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Experiência Sonora na Narrativa Seriada The Midnight Gospel: Alcance Cognitivo, Pedagógico e Psicológico da Série
Experiencia Sonora en la Narrativa Serial The Midnight Gospel: Alcance Cognitivo, Pedagógico y Psicológico de la Serie
Epistemus, vol. 12, núm. 1, 2024
Universidad Nacional de La Plata

Artículo orginales de investigación

Epistemus
Universidad Nacional de La Plata, Argentina
ISSN-e: 1853-0494
Periodicidade: Semestral
vol. 12, núm. 1, 2024

Recepção: 02 Novembro 2023

Aprovação: 21 Janeiro 2024


Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Compartilhamento Pela Mesma Licença.

Resumo: O objetivo deste artigo é identificar, com base numa teoria psicoacústica, o tipo de experiência sonora da narrativa The Midnight gospel (2020), abordando-a enquanto elemento que confere profundidade e multidimensionalidade à narrativa. Recorre-se à noção de níveis de realidade e à ideia de sonosfera para analisar o universo sonoro da série, de modo a elucidar o jogo de imersão musical, vocal e eletrônica que põe à prova a atenção da audiência. As conclusões levam a três aspectos importantes do alcance cognitivo, pedagógico e psicológico da série em análise cujo título já prediz que seus autores querem dar uma “boa notícia à meia-noite”. 1) Percebe-se que, se por um lado, a complexidade sonora mergulha o espectador no ambiente narrativo, ela também o convida a um esforço cognitivo de atenção e compreensão que o retira da condição imersiva. 2) Pedagogicamente, medita-se ouvindo música ou pronunciando sons, amplia-se a percepção fruindo variados repertórios musicais; abre-se o corpo à ampliação da consciência e à escuta do daimon. 3) a imersão musical, o retorno à protomúsica e o “efeito sereia” aparecem como estimulantes psíquicos capazes de devolver ânimo e entusiasmo para a própria existência do personagem, mas também, por um processo de identificação, da audiência.

Palavras-chave: som, audiovisual, série, psicoacústica.

Resumen: El objetivo de este artículo es identificar, a partir de una teoría psicoacústica, el tipo de experiencia sonora en la narrativa The Midnight gospel (2020), abordándola como un elemento que le da profundidad y multidimensionalidad a la narrativa. La noción de niveles de realidad y la idea de sonosfera se utilizan para analizar el universo sonoro de la serie, con el fin de dilucidar el juego de inmersión musical, vocal y electrónica que pone a prueba la atención del público. Las conclusiones conducen a tres aspectos importantes del alcance cognitivo, pedagógico y psicológico de la serie analizada, cuyo título ya vaticina que sus autores quieren dar “buenas noticias a medianoche”. 1) Es claro que, si por un lado la complejidad sonora sumerge al espectador en el entorno narrativo, también lo invita a un esfuerzo cognitivo de atención y comprensión que lo aleja de la condición inmersiva. 2) Pedagógicamente se medita escuchando música o pronunciando sonidos, ampliando la percepción disfrutando de variados repertorios musicales; el cuerpo se abre a la expansión de la conciencia y a la escucha del daimon. 3) la inmersión musical, el retorno a la protomúsica y el “efecto sirena” aparecen como estimulantes psíquicos capaces de devolver espíritu y entusiasmo a la propia existencia del personaje, pero también, a través de un proceso de identificación, al público.

Palabras clave: sonido, audiovisual, serie, psicoacústica.

Abstract: The purpose of this article is to identify, based on a psychoacoustic theory, the type of sound experience of the narrative The Midnight gospel (2020), approaching it as an element that gives depth and multidimensionality to the narrative. The notion of levels of reality and the idea of ​​sonosphere are used to analyze the sound universe of the series, in order to elucidate the game of musical, vocal and electronic immersion that puts the attention of the audience to the test. The conclusions lead to three important aspects of the cognitive, pedagogical and psychological reach of the series under analysis whose title already predicts that its authors want to give “good news at midnight”. 1) It is noticed that, if, on the one hand, the sound complexity immerses the spectator in the narrative environment, it also invites him to a cognitive effort of attention and understanding that removes him from the immersive condition. 2) Pedagogically, one meditates listening to music or pronouncing sounds, expanding perception by enjoying various musical repertoires; the body is opened to the expansion of consciousness and to the listening of the daimon, the inner voice. 3) the musical immersion, the return to protomusic and the “mermaid effect” appear as psychic stimulants capable of restoring enthusiasm and enthusiasm for the character's own existence, but also, through a process of identification, of the audience.

Keywords: sound, audiovisual, series, psychoacoustics.

Introdução

A fim de identificar o tipo de experiência sonora (Bondía, 2002) da narrativa The Midnight gospel (2020), partimos da teoria psicoacústica tal como apresentada pelo filósofo Peter Sloterdijk (2016; 2020), com base nos estudos de Alfred Tomatis (1999). Não se trata, portanto, de propor uma análise técnica dos efeitos sonoros da série, tampouco de seguir as tendências da psicoacústica de abordagem freudiana e lacaniana tal como o fez Mary Ann Doane (1983), mas de experimentar uma possível interpretação psicoacústica baseada nas relações e alianças estabelecidas por meio da experiência sonora na série em estudo. Aqui, entende-se experiência sonora enquanto acontecimento que transforma porque a potência da linguagem sonora interpela e se apodera do sujeito que se mantém aberto e disponível (Heidegger, 2003; Bondía, 2002). Dessa maneira, este texto pretende ser uma contribuição transdisciplinar ao campo dos estudos midiáticos e dos estudos de som.

Sloterdijk dedica o primeiro capítulo de sua obra El imperativo estético (2020) ao mundo sonoro e o capítulo O estágio das sereias de sua obra Esferas 1 – Bolhas (2016) ao que ele chama de “primeira aliança sonosférica” (p. 433). Para ele, o mundo sonoro é aquele no qual todos os mamíferos vivem imersos desde sua estada no útero materno. O que se estabelece ali não é uma relação entre um sujeito e uma fonte sonora, mas uma imersão do órgão sensível e de seu portador em um campo acústico.

É característico da forma primogênita de ser do ouvinte que, desde o início, esteja mergulhado em um continuum sonoro interno dominado por duas emanações do meio materno: por um lado, as batidas do coração, que lhe dão o repetitivo ritmo existencial, e por outro lado, a voz da mãe, cujas livres produções prosódicas impregnam o ouvido fetal de um dialeto melódico (Sloterdijk, 2020, p. 9).

A primeira aliança que se dá nessa esfera sonora intrauterina é com a mãe. As batidas do coração e a voz materna constituem o que o autor chama de “continente utópico de protomúsica ou endomúsica” (idem, p. 9). Desta forma, quando a criança vem ao mundo, depara-se com um universo aéreo no qual toda a protomúsica cessa e no qual passa a vigorar um silêncio habitado por novos sons: falatório, trânsito, vento e todo tipo de ruídos, humanos e não humanos, produzidos no ambiente cotidiano. Acontece o primeiro grande espólio da existência no mundo: a renúncia “ao continuum sonoro da primeira intimidade” (idem, p. 11). Aí residiria a razão de ser da música: se a relação acústica com o mundo se torna musical, sempre é possível ativar o registro das regressões mais profundas, “a pré-história íntima” (idem, p. 10).

A sonosfera, a musicalidade e a experiência imersiva atravessam a sérieThe midnight gospel (2020). A série (cujo título pode ser traduzido, literalmente, como O evangelho da meia-noite) foi produzida e lançada pela rede de streaming Netflix em 2020 com uma primeira temporada de oito episódios. Criada por Pendleton Ward em parceria com Duncan Trussel, a série apresenta uma estrutura complexa cujas camadas narrativas e discursivas são atravessadas por uma estética inspirada no movimento musical lo-fi. A narrativa moldura abriga um conjunto de entrevistas originalmente gravadas para um podcast sobre questões existenciais e de bem-estar, acrescidas de uma trilha de animação, não necessariamente alinhada ao que é dito nas entrevistas. Estruturam-se múltiplos níveis narrativos em uma mesma moldura que constitui, ela mesma, uma metanarrativa. O arco da metanarrativa segue a jornada do herói Clancy na direção de sua transformação psicológica. Ao longo de oito episódios, o personagem viaja, por meio do seu simulador de multiversos, a planetas à beira do fim, onde entrevista pessoas para seu podcast. A escolha desta série se dá por identificarmos nela, ao mesmo tempo, uma aderência às características de uma série animada complexa (Bonilla, 2020) cuja linguagem tem potencial para repercutir na sensibilidade contemporânea, um caráter pedagógico com mensagens esperançosas para as novas gerações, especialmente os Millenials, conforme Dravet (2020) e, ainda, um caráter terapêutico na busca do personagem por bem-estar psicológico. O caráter complexo se verifica quando a série de animação audiovisual incorpora um podcast já existente dentro de sua narrativa dando-lhe novos sentidos e complexificando a relação do público com a série e com o podcast original. Mas também pelo fato da narrativa conter vários níveis de realidade e transitar entre eles por meio de uma linguagem audiovisual que detalharemos a seguir. Esta reflexão é parte de uma pesquisa de alcance maior sobre o uso pedagógico de séries para o letramento digital pós-literário[1].

A narrativa seriada não prescinde do som que se apresenta, conforme Chion (2016), como um fenômeno da cultura, dotado de potência simbólica. Um dos elementos relacionados à dimensão sonora da narrativa em estudo é o tema da passagem entre os diferentes níveis de realidade de que é composta a vida, especialmente quanto ao retorno psicoacústico à pré-história íntima. No universo ficcional, essa passagem se expressa por metáforas, enquanto no mundo físico, de acordo com Nicolescu (2009) não se tem conhecimento de uma fórmula matemática que permita descrever a passagem:

Dois níveis de Realidade são diferentes quando, passando de um para o outro, há uma ruptura das leis e ruptura dos conceitos fundamentais (como, por exemplo, a causalidade). Ninguém conseguiu encontrar um formalismo matemático que permitisse a passagem rigorosa de um mundo para o outro. As teorias da decoerência tratam da coexistência desses dois mundos, mas elas não descrevem rigorosamente como se faz a passagem de um mundo ao outro (p. 5)

Na série em estudo, uma das metáforas para a passagem é a seguinte: todas as vezes que Clancy – o protagonista – quer partir para mais uma viagem em seu simulador de multiversos, basta que ponha sua cabeça na abertura vaginal do grande útero que reina no meio de sua casa abarrotada de máquinas e telas interconectadas. A imensa vagina intergaláctica, objeto de culto ao pé do qual Clancy se ajoelha é, portanto, a mídia que o conduz aos mundos onde irá realizar as entrevistas do seu podcast.

No primeiro nível da narrativa, apresenta-se o mundo da fita cromática, onde Clancy comprou uma casa e possui ilegalmente um simulador de multiversos que lhe permite visitar outros mundos a fim de entrevistar pessoas. No segundo nível, Clancy está em planetas desconhecidos, usando avatares e entrevistando pessoas dotadas de conhecimentos geralmente de ordem psicológica ou espiritual. Veremos como a metáfora para a passagem entre os níveis de realidade se reflete na relação sonosférica da narrativa. Na perspectiva transdisciplinar adotada aqui, certas alianças só fazem sentido na medida em que é possível, ainda que de maneira não formulada matematicamente, conceber diferentes níveis de realidade interconectados em nossa existência.

Antes de adentrar a análise proposta, apresentamos o quadro que demonstra a sequência narrativa da série, para uma melhor compreensão por parte do leitor.

Quadro 1
Descrição da sequência de episódios da série The Midnight gospel

Elaboração própria (Destaques da autora para os dois episódios tratados neste artigo)

Neste artigo, objetiva-se identificar como se articulam as múltiplas camadas sonoras da série a fim de perceber o papel do som e da música na passagem entre níveis de realidade e na constituição de uma sonosfera que inclui tanto a intimidade primordial quanto os ruídos do mundo aéreo e a musicalidade adquirida, conforme exposto por Sloterdijk (2016; 2020). Para tanto, é feito um percurso interpretativo em três etapas, tendo por base as categorias da psicoacústica apresentadas por Sloterdijk (2016; 2020). Parte-se da aliança sonosférica com a mãe e do “efeito sereia” (Sloterdijk, 2016, p. 452) nas experiências de simulação de Clancy; na segunda parte, passa-se pela confusão ruidosa do cotidiano e do falatório que preenche as aventuras do personagem; por fim, na terceira parte, detém-se a atenção na música enquanto protagonista de um tipo de regeneração e cura, no episódio “o rei das colheres”, explicitamente dedicado ao tema da música e sua função cognitiva e terapêutica.

O matriarcado vocal intrauterino e o efeito sereia do simulador de multiversos

Para fins didáticos, comecemos pelo fim. O último episódio da primeira temporada da série em estudo traz uma conversa do personagem Clancy com sua mãe. Trata-se de uma entrevista feita originalmente por Duncan Trussel para sua série de podcast Duncan Trussel Family Hours, DTFH[2], em que o entrevistador esteve conversando com sua mãe doente de câncer, a psicóloga Deneen Fendig, poucas semanas antes de sua morte. Na transposição para o universo ficcional da série, o áudio original é acrescido de uma narrativa visual em estilo psicodélico. Filho e mãe têm a oportunidade de falar sobre sua trajetória desde a gravidez da mãe e o nascimento do protagonista, mas também sobre as angústias, a saudade e a dor da separação diante da iminência da morte da mãe.

Uma atenção especial é dada pela mãe à dor do parto enquanto dor da origem, um trauma a ser enfrentado por todos os mamíferos sujeitos ao ciclo da vida e morte. Enquanto ela fala, na narrativa visual, após nascer do útero de sua mãe e crescer, Clancy aparece grávido dela. Dá-lhe à luz e, em seguida, encontra-se velho e barbudo conversando com ela.

Como mencionado em introdução, a passagem entre níveis de realidade só pode se expressar metaforicamente. O que se tem aqui, portanto, é uma metáfora da passagem entre a experiência física da geração e a vivência psíquica da dor, uma vez que, se por um lado a experiência do parto só pode se dar biologicamente no corpo feminino (ou em um equivalente artificial biotecnológico), psicologicamente, ela é vivenciada na forma de um trauma por todos os nascidos. Segundo Sloterdijk, a primeira díade mãe/filho, fluídica e sonora sofre, com o nascimento, o trauma da separação do mundo aquático para o aéreo. Essa premissa implica em que os humanos desconhecem a solidão e se constituem na díade, condição dual de existência, irremediavelmente sujeita a uma série de separações e reencontros. Daí as imagens afetivamente carregadas na cultura moderna: “em pequena escala, a separação dos amantes, a casa vazia, a foto rasgada; sua forma mais abrangente aparece como morte cultural: a cidade calcinada, a língua extinta.” (Sloterdijk, 2016, p. 47). Embora essas imagens possam ser facilmente encontradas nas narrativas dramáticas cinematográficas e televisivas da segunda metade do século XX, em sua teoria esferológica, o filósofo traz uma expectativa muito mais trágica (no sentido original grego) do que dramática a respeito das separações que elas evocam:

A experiência humana e histórica testemunha, entretanto, que as esferas podem ainda subsistir mesmo após a separação pela morte, e que o que foi perdido consegue permanecer presente nas memórias como monumento, fantasma, missão, saber. É só por isso que nem toda separação de amantes deve resultar em um fim de mundo, e nem toda transformação da linguagem em um naufrágio da cultura (Sloterdijk, 2016, p. 47).

Não por acaso, portanto, de acordo com a crítica[3] e os comentários nas redes sociais da série[4], o último episódio em que se dá a separação entre Clancy e sua mãe é considerado pelo público o mais comovente entre os oito. Para esta reflexão, a micronarrativa da vida e morte no episódio de fechamento da temporada é uma chave de compreensão para toda a sequência dos oito episódios. Uma chave especialmente frutífera para a interpretação do ambiente sonoro e de seu potencial sensorial imersivo: o som enquanto estimulador do desenvolvimento psíquico, diretamente relacionado à origem da vida e ao ciclo vida/morte.

As metáforas da passagem entre níveis de realidade – no caso, entre o físico e o psíquico – também podem ser sonoras. O uso da música na narrativa The midnight gospel cumpre esse papel metafórico e permite realizar a passagem entre mundos que são, por sua vez, metáforas para as esferas conscientes e inconscientes da psique. O mundo consciente de Clancy – simbolizado pela sua casa na fita cromática e seu simulador de multiversos ilegal – é preenchido por uma música ambiente que vai do pop ao lo-fi[5]. Despreocupado, leve, sem pretensões e um tanto irresponsável é o universo consciente de Clancy que já foi identificado com a figura do puer aeternum (Dravet, 2020).

De vez em quando, porém, o universo despreocupado da casa de Clancy é invadido por um telefonema da irmã que lhe cobra atenção ou pelas mensagens do computador que o alerta para ameaças ao bom funcionamento do seu sistema operacional. Interrupções do continuum sonoro de sua mente despreocupada, tais mensagens e telefonemas são rapidamente dispensados por Clancy que passa a se concentrar em fórmulas para escapar às exigências da realidade: um novo mundo a explorar, um avatar para se apresentar e alguém para conversar são o bastante. Clancy introduz sua cabeça na abertura vaginal da cabaça/útero e, misteriosamente, parte para os planetas que seu computador lhe propõe.

A cada planeta visitado, o podcaster do espaço tem longas conversações com seus diversos duplos (Morin, 2008): a mãe, duplo da díade intrauterina perdida; o presidente do primeiro episódio, médico que lhe traz o reflexo de suas experiências com drogas; o mago piloto de navio que desperta uma imagem ideal de autocontrole para a felicidade; ou, ainda, Milady que lhe fala sobre a capacidade de escuta do outro (ver quadro 1). Todos esses duplos operam na mente de Clancy um verdadeiro “efeito sereia”, ou seja, tocam intimamente sua individualidade, lhe dando a certeza de estar ouvindo seu próprio canto (ainda que por meio de um processo de projeção do duplo), uma música personalizada que desperta uma emoção pessoal. Segundo Sloterdijk , o “efeito sereia” é a capacidade de “tocar o centro de estimulação audiovocal do outro” (2016, p. 452).

Quando se fala aqui de um efeito sereia, tem-se em mente a capacidade íntima dos indivíduos de serem alcançados pelas mensagens sonoras que transmitem um tipo hipnótico [ênfase adicionada] de felicidade, o sentimento de que chegou o instante de realização. [...] O ouvido carrega consigo uma seletividade que aguarda, com obstinação, o tom que será inconfundivelmente o seu (Sloterdijk, p. 453).

Algo muito próximo da noção de “flow” preconizada por alguns autores da teoria da imersão (Csíkszentmihályi, 1990; Chen, 2007). Diferentemente do herói mítico Ulisses que, amarrado ao mastro do seu navio, pôde ouvir o canto das sereias sem lançar-se à morte, o muito humano Clancy não chega a ouvi-las. Em verdade, ele as busca no decorrer de suas sucessivas experiências simuladas, no universo hipnótico dos estados alterados de sua consciência. Metáforas do seu universo psíquico interior, os planetas que visita estão todos à beira do colapso e os personagens que ali encontra e com quem conversa demoradamente exercem nele esse “efeito sereia”, esse encantamento momentâneo do encontro com a própria realidade íntima. As lições de autoconhecimento dadas nesses momentos de imersão nas esferas do inconsciente e no encontro com suas vozes interiores lhe permitem crescer, aceitar sua condição, enfrentar a angústia: primeira dimensão da virtude terapêutica proposta pela série.

Preencher o oco, calçar o silêncio: game music e podcast

Se o ambiente sonoro da casa de Clancy vai do pop ao lo-fi, os sons dos planetas que visita são bem diferentes. Os multiversos do inconsciente não haveriam de ser tão tranquilos e despreocupados como os da consciência que facilmente se ludibria. Durante as experiências simuladas, o som é caótico, confuso, sobreposto, múltiplo, adverso. Trata-se de um novo continuum, no qual Clancy segue obstinadamente sua busca. Mais uma alusão à vida intrauterina do feto que, segundo Alfred Tomatis (1999), longe de se entregar passivamente à vida sonora interior da mãe, às vozes e aos ruídos do ambiente externo filtrado pela água, desenvolve a capacidade de orientar-se de forma ativa em função dos estímulos mais ou menos suaves ou agressivos que, a partir da segunda metade de sua vida uterina, ouve com autonomia. Trata-se, portanto, de uma atividade seletiva do ouvido fetal, que pode ou não bloquear certos domínios sonoros. Sem isso, Tomatis (1999) afirma que a vida do feto seria insuportável e atormentadora.

Ao nascer, o bebê encontra um ambiente sonoro totalmente distinto no qual demora a se situar e a voltar a exercer algum controle seletivo de maneira a se orientar. O universo aéreo, como dito em introdução, é estranhamente silencioso para o recém-nascido acostumado à amplificação constante das batidas cardíacas e dos ruídos digestivos de sua mãe. Os ruídos cotidianos não chegam a preencher de forma contínua, ritmada e repetitiva, o oco deixado pelo silêncio. Somente a música é então capaz de propiciar ao ouvido aéreo o bem-estar do continuum intrauterino no qual a orientação é familiar.

O universo sonoro dos planetas visitados por Clancy, ocupados por camadas sobrepostas de música e vozes amplificadas pela bolha imersiva do inconsciente, talvez se assemelhe à complexidade sonora do universo uterino. Neles, Clancy parece exercer total controle seletivo e orientar-se muito à vontade, enquanto o espectador-ouvinte (Mervant-Roux, 2011) experimenta um real tumulto cognitivo. De fato, é difícil para ele se situar nesse ambiente sonoro que pode ser descrito por duas camadas principais e algumas interferências: uma camada vocal, correspondente à conversação do podcast original; uma camada musical que se assemelha a uma trilha de jogo eletrônico da geração do uso do loop[6] (Collins, 2008; Roveran, 2017) e acompanha a narrativa visual que, por sua vez, diverge dos temas abordados na conversação. Todo o tempo, uma camada interfere na outra. A narrativa visual cruza o fluxo conversacional do podcast, interrompendo-o com um diálogo que também interrompe a trilha de jogo eletrônico, aludindo à interatividade característica das trilhas de videogames (Lima e Mello, Martins e Costa, 2016). Outras vezes, a interrupção é musical e a trilha sonora de jogo cede espaço a uma composição mais elaborada, melódica e harmônica, condizente com o acontecimento narrativo. Há também interferências sonoplásticas relacionadas à narrativa visual ou à conversação em curso: gritos, explosões, colisões, gemidos, geralmente no registro do sofrimento diante da iminente destruição.

Essa confusão sonora remete diretamente à confusão das lembranças oníricas, confirmando a interpretação das viagens simuladas aos multiversos enquanto metáforas dos mergulhos de Clancy em sua realidade inconsciente. Morada dos duplos, dos daimon e das imagens deformadas (Bachelard, 2001) do imaginário individual e coletivo, o universo inconsciente é também sonoro. Tomado em seu sentido amplo, a psique abrange tanto a alma do mundo, a consciência cósmica e a psique coletiva da humanidade quanto a forma como cada indivíduo se conecta com ela e se desenvolve nesta conexão por um processo pessoal de individuação (Jung, 2011).

Nesse sentido, a sentença Nada Brahma, o mundo é som e o som é mundo, por mais que seja concebida pelo zen budismo e apresentada por Berendt (1983) como uma harmonia original, um som primordial ou uma ausência de som, ressoa de forma confusa na consciência de cada indivíduo. O universo sonoro da série parece ser uma boa metáfora desta confusão e da maneira como cada indivíduo aprende a se orientar nesse universo sonoro assim como aprende a conhecer os caminhos que o levarão a um estado de bem-estar consciente.

Vivemos ao mesmo tempo em muitos níveis diferentes. No Hekhaloth, o livro das esferas celestiais dos judeus, diz-se que toda vez que uma alma se manifesta ela produz uma vibração que se comunica com todo o oceano cósmico. Cada criatura é a cristalização de uma parte dessa sinfonia das vibrações. Assim, assemelhamo-nos a um som que ganha a densidade da matéria, a fim de vibrar contínua e ininterruptamente (Berendt, 1983, p. 47).

Crença judaica ou metáfora, tal concepção do mundo sonoro vai ao encontro do efeito imersivo do som apresentado na série The midnight gospel: como um indivíduo que adentra o universo cósmico, ou como um recém-nascido que adentra o mundo aéreo da vida extrauterina, Clancy, enquanto participante da sinfonia das vibrações, aprende a se orientar em seus mundos interiores.

Da mesma forma, a audiência estende um ouvido seletivo à conversação de Clancy com seus duplos e, de vez em quando, se deixa levar pela interrupção de uma explosão ou de uma melodia envolvente. Imersa ao mesmo tempo no ambiente sonoro repetitivo do jogo eletrônico e na narrativa visual, se quiser captar algum sentido daquilo que é dito no fluxo incessante de palavras trocadas entre Clancy e seus entrevistados, terá que desfazer-se por completo do ambiente em torno e da própria mente e concentrar-se atentamente na multidimensionalidade narrativa. Uma provação cognitiva que não pode se dar de forma contínua, mas fica sujeita às flutuações dos níveis de concentração e atenção do espectador-ouvinte.

Os estímulos sonoros que preenchem o silêncio da vida fora do útero, ao alcançarem o continuum primordial, embalam o ouvinte atento ao ritmo das repetições, qual um coração materno envolvente. Treinada, episódio após episódio, ao exercício de concentração e atenção, a audiência é convidada a experimentar uma sensação imersiva, da qual extrai o sentimento de felicidade e entusiasmo do “efeito sereia”. Trata-se, em última instância, de uma experiência mais espiritual do que cognitiva. As informações, as descrições e os acontecimentos narrativos, longe de se perderem, são transformados, deslocados, rearranjados, de modo a causar a impressão de ter sido transportado a um universo psíquico, onírico, interior, íntimo, uma vez que Clancy funciona ele mesmo como um duplo para o espectador-ouvinte.

Por fim, a dimensão lúdica da vida do personagem Clancy deve ser aqui destacada como um dos elementos narrativos proporcionados pela trilha sonora de jogo eletrônico. Como já mencionado, Clancy é um puer aeternum, uma criança eterna que pratica uma ética da vida como jogo. Suas experiências de simulação não são apenas viagens ao inconsciente como demonstrado acima. São também, como nos jogos de RPG, cujas trilhas imersivas exercem um papel fundamental para a experiência do jogador (Murray, 2003; Collins, 2008; Roveran, 2017; An, 2018), desafios lúdicos com tarefas a serem cumpridas, riscos de morte e game over. No jogo da vida de Clancy, o desafio é o de realizar entrevistas com personagens ficcionais do seu multiverso, em planetas na iminência de serem destruídos, a fim de resguardar um conhecimento ameaçado de extinção. Ao fim de cada experiência lúdica, Clancy se vê na urgência de retornar à realidade, recorrendo à sua corneta mágica. É, portanto, um som que ativa seu terceiro olho (ponto que, na tradução hinduísta se refere à capacidade intuitiva e sensitiva) e permite que volte são e salvo para casa, mais uma passagem metafórica, desta vez sonora, entre um nível de realidade e outro.

Daimon da música: “o rei das colheres”

Para além da experiência imersiva proporcionada pela trilha sonora multidimensional da série, a música é também tema de reflexão explícito em um dos episódios da série. O personagem Clancy é podcaster, ele mesmo ouvinte da “rádio dos amantes de simulação”. Quase todos os episódios o mostram ouvindo música. No episódio quarto, o tema do ouvir o outro e ser capaz de escutar a própria voz é abordado de forma contundente, mas é no episódio O rei das colheres .Annihilation of Joy, no original), o quinto da série, que a música se torna tema principal.

Em um primeiro momento introdutório, ainda na fita cromática (metáfora para a existência desperta e consciente de Clancy), ela aparece em suas qualidades regeneradoras como a solução encontrada pelo rapaz para reanimar uma rosa que murchou em seu jardim – já temos aí uma metáfora para as virtudes terapêuticas da música que serão abordadas no decorrer do episódio. Ao pesquisar em seu computador, Clancy assiste a um documentário sobre os poderes curativos da música, que pode até servir para “tornar-se imortal”. O mote do episódio está lançado: o computador de Clancy prepara um avatar de arco-íris musical para sua próxima aventura no multiverso. Com essa roupagem, Clancy visita o planeta “prisão de almas” onde vivem seres simulados, avariados rebeldes que, por medo de seu fim existencial, arrancaram a própria língua e vivem imbuídos de sentimentos negativos.

Ao chegar no planeta “prisão de almas”, Clancy-arco-íris conversa com o pássaro da alma de um dos presos que, tendo cortado a própria língua, não pode proferir nada além de grunhidos, ruídos agressivos e gritos monstruosos. O pássaro, um bacurau, se apresenta como psicopompo (condutor de almas), palavra de origem grega que designa a qualidade dos seres que transitam entre luz e sombra e conduzem os mortos ao reino espiritual. A metáfora do pássaro da alma equivale ao que os gregos chamavam de daimon e que, posteriormente, originou a palavra demônio.

Segundo Japiassu e Marcondes (2001), para Sócrates o termo daimon significava o caráter divino ou transcendente de um chamamento, uma inspiração. O neoplatonista Plotino dizia que o daimon era um ser intermediário entre os deuses e os homens. Já, para Hesíodo, daimons são “por desígnios de Zeus, gênios corajosos, ctônicos, curadores dos homens mortais. [Eles então vigiam decisões e obras malsãs, vestidos de ar vagam onipresentes pela terra.] E dão riquezas: foi esse seu privilégio real” (Hesíodo, 1996 p. 31). Associado à noção de gênio e às faculdades criativas dos humanos, um daimon revela-se como uma força impulsionadora, incontrolável e original (Sousa e Almeida, 2016). Posteriormente, com a cultura cristã, o daimon é associado ao demônio e ao mais temido deles, o diabo.

Para entender, todavia, a relação entre daimon e música, é preciso retornar ao período grego pré-socrático e à obra de Heráclito, para o qual a capacidade de ouvir é uma qualidade essencial dos homens a ser desenvolvida para uma vida harmônica no cosmo. Conforme explica Alexandre Costa, em Heráclito, a capacidade de ouvir não prescinde da presença de um daimon:

O daimon podia ser pensado como a própria divindade, o destino, o nume, o gênio, o conselho dos anjos, a voz interior, o espírito, o demônio, o que fosse: isto variou. O que não se alterou é que em qualquer momento, o que quer que fosse o daimon, ele esteve sempre associado à escuta (Costa, 2013, pp. 94-95).

Segundo ele, o daimon para Heráclito se relaciona a uma escuta mais ou menos afinada à música da ordem cósmica:

O daimon define, por extensão, o que cada um de nós efetivamente é; e, por sua vez, ele vem a ser definido pela nossa escuta. Conclui-se, assim, que o homem é aquilo que ele ouve. Sua grandeza ou sua pequenez, sua harmonia ou desarmonia em relação à linguagem do real e à afinada ‘música’ do kósmos serão decididos pela sua escuta (Costa, 2013, p. 92).

Voltando ao episódio, o pássaro da alma, daimon, está conectado ao corpo sem língua do personagem rebelde preso. A narrativa visual mostra este último tentando fugir da prisão e morrendo sucessivamente a cada tentativa de fuga. No decorrer da narrativa visual um ser chamado “rei das colheres” – outra metáfora para o daimon da música – aparece tocando colheres como se fossem instrumentos musicais e, ao ritmo das percussões, consegue mudar o humor do rebelde. A música então aparece como forma de despertar um sentimento amoroso no preso. Uma espécie de encantamento terapêutico. Aparentado a um trickster[7], ser dúbio, a meio caminho entre o benfazejo e o malicioso, o rei das colheres faz apenas uma aparição durante o episódio; mas a potência da imagem repercute nas atitudes de Clancy e do pássaro da alma que passam a tocar as colheres todas as vezes que o preso rebelde se deixa levar pelo ódio.

Como em toda a estrutura narrativa da série, a trilha do episódio é também ocupada pela conversação entre Clancy e seu entrevistado, no caso o pássaro da alma. Tratam da perspectiva budista sobre os ciclos encarnatórios e sobre a teia do real, feita de um entrelaçamento de vidas. Embora ocorram duas narrativas paralelas – a visual e a da conversação, os assuntos se interconectam. Ao final do episódio, o prisioneiro rebelde, após sucessivas mortes, descobre o verdadeiro sentido de sua liberdade. Recobre sua língua e sua voz, pode voltar a cantar e ser livre da consciência que o aprisionava a existências ilusórias no mundo material. Uma situação que Clancy e o pássaro da alma traduzem comparando suas próprias existências a um jogo de RPG em que o jogador assume personagens e vive vidas simuladas.

Ouvindo o “pássaro da alma”, a voz interior, aquela que conecta o indivíduo à trama da vida interconectada do cosmos, o rebelde sai da prisão que ele mesmo se impõe. Nesse processo, a música tem um efeito demoníaco (de daimon e não de demônio/diabo) por mudar o humor e trazer a consciência da origem, uma origem física intrauterina, mas também espiritual e cósmica.

Do ponto de vista da experiência sonora, o episódio atua por meio de dois recursos cognitivos: por um lado, a imersão sonoplástica que evolui de um universo de gritos e grunhidos do rebelde, com suas lutas e sofrimentos, à plenitude da voz reencontrada e seu canto libertador; por outro lado, a trilha vocal da entrevista em que Clancy e o “pássaro da alma” raciocinam juntos a respeito de complexas noções filosóficas orientais adaptadas ao ocidente, ao mesmo tempo em que acompanham as descobertas do rebelde preso e tomam parte em sua terapia musical. Caberá ao espectador-ouvinte orientar-se em meio à confusão sonora e visual e seus complexos entrelaçamentos, ora hipnotizado pelo “efeito sereia” das vozes entrevistadas, ora encantado pelo daimon musical, ora instigado pela necessidade de orientação em meio à confusão das suas próprias vozes.

Considerações finais

A série The midnight gospel é construída em uma linguagem audiovisual na qual visão e audição convergem e divergem, ora se complementam, ora se dissociam, consistindo em um entrelaçamento indireto e heterogêneo de aspectos narrativos e estéticos que permitem apreender um tipo de experiência de mundo no qual a realidade se desdobra em múltiplos níveis. Metáforas visuais e sonoras servem de expressão da passagem entre esses níveis nos quais o personagem Clancy não hesita em transitar. Uma interpretação psicoacústica permite dizer que, por um processo de projeção e identificação com o duplo, a experiência imersiva de Clancy pode ser também a experiência da audiência. Suas reflexões podem ser as reflexões do espectador-ouvinte e sua relação com a realidade e seus níveis é um convite à atividade imaginante nos mundos interiores. Do útero aos universos inconscientes, da consciência do aqui agora à ampliação em direção a outras possibilidades de estar no mundo, há uma oferta múltipla de alternativas para o pensamento e para os sentidos.

Com isso, pensar a experiência sonora da série The midnight gospel explorando uma interpretação psicoacústica da imersão permite chegar a três tipos de conclusão a respeito da importância do som na narrativa seriada contemporânea. O primeiro, de ordem cognitiva; o segundo, de ordem pedagógica e o terceiro, de ordem terapêutica.

Para além das múltiplas camadas interpretativas e intertextuais próprias à maioria das séries digitais contemporâneas, no caso da narrativa em estudo, o esforço cognitivo implicitamente exigido do espectador-ouvinte é ampliado. Trata-se de um ir e vir entre, por um lado, a atenção ao diálogo, à narrativa visual e às interações entre um e outro e, por outro lado, o mergulho no fluxo hipnotizante da trilha musical e sonoplástica. Ademais, para não cair no erro de reforçar as separações impostas pelos processos de racionalização da linguagem, é importante lembrar que o efeito imersivo da trilha sonora não se distingue do efeito hipnotizante da trilha visual cuja estética psicodélica é também propícia à imersão na imagem desvinculada de sentido aparente. Nesse ir e vir, a audiência é instigada a se manter ativa e, potencialmente participativa.

A relação entre o som e os motes conversacionais que se desenrolam na série implica também em uma visada pedagógica da narrativa. Em uma sociedade na qual não se pratica nenhum tipo de educação psicológica para o bem-estar dos indivíduos, a fruição de uma série cuja temática é perpassada por temas psicológicos e espirituais pode preencher uma lacuna importante. A preocupação com a aceitação da morte e dos sofrimentos, com a relação entre meditação, a ampliação da consciência e experiências de consumo de drogas (lícitas e ilícitas), por exemplo, é tratada na série de forma humorística ao mesmo tempo em que é levada a sério. Isso parece representar um ganho no qual a experiência sonora e musical é parte importante, quiçá a mais importante quando se sabe que as jovens audiências para as quais a série é destinada são também ávidas de música e de experiências imersivas como a dos jogos digitais e da música eletrônica. Medita-se ouvindo música ou pronunciando sons, amplia-se a percepção fruindo variados repertórios musicais; abre-se o corpo à ampliação da consciência e à escuta do daimon, a voz interior.

Por fim, a experiência sonora imersiva tem fortes implicações psicológicas e pode exercer virtudes terapêuticas sobre a vida inconsciente dos indivíduos. A psicoacústica, à qual se recorreu neste artigo, também tem conhecidos desdobramentos terapêuticos na cura de traumas. A conversação tal como é praticada na série é, sem dúvida, um caminho terapêutico. São inúmeros os momentos em que Clancy e seus entrevistados ultrapassam os limites da vergonha e de outras formas de tabus e se arriscam no tratamento de assuntos difíceis como o consumo de drogas, a sexualidade, a morbidez entre outros. Finalmente, a imersão musical, o retorno à protomúsica e o “efeito sereia” aparecem como estimulantes psíquicos capazes de devolver ânimo e entusiasmo para a própria existência, distanciando-se de outros tipos de imersão passiva ou estimuladores de pulsões agressivas ou depressivas. Em tempos de expressão de ódios e tendências suicidas, tais cuidados merecem toda atenção.

Referências

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Notas

[1] Projeto "As formas do mito nas narrativas digitais seriadas:contribuição ao letramento digital" financiado pelo CNPq, ChamadaCNPq/MCTI/FNDCT No 18/2021, processo 403380/2021-9.)
[2] Disponível em: http://www.duncantrussell.com
[3] Ver por exemplo: https://estacaonerd.com/critica-the-midnight-gospel/ e https://www.omelete.com.br/netflix/criticas/the-midnight-gospel-primeira-temporada-netflix-critica
[4] Fanpage oficial: https://www.facebook.com/OfficialMidnightGospel e página brasileira: https://www.facebook.com/TheMidnightGospelBr
[5] Para além das justificativas técnicas para a terminologia no universo da música, a estética lo-fi traz melodias leves, proporcionando, segundo seus apreciadores, um estado relaxante e agradável. É utilizada por muitos para estudos, trabalho, reflexões ou meditação. Associada à cultura do do it yourself (DIY), a estética musical lo-fi é concebida como uma chance de escapar às lógicas mercantis da indústria fonográfica. Consideramos que há no lo-fi uma marca do espírito do tempo: despreocupado, ancorado no desfrute do momento presente em busca de caminhos criativos para a viabilidade da própria existência.
[6] O loop é um dos procedimentos musicais mais representativos do videogame: uma faixa de música composta para soar ad infinitum, de forma cíclica e repetitiva, ou seja, a música programada para que se inicie novamente toda vez que chegar ao seu fim, sem que haja sensação de descontinuidade.
[7] De acordo com Jung: “Em contos picarescos, na alegria desenfreada do carnaval, em rituais de cura e magia, nas angústias e iluminações religiosas, o fantasma do “trickster” se imiscui em figuras ora inconfundíveis, ora vagas, na mitologia de todos os tempos e lugares , obviamente um “psicologema”, isto é, uma estrutura psíquica arquetípica antiquíssima. Esta, em sua manifestação mais visível, é um reflexo fiel de uma consciência humana indiferenciada em todos os aspectos, correspondente a uma psique que, por assim dizer, ainda não deixou o nível animal (Jung, 2000, p. 256).


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