Artigo

Formação inicial e continuada sob as lentes dos professores da educação básica

Genira Fonseca de Oliveira
Universidade Estadual do Ceará, Brasil
Giovana Maria Belém Falcão
Universidade Estadual do Ceará, Brasil

Práticas Educativas, Memórias e Oralidades

Universidade Estadual do Ceará, Brasil

ISSN-e: 2675-519X

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 5, núm. 1, 2023

rev.pemo@uece.br



Resumo: O estudo se desenvolveu a partir de um conjunto de concepções sobre os processos de formação inicial e continuada, sob a ótica de docentes da Educação Básica. O objetivo desse trabalho é compreender as concepções de formação inicial e continuada dos professores da educação básica. A pesquisa de cunho qualitativo está assentada nos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, idealizada por Vygotsky. A seleção dos professores para a participação na pesquisa considerou a experiência no magistério, em escolas da rede pública, estadual e municipal. A pesquisa nos permitiu identificar que os professores estão submetidos a um modelo de formação continuada prescritiva, em detrimento de uma formação que favoreça um espaço de diálogo e de trocas entre seus pares. Uma formação que seja promotora de reflexões que reverberem na sua ação cotidiana junto aos alunos.

Palavras-chave: Formação de Professores, Formação Inicial e Continuada, Educação Básica.

Abstract: The study was based on a set of conceptions about the processes of initial and continuing training, from the point of view of basic education teachers. The aim of this work is to understand basic education teachers' conceptions of initial and continuing training. The qualitative research is based on the assumptions of Historical-Cultural Psychology, idealized by Vygotsky. The selection of teachers to take part in the research took into account their teaching experience in state and municipal public schools. The research allowed us to identify that teachers are subject to a prescriptive continuing education model, to the detrimento of training that favors a space for dialogue and exchanges between their peers. Training that promotes reflections that reverberate in your daily actions with students.

Keywords: Teacher training, Initial and Continuing Formation, Basic education.

1 Introdução

Apesar da existência de um número significativo de estudos na área, a formação de professores, vem há muito assumindo papel de destaque nas discussões, principalmente quando envolve no cerne do debate educativo, o entendimento dos professores enquanto sujeitos possuidores de uma história, amalgamada às suas experiências. Por esse motivo, esse escrito se propõe a ressaltar o olhar para o fenômeno da formação docente, a partir da visão de professores, expressa em seus relatos, à luz da compreensão de que nossas experiências individuais de como nos tornamos professores e a reflexão sobre como nossas trajetórias nos auxilia a interpretar criticamente as múltiplas facetas da formação inicial e continuada. A pesquisa, portanto, será compreendida como a possibilidade de, por meio da análise e da interpretação crítica dos dados produzidos, perceber, visualizar a compreensão dos professores acerca de seu processo formativo. Nessa linha de pensamento, ressaltamos as palavras de Imbernón (2011), quando afirma que

O processo de formação deve dotar os professores de conhecimentos, habilidades e atitudes para desenvolver profissionais reflexivos ou investigadores. Nesta linha, o eixo fundamental do currículo de formação do professor é o desenvolvimento da capacidade de refletir sobre a própria prática docente, com o objetivo de aprender a interpretar, compreender e refletir sobre a realidade social e a docência (IMBERNÓN, 2011, p.41- 42).

Partimos do entendimento de que as exigências advindas do mundo contemporâneo marcadas pela globalização, pelos avanços nos meios de comunicação e da tecnologia, dentre outras, têm provocado um redesenho no conceito de escola, que implicam em novas formas de aprender, ensinar, sentir, agir, demandando a necessidade de um olhar mais criterioso na forma da organização dos processos de formação dos professores, tanto inicial como continuada, exigindo que, cada vez mais, esses processos dialoguem com a realidade na qual está inserida. Por isso, “não basta dizer que o professor tem de ensinar partindo das experiências do aluno se os programas que pensam sua formação não os colocarem, também, como sujeitos de sua própria história” (CUNHA, 1997, p.189). Dentro desse contexto, a prática docente tem sido amplamente discutida, “na perspectiva de pensar, repensar, questionar e investigar acerca dos saberes produzidos pelos professores, para que possam ser identificados, acionados e socializados entre o próprio grupo docente da instituição escolar” (OLIVEIRA, 2020, p. 76). Therrien (2005, p.292) pondera que “o trabalho docente, situado nos contextos mutantes e múltiplos da contemporaneidade, aponta para a necessária busca de novas configurações curriculares, assim como de novos perfis de profissionais preparados para este desafio”. É preciso, portanto, gerar um espaço de discussão que seja capaz de evocar reflexões em torno desse lugar da docência em tempos tão desafiadores e promotores de uma atuação permeada de complexidade. Destacamos, também, como um fator importante na escrita desse trabalho, a oportunidade de realizar uma pesquisa à luz da realidade vivenciada no cotidiano do exercício docente, buscando tematizar essa prática de modo a proporcionar momentos de reflexão com os professores. Dessa forma, concordamos com o pensamento de Fazenda (1989), quando ela afirma que:

O enfoque no cotidiano escolar significa, pois, estudar a escola em sua singularidade, sem desvinculá-la das suas determinações sociais mais amplas. O propósito é compreender o cotidiano como momento singular do movimento social, e isso vão exigir, do ponto de vista teórico, o manejo de grandes categorias sociais como classe, cultura, hegemonia etc. Do ponto de vista metodológico isto implica complementar as observações de campo com dados advindos de outras ordens sociais, como, por exemplo, a política educacional do país, as diversas organizações que exercem alguma influência na escola etc. (FAZENDA, 1989, p.42).

É nesse cenário multifacetado, que se insere a discussão sobre a formação de professores, muitas vezes condicionada às demandas externas à escola e apresentada descontextualizada das experiências trazidas pelos estudantes e professores. Nessa perspectiva, Imbernón (2009) nos alerta que:

Será necessário mudar o modelo de treinamento mediante planos institucionais para abrir passagem de forma mais intensa a um modelo mais indagativo e de desenvolvimento de projetos, no qual o professorado de um contexto determinado assuma o protagonismo merecido e seja ele quem planeja, executa e avalia sua própria formação. (IMBERNÓN, 2009, p.107)

Para André (2016, p.36), “não há mágica possível aqui, não há como saltar etapas – somos um organismo plástico, sim, flexível, mas um organismo que se desenvolve segundo certas condições e na íntima relação com contextos socioculturais”. É importante ressaltar os estudos de Farias (2006, p.69), com relação a compreender o “imponderável papel dos professores no processo de mudança na educação”. A referida autora enfatiza a necessidade de: Reconhecer que o sucesso da mudança está para além do esforço individualizado e abnegado de alguns, em particular dos docentes, impões dupla tarefa: por um lado, superar o discurso da hiper-responsabilização do professor pela qualidade do ensino, bem como o enfoque ‘pedagogizante’ da escola e da atuação de seus profissionais; por outro, atribuir ao professor a condição de sujeito, produto e produtor das experiências vividas no contexto em que se encontra, o qual delimita potencialidades, circunstâncias e limitações (FARIAS, 2006, p. 70). Nesta perspectiva, entendemos que é preciso favorecer aos professores momentos de reflexões e discussões acerca de sua formação e prática docente e mais importante é imperativo ouvi-los, visando ao enfrentamento dos desafios postos por essa realidade, que consiste em assegurar o direito a todos os professores de serem autores do seu processo de desenvolvimento profissional. As reflexões apresentadas nos levaram a indagar sobre o modo que os professores da educação básica concebem a formação inicial e continuada. Sendo assim, o objetivo desse escrito é compreender as concepções de formação inicial e continuada dos professores da educação básica. Apresentamos a seguir os procedimentos metodológicos da pesquisa.

2 Metodologia

A pesquisa de cunho qualitativo está assentada nos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, idealizada por Vygotsky, que compreende o homem para além das determinações biológicas, concebendo-o enquanto um sujeito ativo e transformador da realidade, processo esse, que se dá a partir do desenvolvimento de suas ações (REY, 2002). Esse caminho nos possibilitou compreender as concepções de formação inicial e continuada na perspectiva dos professores da educação básica. Para fins de apreensão do objeto de estudo utilizamos a entrevista, corroborando com Bogdan e Biklen (1994, p.134), quando ressaltam que “a entrevista é utilizada para recolher dados descritivos na linguagem do próprio sujeito, permitindo ao investigador desenvolver intuitivamente uma ideia sobre a maneira como os sujeitos interpretam aspectos do mundo”. Desta feita, a entrevista se revelou como um instrumento apropriado, no sentido de atender ao objetivo que intentamos alcançar e nos permitiu adentrar no universo subjetivo dos professores. Assim, “por meio da linguagem o professor pode expressar campos significativos de sua experiência pessoal, seu mundo, suas necessidades, seus conflitos, suas reflexões e suas emoções” (MARQUES; CARVALHO, 2015, p.34). A seleção dos professores para a participação na pesquisa foi feita de forma pessoal, considerando como critério o exercício no magistério em escolas da rede pública, estadual e municipal. Com vistas a preservar o anonimato dos entrevistados, os professores serão referidos pelo gênero, ou seja, professora e professor, considerando, ainda, que “o anonimato deve contemplar não só o material escrito, mas também os relatos verbais da informação recolhida durante as observações” (BIKLEN; BOGDAN, 1994, p.77). À vista disso, a entrevista foi realizada com os dois professores da Educação Básica, sendo: uma professora com 40 anos de idade, 17 anos de exercício docente, atuando no ensino fundamental I, anos iniciais de uma escola pública municipal do interior do Ceará. O segundo professor com 57 anos de idade, 20 anos de exercício no magistério, atuando na educação de jovens e adultos. Ambos possuem Licenciatura em Letras, sendo que a professora, também cursou Pedagogia, necessidade que surgiu por conta de sua atuação nos anos iniciais do ensino fundamental, especificamente no ciclo de alfabetização. Para tanto, foram elaboradas algumas perguntas com vistas a nortear o diálogo com os professores. A entrevista semiestruturada combinou questões fechadas, para as informações relacionadas ao perfil profissional (etapa da educação básica onde atuam, o tempo de exercício na docência, idade e a formação inicial) e questões abertas para os aspectos relacionados à formação inicial e continuada (concepções de formação inicial e continuada; o que a formação inicial e continuada representou e proporcionou para suas vidas e uma experiência marcante da sua trajetória formativa). A opção em aplicar questões abertas foi no intuito de oportunizar um espaço de escuta aos professores, onde eles pudessem expressar seus entendimentos. As perguntas foram feitas pelas pesquisadoras e as respostas gravadas pelo celular. É importante ressaltar, que para a realização das entrevistas, foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e autorização para realizar a gravação, assegurando o anonimato das professoras. A seguir, serão apresentados os resultados e as discussões que nos permitiram alcançar o objetivo do estudo.

3 Resultados e Discussão

As questões abertas da entrevista permitiram a escuta aos professores sobre suas concepções acerca da formação inicial e continuada, assim como, o que esses processos formativos representaram e proporcionaram para suas vidas. Além disso, acrescentaram ao seu relato, uma experiência da sua trajetória formativa que foi marcante para a sua vida pessoal e profissional. À vista disso, ao discorrerem sobre suas concepções acerca da formação inicial, a professora acredita que é “um processo que visa apoiar o docente no início da sua carreira”. O professor, já considera que “é o primeiro passo para a pessoa que quer ingressar na licenciatura”, explica, “pra pessoa que quer ensinar, ter essa experiência”. No entanto, ambos consideram que a “academia não proporciona a maturidade suficiente pra você enfrentar uma sala de aula”, pois “a gente sai da universidade, mas não tem de fato a formação voltada para a estratégia de sala de aula”. Fica possível perceber que a concepção dos professores sobre a formação inicial se ancora na condição de se ter uma formação que permita a atuação como docente, ou seja, uma formação que os habilite para a docência. No entanto, relatam que a formação inicial não os preparou para o exercício do magistério, porque as questões práticas a serem vivenciadas em uma sala de aula não foram contempladas. Para tanto, é importante que o professor ao ingressar na docência, receba orientações da instituição escolar, da coordenação pedagógica, de um colega mais experiente, por exemplo, de modo a encontrar os recursos e apoio necessários ao desenvolvimento de seu trabalho. Corroborando com André (2018, p.6), “a docência é uma profissão complexa, que exige um aprendizado constante e que para enfrentar as questões e os desafios da prática cotidiana é preciso continuar estudando, recorrer a colegas mais experientes, buscar apoio, dispor-se a aprender”. Do contrário, existe um sério risco desse profissional ser tomado por um sentimento de frustração, que pode desencadear numa atitude de desistência. Assim sendo, observa-se a presença de uma lógica racionalizadora nas falas dos professores, que corrobora para uma compreensão reducionista do processo de formação inicial, pois “a atividade profissional é concebida como instrumental e é dirigida para a aplicação rigorosa de técnicas específicas a serem repetidas” (SILVA, 2011, p.21). Nesse sentido, ressalta-se a importância de uma formação inicial que contribua com os docentes em seus contextos de atuação, com aporte teórico que sustente sua prática, ao mesmo tempo em que o torne capaz de adotar uma postura crítica e reflexiva de seu processo formativo. Depreende-se, portanto, que a formação inicial é promotora de sentidos, quando possibilita aos professores a construção de saberes inerentes ao exercício da docência. No que se refere à concepção de formação continuada, a professora entende que esta “tem um papel mais sólido, pois acontece de forma mais sistemática, mais consistente”, além disso, segundo a mesma, “ela vem ampliar as questões teóricas, aprofundando mais ainda o nosso fazer docente”. Para o professor, “a formação continuada são os passos seguintes pra você chegar ao seu objetivo” e ressalta, que “é fundamental fazer sempre com outras pessoas, outros professores e é importante nessa formação continuada o acompanhamento”. Os relatos apontam para o entendimento da formação continuada como um adendo à formação inicial e um anseio para acessar novos conhecimentos que vão dar sustentação ao seu “fazer docente”, compreensão refutada por Franco (2019) quando adverte que

Formação contínua não é suprir deficiência de formação anterior, formação contínua é a necessidade de integrar vida e formação; articular a pessoa do professor às circunstâncias de seu trabalho e profissão, de forma crítica e integrada; criando condições de vivências formativas que permitem o autoconhecimento; a autoformação; os processos de identidade e profissionalização docente (FRANCO, 2019, p 98).

Sob esse prisma, observa-se que os programas de formação continuada têm se configurado à sombra de um discurso pautado pela eficiência e produtividade, onde subjaz um viés funcional e utilitário. “Além disso, pouco se escuta o professor, sua fala quase sempre é abafada por especialistas que se arvoram em pensar as soluções para as conjunções de problemas que o docente vivencia no decurso de seu trabalho” (FALCÃO; FARIAS, 2017, p. 163). Assim, imersos em um contexto de exigências por resultados, os professores se veem pressionados a cumprir uma lista de prescrições, voltadas, principalmente, para o desempenho dos alunos nas avaliações externas. Apesar desse contexto adverso, a formação continuada, segundo as falas dos professores, se coloca como a possibilidade de melhoria das práticas pedagógicas para atendimento às necessidades dos alunos, ressaltando o imediatismo do presente, alinhado às exigências da educação contemporânea. De certa forma, entendem que o processo formativo se converte em direcionamento do seu fazer pedagógico. Alinhados aos discursos de uma política pública focada em resultados, a prática docente se desenvolve à luz dos indicadores de desempenho que restringem a ação dos professores em sala de aula. Corroboramos com o entendimento de que a prática docente não pode ser reduzida a uma lista de prescrições elaboradas fora do contexto escolar, bem como, refutamos os discursos institucionais em torno da qualidade do ensino, que só têm acentuado a precarização do trabalho dos professores. Desse modo, é necessário questionar os programas de formação continuada que insistem em engessar a ação dos professores e que, geralmente, não refletem as necessidades do trabalho docente. Existe uma expectativa de que o processo de formação continuada reverbere nos resultados de desempenho dos alunos, constituindo uma possibilidade de intervenção para a melhoria desses resultados. Essa tendência realça uma concepção linear do processo formativo, assim como, a responsabilidade pelos resultados obtidos pelos alunos é imputada, unicamente, aos professores, acarretando uma sobrecarga de atribuições, desencadeando um significativo desgaste emocional, que pode gerar, inclusive, uma situação de adoecimento dos docentes. Um aspecto relevante identificado na fala do professor, com relação à formação continuada, foi o entendimento de que “é fundamental fazer sempre com outras pessoas, outros professores e é importante nessa formação continuada o acompanhamento”. A possibilidade de conceber um processo formativo vinculado a trocas entre os pares, numa perspectiva coletiva e colaborativa, ganha relevância, principalmente num contexto em que cada vez mais se observa a promoção do individualismo e do isolamento do trabalho docente. O acompanhamento aos professores, em seu processo formativo, ainda se configura como uma lacuna na instituição escolar. Segundo Placco e Souza (2015, p.84), “o grupo se desenvolve pelo esforço coletivo em torno de uma tarefa, pelas descobertas, pelas relações estabelecidas e pelo enfrentamento de suas dificuldades”. As autoras acrescentam, ainda, que “a escuta e a valorização das contribuições de cada um facilita a disseminação de ideias, o fortalecimento dos vínculos e a apropriação das memórias e dos saberes individuais, que vão tecendo a história e a identidade grupal, num revezamento de lideranças e responsabilidades” (PLACCO; SOUZA, 2015, p.84/85). É a partir desse entendimento que a formação continuada produz sentido e contribui para o exercício da docência, por meio da partilha e da socialização das situações cotidianas, compreendendo a escola como espaço central para o planejamento do processo formativo. Os professores também relataram uma experiência marcante de sua trajetória formativa. A professora destacou os últimos anos de formação, atuando como formadora do ciclo de alfabetização, ressaltando que, “De 2014 pra cá eu acredito que vivo um momento muito marcante na minha trajetória com formação, porque ao tempo em que eu recebo formações pra discutir com professores sobre questões mesmo do cotidiano escolar, eu também que atuo em sala de aula e isso também é uma coisa muito legal, porque a gente começa a perceber e a receber também, muitas questões que a gente vai ampliando nossos horizontes, nossa visão sobre a educação de fato e executar isso é de fato a melhor parte”. O professor destacou sua experiência como formador na Prefeitura de Fortaleza, pois foi uma oportunidade de “entender o que é que os nossos formandos, nossos alunos querem e não o que a gente quer”. Ao mesmo tempo em que se narram como docentes em sala de aula, também se declaram como formadores, em programas de formação continuada. Trata-se de uma experiência que lhes permite refletir em ambas as situações, de formando e formador, por isso, “é fundamental que cada um conceda a si mesmo oportunidades para refletir sobre seus pensamentos, ou, metaforicamente falando, predisponha-se a se olhar no espelho. Olhar para seu pensamento, refletir sobre o próprio ato de conhecer são movimentos semelhantes ao de olhar-se no espelho” (PLACCO; SOUZA, 2015, p. 54). Pode ser um paradoxo, sem uma conotação de ser contraditório, mas no sentido de ser uma situação desafiadora, como reiteram as autoras, “olhar-se no espelho possibilita ao sujeito surpreender-se, estranhar-se, reconhecer-se” (PLACCO; SOUZA, 2015, p.54). Assim, ao exercer o papel de formando e de formador, eles ressignificam o processo formativo a partir de suas próprias experiências, gerando possibilidades para possíveis mudanças e transformações. Com relação ao relato sobre a experiência da docência que foi marcante para a vida deles, a professora destacou o trabalho com as classes de aceleração, registrando sua satisfação. Ela relata: “Ao tempo em que eles iam conseguindo se alfabetizar dentro do processo, eles iam sendo inseridos nas suas salas de acordo com a sua idade e foi um momento muito marcante, porque era muito legal acompanhar aquele momento daqueles jovens fora de faixa etária, conseguirem avançar naquele processo e se inserir numa sala em que de fato eles se enquadravam, ou pela sua idade, pelos seus pensamentos”. O professor destacou como experiência marcante da docência, o tempo em que atuou como orientador de aprendizagem, pois foi nessa época que despertou para a importância de estar atento aos interesses dos alunos, ressaltando que, “não adianta o professor ter o melhor conteúdo, ter a melhor aula, se o aluno não tiver com sede de aprendizagem, com fome de saber”. A experiência relatada pelos professores revela a conjunção de vários saberes constituídos ao longo do exercício docente. Isso se mostra quando a professora, por meio de seu trabalho e de suas intervenções, possibilita aos alunos fora de faixa etária serem inseridos “numa sala de aula em que de fato eles se enquadravam”. A experiência narrada pelo professor denota a preocupação em promover um diálogo entre os conteúdos e os interesses dos alunos, porque “se o aluno não tiver sede de aprendizagem, com fome de saber”, essa aprendizagem fica comprometida. São experiências que estão estreitamente associadas com uma prática docente carregada de significações para os alunos. Assim, como assinala Nóvoa (2000), o professor passa por um processo identitário que envolve a construção de uma maneira de ser e estar na profissão. Desse modo, os professores que participaram desse estudo demonstraram, a partir de seus relatos, autoria na condução de sua sala de aula, promovendo uma prática pedagógica transformadora. Ademais, um dos achados da pesquisa foi com relação ao tempo de docência: dos dois professores, 17 e 20 anos, que oportunizou discorrer sobre a fase da carreira que esses docentes se encontram, à luz dos estudos realizados por Huberman sobre a vida profissional dos professores, sistematizada no que o autor denominou ciclo vital dos professores. Huberman (1995, p.38) afirma que “o desenvolvimento de uma carreira é, pois, um processo, não uma série de acontecimentos. Para alguns, este processo pode parecer linear, mas para outros há oscilações, regressões, becos sem saída, declives, descontinuidades”. No caso dos dois professores participantes desse estudo, poderíamos inferir, a partir de seus relatos, que ambos se encontram na terceira fase, ou seja, o que Huberman denominou de experimentação ou diversificação. Garcia (1999, p. 65) ressalta que “é uma fase que não é igual para todos os professores”, ou seja, “para alguns professores, as suas energias são canalizadas principalmente para melhorar a sua capacidade como docente: diversificam métodos de ensino, experimentam novas práticas e com frequência procuram fora da classe um estímulo profissional” (GARCIA, 1999, p.65). No entanto, trata-se de uma fase que comporta três tipos de características diferentes, desde a descrita anteriormente, até o momento em que os professores demonstram um sentimento de incerteza em relação a continuar no exercício da docência.

4 Considerações finais

O contexto do presente estudo emerge da compreensão de que os professores da educação básica possuem sobre a concepção de formação inicial e continuada. As falas revelaram os desafios postos na profissão docente, que se apresentam desde o ingresso na docência e se ampliam em meio ao cotidiano formativo a partir da atuação em sala de aula. Além disso, foi possível perceber satisfação com o seu processo formativo, tanto no que se refere à formação inicial quanto a formação continuada, apesar de realçarem as lacunas deixadas na formação inicial, que não os “prepararam” para o exercício da docência. A perspectiva de trazer nesse estudo o ciclo de vida dos professores se coaduna com o objetivo dessa pesquisa, porque nos alerta sobre a importância de romper com a homogeneização dos modelos formativos, a partir da compreensão de que os professores e as suas necessidades são diferentes. Em razão disso, entendemos que o lócus para a formação docente precisa ser a escola, pois é no seu espaço de atuação que os professores têm a possibilidade de legitimar suas experiências e estabelecer, junto com seus pares, um diálogo prenhe de significados com relação ao processo de aprendizagem dos alunos. Ademais, as narrativas dos professores nos alertam para a importância de um processo formativo concebido a partir das demandas identificadas no contexto escolar, considerando os saberes produzidos pelos docentes no cotidiano de sua atuação, assim como, seus interesses e suas necessidades formativas. A pesquisa nos permitiu identificar, ainda, que os professores estão submetidos a um modelo de formação continuada prescritiva, em detrimento de uma formação que favoreça um espaço de diálogo e de trocas entre seus pares. Uma formação que seja promotora de reflexões que reverberem na sua ação cotidiana junto aos alunos. Diante do exposto, faz-se necessário que as instâncias formadoras, Ministério da Educação, Secretarias da Educação dos Estados e Municípios, assim como as escolas, desenvolvam ações de formação continuada articuladas com as demandas apresentadas pelos professores. Corroboramos com a ideia de que deve ser uma formação concebida tendo como ponto de partida o contexto em que os docentes estão inseridos e que tenha como premissa fundamental o fortalecimento da autonomia dos professores. Os achados deste estudo revelaram que as significações produzidas pelos dois professores sobre o processo formativo a que estão submetidos, mesmo com todas as limitações identificadas em suas falas, foram importantes para seu processo de aprendizagem sobre a docência. Mesmo que algumas careçam de ressignificações, foram necessárias para vislumbrar novas perspectivas para a formação docente.

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