Resenha

WOODCOCK, Jamie. Marx no fliperama: videogames e luta de classes. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. 326 páginas.

Informe Econômico

Universidade Federal do Piauí, Brasil

ISSN: 1517-6258

ISSN-e: 2764-1392

Periodicidade: Semestral

vol. 44, núm. 1, pp. 176 - 180, 2022

ie@ufpi.edu.br

Vinícius Figueiredo Silva, Gustavo Bonin Gava. WOODCOCK, Jamie. Marx no fliperama: videogames e luta de classes. 2020. São Paulo. Autonomia Literária

Recepção: 23 Maio 2022

Aprovação: 23 Junho 2022



DOI: https://doi.org/10.26694/1517-6258.441

UFPI

Resumo: A resenha que apresentamos é inspirada na tradução do original “Marx at the Arcade: Consoles, Controllers, and Class Struggle”, livro publicado inicialmente em 2019 de autoria do pesquisador inglês Jamie Woodcock. Lançada no Brasil pela editora Autonomia Literária, a obra investiga a macroestrutura do mundo dos games com enfoque na realidade dos trabalhadores, entusiastas e desenvolvedores desse mercado e como essa indústria do entretenimento tem influenciado o tecido político e social da cultura popular. De modo geral, pode ser lida como um conto acerca da globalização e de amadores/profissionais que desenvolvem jogos por paixão em um âmbito de exploração e sub-representação. É justamente essa tensão que o sociólogo marxista pretende realçar no livro, que foi dividido em duas partes. A primeira, intitulada “Desenvolvendo Jogos Eletrônicos”, trata do surgimento dos jogos eletrônicos e da gameficação da vida cotidiana.

A resenha que apresentamos é inspirada na tradução do original “Marx at the Arcade: Consoles, Controllers, and Class Struggle”, livro publicado inicialmente em 2019 de autoria do pesquisador inglês Jamie Woodcock. Lançada no Brasil pela editora Autonomia Literária, a obra investiga a macroestrutura do mundo dos games com enfoque na realidade dos trabalhadores, entusiastas e desenvolvedores desse mercado e como essa indústria do entretenimento tem influenciado o tecido político e social da cultura popular. De modo geral, pode ser lida como um conto acerca da globalização e de amadores/profissionais que desenvolvem jogos por paixão em um âmbito de exploração e sub-representação. É justamente essa tensão que o sociólogo marxista pretende realçar no livro, que foi dividido em duas partes. A primeira, intitulada “Desenvolvendo Jogos Eletrônicos”, trata do surgimento dos jogos eletrônicos e da gameficação da vida cotidiana.

Ao longo das páginas iniciais o autor relata como o nascimento dos videogames relacionou-se com o esforço tecnológico do complexo-militar-acadêmico estadunidense para combater a ameaça comunista nos tempos da Guerra Fria. Para este desafio, descreve o panorama das pesquisas que envolveram a criação da indústria de jogos eletrônicos e expõe como ela se transformou em uma das atividades produtivas mais lucrativas da atualidade. Além disso, Woodcock argumenta que cada componente do videogame, incluindo físico, informativo e cultural, tem oferecido ao capital uma chance ímpar de expansão do valor de uso ao valor de troca.

Para Woodcock (p. 46, 2021), a trajetória dos games envolve “uma história de lados diferentes: de hackers e controle corporativo, radicais e militares, software livre e código proprietário, material e imaterial, resistência e captura, fuga do trabalho e inserção em novas profissões, entre outros”. O que une esses elementos, de acordo com ele, são as significações promovidas pela experiência de criação de uma narrativa marcada pela descoberta e, ao mesmo tempo, pelo “alívio do trabalho capitalista”. Essas observações são fundamentais para a análise do autor porque o jogo também pode ser uma forma de empoderamento, um catalisador para resistência e transições.

Sobre esta questão, cabe destacar a atenção que Woodcock dá à busca voraz dos grandes laboratórios coorporativos pelo lucro – o que condiciona à exploração dos trabalhadores da área a partir de uma cultura do entusiasmo criativo. Tal pretexto descortina um dos grandes ensinamentos de Marx no capítulo XXIII de “O Capital”, em que trata sobre a influência que o capital exerce sobre o destino da classe trabalhadora: “A força de trabalho é comprada não para satisfazer, mediante seu serviço ou seu produto, às necessidades pessoais do comprador. Sua finalidade é a valorização do seu capital, produção de mercadorias que contenham mais trabalho do que ele paga”, logo, que “contenham uma parcela de valor que nada lhe custa e que, ainda assim, é realizada pela venda de mercadorias” (MARX, 1984, p.182).

Para além de ocultar as jornadas de trabalho exaustivas pronunciadas por vários exemplos dados por Woodcock, o mundo dos jogos escancara a linha tênue entre trabalho e diversão, produção e consumo, em um ambiente muitas vezes alienante. Embora muitos empregos no setor sejam bem remunerados e permitam aos trabalhadores sobreviverem em algumas das cidades mais caras do mundo, a experiência também é pontuada por períodos de extrema sobrecarga de trabalho e taxas de rotatividade muito altas.

Nominada de “Jogando jogos eletrônicos”, a segunda parte da obra inicia com um pequeno capítulo teórico que reitera a importância de compreender as relações de produção para apreender os elementos culturais que definem o modo de produção capitalista. Contudo, antes de uma discussão generosa em cada esfera, os leitores são informados sobre o crescimento e amadurecimento da indústria e do mercado de games.

Extremamente popular no mundo todo, a indústria de jogos eletrônicos segue em alta, crescendo a cada ano. De acordo com o relatório disponibilizado pela consultoria especializada NewZoo (2021), esse mercado alcançou US$ 180 bilhões em 2021. No Brasil, quase 80% da população possui pelo menos um “smartphone” e, destes, 28% acessam jogos eletrônicos diariamente e 43% jogaram algum jogo ao menos uma vez no último ano. No entanto, apesar do impacto global e nacional, do alcance e lucros envolvidos no desenvolvimento e produção de jogos eletrônicos, é paradoxal que a indústria e a pesquisa acadêmica nesta área ainda pareçam novidade.

À vista disso, a obra de Woodcock (2020) é uma investigação bem-vinda da articulação da teoria sociológica clássica e da cultura popular. Seu juízo sumário acerca das transformações recentes nos alerta para o papel que a indústria de games tem desempenhado no capitalismo contemporâneo, especialmente no mundo do trabalho. Não à toa, numa abordagem dialética, o autor se pretende a advertir os leitores desavisados sobre a importância de se examinar como as circunstâncias sociopolíticas do desenvolvimento dos videogames influenciam seu conteúdo artístico. Isso inclui a ingerência política explícita proveniente do financiamento militar no mercado dos games do gênero First-Person Shooter (FPS) (jogos de tiro em primeira pessoa, na tradução livre) que, consequentemente, são indiferentes ao imperialismo estadunidense. Afinal, títulos como os das séries Call of Duty, Counter-Strike e Valorant ocupam posição de destaque na cena mundial com campeonatos compostos por premiações milionárias e de sessões de live streaming das mais variadas plataformas disponíveis com milhares de visualizações simultâneas.

O mesmo ocorre quando Woodcock demonstra os vieses implícitos no desenvolvimento de personagens para jogos do gênero Role-Playing Game[3] (RPG) e de simulação e/ou estratégia em tempo real, como a série The Sims, da Eletronic Arts, e de Civilization, ambas incorporando uma visão positiva do sistema capitalista – limitada por normas culturais de consumo. Em suma, o objetivo final é de que os jogadores dominem seus oponentes e imponham uma interpretação específica sobre como administrar uma sociedade, privilegiando a acumulação capitalista, o imperialismo e o conflito sobre a cooperação coletiva.

Nos tópicos finais, forma-se um retrato do impacto cultural dos jogos eletrônicos perante o espectro em que os games foram cooptados por forças reacionárias – a exemplo de sua utilização para o desenvolvimento e aplicação para treinamentos militares. É neste sentido que Woodcock reforça que os jogos podem servir como um aparato ideológico para os interesses das classes sociais elitizadas. Porém, neste ponto, o autor enuncia experiências diversificadas, encontradas principalmente em jogos de desenvolvimento independente (em que críticas ao sistema de reprodução capitalista são apresentadas).

O melhor exemplo é o da demonstração da obsolescência programada, encontrada em Phone Story: “O jogo brinca com a posição do jogador como dono de um celular para refletir sobre as relações sociais e econômicas, não apenas da cadeia produtiva externa a eles, mas também sobre o papel do próprio jogador ao comprar e consumir o produto” (WOODCOCK, 2020, p. 226).

Sobre o crescimento dos jogos de multijogadores (multiplayers), Woodcock chama a atenção para a ascensão dos fóruns online, onde críticas, opiniões e vozes aparecem entrincheiradas em grupos de jogadores em uma grande diversidade de gêneros de jogos. Esses nichos mantêm visões políticas específicas, que quando combinadas com níveis de elitismo, muitas vezes reduzem experiências imersivas em um conjunto grosseiro de comportamentos, interpretações e reações que não existiriam em outros ambientes ou contextos sociais. Simultaneamente, oportunidades de ação coletiva começaram a surgir a partir dos jogos eletrônicos e da comunicação online. Woodcock cita a construção da Games Workers Unite, uma organização de trabalhadores e trabalhadoras da indústria que busca dar visibilidade aos direitos trabalhistas dentro da indústria.

Todas essas experiências reforçam a premissa de que os videogames são mercadorias culturais complexas – inclusive, se comparados com outras indústrias deste mesmo aparato como a cinematográfica e a editorial. Consequentemente, deixaram de ser uma mídia oriunda de outras (como livros, filmes e música), convertendo-se tanto em uma forma de comunicação social quanto em um laboratório de novas ideias.

Sensível ao peso da representatividade dos jogos eletrônicos, Woodcock esclarece que os videogames traduzem o sempre presente dualismo de resistência e consentimento dentro da cultura popular, bem como a velocidade com que o mundo cibernético aos poucos vai confundindo suas fronteiras com o concreto. Ao incorporar um potencial de expressão, contestação, conexão, conformidade e rejeição, os videogames têm, portanto, o poder de facilitar o diálogo e o reconhecimento de composições e consciências necessárias para desencadear mudanças. Mais do que isso, são um produto das relações humanas que falharam em permitir que novas vozes, expressões e ideias participassem da formação do jogo.

Nessas condições, além de aproveitarmos o ecossistema virtual, é urgente valorizarmos as percepções do que é oculto e subentendido. Tal alternativa compreende o retorno dos jogos convencionais, brincadeiras e da própria ludicidade que foi sendo perdida no decorrer dos anos para a seriedade que os jogos da atualidade tem assumido.

Não se pode negar que a grande sofisticação tecnológica e a possibilidade de disputar partidas online trouxe uma ampliação significativa na qualidade dos jogos e na interação entre jogadores. As disputas nos antigos fliperamas dos bares de esquina e lojas de periféricos deram lugar a competições virtuais com ares de profissionalização ou a jogos dinâmicos que se assemelham a filmes interativos, em contraste com o espaço privilegiado de lazer e recreação que era bastante comum até o primeiro decênio do século XXI.

Considerando o que foi exposto, o livro “Marx no fliperama: videogames e luta de classes” fornece importantes temas de pesquisa econômica e social acerca da indústria de jogos eletrônicos e das atuais transformações do mercado de trabalho. Woodcock nos guia pelo modus operandi da produção capitalista e oferece ótima oportunidade de entendermos o porquê de precisarmos prestar mais atenção aos videogames como artefatos culturais do capitalismo contemporâneo.

Combinando o entusiasmo de um jogador ávido com pitadas generosas de materialismo histórico, as lições apresentadas por Jamie Woodcock são valiosas para compreendermos a natureza mutável do processo de trabalho e da inevitabilidade de formas de resistência em um ambiente virtual que cada dia mais tem dimensionado nossos impulsos psicológicos. A premissa principal é simples e nos faz recordar de uma frase célebre dita pelo personagem Ezio Auditore​, um dos protagonistas da série Assassin's Creed: “Dizer que nada é verdade é perceber que os fundamentos da sociedade são frágeis e que devemos ser os pastores de nossa própria civilização. Dizer que tudo é permitido é entender que somos os arquitetos de nossas ações e que devemos viver com nossas consequências, sejam gloriosas ou trágicas”.

Referências

GAME BRASIL. Pesquisa Game Brasil 2022. Disponível em: . Acesso em: 31 de maio de 2022.

MARX, Karl [1867]. O capital. v. I, tomo 2. 29ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

NEWZOO. Global Games Market Report 2021. NewZoo, 2021. Disponível em: . Acesso em: 31 de maio de 2022.

WOODCOCK, Jamie. Marx no fliperama: videogames e luta de classes. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

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