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Representação de famílias e educação dos filhos em amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade (1944)
Práticas Educativas, Memórias e Oralidades, vol. 5, núm. 1, pp. 1-17, 2023
Universidade Estadual do Ceará

Artigo

Práticas Educativas, Memórias e Oralidades
Universidade Estadual do Ceará, Brasil
ISSN-e: 2675-519X
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 5, núm. 1, 2023

Recepção: 02/08/2023

Aprovação: 17 Setembro 2023

Resumo: O presente artigo tem por finalidade realizar uma análise da obra modernista Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade (1944), buscando evidenciar, a partir do romance, como as famílias ricas paulistanas da República Velha foram nele abordadas, bem como o que tal texto pode revelar acerca da educação dos filhos. Utilizou-se, nesse empreendimento, sobretudo, a noção de representação, considerando que tal categoria não se confunde com imitação do real, mas edificação feita a partir dele, bem como que a literatura é artefato cultural apta a revelar sentidos atribuídos ao mundo, e que esses sentidos manifestam-se em palavras, imagens, discursos, práticas e coisas. Quanto ao método, foi utilizada a noção de operação historiográfica (Certeau, [1975]/2020), que consiste em análise crítica de vestígios do passado transformados em fonte.

Palavras-chave: Amar, verbo intransitivo, História da educação, Representação de família, Representação de educação dos filhos.

Abstract: The purpose of this article is to analyze the modernist work To Love, intransitive verb, by Mário de Andrade (1944), seeking to show, from the novel, how the rich families of São Paulo of the Old Republic were approached in it, as well as what such text can reveal about the education of children. The notion of representation was used in this enterprise, considering that this category is not confused with imitation of the real, but edification made from it, as well as that literature is a cultural artifact capable of revealing meanings attributed to the world, and that these meanings are manifested in words, images, speeches, practices and things. As for the method, the notion of historiographical operation (Certeau, [1975]/2020) was used, which consists of critical analysis of traces of the past transformed into a source.

Keywords: To Love, intransitive verb, History of education, Representation of family, Representation of children's education.

1 Introdução

Iniciamos nossa reflexão com uma tormentosa observação do historiador francês Lucien Febvre (1989, p. 31), de que um poema, um quadro, um drama são artefatos da cultura que servem, no ponto de vista da história, como potentes elementos ou testemunhos para compreender o passado ou as forças extrínsecas que permearam a escritura ou a confecção. O assombro refere-se ao fato de que, tradicionalmente, até a escola dos Annales, apenas documentos oficiais eram considerados fontes dotadas de legitimidade como rastro e voz do passado. Era uma visão positivista e tal movimento francês alterou os rumos da historiografia no compasso da formulação de novos objetos, abordagens e problemas históricos que, correspondentemente, passaram a demandar a ampliação do universo de fontes (Le Goff; Nora, 1995).

Aliás, embora possa haver dissídio entre alguns teóricos que compreendem que a arte não seria adequado vestígio do passado para o mister de narrar acontecimentos de forma precisa, parece oportuno lembrar tão somente que literatura é arte, de modo que, embora o autor não tenha, a priori, compromisso com a verdade, não está impedido de que sua obra contenha elementos que remetam a algo verdadeiro. Literatura, portanto, é considerada fonte fecunda para iluminar objetos que, talvez dificilmente, outros tipos oficiais poderiam entregar (Botelho; Duarte, 2021).

Entendemos que, se considerarmos as verossimilhanças possíveis de serem extraídas de textos literários, em cotejo com outros tipos de registros que lhe sejam contemporâneos, é possível que lancemos outro olhar sobre o passado, para compreender as mentalidades, as regras do jogo vigente na sociedade num determinado tempo e espaço, bem como as práticas em circulação e os funcionamentos das relações de poder e de valores. Talvez seja por isso que Robert Darnton (2010) tenha classificado literatura e história como bons vizinhos, à medida que também Otávio Paz (1996), na obra Signos em rotação, expressou que poema é uma máquina de criar imagens e serve como elemento adicional para interpretar o contexto de sua escritura.

Tal hipótese fundamenta-se no fato de entendermos que a literatura não seja simplesmente formada por palavras bonitas postas estrategicamente ao deleite e entretenimento do leitor. Mais que isso, serve para nos levar a compreender a natureza humana, os desafios mais profundos do sentir, do agir e do pensar, os tormentos, os dramas, a interação social, ou ainda, na perspectiva do romance modernista, um gênero que caracteriza a crise do sujeito moderno (Rosenfeld, 1973).

Nessa perspectiva, destacamos que Sidney Chalhoub (2003) desenvolveu uma pesquisa no campo da história com a obra Machado de Assis historiador, valendo-se de um literato para iluminar o entendimento do Brasil oitocentista. Não bastasse, lembremos que a tese A experiência do cuidado de si em Machado de Assis, de Fernandes (2022), revelou a importância da obra machadiana para a compreensão de questões educacionais, sem contar o dossiê de Lima e Menezes (2022), publicado no importante periódico Cadernos de História da Educação, que tratou das “Contribuições da literatura para a História da Educação”, demonstrando a potência da literatura como fonte para a escrita da História da Educação.

Acrescentamos que literatura decorre de um ethos e serve para um ethos, mesmo que seja direcionada a um mero convite à reflexão ou exerça ingerência nos leitores, o que Aristóteles chamou de catarse, ou ainda, a compaixão, a identificação, o riso, o medo ou a ira. Nessa perspectiva é que colocamos em evidência o conceito de representações, por ser aplicável à análise aqui pretendida, definida como “[...] esquemas intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado” (Chartier, 2002, p. 17). Isso quer dizer que esses esquemas referem-se ao expediente intelectual de identificar categorias que formam a representação como uma prática existente socialmente.

A partir de tais questões, utilizamos a prosa Amar, verbo intransitivo, doravante designada apenas Amar, do modernista Mário de Andrade, publicada em 1927 e republicada com alterações em 1944, na tentativa de compreender o que tal obra pode iluminar sobre a sociedade paulistana dos anos 1920 a 1940, num recorte sobre o que ela tem a dizer-nos, ou até mesmo representar, como eram as famílias ricas e como os filhos eram vistos, condicionados e educados.

Tal obra foi aqui selecionada a partir, também, da provocação de Antonio Candido ([1965]/2019), que explicou que as obras de Mário de Andrade estiveram bem sincronizadas com fatos artísticos, políticos e educacionais, e isso tem a ver com suas produções influenciadas pelos movimentos sociais das décadas de 1920 e 1930, considerando que a educação foi um dos grandes temas daquele período e os intelectuais funcionaram como importantes vozes de tentativas de mudanças (Herschmann; Pereira, 1994; Foucault, [1979]/2006).

2 A família representada em Amar

Em síntese, o romance fala-nos de uma rica família paulistana do início do século XX que vivia no dileto bairro de Higienópolis, composta pelo pai, Sr. Felisberto Sousa Costa; sua esposa, dona Laura; os filhos, Carlos, Maria Luísa, Laurita e Aldinha, com quinze, doze, sete e cinco anos de idade, respectivamente. Além desses, viviam naquela mansão Marina, a pretinha e Tanaka, o empregado japonês.

O enredo gira em torno do ofício de ensinar ao primogênito Carlos, o idioma alemão, mas como fachada, considerando que o objeto da contratação era dar ao garoto lições de iniciação sexual e amorosa por meio de uma pedagogia encomendada pelo pai junto a Elza (que se torna inominada ao adentrar à casa). A professora tinha um método bem dela, que o narrador reputa como didática da paciência divina e que passa pela preparação do ambiente e sedução do rapaz no auge da puberdade.

Por lá, Fräulein (senhorita em alemão) permaneceu por cerca de um ano, numa lenta tarefa, já que o exaurimento da empreitada levou o pai a quase se arrepender de tal iniciativa, em função da demora[2]. A professora – que tecnicamente era uma preceptora – foi bem remunerada, recebendo oito contos de réis pelo trabalho e, após conquistar a confiança e a admiração do aluno, levou-o à paixão, lembrando que isso também era estratégia pedagógica, já que o amor ensinado era de ordem prática, sem loucura. Estava em voga ensinar o rapaz a não ter apego às mulheres e saber lidar com o ciúme, de modo a colocá-lo a salvo de eventuais aventureiras e interesseiras.

– ... E o amor não é só o que o senhor Sousa Costa pensa. Vim ensinar o amor como deve ser. Isso é que eu pretendo, pretendia ensinar pra Carlos. O amor sincero, elevado, cheio de senso prático, sem loucuras. Hoje, minha senhora, isso está se tornando uma necessidade desde que a filosofia invadiu o terreno do amor! (Andrade, [1944]/1995, p. 78).

Importante notar que dona Laura não sabia das razões da contratação da professora, vindo a descobrir o engodo tão somente no decorrer da estada na casa, o que lhe causou um furor que foi arrefecido depressa, ao embalo da prescrição que a esposa deveria ser submissa e não se contrapor às decisões do marido. Isso faz lembrar da passagem em que o narrador, de forma perspicaz, estabelece o contraponto entre homens e mulheres daquele tempo:

[...] Sousa Costa olha o chão. Dona Laura olha o teto. Ah! criaturas, criaturas de Deus, quão díspares sois! As Lauras olharão sempre o céu. Os Felisbertos sempre o chão. Alma feminina ascensional... É o macho apegado às imundícies terrenas. Ponhamos imundícies terráqueas (Andrade, 1995, p. 81).

São múltiplas as questões postas em Amar: a questão dos imigrantes do início do século XX; as contemplações dos objetos e dos comportamentos europeus; a aparência versus a essência; a repulsa à miscigenação[3]; a família firmada na figura do pai; a submissão feminina; os negros como meros apêndices, postos em lugares periféricos e sem relevância; a velhice; os arranjos sociais no sentido de impedir que os jovens ricos casassem-se com mulheres pobres, numa lógica de preservação patrimonial.

Essas questões remetem-nos a pensar que tanto a educação quanto a literatura são atravessadas pela cultura, esta, por sua vez, tida como a lente ou a base comum pela qual vemos o mundo (Benedict, 2002). Isso tem a ver com a tomada do universo simbólico no âmbito da subjetivação em processo social para a objetivação, tornando o domínio das práticas que dão suporte de sentidos à crença, à moral, às leis, à língua, aos costumes, às artes, às festas, aos mitos etc., mas pelo recorte aqui indicado, tratamos somente das questões que Amar possa-nos dizer sobre as famílias e sobre a educação dos filhos.

O roteiro deu-se no ambiente privado da casa, de modo que é importante pensar sobre o que tal obra pode revelar sobre as famílias ali representadas. Nessa perspectiva, tanto Mariana Muaze, no ensaio de 2016, denominado Pensando a família no Brasil: ganhos interpretativos a partir da micro-história, quanto Eni de Mesquita Samara, em artigo do ano de 2002, denominado O que mudou na família brasileira? (da colônia à atualidade), têm em comum a advertência de que pensar as transformações das famílias e os fatores envolvidos desafia tarefa bastante complexa.

Muaze (2016) destaca que na década de 1970 eram comuns narrativas históricas sobre as famílias, resultando em análises de economia doméstica feitas a partir de interpretação de instrumentos jurídicos de inventários, testamentos e contratos de casamentos. Já na década de 1980, despontaram pesquisas sobre composição de domicílios, famílias e fecundidade, revelando que o Brasil tinha também famílias chefiadas por mulheres, com poucos ou mais filhos.

Nessa dimensão, Antoine Prost ([1989]/2020), Cristina Costa (2002) e, também, Mariana Muaze (2016) explicam que, na primeira metade do século XX, a expressão família não dizia respeito apenas ao critério de coabitação, mas era sobre as relações sociais voltadas à preservação patrimonial, daí também o uso da expressão “ser de boa família”, de modo que o casamento considerado bom tinha a ver com o imaterial valor do pertencimento ou adentrar para determinada família. No entanto, esses enlaces só foram possíveis “porque houve um investimento anterior na educação, refinamento e instrução das moças que foram bons partidos dentro da lógica de reprodução familiar vigente na classe senhorial” (Muaze, 2016, p. 22). O que a autora relata indica que o casamento possuía finalidade dúplice: razão econômica e simbolismo.

Em relação à obra sob análise, a contratação da governanta alemã tinha justamente esse papel: preparar o jovem Carlos para a vida adulta e não se deixar apegar facilmente a qualquer uma, com o fito de assumir, futuramente, casamento apenas com moça de boa família, mantendo a herança incorpórea relativa ao sobrenome correspondente e à minimização de risco de perecimento da herança palpável. Nesse balanço patrimonial, a ideia era robustecer esses ativos, de modo que a liquidez correspondente resultasse na continuidade do prestígio do lugar social.

Conforme explica Ritzkat (2020), esses serviços educacionais citados por Mariana Muaze não se restringiram ao século XIX e continuaram fomentando a demanda por preceptoras estrangeiras dotadas de perfil necessário aos requintes e diletos adereços formativos[4], informação corroborada com anúncios contidos na imprensa paulistana, como o abaixo indicado, de 1923, dentre tantos outros que sucederam, nas décadas de 1920 a 1940:


Figura 1 – Anúncio de Professora estrangeira

Fonte[5]: Estado de São Paulo,15 maio 1923, p. 10.

Tal anúncio é alusivo à grande circulação de professoras estrangeiras na capital paulista, em função da necessidade posta por parte das famílias mais ricas. Mas vale ressaltar o que Ritzkat (2020) esclareceu no ensaio Preceptoras Alemãs no Brasil, que elas foram mais abundantes no século XIX e nas primeiras décadas do século XX tiveram forte redução no quantitativo, pois a belle époque tardia trouxe alternativas de trabalho para as mulheres estrangeiras para além da educação, serviço que, gradativamente, passou a ser oferecido pelas escolas religiosas.

Feitas tais considerações, verifica-se que a família representada em Amar é aquela da elite paulistana urbana, destacando a matriz patriarcal, cujo papel do gênero aparece bem definido por tradições que, inclusive, influenciaram as regulações jurídicas em matéria civil (Saliba, 1998), as quais conferiam ao homem o poder de decisão no seio familiar: o chefe da sociedade conjugal. Trata-se do pátrio poder (Samara, 2002), aptidão decorrente do casamento.

3 Como os pais pensavam a educação dos meninos e das meninas: apontamentos a partir do Amar

Nota-se que o pai de Carlos foi quem exerceu protagonismo para solucionar as primeiras perturbações sexuais do filho, o que se deu por força do alegado cuidado necessário de afastá-lo de supostas aventureiras – e não de aventuras –, as quais, eventualmente, poderiam seduzi-lo e arrebatá-lo à união definitiva fora dos padrões pré-estabelecidos. Uma aleivosia do pai com relação ao filho, em razão do pacto firmado com a estrangeira Elza. Sob a perspectiva de se buscar a boa futura família para o filho, associando a proteção patrimonial com manutenção do simbolismo da herança imaterial, parece ser compreensível a lógica da escolha feita pelo pai.

Nesse sentido, não causa estranheza o fato de que a tratativa contratual entre Felisberto Sousa Costa e a governanta tenha forjado a pseudo pedagogia de aula de alemão e piano, pois referia-se ao objeto contratual secreto. Daí mesmo surgem alguns questionamentos como: quem, naquela época e conjuntura familiar, era de fato responsável pela instrução dos filhos? Como os pais pensavam a educação dos filhos? A conduta era igual para os gêneros?

Samara (2002) explica que, mesmo ante a passagem para a organização política republicana em 1889, no cotidiano, a vida das pessoas continuou gravitando em torno da família. Nesse período, as mulheres foram gradativamente ocupando espaços profissionais nas farmácias, no magistério e nas indústrias têxteis e isso foi acentuando-se ao longo do século XX, apesar de todos os percalços enfrentados em razão do gênero.

Sendo assim, a partir de estudos de Muaze (2016) e Saldanha (2005), verifica-se que o papel do homem manteve-se vinculado à produção e à sua presença na esfera pública, bem como à responsabilidade por ampliar e conservar o patrimônio familiar, tanto que o Código Civil de 1916 estabeleceu que a ele cabia gerenciar os interesses e os bens da esposa (Saliba, 1998).

O que se destaca no estudo de Muaze (2016) é que, no seio familiar, era de responsabilidade do marido envidar esforços para a educação moral e acadêmica dos filhos, valendo-se do suporte da mulher para controle de horários de atividades, higiene, alimentação e contato cotidiano com as professoras e as governantas. Assim, parece ser compreensível de onde partiu a busca pela preceptora em Amar.

Da mesma forma, percebe-se também que o romance revela que Sousa Costa pensava a formação do filho no sentido de prepará-lo para fazer escolhas, ainda que, no campo do amor, elas passassem pela seletividade, em função do critério posição social. A intenção, nesse caso, era a de que o jovem fosse superficial e sem apego às mulheres que não pertencessem ao seu arco social, mas aberto à união com alguma candidata requintada e rica, deveria viver sem loucura e ser avesso ao ciúme.

Ora, tradicionalmente, eram as famílias que faziam as escolhas pelos filhos, valendo-se de expedientes e arranjos estabelecidos para que os casamentos exógenos fossem realizados observando, primeiramente, os quesitos sobrenome e poder, vindos da propriedade de bens. Felisberto Sousa Costa possuía o pátrio poder e sua iniciativa com relação à educação do primogênito parece revelar o amor de pai, mais no sentido de preservação e zelo do que amor em forma de ternura. Começou passando pela ideia de atribuir mais espaço ao filho, a fim de fazer escolhas, ainda que elas tivessem alguma ingerência e fiscalização à luz do que a família entendesse ser o melhor.

Causa espanto estarmos diante de enorme incongruência ao pensar numa autonomia que seja regrada. No entanto, considerando que o costume sempre foi fonte para o Direito, que pode variar ao longo do tempo, ampliando ou restringindo as relações, parece estar-se diante de um movimento de ampliação da autonomia, num contexto em que ela é vista como importante, ainda que na família Sousa Costa não fosse plena. Sob tal questão, a estranheza até dilui um pouco, já que a sociedade dos anos da escrita de Amar era altamente regulada e as rupturas de costumes são extremamente lentas e gradativas, o que faz lembrar da indagação de Schüler (1992, p. 39): como ser livre num cenário altamente regulado?

Considerando os processos de mudanças e os arranjos familiares vertidos pelas famílias ricas retratados no romance, bem como a tentativa de compreender como os pais pensavam a educação no tempo de Amar, é importante lembrar que, quando se fala em autonomia do indivíduo, remete-se também ao Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (Azevedo, [1932]/2010), sobretudo porque uma de suas bandeiras era a autonomia do indivíduo. Conforme explica Moacir Gadotti (2003), o paradigma da Escola Nova teve como fundamento pedagógico a ação que valoriza os talentos, as habilidades e a autoformação do aluno, que deve ser instigadora, de modo que, por esse modelo, a educação era pensada como “essencialmente processo e não produto; um processo de reconstituição da experiência; um processo de melhoria permanente da eficiência individual” (Gadotti, 2003, p. 144).

Cunha (2020), em artigo denominado A escola contra a família, explica que tanto a escola – em sentido amplo, que inclui as preceptoras – quanto a família gravitam em torno do mesmo objeto: o educando, e que a escola veio complementar a família, seja pela ausência de tempo, seja pela falta de competências pedagógicas dos pais. No entanto, além de ensinar o modo e a forma, ter quem ensina em casa distingue e revela camadas sociais, basta pensar que, em Amar, ter governanta era um distintivo de sofisticação: “– Sua mãe tem governanta em casa? – Não, por quê? – Nada. [...] – Sua mãe tem governanta em casa? – Tem, por quê? – Ela ensina alemão pra você! – Não, é russa. – Você aprende o russo com ela! – Eu! Deus te livre! – Ah” (Andrade, 1995, p. 104-105).

Como visto no idílio marioandradiano, a educação tinha esse tom provocativo da educação como mero adorno. Assim, puxada pela ponta, a meada escancara o tom blasé que, no enredo romanesco, as famílias tinham com relação à educação, mas que é contrário ao que se ruminava pelos pensadores da educação do início do século XX, e encontrou lugar no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (Azevedo, 2010). Por enquanto, resta dizer que, no compasso das ideias modernistas, caminhavam os pensamentos sobre a educação como elemento civilizador e propulsor do desenvolvimento do país sintonizado com a Europa.

As décadas de 1920 e 1930 foram cruciais para a reconstrução do campo pedagógico em nosso país. Nessas décadas não só tiveram curso diversas reformas de instrução pública que atingiram os principais centros urbanos, mas também foi explicitado um vigoroso debate sobre os rumos da educação das elites e da educação popular (Herschmann; Pereira, 1994, p. 38).

Nessa ambiência, os elementos família e escola, ao mesmo tempo, seriam sede da instrução, mas, conforme explica Marcus Vinícius da Cunha (2020), tal relação acabou por se tornar conflitosa, na medida em que professores, pediatras e psicólogos teriam maiores e melhores conhecimentos que tias, avós, pais e mães, e isso não ficou circunscrito nos anos 1920, contrariamente, até os dias atuais, nos fóruns da educação discute-se o que e como ensinar versus o papel da família e quais seriam as vantagens do homeschooling.

Seja como for, sem pretensão de pôr fim ao debate, parece oportuno dizer que a família, historicamente, tem sido importante elemento da cadeia educacional, mas que, aos poucos, foi relegando à pedagogia especializada a responsabilidade pela instrução dos filhos, com fulcro nos conhecimentos científicos, ao passo que a família foi desafiada a assimilar minimamente tal conhecimento, caso quisesse imiscuir em assuntos ligados à instrução, sob risco de desarmonia e prejuízo da formação (Ariès, [1975]/2017; Cunha, 2020). De todo modo, numa análise mais detida, parece ser difícil, quiçá impossível, que as famílias tenham ações como as idealizadas pela escola e que ela seja a instituição que, sozinha, vá dirimir e prover o melhor resultado.

Voltando à empreitada da iniciação sexual do jovem Carlos posta em Amar, é interessante notar que as moças não precisavam desse cuidado, desse tipo de lição de amor, dessa advertência dos perigos preocupantes ao jovem Carlos, pois elas, pelo contrário, precisavam casar-se castas. Não precisavam ser iniciadas por absoluta ausência de necessidade de tal prática, advinda da tácita e lenta impregnação cultural que destaca a importância da virgindade feminina até o casamento, como já analisaram Del Priore ([1997]/2017a, 2017b) e Perrot (2009, 2019).

Nesse sentido, a iniciação sexual dos rapazes por meio do ensino do amor despontou como alternativa no Brasil, como aparece no romance marioandradiano, considerando que a adolescência configurava momento de turbulência e tal sinuosidade precisava ser contida, principalmente nas famílias ricas, como maneira de pôr em ordem as “pulsões instintivas consideradas ameaçadoras” (Rago, 2008, p. 197).

Quanto à educação das meninas, pouco foi abordado em Amar, o que parece ter sido proposital escolha do escritor, ao colocar os holofotes do processo educativo não escolar apenas sobre o filho varão. Mas importa dizer que as meninas, enquanto personagens, não foram negligenciadas. Faziam parte da família e suas aparições ocasionais e silenciamentos também revelam uma tímida participação no seio familiar.

As meninas irmãs de Carlos, Maria Luísa, Laurita e Aldinha, surgem ao longo do romance em cenas nas quais o irmão mais velho sempre as atormenta, sendo considerado como o machucador, o insensível com aquelas figuras “mais frágeis”. Um jovem que é mau exemplo (Sagawa, 2010), a representar parte da burguesia brasileira:

– Mamãe! Mamãe! olhe Carlos!

O menino agarrara a irmã na boca do corredor. Brincalhão, bem disposto como sempre. E machucador. Porém não fazia de propósito, ia brincar e machucava. Cingia Maria Luísa com os braços fortes, empurrava-a com o peito, cantarolando bamboleado no picadinho. Ela se debatia, danando por se ver tão mais fraca. Empurrada sacudida revirada (Andrade, 1995, p. 51).

Além dos momentos de algazarras e brigas, as meninas sempre aparecem em Amar em ocasiões envolvendo aulas de música e de piano, em passeios, em refeições, nas curiosidades ou brincando junto à pérgola do jardim da casa. Isso mostra que, para as meninas, o narrador não indicou qualquer elemento que as distanciassem dos papeis normais socialmente dedicados às meninas e futuras mulheres: serem mães, considerando que havia em circulação a forte ideia de que a mulher não podia afastar-se dessa sua suposta vocação natural.

E por falar em espaços, convém lembrar que a ideia de “jardim” e de “praça”, formulada por Saldanha (2005), diz respeito a uma demarcação que não é obra do acaso. Praça e rua são espaços que se contrapõem. O primeiro, o lócus público, é para circulação dos homens, mas também das mulheres, desde que acompanhadas pelos respectivos maridos ou pais. Por outro lado, o jardim é visto como dependência interna da casa, onde as mulheres do romance aparecem, exceto a professora Fräulein pois, em razão da peculiar liberdade, encarnava a antítese da construção social de rainha do lar.

Lembremos ainda que, desde a primeira grande lei educacional brasileira de 1827, ganhou força o discurso de que as meninas não teriam tão grande desenvolvimento de raciocínio comparadas aos meninos, por serem dispersas e desprovidas de bom raciocínio (imbecilitus sexus). Por essa razão, os estudos deveriam ser reduzidos a apenas ler, escrever e realizar operações matemáticas o mais enxutas possível e, caso os pais quisessem fornecer algo mais às meninas, que não passasse de aula de canto ou para tocar algum instrumento musical a serviço de maior beleza.

Essas ideias no campo pedagógico seguiram marcantes ao longo do tempo, inclusive respingaram na escritura de Amar, demonstrando, mais uma vez, que os lugar social da mulher não era o público, e sim o privado, como espécie de confinamento que representa a sujeição e a fragilidade imposta pela cultura.

3 Considerações finais

Ao ler criticamente as obras literárias podemos, paralelamente, refletir sobre as conexões entre ideais de racionalidade para o comportamento social e de pretensos modelos de estilos de vida, como sugestões a serem assimiladas na leitura desse tipo de vestígio expressivo, ancorado em fatos históricos.

Amar é daquelas obras que múltiplos estudos podem ser feitos, em virtude dos vários níveis de complexidade que apresenta. A denúncia evidenciada por Mário de Andrade no romance diz respeito ao disfarce da família que não é sagrada, do primeiro amor do filho, que resulta da estratégia do pai, do idílio que não é da pureza, da profilaxia sexual que esconde o real, da angústia da mulher imigrante que, apesar de culta, sujeita-se ao disfarce por sobrevivência em terra distante.

A partir da presente análise, parece seguro afirmar que família e educação sempre foram espaços de grande disputa na perspectiva da religião, do poder e das simbologias, todos altamente arraigados na sociedade. São elementos atravessados pela cultura e baseados em forças simbólicas.

A partir da ideia de representação, Amar ajuda-nos a pensar os sentidos conferidos ao mundo e, mais que isso, que tais sentidos manifestam-se em palavras, discursos, imagens, coisas e práticas. Nessa direção, a família é retratada como aquela que buscava pôr a salvo o patrimônio das possíveis aventureiras do filho moço, mostra que a educação subvertida apontava para a instrução como mera polidez e ornamento: estudar para quê, se o jovem Carlos tinha uma enorme fazenda à sua espera?

De fato, vimos em Amar que a família não se preocupava com a educação dos filhos no sentido acadêmico, nem que a educação fosse elemento de avanço pessoal. Livros eram para serem possuídos, não lidos, inclusive pelas meninas que, futuramente, seriam meras rainhas dos seus lares, não apenas em potencial, mas em efetiva repetição em suas vidas daquilo que fatalmente negava vigência à própria existência como pessoa: liberdade para fazer escolhas, inclusive amar.

Sem esgotar o debate, um testemunho: ouvi várias vezes da minha avó analfabeta e descendente indígena Purys que meninos precisavam “ter leitura”. Por outro lado, as meninas não necessitavam tanto de tal conhecimento para serem meras donas de casa. Ainda hoje há quem pense assim.

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