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Recepção: 16 Março 2024
Aprovação: 21 Abril 2024
Resumo: Este artigo tem por objetivo refletir sobre as limitações do Currículo Mínimo (2013) da formação inicial de professores e professoras na rede estadual de ensino do Rio de Janeiro, a partir da experiência enquanto professora da disciplina de Práticas Pedagógicas e Iniciação à Pesquisa (PPIP), na qual se organizam os estágios necessários à formação docente. Há claramente, no discurso normativo, a despeito de toda produção acadêmica brasileira em relação aos currículos, a perspectiva da formação docente enquanto lócus de um impossível antagonismo entre dois vieses que, por sua natureza, estão imbricados: teoria e prática. É importante perceber que o ‘mínimo’ se trata do elenco de conhecimentos convocados a estabelecer uma educação inspirada nos acessos neoliberais do contexto político em que foi elaborada. Cabe refletir sobre atravessamentos necessários neste currículo, no sentido de podermos elaborar alternativas para superar o que o normativo propõe como mínimo-resultado, enviesando a escuta de narrativas, como possibilidade de operar um currículo insaisissable (Certeau, 2016). O argumento é de que o Currículo Mínimo reproduz a expressão das políticas públicas de educação no âmbito do estado do Rio de Janeiro, ainda mais perversa do que as políticas curriculares anteriores, porque não disfarça a sua visão parcializada da formação docente de educação ranqueada. A proposta seria o deslocamento do entendimento do trabalho de formação pedagógica para além da dicotomia teoria/prática, a partir da narrativa como dispositivo metodológico das disciplinas empíricas, identificadas como laboratórios e estágios, no Curso Normal, na perspectiva da produção de currículo como espaço de enunciação de culturas. Neste contexto, alguns autores vão influenciar no arcabouço teórico deste trabalho, como Daniel Hugo Suárez (2023), que contribui com a reflexão de alternativas metodológicas para a escuta-ação das narrativas de professores e professoras, com a pressuposição do processo narrativo como formativo e performativo; e a autora Íris Verena Oliveira (2020), com trabalho com grupos de experiência; além dos enlaces conceituais pós-estruturalistas, como a metáfora vespa-orquídea (Deleuze; Guattari, 2007; 2007a).
Palavras-chave: currículo, cultura, formação, docente, narrativa.
Abstract: This article aims to reflect on the limitations of the minimum curriculum (2013) of the initial training of teachers in the state school system of Rio de Janeiro, from the experience as a teacher of the discipline of Pedagogical Practices and Initiation to Research (PPIP), in which the necessary internships for teacher training are organized. There is clearly, in the normative discourse, despite all Brazilian academic production in relation to curricula, the perspective of teacher education as a locus of an impossible antagonism between two biases that, by their nature, are intertwined: theory and practice. It is important to realize that the “minimum” is the list of knowledge called upon to establish an education inspired by the neoliberal approaches of the political context in which it was elaborated. It is necessary to reflect on the necessary crossings in this curriculum, in order to be able to elaborate alternatives to overcome what the normative proposes as a minimum-result, biasing the listening of narratives, as a possibility of operating an insaisissable curriculum (Certeau, 2016). The argument is that the Minimum Curriculum reproduces the expression of public education policies in the scope of the state of Rio de Janeiro, even more perverse than previous curriculum policies, because it does not disguise its biased view of Teacher Education ranked education. The proposal would be the displacement of the understanding of the pedagogical training work beyond the theory/practice dichotomy, from the narrative as a methodological device of the empirical disciplines, identified as laboratories and internships, in the Normal Course, in the perspective of curriculum production as a space for enunciation of cultures. In this context, some authors will influence the theoretical framework of this work, such as Daniel Hugo Suárez (2023), who contributes with the reflection of methodological alternatives for the listening-action of the narratives of teachers, with the assumption of the narrative process as formative and performative; and the author Iris Verena Oliveira (2020), with work with experience groups; in addition to post-structuralist conceptual links, such as 2007; 2007a).
Keywords: narrative, teacher education, curriculum, culture.
Contexto do texto: por que mínimo?
O livro sobre nada
"Não pode haver ausência de boca nas palavras:
nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
(...) Não gosto de palavra acostumada”.
Fonte: Manoel de Barros, 2023
Qual a importância da palavra narrada na formação docente? Essa questão central moveu as inquietações deste trabalho, que resultou no projeto aprovado para o Doutorado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no qual, no momento, me encontro estudando para fazer os devidos ajustes teóricos e metodológicos para esta pesquisa. Neste sentido, emergiu o desejo de refletir sobre os atravessamentos curriculares construídos a partir das experiências como professora de disciplinas pedagógicas do Curso Normal no Instituto de Educação Governador Roberto Silveira e no Colégio Estadual Graham Bell, na cidade de Duque de Caxias, no estado do Rio de Janeiro, onde trabalhei com a disciplina de Práticas Pedagógicas e Iniciação à pesquisa (PPIP), na qual se organizam os estágios necessários à formação.
Considero que existem muitas limitações em um texto escrito. Há palavras que não alcançam de forma completa os desejos docentes. Toda palavra, ao significar, captura um sentido, uma significação que dá conta, provisoriamente, do que se propõe. Neste sentido, a leitura de um documento curricular sempre será um movimento de propor problematizações, movimento esse que não se contenta com os sentidos superficiais e ingênuos dados às palavras.
Neste seguimento, ao ser convocada para assumir o cargo de professora de disciplinas pedagógicas em 2016, pesquisando o documento curricular das disciplinas de laboratórios, que assim como as disciplinas de Práticas de Pedagógicas são interligadas e compreendem a carga horária necessária para o cumprimento dos estágios supervisionados, com a finalidade de elaborar o plano de curso anual desses componentes curriculares, a primeira inquietação que senti foi com o nome “Currículo Mínimo”. Já que as discussões em âmbito federal falavam em parâmetros, diretrizes e base, por que o discurso normativo da formação docente no âmbito da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro intitulava como “mínimo” o corpo de conhecimentos?
Ao longo de todo o processo ensino-aprendizagem, sempre se criticou a enorme valorização que a teoria (conteúdo) exerce sobre a prática (realidade). Nos cursos de formação docente, esta constatação aparece nas pesquisas que tratam sobre as dificuldades daqueles que, pela primeira vez, assumem o desafio de uma sala de aula real. O Estágio realizado durante o processo de formação é sempre supervisionado e acompanhado pelo professor titular. No entanto, após a formatura, as observações feitas, as aulas assistidas, os relatórios e as atividades discentes servem de subsídio teórico (igualmente importante e necessário no processo de formação) que acabam por não responder, satisfatoriamente, às questões do cotidiano escolar. (Currículo Mínimo, 2013b)
Ao prosseguir a leitura do documento, mais inquietações surgiram no sentido de compreender que existe uma tradição em classificar o Curso Normal, instituído como lócus de primeira formação docente, enquanto um espaço de formação de enfoque empírico, como se o trabalho pedagógico pudesse prescindir da teoria.
Há, claramente, no discurso normativo, a despeito de toda produção acadêmica brasileira em relação aos currículos, a perspectiva de que escola normal ainda está organizada em um impossível antagonismo entre dois vieses que, por sua natureza, estão imbricados: teoria versus prática.
Outrossim, o argumento é de que o Currículo Mínimo é uma expressão das políticas públicas de educação no âmbito do estado do Rio de Janeiro ainda mais perversa do que as políticas curriculares anteriores, pois não disfarça a sua visão parcializada e dicotômica da formação docente de educação ranqueada. Surge a partir do momento em que o Curso Normal é invisibilizado como possibilidade de formação docente nos documentos oficiais do Ministério da Educação, até porque a Lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDBEN n.º 9.394/96, instituiu a década da educação, e ao final dela só seriam admitidos professores com formação em nível superior. As políticas públicas subsequentes não deram continuidade ao fim dessa modalidade de formação docente, mas a valorização necessária não veio.
Trata-se de um cenário deveras incômodo para os atores de chão da escola, em que esses profissionais que se veem sem diretriz dialógica, desmerecidos em sua caminhada profissional. Nessa lógica, faz-se necessária a produção de um outro currículo que questione o escrito, o normativo, que dialogue com suas premissas identitárias, provocando deslocamentos, permitindo a expressão de singularidades outras. É importante perceber que o “mínimo” se trata de elenco de conhecimentos convocados a produzir uma educação inspirada nos acessos neoliberais da política daquele momento, em que o governo do partido de direita MDB (Movimento Democrático Brasileiro) esteve à frente na liderança, de 2007 a 2018. Neste caminho, para problematizar essa construção curricular coisificada, trago o pensamento de Macedo e Pereira (2017):
Ao tratar o problema pelo viés da inclusão de conteúdos, desponta uma compreensão de currículo como listagem de conteúdos pensada por uns e executada por outros, na contramão das discussões sobre práticas curriculares referenciadas ao longo desse texto (Macedo, 2018). Além disso, chama à atenção a perspectiva de currículo como repertório, numa ideia de cultura como coisa. (Macedo; Pereira, 2017, p. 17)
Não obstante, se faz necessário tensionar as tentativas liberais de reduzir ao mero embate a relação teoria e prática na elaboração do currículo da formação docente, a partir de uma perspectiva fetichista de mercado, em documentos baseados nos desejos dos organismos internacionais de avaliação, nos quais o resultado é mais importante que o processo, fomentando, ainda que uma autonomia relativa é uma escolha de formar para as necessidades do mercado, desconsiderando singularidades e idiossincrasias, pois, de acordo com Laval (2004):
A economia foi colocada, mais do que nunca, no centro da vida individual e coletiva, sendo os únicos valores sociais legítimos dos da eficácia produtiva, da mobilidade individual, mental e afetiva e do sucesso pessoal. Isso não pode deixar ileso o conjunto do sistema normativo de uma sociedade e seu sistema de educação. (Laval, 2004, p. 15)
Assim, cabe refletir sobre atravessamentos necessários neste currículo, no sentido de podermos elaborar alternativas para superar o que o normativo propõe como mínimo-resultado, enviesando a escuta de narrativas como possibilidade de operar um currículo enquanto elemento “insaisissable’’ (Certeau, 2016).
Trabalho com narrativas como dispositivo metodológico: escutas necessárias para romper com o mínimo
A organização de disciplinas do Currículo Mínimo do Curso Normal da rede estadual de ensino divide-se em duas vertentes: 1. Disciplinas do Ensino Médio; e 2. Disciplinas pedagógicas. As disciplinas pedagógicas estão decompostas em: a) Fundamentos da educação; b) Conhecimentos didáticos metodológicos; c) Laboratórios pedagógicos; e d) PPIP. Destarte, esses dois últimos blocos estão inseridos na organização dos estágios supervisionados. Neste sentido, mais do que cuidar da parte burocrática necessária à disciplina, assistir às aulas práticas e realizar a leitura de relatórios de observação, era preciso cuidar, em especial, dos momentos de escuta das observações realizadas por professorandas e professorandos no decorrer dos estágios. Não obstante, é importante observar no Currículo Mínimo um certo prejuízo em relação à dinamização de disciplinas teóricas e práticas. Há certa sugestão no enfoque na valorização da prática pedagógica, como se esta não estivesse prenhe de teoria.
Além disso, é possível observar um enfoque no sentido de forjar o cidadão, futuro docente, a partir de uma visão de mundo em que há a predominância da hegemonia neoliberal, o ser humano ideal que é possível projetar e que é uníssono, por mais que o documento normatize numa compreensão de que o futuro professor e a futura professora sejam autônomos. No entanto, a partir de um elenco de conhecimentos a partir dos quais será produzido o currículo instrumentalizador, ou seja, a única fonte de construção almejada da identidade docente, limita-se qualquer debate sobre possibilidades criadoras e autorais do futuro docente.
(...) ressalta-se a inclusão de espaços efetivos visando a preparar os futuros docentes para a promoção de uma educação inclusiva e para a construção do conhecimento, numa abordagem que permitisse diálogos entre os componentes curriculares, a realidade da sala de aula e o perfil de profissional da escola que desejamos projetar. (...) O objetivo da disciplina não é se constituir em uma “receita” a ser aplicada pelo(a) professor(a) de forma mecânica e sim instrumentalizar os(as) futuros(as) professores(as) para se tornarem autônomos na importante tarefa que é lidar com a infância. (Currículo Mínimo, 2013b, p. 2-4, grifos nossos)
No documento em questão, há uma escrita crítica, apresentando indicações de que no currículo anterior existia a valorização superestimada da teoria, relegando à prática um papel secundário ou inferior. Contudo, uma análise mais criteriosa do escrito atual permite problematizações interessantes para se entender o que se propõe nas entrelinhas do documento, pois “espera-se aproximar a prática à dimensão teórica, para conhecer e refletir melhor sobre o fazer docente” (Currículo Mínimo, 2013b, p. 3). Ainda que se perceba a intenção de ligar teoria e prática, de não oposição, segue constituindo-se em uma percepção divisória, apartada, que busca aproximar e não entrelaçar, que procura avizinhar as noções ou dimensões, impondo um limite, um afastamento. Acompanhando essa ideia, a inspiração vem do trabalho com narrativas de professores quilombolas na Bahia, da professora Íris Verena Oliveira (2020, p. 12): “a educação foi pensada como leitura de mundo a partir de um horizonte duplo de referências composto por signos, que a universidade não domina e por outros que não compõe o repertório da comunidade”. Assim como a universidade precisa se emprenhar do repertório da comunidade, não sendo percebidos como apartados, as dimensões empíricas e teóricas não existem de modo arredado.
Neste sentido, a questão inicial que se coloca é a organização do trabalho pedagógico do professor formador como uma terceira via à escuta das narrativas de docentes e futuros docentes. A proposta seria o deslocamento do entendimento do trabalho de formação pedagógica para além da dicotomia teoria/prática, a partir da narrativa como dispositivo metodológico das disciplinas empíricas. Estas são identificadas como laboratórios e estágios, no Curso Normal, vistas como produção do que Frangella (2009, p. 2) propõe, inspirada em Bhabha: o currículo como enunciação da cultura “possibilidade de outros tempos de significado cultural e outros espaços narrativos”. Nesta perspectiva, procura-se mobilizar a problematização das práticas curriculares sugeridas no Currículo Mínimo, utilizando os espaços narrativos como produção criativa das professorandas e dos professorandos, reconhecendo esses espaços como currículo não-mínimo, como currículo plural. A experiência de Suarez (2023) ajuda a compreender que:
Los docentes dan cuenta del “currículum vivido”, nos hablan de ámbitos de creación, re-creación y resignificación que configuran una trama, donde lo emergente cobra un lugar fundamental. El currículum es pensado, transitado y narrado como experiencia, como lo que nos afecta y acontece con aquello que sucede y está planeado, con lo imprevisto y con lo que nos deja huella. (...) A su vez, el dispositivo habilitó para los docentes una posición distinta de la habitual: la de actores centrales de la producción pedagógica y como autores protagonistas en la tarea de contar sus experiencias. (Suarez, 2023, p. 12)
Os professores dão conta do “currículo vivido”, falam-nos de áreas de criação, recriação e ressignificação que compõem uma trama, onde o emergente assume um lugar fundamental. O currículo é pensado, percorrido e narrado como experiência, como aquilo que nos afeta e acontece com o que acontece e é planejado, com o imprevisto e com o que nos marca. (...) Ao mesmo tempo, o dispositivo possibilitou aos professores uma posição diferente da habitual: a de atores centrais na produção pedagógica e de autores protagonistas na tarefa de contar suas experiências. (Suarez, 2023, p. 12)
Suarez (2023), a partir da sua experiência, mostra a importância do trabalho com narrativas na formação continuada de professores e professoras na Argentina. No âmbito das políticas públicas, enquanto estava como Coordinador del Programa de Desarrollo Curricular, no Ministerio de Educación de la Nación, percebeu o quanto a reconstrução em primeira pessoa das lembranças dos fazeres e saberes operados em sala de aula, na escuta coletiva, pode ser condutora e multiplicadora de saberes pedagógicos compartilhados. Por conseguinte, desmistifica-se a noção de que a prática se constitui de forma autônoma da teoria, ao falar sobre suas referências empíricas e do cometimento delas que só se permitem a partir de visões teóricas que engendramos, mesmo que instintivamente.
Neste sentido, a partir de uma perspectiva de deslocamento, propõe-se a superação da visão colonizadora de instrumentalidade na formação docente por uma outra elaboração das disciplinas empíricas e teóricas, de entrelace, superando a dicotomia. Suárez (2023) contribui para refletir alternativas de metodologias de encontro à escuta-ação das narrativas de professores e professoras. Por extensão, penso na importância desses dispositivos na formação inicial, assim como na continuada.
O que propus, enquanto professora de disciplinas pedagógicas do Curso Normal, era que o momento de escrita fosse também momento de escuta. Ao trabalhar os relatórios de observação de estágio das professorandas e professorandos, era oportunizado um momento para ouvir os tópicos dos relatórios, com a permissão para que quem quisesse, gravasse para ouvir depois, com o objetivo de uma reescrita mais fluida e mais pujante. Percebe-se que a fala é sempre mais rica do que a escrita, que a escrita limita o que a oralidade decifra através de opiniões ou de percepções que o papel, por vezes, inibia. A operação do professor-formador é arranjar a organização de espaços e momentos, dentro do tempo disponibilizado na matriz curricular para estas disciplinas, para propiciar a ação-formação docente. Para Suarez (2023), esse processo é formativo, autobiográfico e autoformativo, nessa esteira, também performativo, na medida em que pode produzir formas de se constituir docente em seu contexto histórico.
Como se produz o mecanismo de “lavar a mãos” nos documentos curriculares, na ocorrência de publicação de uma lei para garantir a inclusão de determinadas culturas não hegemônicas, apenas a publicação de uma lei não garante que “no chão da escola” a implementação do desejo legal aconteça. No entanto, o que foi produzido ainda é currículo, mesmo com apagamentos, com culturas deslegitimadas e apagadas, refletindo outras culturas. Um exemplo disso são as comemorações do “Dia do índio” nas escolas públicas, com as crianças indo para casa, fantasiadas numa alusão equivocada aos povos originários, uma visão ainda muito presente nas escolas de viés simplista e reducionista acerca das culturas espoliadas; como também a Semana da Consciência Negra, que promove comemorações no mês de novembro. Trata-se, portanto, de reflexos superficiais do que as Leis n.º 10.639/2003 e n.º 11.645/2008 devem garantir em relação à importância da contribuição dos povos africanos e originários à nossa cultura enquanto nação.
Neste sentido, é interessante o trabalho realizado pela pesquisadora Íris Oliveira (2020) na formação de professores quilombolas na Bahia, podendo, inclusive, inspirar novas perspectivas de organização das disciplinas do currículo de formação de professores, que aproveitem a escuta desses sujeitos. Com o dispositivo metodológico grupos de experiências se oportuniza a fala de educadores’, para compreensão e reflexão do currículo que se constitui nessas comunidades.
Narrativas-ficção como desvãos ‘insassisable’ dos documentos curriculares
As narrativas não serão fidedignas ao vivido, tampouco serão detalhadas. Neste sentido, não devem ser interpretadas como simulacro da realidade. Na verdade, não existe essa pretensão em nossa proposta de escuta. Não é interessante traduzir literalmente as possibilidades de experiências curriculares, mas, certamente, as narrativas traduzem indícios do tempo, do espaço e do contexto vivido.
A partir dessa ideia, problematizo a tradução de ficção em Certeau (2016, p. 45), dos “quatro funcionamentos possíveis da ficção no discurso do historiador”, que ao escrutinar esse conceito em relação à história, à realidade, à ciência e, finalmente, ao que mais aqui interessa, ao “propre’’, que para a língua portuguesa foi traduzido como “limpo”, realiza uma reflexão da cientificidade da ficção e sua utilidade para interpretações em pesquisas científicas em que as narrativas são o mote.
A ficção e o “limpo”. A ficção, por último, acusada de não ser um discurso unívoco ou, dito por outras palavras, de carecer de “limpeza” (propreté) científica. Com efeito, ela lida com uma estratificação de sentido, relata uma coisa para exprimir outra, configura-se em uma linguagem da qual extrai, indefinidamente, efeitos de sentido que não podem ser circunscritos, nem controlados. (Certeau, 2016, p. 47-48).
Nesses termos, a ficção permite, em parte, apreender das falas os contextos históricos em que os narradores viveram, sem compromisso com a realidade ou veracidade do fato narrado. A ficção deseja apresentar o conteúdo ficcional produzido – que também diz muito sobre a caminhada formativa de professores e professoras – como elemento “insaisissable” do currículo, inacessível a determinações apriorísticas. A indeterminabilidade da produção ficcional é o viés de onde se percebe as narrativas enquanto instâncias que podem trazer nos discursos as imaterialidades impossíveis de serem determinadas de antemão nos documentos curriculares:
Elle se meut, insaisissable, dans le champ de l’autre. Le savoir ne s’y trouve pas en lieu sûr, et son effort consiste à l’analyser de manière à la réduire ou traduire en éléments stables et combinables. De ce point de vue, la fiction lèse une règle de scientificité. C’est la sorcière que le savoir travaille à fixer et classer, en l’exorcisant dans ses laboratoires. (Certeau, 2016, p. 45).
Movimenta-se, imperceptível, no campo do outro. Nessas circunstâncias, o saber não encontra lugar seguro e seu esforço consiste em analisá-la de maneira a reduzi-la ou traduzi-la em elementos estáveis e combináveis. Desse ponto de vista, a ficção lesa uma regra da cientificidade: é a feiticeira que o saber se empenha em fixar e classificar, ao exorcizá-la em seus laboratórios. (Certeau, 2012, p. 48).
Perceba que o tradutor utiliza, para o termo “insaisissable’’, a palavra “imperceptível”, para a qual existe uma palavra equivalente no francês imperceptible. De fato, “insaisissable’’ também tem sido traduzido como inacessível (“inaccessible”), intocável (“intouchable”), e não é função deste texto propor outra palavra, mas entender o quão interessante é a performatividade dos significados que contêm um único signo linguístico.
Um estudo um pouco mais aprofundado da palavra contribui melhor para o que significa a ficção num contexto de pesquisa. No caso das narrativas, a compreensão de falsas expectativas de fidedignidade no ato de ouvir e traduzir o currículo plural surge dessas mesmas, em tese, interpretando essas subjetividades.
Não obstante, “insaisissable” é um termo que surge do século 18 e deriva da palavra “saisir” (agarrar), verbo transitivo e nominal, do século XI, que tem origem “do antigo alto alemão “sazjan”: atribuir a alguém (Dictionnaire de L’académie Française, 2023). Entre os sentidos que procedem de “saisir”, dois interessam bastante:
Pegue alguém ou algo para que você possa carregá-lo, erguê-lo, segurá-lo, etc. Segure uma caçarola pelas alças para removê-la do calor. Para realizar essa figura, o skatista agarra a parceira pela cintura. Os dois judocas se agarraram pelas mangas do quimono.
Especialmente. Marinha. Segure, fixar algo por uma corda, encordoamento. Inserir material, um recipiente.
Apreender, distinguir pelos sentidos. A partir daqui, compreendemos toda a paisagem com um olhar. Só consegui pegar trechos da conversa deles.
Fig. Projete com clareza, entenda. Uma nuance difícil de entender. Ela entendeu perfeitamente a minha intenção. Não compreender o significado de uma pergunta. O pintor entendeu a semelhança entre os dois irmãos. (Dictionnaire de L’académie Française, 2023a)
A palavra “saisir” indica algo paupável, agarrável, no sentido físico de “pegar com as mãos”, como também algo que perpassa pelos sentidos intocáveis, como ouvir, ver, entender. Essa separação dos sentidos sugere a multiplicidade de significados que emergem para nossa compreensão de um currículo plural. À vista disso, depreende-se que este é “insaisissable”, na medida em que é inagarrável a priori e é inapreensível quando narrado. Neste sentido, é da ordem da impossibilidade a definição, não há garantias de efetivação do prescrito e da fidedignidade do narrado. É sempre devir:
2. Que não pode ser apreendido, apreendido, que escapa constantemente. Um ladrão esquivo. O inimigo era esquivo. Os fugitivos permaneciam foragidos.
3. Fig. O que não pode ser claramente percebido pelos sentidos ou pelo entendimento. A nuance entre esses dois termos é quase indescritível. Fam. Dito de uma pessoa cujo caráter é esquivo, cuja conduta parece incompreensível. (Dictionnaire de L’académie Française, 2023)
Nesta perspectiva, as definições de “dizendo e o dito”, em Lévinas (Haddleston, 2021, p. 35), mobilizam reflexões sobre os espaços narrativos, onde o narrar se constrói ao visitar o momento falado, com suas peculiaridades. Ouvir o dito é habitar o outro temporariamente, fixar provisoriamente significados. A escuta de narrativas é um movimento de preocupar-se mais com o dizendo, na medida mesma em que este é o agenciamento da ficção, tornando-se dito:
O dizendo designa aquilo que na linguagem transborda dos limites do ser e os sinais da proximidade simultânea (...). O dizendo é o excesso da linguagem, sua abertura e resistência a um único e restrito conjunto de significados. O dito, por sua vez, é a expressão de uma essência, um tema ou conteúdo; ele nomeia o movimento da linguagem em direção à identificação e à contenção de seu referente. (Haddleston, 2021, p. 35)
Esse movimento de rompimento com a cientificidade tradicional mobiliza o agenciamento de outras perspectivas epistemológicas, como também outros olhares ontológicos e éticos em relação ao estar no mundo, ao estar na sala de aula, ao produzir currículo. Não obstante, aprecia-se a metáfora vespa-orquídea, de Deleuze e Guattari (2007a, p. 87), “devir não é ser”, que os autores utilizam para interagir com os conceitos de aliança e filiação: “há um bloco de devir que toma a vespa e a orquídea, mas do qual nenhuma vespa-orquídea pode descender” (Deleuze; Guattari 2007, p. 19). Nessa esteira, compreende-se que essa relação não produz por descendência, mas é uma interação, agenciamento da palavra por aliança. Então, argumenta-se que as narrativas das práticas curriculares, como elemento ‘insaisissable’ do currículo, não se produzirão de modo fixo. Não são, de modo algum, possíveis de serem acordaçadas; são imperceptíveis e inapreensíveis. Por isso, são ciência, são interações que não ambicionam medição, estratificação ou delimitação. Até porque não podem ser fidedignas, mas precisam ser compreendidas através do que devem. São blocos de devir, engendram alianças. Entender como esse movimento produz o currículo como enunciação da cultura é tarefa dos professores formadores.
Para compreender essa relação é preciso romper com a cientificidade moderna, estrutural. Depreende disso que “se o escritor é um feiticeiro é porque escrever é um devir” (Deleuze; Guattari, 2007, p. 19), os artífices do currículo também o são. É preciso reconhecer que a ciência moderna não dá conta de outras ontologias, e que a ficção “é a feiticeira que o saber se empenha em fixar e classificar, ao exorcizá-la em seus laboratórios” (Certeau, 2012, p. 48), mas, ainda é saber, é currículo que nunca deveria ter como epíteto, como diria Manoel de Barros (2023) a “palavra acostumada”: mínimo.
O livro sobre nada
“Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim.
Ela deseja que eu a seja.”
Fonte: Manoel de Barros, 2023
Referências bibliográficas
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