor coronel Miranda. É só ara saber das Provas. Obrigado. (Pausa maior) Coronel Miranda? (Saramago, 2010: 101-2)

A primeira cena da peça introduz os personagens Valadares e Torres que mais adiante serão os líderes dos grupos em oposição na redação. O conflito que se estabelecerá na peça vem da relação entre esses dois personagens. As ações das personagens Valadares em sua escrivaninha apinhada de papéis revelando-se desordeiro e grosseiro "Dê-me um jeito nisso" -e Torres resignado "sem uma Palavra, volta ao seu lugar" -dão início a apresentação do caráter desses.

Na sequência, Máximo Redondo chama Valadares para informar que será necessáriomudara primeira página, pois eledeseja publicar um fundo. Ao pinião do diretorera de que "Enquanto o ferro está quente, é que convém malhar-lhe" (Saramago, 2010: 103) O ferro a ser malhado são as manifestações do 16 de março de 1974:

VALADARES: Surgiu algum problema de repente, senhor diretor?

DIRECTOR: Meu caro Valadares, nunca há problemas, mas há sempre problemas. A política, você bem sabe, é como a terra, nunca para de tremer. Umas vezes tão pouco que nem se dá por isso, outras vezes é o diabo, vai tudo raso. Pior que 1755. Mas na política, se não consentirmos que nos distraiam a atenção, pode-se fazer o que não é possível fazer à terra: deita-se-lhe a mão, agarra-se bem agarrada, até passar o abalo. Veja você 16 de Março: um pequeno sismo imediatamente dominado. E a nossa contribuição, naqueles dias, foi fundamental! Fundamental e apreciada. Este jornal é uma força, meu caro Valadares, é uma força. Não se dá Por isso, a olhos desatentos até parece que nos limitamos a sair todos os dias, mas somos uma força! (Saramago, 2010: 104)

A fala de Máximo Redondo, o diretor, divulga o compromisso do jornal de servir ao cerceamento da liberdade Pela manipulação dos fatos e o apoio à censura. Relembra Ubersfeld (2013) "que a personagem fala em seu próprio nome enquanto personagem, mas fala porque o autor a faz falar, a dizer determinadas palavras […] o discurso da personagem é sempre duplo" (87). Ao fazer falar Máximo Redondo, o autor apresenta uma dupla enunciação, mas vejo aqui que se tem a voz do diretor que expressa seu discurso como processo construído como gestor do jornal e apoiador do regime ao orgulhar-se da força que representam na manipulação das massas como a voz de parte da sociedade que apoia esse comportamento.

Na sequência, Valadares manda chamar Jerónimo -chefe da tipografi para informar das mudanças na edição em decorrência do fundo do diretor. Com a presença de Jerónimo, Torres pretende entregar a notícia da Guarda. E se aproxima do chefe da tipografi . Ao fazer menção de entregar o texto para Jerónimo, Valadares toma o papel da mão de Torres, faz de conta que lê o que está escrito e o coloca no prego. Torres e Jerónimos ficam indignados a que Valadares responde "Você não me venha ensinar o direito que eu tenho. Nesta Redacção quem manda sou eu. Eu é que resolvo o que se publica ou não se publica. A notícia da Guarda não tem interesse para o jornal" (Saramago, 2010: 106). Jerónimo então aproximase de Torres e comenta com o colega: "Deixa lá, não te rales tanto. O verbo é sempre o mesmo: eu obedeço, tu obedeces, ele manda. E para quê? Para fazer uma coisa que de jornal só tem o nome e o papel" (Saramago, 2010: 106). A ação avança e mais um redator chega à redação: Pinto. Ao chegar esse questiona o clima do ambiente e faz brincadeiras o que incomoda parte dos colegas. Diante das reclamações, Cláudia -a estagiária-"E quanto mais silêncio melhor" (Saramago, 2010: 117).

Se há Valadares e Máximo Redondo, há Torres, Cláudia e Jerónimo. Os três últimos são personagens que questionam os encaminhamentos que vêm sendo adotados na redação no tratamento dos fatos. Ciente de seus deveres, mas também das manobras por aqueles que detém o poder, o personagem Torres diz:

Quantos acontecimentos importantes para o mundo se dão diariamente no mundo? Provavelmente milhões! Quantos deles são selecionados, quantos passam pelo crivo que os transforma em notícias? Quem os escolheu? Segundo que critérios? Para que fins? Que forma tem essa espécie de filtro ao contrário, que intoxica porque não diz a verdade toda? E as notícias falsas, quantas circulam no mundo? Quem as inventa? Com que objetivos? Quem produz a mentira e a transforma em alimento de primeira necessidade? A informação não é objectiva, e quanto a neutralidade, é tão neutral quanto a Suiça. Ou será Possível que você ignore (Valadares) as primeiras letras deste alfabeto? O dono do dinheiro é sempre o dono do Poder, mesmo quando não aparece na primeira fila como tal. Quem tem o poder, tem a informação que defenderá os interesses do dinheiro que esse poder serve. A informação que nós atiramos Para cima do leitor desorientado é aquela que, em cada momento, melhor convém aos donos do dinheiro. (Saramago, 2010: 125)

No segundo ato, o movimento para o fim do regime salazarista está nas ruas, Cláudia e Torres conversam sobre o conflito com Valadares. Torres alerta Cláudia sobre as obrigações com a vida: os fatos e "[a] nossa vida é uma contínua resistência à fraqueza, à renúncia, ao conformismo, e até, algumas vezes, às pequenas e grandes traições. E não há ninguém que não possa afirmar que não errou nunca" (Saramago, 2010: 131). Na sequência, Torres recebe a visita de um informante que diz que há deslocamentos de tropas em quase todo o País. Lisboa está a ser cercada. Diante disso, o debate ético em contrariar a censura imposta pela ditadura e a conivência do jornal com o regime precisa ser vencido pela ação. É preciso que as personagens assumam o dever de ter deveres e obrigações. Torres deixa a redação e ganha as ruas para verificar os fatos, buscar a verdade. Ao notarem que o redator não está mais na sala se instaura o conflito entre os demais personagens. E esse movimento que de sair do espaço restrito da redação e ir às ruas, precisa ser destacado, pois diferentemente da inércia de Valadares sempre preso à escrivaninha, Torres teve iniciativa e agiu. Lembrando que para o autor português, cabe então aos indivíduos que convivem em sociedade e estabelecem relações recíprocas ir além do gozar de seus direitos civis e políticos do Estado em que nasceram, ou no desempenho de seus deveres Para com esse, ou seja, o cidadão. A reciprocidade de Torres está em garantir aos outros aos leitores -o contato com os fatos para que possam por si tomarem partido. Não se tem um compromisso com o Estado. O cidadão saramaguiano está longe de ser um devoto do Estado, não cabe nesse. O compromisso é Para com o outro cidadão, para com a sua humanidade por meio da palavra e da iniciativa. Não basta observar é preciso agir, tal como fez Torres. Por sinal, vale ressaltar que a pessoa de ficção traz consigo a voz do autor, da sociedade e do tempo histórico e, por esse motivo, precisa agir. Esse personagem é marcado pelo movimento, transita entre os espaços: sala da redação, gabinete do chefe de redação, as ruas, a redação e entre os atos, busca a verdade para que compreendam o tempo histórico. Torres é o que identifico como personagem-cidadão, pois age sobre a égide do "dever aos deveres e obrigações para com o outro", não às instituições, mas ao outro cidadão e da humanidade presente. Diferentemente de Valadares ou Máximo Redondo, que procuram servir aos donos do dinheiro e do poder.

Torres, como vimos em excertos anteriores, não está sozinho nesta categoria de personagem-cidadão; em A Noite, há Cláudia e Jerónimo. Essa personagem feminina traz características que irão se apresentar em outras personagens femininas saramaguianas. Na redação, na escala de importância é a que está mais à margem, é estagiária. No entanto, a clareza com que observa e trata o que vê demonstram uma nobreza de caráter e compromisso com o bem, a bondade e a verdade. Cláudia também é a confidente de Torres. É a ela que ele procura para compartilhar as notícias trazidas pelo informante.

TORRES: Vieram dizer-me que há deslocações de tropas em quase todos país. Lisboa está cercada.

CLÁUDIA: (Após um silêncio de voz estrangulada) Que tropas? Contra quem? Tem certeza que é verdade?

TORRES: Quem mo veio dizer, sabe o que diz. Desta vez o governo vai-se abaixo.

CLÁUDIA: E nós? O que vamos fazer? Dizemos aos outros, ao Valadares, ou ficamos calados? (Saramago, 2010: 132)

Na sequência Torres e Cláudia fazem chegar à tipografi a notícia da revolução. Jerónimo, Afonso e Damião vão até a sala da redação e contam sobre a revolução. A princípio o grupo julga ser uma brincadeira, pois não se ouvem tiros para esses seria inconcebível uma revolução sem violência. Jerónimo e Damião insistem na afirmação e perguntam a Valadares qual será a atitude do jornal. A que ele responde: "Não respondo, não digo nada. Tenho que falar com o diretor, com a… (Suspende-se, sem saber como continuar)". Torres então completa a fala de Valadares: Com a PIDE!. Jerónimo defende que é saber se a revolução é de esquerda ou de direita. Valadares fica furioso, mas recupera-se e pede ao grupo que mantenham a calma. E orienta para que Torres e Cláudia não façam nada, pois desconfi do comportamento desses. Cláudia e Torres aproximam-se da janela.

CLÁUDIA: Manuel Torres, queres a minha opinião? Queres a opinião de quem acaba de viver um ano nestes últimos cinco minutos? Deves ir para a rua, saber o que se passa. Esta gente vai enganar-nos. percebi o que me querias dizer. Sim a questão é o jornal. Vai para a rua, não irás ganhar a revolução, mas vai para a rua.

TORRES: E tu aguentas-te sozinha com eles?

CLÁUDIA: Hei-de aguentar. E a Oficina ajudará. Não estou sozinha. (Saramago, 2010: 138)

A saída de Torres da redação causa alvoroço, pois esse saiu sem autorização de Valadares, o que o deixa ainda mais possesso. Questionada sobre o motivo da saída de Torres, Cláudia informa que ele foi comprar fósforos. Não há como não pensar na janela e nos fósforos como metáforas para o compromisso e o respeito com a verdade e o outro. A janela é meio que se tem acesso ao mundo exterior da redação, o movimento de Cláudia é constante em relação a janela, pois pode entender que a verdade está fora da redação, o jornal serve ao capital. Já os fósforos são para trazer luz ao ambiente estagnado da redação.

O diretor do jornal e o administrador chegam à redação e Valadares segue aparvalhado. Jerónimo questiona o motivo de diante da possibilidade do golpe apenas um jornalista está nas ruas e que foi por vontade própria. Afonso, o linotipista, informa que o golpe é de esquerda. Diante da informação, o Diretor responde "Como é soube? O golpe é militar, não se ouve falar em civis, como é que se pode saber, assim de repente, se é de esquerda, se é de direita? O nosso primeiro dever, a nossa obrigação primordial, é não cair em precipitações que possam vir a prejudicar-nos no futuro". Cláudia se opõe ao que disse o diretor: "A nossa Primeira e única obrigação é averiguar o que se Passa e dizer. Não temos outro dever" (Saramago, 2010: 150).

A convicção de Cláudia a situa entre os personagens-cidadãos saramaguianos. Primeiramente, ela se mostra ciente dos seus deveres e obrigações. Mesmo estando à margem do grupo é insistente na defesa de sua convicção para a manutenção do que é correto e que é o bom para a comunidade. Ao se imporem, Cláudia e Torres atendem à convocação de Saramago Para uma insurreição ética, uma revolução em que ficasse claro o sentido ético da existência, no silêncio da consciência. Mas o autor alerta que:

a consciência não é silenciosa, a consciência fala. E fala por meio das palavras, o quão aterradoras essas podem ser. Mesmo assim "o importante é que haja presença de um senso de responsabilidade cívica, de dignidade pessoal, de respeito coletivo; se se mantém, se se constrói, se não se aceita cair em resignação, na apatia, na indiferença, isso pode ser uma simples semente para que algo mude. Mas eu estou muito consciente de que isso, por sua vez, não significa muito. (Aguilera, 2010: 114-115)

A contradição fez parte do discurso de Saramago -pensar uma insurreição ética e crer que não possa muito aconteceré de longa data. No segundo volume dos Cadernos de Lanzarote, na entrada de 5 de julho de 1997 Saramago compartilha após dezoito anos a peça A Noite havia regressado ao Teatro de Almada e constatou que "em menos de vinte anos a peça tornou-se história, documento de uma época em que jornais eram feitos por linotipistas" (1999: 394). Reconhece então que muitas foram as transformações da sociedade e do trabalho. Também ouviu que se pretendia produzir ln Nomine Dei, ao saber do fato, diz se pode ter certeza "Poderemos ter certeza de que quando tiverem passado vinte ano sobre a data de estreia […] o mundo será igual ao que é hoje, ao que era a quatrocentos anos. Refiro-me à intolerância e a crueldade, não a exploração do espaço nem aos computadores" (Saramago, 1999: 394-395). O espaço ficcional seja também o esPaço de esPerança Para Saramago, Pois a crença dele nas ações das Pessoas de PaPel -como ele chamavaseria mais crível.

Tomo muito cuidado para não transformar meus romances em panfletos, apesar de ser marxista e comunista de carteirinha. Tenho algumas ideias, e não separo o escritor do cidadão, das minhas preocupações. Creio que nós, escritores, devemos voltar às ruas e ocupar novamente o espaço que tínhamos antes e que agora é ocupado pelo rádio, pela imprensa ou pela televisão. É preciso, além disso, estimular o humanismo. (Aguilera, 2010: 345)

Eis nesse fragmento uma proposta da ideologia ética de Saramago. Essa dialoga com a perspectiva de Lehmann (2016: 2) de como o autor muda a forma de entendimento das questões políticas, e influi nessa forma de conhecimento. Para o teatro, o que é importante é a forma de mudar essa percepção, a forma como se vai conseguir alterar essas fórmulas de percepção que estão dadas. Diante do exposto, entende-se que os elementos do texto teatral -personagem e açãosão campo fértil para a disseminação da ideologia ética de Saramago. O modo como as personagens agem-se estão em movimento ou inertesesclarecem a importância da ação para a dramaturgia saramaguiana, assim como a necessidade de se ocupar os espaços Para que se assegurem direitos, mas também deveres em relação ao outro.

A oposição entre as personagens pode ser analisada entre o é que o bem e o mal, por esse motivo, a questão ética, do dever aos deveres e as obrigações está presente nas personagens dramáticas saramaguianas. É o drama dessas, a ação se volta para uma proposta ética do bem e da razão. Defendido pelo autor de o que se precisa é a prática da bondade, do respeito -pois segundo ele o amor não tem sido suficiente. É necessário um senso de obrigação com o outro para que se garanta o bem. Foi exigido de Torres, Cláudia e Jerónimo o dever de assumir um comportamento ético diante da condição humana marcada pela ditadura, pela censura, pela barbárie e pela desumanização. Um drama dado aos personagens por princípios éticos do autor. Então, até o momento, entende-se que as personagens dramáticas de Saramago parecem ter encontrado seu autor, pois são elas que o buscam "é que fui eu, autor, assunto pelas minhas personagens, assumido, tomado, possuído por elas" (Aguilera, 2010: 194) Para lhes dar voz e a divulgar seus dramas, e, por assim dizer, o drama do cidadão-autor. Fazendo de les -seus personagens personagens-cidadãos.

Referências bibliograficas

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AGUILERA, Fernando Gómez. (2010). As palavras de Saramago: catálogo de reflexões pessoais, literárias e políticas. Companhia das Letras.

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SARAMAGO, José. (2010 [1980]). A segunda vida de Francisco de Assis. Em Que farei com este livro? Companhia das Letras.

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SARAMAGO, José. (1999). Cadernos de Lanzarote ll. Companhia das Letras.

Notas

1 As personagens são Abílio Valadares, chefe da redação; Manuel Torres, redator da província; Faustino, contínuo; Máximo Redondo, diretor; Rafael, contínuo; Esmeralda, secretária da redação; Jerónimo, chefe da tipografia; Fonseca, redator parlamentar; Guimarães, redator estrangeiro; Josefina, redatora; Cardoso, redator da cidade; Cláudia, estagiária; Pinto, redator desportivo; Baltasar, fotógrafo; Afonso, linotipista; Damião, compositor manual;Monteiro, redator; e Figueiredo, administrador (Saramago, 1998: 99).
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