Experiencias latinoamericanas
As lutas da classe trabalhadora no Brasil dos "mega-eventos"
As lutas da classe trabalhadora no Brasil dos "mega-eventos"
OSAL Observatorio Social de América Latina, núm. 36, 2014
Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales
Resumen: Existe una conexión indirecta entre las protestas masivas de junio de 2013 y el ciclo ascendente de luchas y huelgas de los trabajadores en Brasil, ya que este episodio multitudinario surge en medio de un proceso ya iniciado y, al mismo tiempo, lo impulsa. El recurso a la huelga, como arma para enfrentar los bajos salarios, la pérdida de derechos y las pésimas condiciones de trabajo, volvió a ser un instrumento de lucha a pesar, o a contrapelo, de las tradiciones y las prácticas de las principales direcciones sindicales. En la manifestaciones de junio de 2013 prevaleció un perfil de jóvenes precarios con bajos salarios y, no obstante, sus demandas tenían contenidos universales y clasistas: transporte, salud, educación, libertad de expresión y de manifestación, contra la represión policiaca y los monopolios de los medios de comunicación de masa. Actualmente, en los meses siguientes al mundial del fútbol, el número y el impacto de las huelgas no se está repitiendo, posiblemente por la escalada represiva y criminalizante contra los militantes de los movimientos sociales.
Palabras clave: Brasil, clase trabajadora, huelga, protestas de junio de 2013.
Abstract: There is an indirect connection between the massive protests of June 2013 and the ascending cycle of struggles and strikes of workers in Brazil, given that this multitudinous episode emerges in the middle of an already initiated process and, at the same time, propels it. The resource of striking as a weapon to confront low wages, the loss of rights and the terrible working conditions, became again an instrument of struggle, in spite, or even against, the traditions and practices of the main union leaderships. In the protests of June 2013 a profile of precarious youth with low wages prevailed and, nonetheless, their demands had universal and classist contents: transport, health, education, freedom of expression and assembly, against police repression and monopolies in mass media. Currently, in the months that followed the World Cup, the number and impact of the strikes has not repeated, possibly because of the rise in repression and criminalization of social movement militants.
Keywords: Brazil, working class, strike, protests of June 2013.
A emergência de diversas e múltiplas manifestações de protesto social no plano internacional, no período dos últimos cinco ou seis anos, tem gerado caracterizações sobre a novidade ou especificidade desses movimentos, seja pelo perfil dos manifestantes, seja pelas modalidades organizativas que os convocam ou deles surgem, seja ainda por seus programas de reivindicações implícitos ou explícitos. Entre tais caracterizações e análises predomina a valorização de elementos como: a rejeição às formas tradicionais de organização das lutas da classe trabalhadora desde o século XIX (os partidos e sindicatos em especial); um perfil de lideranças e bases distinto daquele tradicionalmente associado à classe trabalhadora; um horizonte organizativo diferenciado, pautado pela rejeição a formas institucionais e estruturas hierarquizadas e um conjunto de propostas e demandas muito diversificado e fragmentado, que possui por pontos de contato uma difusa rejeição à ordem política e uma reação decidida aos modelos de ajuste econômico típicos das estratégias de enfrentamento da crise capitalista pelos governos de diferentes matrizes partidárias após 2008.
Este artigo está longe de pretender questionar em bloco tal caracterização dominante. Porém, a partir do caso brasileiro, estudado com ênfase sobre o caráter das manifestações multitudinárias que eclodiram, em meio à chamada Copa das Confederações de futebol, em meados de 2013 (denominadas como “jornadas de junho”) e das lutas sociais que a estas se relacionaram - ocorrendo antes ou depois - espera-se demonstrar uma conexão entre protestos coletivos que aparentemente se encaixam plenamente na caracterização acima resumida e formas mais tradicionais de luta e organização da classe trabalhadora, como as greves e o movimento sindical.
Isso porque as “jornadas de junho” ocorreram em meio a uma retomada progressiva de lutas sindicais típicas, como as greves, ainda que com tais movimentos não mantivessem uma relação direta. Mais que isso, as mobilizações de massa de 2013 impulsionaram uma nova onda de movimentos grevistas (entre outros movimentos sociais) que se estendeu, pelo menos, até meados de 2014, quando o Brasil recebeu a Copa do Mundo de futebol. Explicar essas “coincidências” exige uma reflexão que vá além dos elementos mais aparentes desses fenômenos. Comecemos por uma recuperação rápida das informações gerais sobre os ciclos grevistas no Brasil recente, para em seguida retomar a discussão sobre as jornadas de junho e seu efeito multiplicador de lutas. Ao fim, esperamos conseguir esboçar uma avaliação do quadro atual.
O retorno das greves?
Um dos mais visíveis indicadores do recuo das lutas coletivas da classe trabalhadora brasileira, a partir dos anos 1990, foi a diminuição do número de greves. Em 1989, no auge do ciclo de lutas sociais que marcou o fim da ditadura empresarial-militar instalada em 1964, ocorreram cerca de 4000 greves no Brasil. Nos anos seguintes este número foi caindo, até atingir 1228 greves em 1996, 525 em 2000 e 299, em 2005, num dos pontos mais baixos da curva (o menor número foi de 298 em 2002)[1]. Para explicar tal declínio das mobilizações organizadas dos trabalhadores, podemos elencar diversos fatores: o desemprego e a precarização das relações de trabalho decorrentes do processo de reestruturação produtiva que se acelerou a partir da década de 1990; o progressivo apassivamento da maioria da direção sindical mais combativa (reunida em torno da Central Única dos Trabalhadores, a CUT), que ao longo dos anos 1990 aderiu progressivamente a uma lógica conciliatória e amoldouse à ordem do capital e à estrutura sindical oficial; e, já nos anos 2000, a incorporação de dirigentes sindicais aos governos capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores, acompanhada da transformação da CUT em braço sindical dos governos petistas e de sua definitiva incorporação à estrutura sindical oficial. Explicar detalhadamente cada um desses fatores demandaria mais espaço e tempo do que dispomos aqui.
O que nos interessa neste momento, porém, é assinalar uma inflexão. Depois de 446 greves contabilizadas em 2010 e 554 em 2011, no ano de 2012 aconteceram 873 greves no Brasil, segundo os estudos do DIEESE. É o maior número registrado desde 1996 e revela um crescimento significativo nos últimos anos do recurso à paralisação do trabalho, como arma para enfrentar os baixos salários, a perda de direitos dos trabalhadores e as péssimas condições de trabalho, geradoras de uma crescente onda de acidentes de trabalho, especialmente em setores como o da Construção Civil, que se viu mais aquecido com as grandes obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e dos “mega-eventos” (Copa do Mundo de Futebol e Olimpíadas). A relativa estabilidade do nível de emprego (relativa porque os números oficiais contabilizam cerca de 6 milhões de desempregados, mas também 62 milhões de brasileiras e brasileiros em idade ativa que por alguma razão não buscam empregos) também pode ajudar a explicar porque cresce o número de greves. Ainda não foram divulgados os dados sobre as greves no ano de 2013, mas tudo indica que a tendência ao crescimento se manterá.
No entanto, o crescimento do número de greves está longe de ser o principal fenômeno das lutas sociais no Brasil na conjuntura recente. Em junho de 2013, milhões de brasileiros foram às ruas em protestos que chegaram a envolver mais de 400 cidades e cerca de 2 milhões de pessoas, apenas na noite de 20 de junho, quando as manifestações atingiram seu ponto mais alto. Há certo consenso em avaliar que tais protestos, ao menos naquelas dimensões, não eram esperados e não alcançaram tamanha amplitude por terem sido convocados por alguma força política ou movimento social organizado. Embora existissem organizações e movimentos impulsionando as primeiras manifestações, que reuniram algumas centenas ou poucos milhares de pessoas contra os reajustes das tarifas do transporte urbano, a explosão das multidões nas ruas foi um efeito em grande medida “espontâneo”, típico daquelas situações históricas nas quais descontentamentos sociais latentes, extravasam por canais não institucionais. Diante disso, que relações poderiam ser estabelecidas entre as “jornadas de junho” e as greves?
As jornadas de junho: sentido de classe?
No momento das grandes manifestações de meados de 2013, uma das características mais discutidas de seu perfil foi a rejeição aos partidos políticos e, em alguma medida, às organizações sindicais proclamada por parcela significativa dos manifestantes. Quando as centrais sindicais tentaram aproveitar o embalo das grandes passeatas para impulsionar dois dias nacionais de luta unificada, o que se viu foram manifestações de escala muito reduzida e, em grande medida, restringidas a dirigentes e funcionários dos aparatos sindicais. De que relação com as greves se poderia tratar então?
Antes de qualquer resposta apressada, tentemos entender melhor junho de 2013. É fato que o perfil de seus participantes, dimensionado por um pequeno número de levantamentos realizadas por institutos de pesquisa de opinião, cujos critérios de estratificação dos entrevistados são questionáveis, revelam uma composição social heterogênea. No entanto, revelam também uma clara predominância de manifestantes nas faixas de rendimento de 0 a 5 salários mínimos e nas faias etárias mais jovens[2]. Indo um pouco além da aparência dos acontecimentos, podemos perceber que apesar de terem sido palco para todo tipo de propostas, inclusive algumas de teor claramente reacionário, as grandes demandas daquelas manifestações que permaneceram em pauta ao longo do processo – pela redução do preço e melhoria da qualidade do transporte coletivo, contra a violência policial, contra as corporações empresariais de mídia, em defesa da saúde e da educação – possuíam um claro perfil de classe. Isso se vislumbrava desde o momento em que ficou evidente a ampla simpatia que despertou a sua reivindicação original. Capitaneadas pelo Movimento pelo Passe Livre de São Paulo e organizações semelhantes em outros estados, que já possuem cerca de uma década de lutas acumuladas, mobilizando especialmente os estudantes, as primeiras passeatas se opunham ao aumento das tarifas do transporte urbano. Os transportes públicos urbanos, muito caros e de péssima qualidade, são um pesadelo no orçamento e no cotidiano justamente dos setores mais precarizados da classe trabalhadora, que moram mais distante do trabalho e não recebem qualquer tipo de auxílio para o transporte[3]. Quando as manifestações reuniram milhões nas ruas, mesmo após a revogação dos reajustes de tarifas na maioria das capitais, a pauta mais sensível foi justamente a demanda por serviços públicos de qualidade – além do transporte, também saúde e educação –, reivindicação nitidamente orientada pelos interesses da classe trabalhadora, que exige, ainda que de forma difusa, mais do que o acesso a serviços no mercado, seus direitos sociais universais.
Os que foram às ruas naquelas “jornadas” protestaram também contra a violência policial, não apenas para garantir seu direito à manifestação, mas também para denunciar o sentido opressivo de um aparato militarizado de coerção estatal, que constitui uma das faces mais visíveis do tratamento dispensado pelo Estado aos setores mais precarizados da classe trabalhadora em um país com os níveis de desigualdade social do Brasil.
Diante da extrema violência empregada pelos policiais contra os primeiros atos contra os reajustes das passagens, nas primeiras semanas de junho, alguns comentários enfatizaram que a polícia cometeu “excessos”, enquanto outros afirmaram que os policiais eram despreparados. Análises como essas geram equívocos e confusões. Não é despreparo o que os policiais demonstram quando atiram a queima roupa em manifestantes – eles foram treinados para fazer isso todos os dias nas favelas e periferias das grandes cidades brasileiras (com a diferença de que lá as balas não são de borracha)[4].
Para quem tinha alguma dúvida, isso ficou nítido em plena onda de manifestações, quando na madrugada do dia 24 pra 25 de junho, na sequência à repressão a um ato de protesto, que segundo a polícia teria dado ensejo a atos criminosos, os helicópteros e carros blindados de uma polícia militar armada para a guerra, foram empregados contra a população da favela Nova Holanda, no chamado “complexo” da Maré. O resultado noticiado foi a morte de nove moradores, e um sargento da polícia. O mesmo “complexo” de favelas que, meses depois, em abril de 2014, seria ocupado por tropas da Marinha e do Exército. Localizado à margem da via expressa que liga o maior aeroporto do Rio de Janeiro ao centro da cidade, o conjunto de favelas, cuja visão desde a autopista já era obstada por muros acrílicos pintados, estaria assim “neutralizado” como potencial de perigo para a circulação de delegações e turistas durante o mundial de futebol. No entanto, a ocupação prossegue após o fim da Copa do Mundo, tendo resultado desde abril em outro tanto de mortes de moradores, sempre sob a acusação de pertencerem ao “mundo do crime”.
Nesse sentido, da mesma forma que a demanda por direitos sociais, como transporte, saúde e educação, a reação à violência policial possui também um sentido de classe. Questionar a violência policial é questionar um pilar central da forma atual da dominação de classes no Brasil. As jornadas de junho também questionaram outro dos pilares fundamentais dessa dominação: os monopólios empresariais de comunicação de massas, onde alguns poucos grupos familiares privados controlam a imensa maioria dos canais de comunicação jornalística e rádio-televisiva. Os manifestantes denunciavam a cobertura tendenciosa desses canais sobre os protestos, contribuindo assim, ainda que com muitas contradições, para abrir caminho para o esclarecimento de alguns setores sobre o papel de classe fundamental exercido pelos monopólios empresariais de comunicação.
Por isso alguns intérpretes associaram as “jornadas de junho” a uma explosão de protesto político justamente daqueles setores da classe trabalhadora brasileira que se submetem às novas formas (ou velhas formas reinventadas) de precarização das relações de trabalho. Ruy Braga, por exemplo, acredita que os que foram à rua eram os representantes do “precariado”: “a massa formada por trabalhadores desqualificados e semiqualificados que entram e saem rapidamente do mercado de trabalho, por jovens à procura do primeiro emprego, por trabalhadores recém-saídos da informalidade e por trabalhadores sub-remunerados” (Braga, 2012: 96).
É importante ressaltar que, ao contrário do uso dominante do termo pela literatura sociológica francesa, Braga não distingue completamente o “precariado” da classe trabalhadora, mas considera-o uma parte dela, definindo-o como “a fração mais mal paga e explorada do proletariado urbano e dos trabalhadores agrícolas”, que se diferencia tanto dos “setores profissionais”, mais qualificados e melhor remunerados da classe trabalhadora, quanto da população pauperizada e do lumpemproletariado (Braga, 2012: 19). Não é necessário aceitar o conceito de “precariado” sem reservas para concordar com Braga na avaliação de que a explosão política de junho de 2013 teve como protagonistas setores mais precarizados da classe trabalhadora brasileira, justamente aquele setor mais distante da organização sindical tradicional, porque menos representado por ela.
Ainda assim, e voltando à questão da relação entre as jornadas e as greves, é possível enxergar as manifestações de junho de 2013 como potencializadas por/e potencializadoras de lutas sindicais.
Em primeiro lugar, porque as reivindicações dos manifestantes estavam longe de ser novidades. Trata-se de um conjunto de bandeiras assumidas e propagandeadas pelos movimentos sociais que mantiveram uma perspectiva mais mobilizadora e combativa, mesmo em meio à maré vazante de lutas dos anos 1990 e 2000. Em especial a defesa de mais verbas e melhor qualidade para saúde e educação públicas teve nos sindicatos de trabalhadores desses dois setores no serviço público brasileiro seus principais propagadores. Em 2012, por exemplo, uma grande greve dos trabalhadores da educação no serviço público federal atravessou mais de três meses de enfrentamentos com o governo de Dilma Rousseff, colocando em evidência as condições precárias de expansão do ensino nas instituições federais. Ou seja, as lutas sindicais, ainda que fragilizadas e fragmentadas, das duas décadas passadas foram essenciais para manter em pauta a defesa desses direitos fundamentais. Por isso, não é possível desconsiderar que palavras de ordem ouvias nas manifestações de junho de 2013 - como “- Da copa eu abro mão. Quero dinheiro pra saúde e educação” - possuíssem alguma possibilidade de emergir porque foram antes elaboradas em lutas dos trabalhadores desses serviços públicos.
Por outro lado, as manifestações de 2013 impulsionaram greves e táticas de lutas dos sindicatos mais combativos. Em vários estados do país, sindicatos de profissionais da educação das redes públicas de ensino básico, percebendo o clima de apoio popular à causa pela qual sempre lutaram, fizeram greves no segundo semestre de 2013. No Rio de Janeiro, a greve foi longa, enfrentou a intransigência dos governos estadual e municipal, mas gerou uma nova onda de passeatas multitudinárias em seu apoio, chegando a reunir novamente cerca de 100 mil pessoas nas ruas do centro da cidade em outubro. Muitos dos manifestantes de junho foram às ruas novamente concretizar a palavra de ordem da defesa da educação, consubstanciando-a em apoio ativo à luta dos trabalhadores do setor.
A mesma tática de levar a greve para a rua, na forma de grandes manifestações, foi empregada pelos trabalhadores da limpeza urbana do Rio de Janeiro (os garis), que em pleno carnaval carioca deste 2014 paralisaram suas atividades para garantir melhorias salariais e de condições de trabalho. Apesar do incômodo com o acúmulo de lixo nas calçadas e ruas, em plena festa carnavalesca, a maioria da população da cidade apoiou a greve e quando, em 7 de março, os garis fizeram sua maior manifestação pelo Centro foram fortemente aplaudidos e receberam muitas adesões em seu protesto. Imediatamente após essa demonstração de força, a Prefeitura do Rio de Janeiro, que havia classificado a greve como “motim” e mobilizara escoltas policiais para forçar os garis a trabalharem, chamou os líderes da greve para negociar e a paralisação se encerrou com ganhos substantivos para os trabalhadores.
Greves como essa colocam em questão também a natureza do sindicalismo brasileiro hoje. Embora continue a existir um setor combativo do movimento sindical, que se mobiliza e comanda greves (como entre os profissionais de educação, ou entre os metroviários de São Paulo, que realizaram uma forte greve em junho de 2014, às vésperas do mundial de futebol) e apesar de até mesmo a burocracia mais acomodada em alguns momentos ser obrigada a convocar paralisações do trabalho, o que chama a atenção em muitos desses movimentos grevistas recentes é que eles se fazem à margem das, e muitas vezes contra as, direções sindicais.
Nos anos finais da ditadura e até finais da década de 1980, a emergência do chamado “novo sindicalismo” se fez não apenas através da explosão das mobilizações grevistas, mas também através de um questionamento à estrutura sindical corporativista (vigente no Brasil desde os anos 1930) que valorizava a “autonomia” dos sindicatos. A formação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983, e as lutas levadas adiante por aquela central, como as diversas greves gerais da década de 1980, foram a face mais visível de um movimento combativo que explicitava a diferenciação dos interesses e projetos de classe dos trabalhadores brasileiros em relação à classe dominante. Um quadro complexo de situações - que envolve, entre outros elementos já rapidamente mencionados, a reação dessas direções sindicais ao processo de “reestruturação produtiva”, sua progressiva adaptação à estrutura sindical que antes criticara e a adesão a mecanismos novos de colaboração de classes (como câmaras de negociação tripartites, conselhos de fundos de pensão de empresas estatais e de fundos públicos, etc.) - explica a progressiva conversão do polo sindical antes combativo a uma lógica de atuação mais propensa aos acordos que viabilizaram a retirada de direitos dos trabalhadores e a ampliação da produtividade/lucratividade do capital desde os anos 1990. A chegada do Partido dos Trabalhadores ao governo Federal, em 2003, levou esse processo de incorporação à ordem a um novo patamar, com a nomeação de centenas de dirigentes sindicais para cargos públicos e de gestão de empresas e a transformação da CUT em braço auxiliar das políticas de governo, quebrando a resistência mesmo àquelas contrarreformas de matriz neoliberal às quais tal setor do sindicalismo ainda se opunha[5].
Na greve dos garis cariocas, a direção sindical, encastelada há décadas no sindicato de trabalhadores da limpeza urbana e sempre disposta a colaborar com os governos e a conter mobilizações, não só se posicionou contra a greve, como tentou evitá-la, boicotando a assembleia dos trabalhadores que iria deflagrá-la e anunciando acordos com a municipalidade que nunca foram discutidos pela categoria. Mesmo na greve dos profissionais da educação do Rio de Janeiro no segundo semestre de 2013, dirigida pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (SEPE), cuja composição é majoritariamente de militantes da esquerda mais combativa, houve uma nítida tensão entre o posicionamento da direção (mostrando disposição para negociar acordos que pusessem fim à greve, ainda que sem maiores garantias de conquistas) e uma parcela expressiva das bases, mais radicalizada.
Outro exemplo, bastante significativo, é o das várias greves dos operários da construção civil nos canteiros de obras do Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro (Comperj). Duas delas ocorreram em 2013 e uma terceira, de maiores dimensões, atravessou mais de 40 dias nos meses de fevereiro e março de 2014 (outras menores ocorreriam depois). Novamente aí a direção do sindicato local colocou-se contrária à greve e buscou “negociar” com as construtoras à revelia dos 28 mil grevistas, que por mais de uma vez mantiveram a paralisação dos trabalhos após anúncios de acordo e fim de greve por parte dos dirigentes sindicais. Os protestos dos trabalhadores em greve envolveram fechamento de estradas e incêndio de ônibus e logo no início do movimento, na madrugada de 6 de fevereiro, dois trabalhadores foram feridos à tiros. Várias declarações de envolvidos no protesto acusaram “seguranças” contratados pelo sindicato como responsáveis pelos disparos.
Nos meses seguintes, chamaram a atenção greves de rodoviários, em várias capitais brasileiras, reivindicando melhores salários e condições de trabalho (como o fim da “dupla função” de motoristas obrigados a também fazer a cobrança das passagens). De certa forma, assim como na greve dos trabalhadores do metrô paulistano, as paralisações de rodoviários indicaram o outro lado da questão dos transportes públicos que estava no centro dos protestos do ano anterior, qual seja, as das péssimas condições de trabalho e baixos salários dos trabalhadores neles empregados. analogamente ao caso dos trabalhadores em educação, também nesse caso é possível avaliar que as “jornadas de junho” exerceram um papel de impulso para tais greves. Tanto quanto nas greves da limpeza urbana, nas greves de rodoviários os também trabalhadores paralisaram suas atividades sem o apoio das direções sindicais, ou mesmo se enfrentando com diretorias de sindicatos identificadas com as formas mais tradicionais de colaboração de classe no meio sindical brasileiro.
Não é, entretanto, apenas no plano sindical que podemos observar um efeito “bumerangue” das “jornadas de junho” em relação a lutas anteriores e posteriores. No caso dos movimentos sociais urbanos de luta pelo direito à moradia, por exemplo, o crescimento recente das mobilizações é bastante significativo. O déficit de moradias no Brasil é enorme - com cerca de 7 milhões de famílias (mais de 20 milhões de pessoas) carecendo de um teto - e as grandes obras urbanas relacionadas aos mega-eventos (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016), gerando um amplo número de despejos e remoções agravou as tensões sociais em torno do problema. O melhor exemplo é o do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) que, em junho de 2013, organizou diversas manifestações em conjunto com outras organizações nas periferias dos grandes centros, especialmente em São Paulo, e protagonizou uma série de ocupações de terrenos urbanos por milhares de famílias em busca de uma moradia digna, tendo tido desde então expressivas conquistas nesse terreno, o que confirma a importância das lutas territoriais e por direitos reprodutivos, numa configuração das relações de trabalho marcada pela precariedade e fragmentação espacial da exploração[6].
Em que ponto estamos?
Este texto foi concluído em meados de setembro de 2014. O número e o impacto público das greves do primeiro semestre não está se repetindo nos meses seguintes ao mundial de futebol. Podemos especular que as direções sindicais mais comprometidas com o apoio ao governo federal, que estão à frente do maior número de sindicatos e da principal central sindical do país (a CUT), tem todo o interesse em conter as mobilizações numa conjuntura de eleições gerais, que ocorrerão em outubro. Há, no entanto, um outro fator explicativo relevante.
Em 11 de julho deste ano de 2014, às vésperas do jogo final do torneio mundial de seleções de futebol que se realizava no Brasil, a justiça do Rio de Janeiro, local da partida decisiva, expediu um mandado de prisão temporária contra 19 pessoas acusadas de planejarem e executarem atos criminosos durante manifestações públicas, que se realizaram desde 2013. Presos os 19 acusados, após escaramuças judiciárias alguns foram libertados (em um segundo momento se decretaria a prisão preventiva dos 19 e mais outros 4 ativistas), e outros permaneceram encarcerados, até que os mandados acabassem por ser revogados via habeas corpus de instância superior, em 23 de julho. Do ponto de vista das regras jurídicas brasileiras, os mandados eram aberrações completas, pois baseados em inquéritos policiais montados a partir de evidências inexistentes ou muito frágeis. Sua base seriam depoimentos de supostos ex-militantes, que teriam se apresentado espontaneamente à polícia em decorrência de traições amorosas, ou rancores pessoais, somados a escutas telefônicas de conteúdo pouco esclarecedor, chegando-se ao ponto de se arrolar entre os suspeitos (porque mencionado em uma mensagem) o revolucionário russo Mikhail Bakunin, até que provem o contrário, falecido em 1876.
A primeira impressão da maioria dos militantes e analistas era de que tal aberração jurídica estava sendo utilizada de forma “preventiva” pelo Estado brasileiro, com o objetivo de tentar evitar manifestações de vulto no dia da “grande final” entre os selecionados de Argentina e Alemanha. De fato, ocorreram manifestações, no domingo 13 de julho, em um bairro próximo ao estádio do Maracanã e a repressão policial foi brutal, com um contingente de 2.000 policiais utilizado para cercar, manter acuados por horas em uma praça, atacar com bombas de gás e muita pancada, um número igual ou inferior de manifestantes desarmados.
No entanto, a Copa do Mundo acabou e as prisões arbitrárias se mantiveram, ampliando-se as informações sobre outros acusados e novos inquéritos que estariam em curso, como, por exemplo, contra organizações sindicais, acusadas de financiar os atos de “vandalismo” dos grupos e militantes encarcerados e/ou processados. O que faz surgir outra indagação: seria toda essa fúria repressiva motivada pela garantia à realização da Copa do Mundo de futebol ou, ao revés, o campeonato mundial de seleções foi utilizado como pretexto para mais um avanço na escalada repressiva e criminalizante sobre os movimentos sociais e militantes que se mobilizam com algum tipo de perspectiva de confronto contra a ordem estabelecida?
Afinal, em todos os movimentos que emergiram nos últimos meses, sociais em sentido mais amplo e sindicais em um sentido mais restrito, uma característica em comum pode ser destacada: todos, sem exceção, enfrentaram dura repressão estatal.
Despejos violentos, no caso das ocupações urbanas; decisões judiciais favoráveis à punição dos grevistas e violência policial na repressão às manifestações das categorias em greve foram elementos constantes a comprovar a prioridade conferida pelo Estado à repressão das mobilizações, com recurso à criminalização de movimentos, organizações e militantes combativos.
Não é novidade que essa mesma força policial militar seja cotidianamente empregada contra todos os movimentos da classe trabalhadora que nas últimas décadas tenham ousado enfrentar os interesses do latifúndio no campo, da especulação imobiliária nos grandes centros urbanos ou da “paz industrial” nos espaços da produção. Basta lembrar, para ficarmos em poucos exemplos, os massacres de trabalhadores rurais sem-terra (como em Eldorado dos Carajás, Pará, em 1996), o despejo violentíssimo dos moradores do Pinheirinho, em São José dos Campos, São Paulo, em 2012 (com inúmeras denúncias de espancamento, incluindo uma resultante em morte), ou a repressão às greves dos últimos anos nas obras das grandes hidroelétricas em construção na Amazônia, como nos canteiros da usina de Jirau, em Rondônia, que também envolveram relatos de operários mortos por espancamento, desaparecidos e mais de uma centena de presos.
No entanto, tendo em vista a ascensão das lutas que se seguiu às “jornadas de junho”, podemos voltar ao caso das prisões no período final da Copa do Mundo combinado à extrema violência na repressão às manifestações naquele momento, para levantar a hipótese de que assistimos agora a um esforço de contenção no nascedouro, pela via do uso desabrido da violência exemplar do Estado, de um novo ciclo de lutas da classe trabalhadora brasileira que ameaça despontar no horizonte. Um esforço que se combina ao papel de colaboração com a ordem instituída, desempenhado pela maior parte das direções sindicais e que, ao menos até onde se pode avaliar neste momento, parece estar sendo bem sucedido.
Só com o passar do tempo poderemos ter condições para avaliar realmente se estamos diante de um novo ciclo de crescimento das lutas organizadas da classe trabalhadora no Brasil, que crie condições para a superação de tais obstáculos, em seus aspectos de coerção e consenso. No entanto, pode-se dizer desde já que, entre outras questões importantes postas pelas manifestações, greves e ocupações, parece ser fundamental compreender que uma nova onda de mobilizações grevistas, que possa recolocar a classe trabalhadora organizada no centro do debate político nacional, dependerá, por um lado, da capacidade das bases sindicais e dos dirigentes mais combativos de alargarem as lutas, através de mobilizações de massas que envolvam também os setores mais precarizados e menos organizados da classe trabalhadora, que demonstraram seu potencial de descontentamento em junho de 2013 e nos movimentos seguintes, de forma a unir sindicatos e movimentos mais combativos em uma só frente de lutas. A formação de frentes de lutas entre mobilizações sindicais/ grevistas e lutas territoriais urbanas, por exemplo, pode gerar um outro patamar de organização para a retomada das mobilizações de rua. Por outro lado esse novo crescimento do patamar de lutas sociais dependerá também - tanto no plano sindical quanto no que tange à maioria das direções dos movimentos sociais - de uma renovação dos quadros organizativos, com a substituição de burocracias, esclerosadas em função do colaboracionismo de classes, por novas lideranças surgidas das greves e mobilizações que se enfrentam com esses burocratas.
Referências
Badaró Mattos, Marcelo 2009 Reorganizando em meio ao refluxo: ensaios de intervenção sobre a classe trabalhadora no Brasil recente (Rio de Janeiro, Vício de Leitura).
Braga, Ruy 2012 A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista (São Paulo: Boitempo).
Braga, Ruy 2014 “Cenedic: uma sociologia à altura de Junho”, in https://blogdaboitempo.com.br/cate-gory/colunas/ruy-braga/.
Boulos, Guilherme 2014 Por que ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto, 2ª. Ed., (São Paulo, Scortecci).
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (DIEESE) en https://www.dieese.org.br/. Fórum 2014 “Quase um terco dos brasileiros vive nas periferias urbanas”, janeiro.
Justiça Global in global.org.br.
Notas