Resumo: Neste artigo, apreende-se reflexão sobre como os conceitos de ética e moral ao longo de décadas, no Brasil, foram utilizados em nome de uma pretensa qualidade no Cinema e na Televisão, durante o regime militar, de 1964 a 1985, e pós-redemocratização, até a promulgação da Constituição da República, em 1988, períodos nos quais sucessivas portarias de classificação prévia/indicativa foram emitidas pelo Ministério da Justiça, após o fim da Censura Federal. São fontes de análise deste artigo, matérias de jornais, além dos Relatórios Anuais da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), de 1972 a 1987, entre outros documentos, do período da ditadura militar, sob a guarda do Arquivo Nacional. Embasam as reflexões a teoria dos afetos de Spinoza e os escritos de Deleuze.
Palavras-chave: Cinema,Televisão,Moral,Ética,Afetos.
Abstract: In this article, a thinking is apprehended on how the concepts of ethic and moral over decades, in Brazil, were used in the name of an alleged quality in Cinema and Television, during the military regime, from 1964 to 1985, and after redemocratization, until the promulgation of the Constitution of the Republic, in 1988, periods in which successive ordinances of prior/indicative classification were issued by the Ministry of Justice, after the end of Federal Censorship. The sources of analysis for this article are newspaper articles, in addition to the Annual Reports of the Division of Public Entertainment Censorship (DCDP), from 1972 to 1987, among other documents, from the period of the military dictatorship, under the custody of the National Archive. The reflections are based on Spinoza's theory of affects and Deleuze's writings.
Keywords: Cinema, Television, Moral, Ethic, Affects.
Artigo
Os cuidados ético e moral sobre o cinema e a televisão no Brasil
Tanto o cinema quanto a televisão, no Brasil, têm suas histórias atravessadas por permanentes debates onde a palavra ética é recorrentemente demandada e usada, por vezes indistintamente, como sinônimo de valores morais ou de código de conduta. Parte significativa dessa discussão deu-se nas páginas de jornais sob períodos de governos autoritários, o que torna indispensável, a nosso ver, ainda hoje, empreender esforços em direção de pontuar as diferenças entre ética e moral (SPINOZA, 2014; DELEUZE, 2009), além de problematizar a maneira como esses termos têm sido articulados ao longo de décadas no país. Aliam-se a estas problematizações e reflexões, considerações sobre como uma ideia de ética apartada de normativas morais poderia, nos dias de hoje, efetivamente ajudar a sociedade a sobrepor-se, por exemplo, aos discursos de ódio e ir em direção às potencialidades do audiovisual para uma pedagogia ética firmada na potência dos afetos. Antes de tratar dos (des)entrelaçamentos dos conceitos, e seus possíveis desdobramentos voltados para uma ética dos afetos, vejamos como as práticas censórias e suas repercussões em debates midiáticos mobilizaram os termos ética e moral durante a ditadura militar brasileira, iniciada em 1964, e com o advento da promulgação da Constituição de 1988.
Criações cinematográficas e televisivas durante o regime militar no Brasil, que ocorreu entre 1964 a 1985, sempre foram alvos da Censura Federal, prática que rendeu nas páginas dos jornais brasileiros veementes debates, entre diversos grupos políticos, sociais e culturais, sobre um ideal de ética e de moral. Na base de muitos desses embates, estiveram decisões - vetos, censuras, portarias, decretos, apreensões, interdições etc. - que sob o argumento de zelar pelo país, pelos jovens, pelas crianças e pela família acabaram por definir durante décadas o que se poderia ver, ler, ouvir e expressar-se no país. Atualmente, ir ao acervo da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), mantido sob a guarda do Arquivo Nacional (AN), unidade de Brasília, é encontrar-se com milhares de documentos que guardam em si muitas germinais batalhas e disputas das alegadas problemáticas morais e éticas, durante a ditadura militar e após a redemocratização, até 1988. A DCDP foi criada em 1972 pelo Decreto nº 70.665, de 2 de junho, e extinta em 1988, após a promulgação da Constituição Federal. Nasceu subordinada ao Departamento da Polícia Federal do Ministério da Justiça com a missão institucional de controle das produções artísticas brasileiras. Sob o argumento da “defesa da moral e dos bons costumes”, ao mesmo tempo em que censurou filmes, músicas, livros, peças teatrais e telenovelas, também produziu laudos técnicos - pareceres - de Censura Prévia que liberavam, vetavam ou cortavam trechos das programações artísticas, nos seus mais variados campos: Cinema (Programação cinematográfica, filmes), publicações, publicidade, rádio (programas, programação e radionovelas), teatro (peças e programação), televisão (programas, programação, emissoras, seriados e telenovelas) e música (letras, programação). Também foi destino de cartas, abaixo-assinados, telexes, telegramas da sociedade civil - cidadãos e entidades de classe - que criticavam os meios de comunicação e que solicitavam mais rigor à censura. Na DCDP, tramitaram correspondências - como ofícios, memorandos, processos, requerimentos e encaminhamentos - que tinham como objetivo a promoção da censura. Nossas pesquisas debruçam-se sobre uma variedade desses documentos do acervo da DCDP do período da ditadura militar e da redemocratização. Contudo, neste artigo, devido aos estritos limites de abordagem que esse tipo de produção acadêmica requer, analisaremos uma parte dessa documentação, os Relatórios Anuais, por apresentarem uma compilação de atos censórios. Ao todo, localizamos 14 relatórios produzidos entre 1972 e 1987, detalhando as suas práticas e rotinas de censura. Dados desses relatórios demonstram o quanto foi intensa a atuação dos censores brasileiros. Excetuando os dados do relatório de 1985 que não localizamos, detalha-se por meio desses documentos que, entre 1972 e 1987, foram alvo da Censura, no Brasil, 106.047 filmes e 30.758 capítulos de telenovelas. Com base nesses documentos, contudo, não fica claro se todos esses filmes e capítulos de telenovelas sofreram algum tipo de controle efetivo porque ora se afirmam que foram examinados, ora censurados em alguma parte da obra. Já quando tratam das interdições ou proibições de filmes no país, os relatórios são mais objetivos. Segundo os documentos, no Brasil, durante 1972 e 1987, aprendeu-se 4.350 filmes e outros 262 foram interditados, entre nacionais, estrangeiros, curtas e longas-metragens. A prática da interdição dos filmes envolvia, entre outras ações, a proibição total ou temporária de exibição nas salas de cinema e em festivais e, caso alguma sala não cumprisse a determinação, poderia ter suas licenças de funcionamento cassadas. Na reportagem do Jornal do Brasil (JB), intitulada Cinema Proibido, publicada em 1978, questionam-se as razões e quantos filmes com “histórias incríveis” estavam, naquela altura, proibidos de chegarem às telas de cinema, já que os motivos das interdições divulgados eram os mais diversos e subjetivos, que por si “não permitiam um raciocínio lógico” (CINEMA, 1978, p. 37). Trechos de outra matéria do JB sobre a interdição de filmes no país, intitulada “O Censor Censurado”, de 1978, também reitera a falta de clareza quanto às alegadas irregularidades cometidas pelos filmes e pelas telenovelas. Reporta-se à interdição, no Brasil, do filme Casanova (Federico Fellini, 1976), em outubro de 1977, com base no artigo 41, nas alíneas a, d e f do Decreto nº 20.493, de 24 de janeiro de 1946. Esta legislação, nos itens citados, prevê negar a representação, exibição ou transmissão quando, respectivamente, “contiver qualquer ofensa ao decoro público”; “divulgar ou induzir aos maus costumes”; e por ser “ofensivo às coletividades ou às religiões” (BRASIL, 1946). Contudo, a interdição não esclarece quais seriam as “ofensas” contidas no filme e por que eram assim consideradas. Talvez a motivação dos censores resida na maneira como Fellini retratou as angústias de Casanova em relação a sua existência e a sua sexualidade. Assim como acontecia com as interdições, também não havia critérios para as apreensões dos filmes que eram recolhidos pela Polícia durante a sua exibição para o público e, na maioria das vezes, acabavam definitivamente proibidos. Dois casos ilustram bem essa situação. O primeiro deu-se com a apreensão de 76 filmes da produtora DinaFilmes, conforme relata reportagem do JB publicada em 4 de março de 1978. Por anos, DinaFilmes reiterou que os filmes fossem liberados, argumentando que se tratavam de clássicos do Cinema Mundial ou didáticos. O segundo caso, na reportagem do JB intitulada “Filme de Volonté é Apreendido”, de 26 de agosto de 1973, menciona a “falta de comunicação prévia da Censura Federal” (FILME, 1973, p.18) ao apreender na Sala de Cinema carioca Bruni-Flamengo, em 1973, no dia 22 daquele mês e ano, durante a sessão das 10 horas, o filme Atentado (Yves Boisset, 1972), inspirado no sequestro do líder político Ben Barka. Conforme a explicação do gerente da sala de cinema ao JB, o filme foi alvo dos mesmos procedimentos utilizados em outros dez apreendidos anteriormente, entre os quais a Classe Operária vai ao Paraíso (Elio Petri, 1971), Sacco e Vanzetti (Giuliano Montaldo, 1971) e Toda Nudez será Castigada (Arnaldo Jabor, 1972).
A defesa ou crítica sobre a atuação da Censura, seja por proibir, apreender ou interditar filmes e telenovelas, é, de certa forma, uma das forças que se articulam em torno dos entrelaçamentos das noções de ética e de moral. Um nome presente quando se trata dessa problemática, no Brasil, é do magistrado Alfredo Buzaid. Ministro da Justiça entre 1969 e 1974, e um dos idealizadores do Ato Institucional nº 05, de 13 de dezembro de 1968, e do Decreto-Lei nº 1.077 de 1970, que instituiu a “verificação” prévia, Buzaid escreveu em 1970 o livro Em Defesa da Moral e dos Bons Costumes, publicado no âmbito do Ministério da Justiça. Nessa publicação, argumenta em defesa do Decreto-Lei nº 1.077/1970 e da Constituição de 1967, então em vigor, como instrumentos legais para defender a soberania nacional, a moral e os bons costumes. Ao defender sua tese, Buzaid em vários momentos utilizou-se dos termos ética e moral. No capítulo que trata sobre críticas à verificação prévia, argumenta que a norma visa a “proteger a família, preservando-lhe os valores éticos e assegurar a formação sadia e digna da mocidade” (BUZAID, 1970, p. 41). Em outra parte, para explicar o que seria a expressão “moral e bons costumes”, cita, em italiano, que a “moral e os bons costumes são dois bens ético-jurídicos que a lei protege, através de um sistema de sanções penais adequado às diversas infrações” (MAGGIORE, 1948, apud BUZAID, 1970, p. 46, tradução nossa). Quase ao finalizar o seu texto, Buzaid diz ainda que o Decreto da Verificação Prévia tem sua inspiração eminentemente ética e que, ao repugnar os atos contrários à moral e aos bons costumes, a “lei houve por bem atribuir à ordem ética a dignidade de fonte de direito” (BUZAID, 1970, p. 54). O escritor e crítico cinematográfico José Lino Grünewald ironiza Alfredo Buzaid, no artigo "Conceito de Ética e Moral", publicado no dia 18 de maio de 1979, no Jornal da Tarde. Pergunta como a ação “brilhante” do senhor Alfredo Buzaid, como ministro da Justiça, contribuiu para salvar a pátria quando proibiu as gravuras eróticas de Picasso. “A pátria estaria salva. De quê? Infelizmente não estava livre da estultice. Tudo isso, na base das delícias moralistas do AI-5” (GRÜNEWALD, 1979). Quando trata de diferenciar os conceitos de ética e moral, Grünewald mais uma vez se opõe a Alfredo Buzaid quando afirma que censura sempre tem a ver com problemas morais, nunca foi de natureza ética. Pois existe uma diferença evidente entre o que se compreende por moral e o que se depreende por ética. Esta última representa padrões imutáveis de comportamento e relacionamento humano. [...] Já a moral está simplesmente vinculada aos costumes. Variam os produtos, varia a moral; variam as descobertas tecnológicas, varia a moral. (GRÜNEWALD, 1979). A partir de Spinoza, Deleuze explica que Ética é “uma tipologia dos modos de existência imanentes, substitui a Moral, a qual relaciona sempre a existência a valores transcendentes”. Segundo os filósofos, a Moral é o “sistema de julgamento”, enquanto a Ética “desarticula o sistema de julgamento”, fazendo com que a “oposição dos valores (Bem/Mal)” seja “substituída pela diferença qualitativa dos modos de existência (bom/mau)”. Enveredando pela prática, Deleuze destaca que a palavra “lei” tem “um ranço moral”, pois “não nos traz conhecimento algum, não dá nada a conhecer” e, na “pior das hipóteses, impede a formação de conhecimento (a lei do tirano)”. “A lei é sempre a instância transcendente que determina a oposição dos valores Bem/Mal, mas o conhecimento é sempre potência imanente que determina a diferença qualitativa dos modos de existência bom/mau” (DELEUZE, 2002, p. 29-31). A aproximação entre lei, moral e tirania parece estar no âmago das discussões que remetem à censura no audiovisual brasileiro, aludindo ainda a um ideal de ética distante do pensamento Spinoziano. No caso da televisão, os embates em torno da censura praticada pelo governo militar intensificam-se ainda mais à medida que os aparelhos de televisão vão-se popularizando, a partir da década de 1970. Aliás, talvez tenha sido menos o cinema e mais a televisão a alimentar o debate envolvendo um ideal de ética, que durante as décadas de 1970 a 1990, até o início dos anos 2000, será almejado em formato de código de conduta para as emissoras brasileiras. De certa forma, o embrião dessa discussão está nas controvérsias envolvendo o caso “Seu Sete”, isto é, de uma Mãe de Santo que nos programas do Chacrinha, na TV Globo, e do Flávio Cavalcanti, na TV Tupi, incorporou a entidade Exu das Sete Encruzilhadas Rei da Lira. Logo após sua apresentação nesses dois programas, não se cessou mais de se defender que algo fosse feito para garantir a ética e a moral na televisão brasileira. Parte dessa discussão está no editorial do JB, de 15 de setembro de 1971, intitulado “Exame de Consciência”. Nesse editorial, questionava-se quando a televisão, então com 20 anos, iria conquistar um padrão de ética profissional correspondente ao técnico e se haveria consciência profissional e moral dos que dirigem a televisão brasileira. Isso porque as emissoras Globo e Tupi, segundo o editorial, apresentaram “uma senhora macumbeira, armada de charuto e garrafa de cachaça, dirigindo-se a milhões de telespectadores como se fossem clientes e crentes do seu terreiro de despachos e milagres” (EXAME, 1971). O editorial acusava ainda a TV Tupi e a TV Globo de terem feito um “espiral de mau gosto”, de transformarem a televisão brasileira num terreiro de Umbanda ao apresentarem a Mãe de Santo, Dona Cacilda de Assis, incorporada de Seu Sete Rei da Lira. Em meio à disputa pelo mercado jornalístico e de entretenimento, que colocava essas empresas em campos opostos, além do JB, outros jornais também publicaram matérias acusando a TV Globo e a TV Tupi de terem sido antiéticas e imorais no caso da Mãe de Santo, Dona Cacilda de Assis. Algumas das reportagens teciam críticas, inclusive, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, e outras anunciavam que a Censura Federal iria suspender os programas por oito dias por terem “apresentado um show de baixo espiritismo explorando a crendice popular e favorecendo a propaganda do charlatanismo” (CENSURA, 1971). Dessa forma, esses textos, que relatam ainda a afinidade da Igreja Católica com o governo ditatorial na prática da intolerância religiosa, expressam como racismo religioso esteve por trás de muitos atos censórios, o que ainda conduziu à elaboração de normas que sedimentavam ainda mais tal preconceito. Depois das inúmeras críticas recebidas por terem mostrado na televisão uma pessoa adepta de religião afro-brasileira, a TV Globo e a TV Tupi anunciaram a assinatura de Protocolo em que se comprometeram em “excluir fatos ou pessoas que sirvam para explorar a crendice” (TVS FIRMAM, 1971) e que este documento ficaria em vigor até a criação do Código de Ética da Televisão Brasileira. Segundo uma matéria do Globo, publicada em 15 de setembro de 1971, as emissoras brasileiras e o Governo Federal já trabalhavam, então, conjuntamente no estudo que resultaria no Código de Ética, no qual constaria o que seria “proibido” nos programas de televisão. Essa ideia acerca do Código de Ética da Televisão Brasileira foi recorrente, sem se concretizar, durante toda a década de 1980. Em 1990, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) deu início à elaboração de uma minuta do Código de Ética, não sem controvérsias. Conforme matéria da Folha de São Paulo, de 21 de novembro daquele ano, as emissoras Rede Globo, Manchete, SBT, Bandeirantes, associadas à ABERT, tinham apenas como consenso de que televisão no Brasil precisava de “estabelecimento de regras de bom-gosto e respeito às minorias reclamantes” (TVS DECIDEM, 1990). Em 1993, o código entrou em vigor, mas nunca saiu do papel. “As divergências e os interesses internos nunca permitiram sua aplicação, pois qualquer decisão contra um associado favoreceria um concorrente” (REBOUÇAS, 2006, p. 47). Para Rebouças (2006), o “cúmulo do corporativismo” está registrado no artigo 27 do código que estabelecia como penas aos transgressores, a “advertência sigilosa”, a possibilidade de “expulsão dos quadros” da associação e no caso de culpa comprovada, a obrigação de veicular campanhas educativas. No editorial publicado no dia 13 de março de 1993, o JB afirma que o Código de Ética da ABERT é uma caricatura deslambida do código Hays que vigorou durante mais de 30 manos em Hollywood, para evitar a censura do governo. O editorial do JB, de certa forma, não deixa de ter razão. A ideia do Código de Ética da ABERT nunca esteve desatrelada das Portarias do Ministério da Justiça, seja ainda durante a ditadura militar e, principalmente, após a redemocratização do país, quando se buscou uma alternativa à Censura Federal. Período em que movimentos civis e religiosos também passaram a exigir controle sobre o que estava sendo exibido na televisão brasileira, e encontraram no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 13 de julho de 1990, um importante amparo, com destaque para a seção I do capítulo II, que aborda a Informação, Cultura, Lazer, Esporte, Diversões e Espetáculos. Em outubro de 1990, as controvérsias envolvendo apoiadores e opositores de limites à televisão, no Brasil, obtiveram mais um capítulo: a Portaria nº 773, de 19 de outubro de 1990, assinada pelo ministro da Justiça Jarbas Passarinho, que dispunha sobre como as emissoras deveriam encaminhar seus programas a serem veiculados, à exceção dos transmitidos ao vivo, para a classificação prévia. Em entrevista publicada no JB, no dia 23 de outubro de 1990, o então secretário de Direitos Humanos e Cidadania da Justiça, Carlos Eduardo de Araújo Lima, ressaltava que a portaria de Jarbas Passarinho tinha como meta atender ao que dispõe o ECA, ao constituir a classificação prévia. Conforme Carlos Eduardo, o governo almejava com essa portaria ter descoberto, “finalmente, uma saída para impor regras mais rígidas à programação das emissoras de televisão, que, desde o fim da censura estabelecido pela Constituição, têm levado ao ar programas considerados picantes por segmentos da sociedade que abarrotam o ministério com cartas reivindicando uma ação do governo” (LIMA apud DODORA, 1990b). Em outra reportagem do JB, publicada no dia 24 de outubro 1990, assinada por Dodora Guedes, o secretário Carlos Eduardo explicou que os critérios para restrições de horários e faixa etária observariam as “cenas de excessiva violência ou de prática de atos sexuais e desvirtuamento de valores éticos” (LIMA apud DODORA, 1990a). Para fazer a classificação indicativa, detalhou que apenas dez funcionários estavam envolvidos no trabalho, já que os antigos censores foram distribuídos a outros órgãos. Ainda na direção de se encontrar limites à televisão brasileira, entre os anos de 1998 e 1999, o então secretário nacional de Direitos Humanos, José Gregori, passou a desempenhar importante papel de defensor de um projeto de controle da televisão. Sugeriu e defendeu com entusiasmo a criação de um “Código de Ética” ou de um “Manual de Qualidade” que, alegava o secretário, deveria ser concebido pelas próprias emissoras e encaminhado ao governo. Outra sugestão foi que as emissoras constituíssem a função do “controlador de qualidade ou ombudsman”. Nessa época, também foi considerada a elaboração da Lei Eletrônica de Comunicação de Massa que deveria dispor de um capítulo sobre a proibição de exibição de sexo e violência na televisão nos horários anteriores às 21h30. A partir desse período jamais se deixou de nutrir a ideia de projeto de classificação dos programas de televisão, tornando um dos mais relevantes alvos a preocupação ética com aquilo que as crianças e os adolescentes viam nas telenovelas. Em 2000, quando José Gregori assumiu o Ministério da Justiça, a televisão viu-se às voltas com mais uma portaria. Dessa vez, a de nº 796, de 08 de setembro de 2000, que constituiu uma nova faixa etária de classificação para os programas, a dos 16 anos. Anteriormente, as atrações eram liberadas ou não recomendadas para menores de 12, 14 ou 18 anos. A portaria também estipulava punições às emissoras com base no ECA. Tinha “como objetivo diminuir cenas eróticas e violentas” (PORTARIA, 2000). Romão (2006) explica que, com a instituição da Portaria nº 796/2000, o Ministério da Justiça passou a direcionar todos os casos de descumprimento da classificação aos promotores de justiça e aos procuradores da República, para que fossem aplicadas as sanções previstas no ECA. Assim, ainda conforme Romão (2006, p. 25), “mesmo sem dispor de qualquer poder coercitivo, o Ministério da Justiça passou a garantir a eficácia da classificação, respaldado pelo Ministério Público”. Segundo reportagem de O Estado de São Paulo, publicada na edição de 1º de fevereiro de 2001, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) apresentou, em 31 de janeiro de 2001 no Supremo Tribunal Federal (STF), uma Ação Direta de Inconstitucionalidade a fim de suspender os efeitos da Portaria nº 796/2000 do Ministério da Justiça, sobre a classificação indicativa de diversões públicas e programas de rádio e televisão. Na ação, a OAB alegou que vários dispositivos da portaria ministerial, ao estabelecerem “‘verdadeira censura prévia’ de horário no rádio e na televisão, ‘restringem a liberdade de expressão artística garantida pela Constituição’” (OAB apud MARQUES, 2001). A OAB baseou-se no artigo 220 da Constituição Federal de 1988, que especifica que “compete à lei federal regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada”. O STF deliberou pelo arquivamento da ADI proposta pela OAB contra a portaria do Ministério da Justiça e a portaria foi revogada. Contudo, depois da Portaria nº 796/2000 houve diversas investidas de criação de novas portarias por parte do Ministério da Justiça até que fosse elaborada a Portaria nº 368 de 11 de fevereiro de 2014, que regulamentou o processo de classificação indicativa no Brasil até janeiro de 2022. Por exemplo, conforme Gonçalves (2014), em 2004, o Ministério da Justiça editou a Portaria nº 1.597, que versava sobre a Classificação Indicativa em cinema, vídeo, DVD e congêneres. Depois, em 2006, essa portaria foi substituída pela Portaria nº 1.100, que trazia novas regras sobre a Classificação Indicativa para cinema, vídeo, DVD, jogos eletrônicos, jogos de interpretação (RPG) e outras formas de entretenimento relacionados (GONÇALVES, 2014, p. 82). Em 2007, houve ainda a Portaria nº 264 que estendeu para a televisão a categoria inadequada para menores de 10 anos e, em relação à autoclassificação, determinou que, com “requerimento rigorosamente instruído, o representante legal de uma obra audiovisual poderá solicitar dispensa da análise prévia” (GOMES, 2014, p. 111). Após um “intenso debate público”, a Portaria nº 264/2007 motivou a publicação no mesmo ano da Portaria nº 1.220, considerada inovadora por ter trazido “[...] a criação da faixa etária de 10 anos para televisão; a exigência de informações de Classificação Indicativa antes e durante a exibição de obras audiovisuais, por intermédio de imagens e textos em português e em Língua Brasileira de Sinais e a imposição de respeito aos fusos horários locais para a veiculação de programas” (GONÇALVES, 2014, p. 84). Já a Portaria nº 368, que entrou em vigor em 13 de março de 2014, foi considerada pelo Ministério da Justiça por anos como aquela que conseguiu “consolidar as normatizações sobre o tema”. Entretanto, no dia 03 de janeiro 2022 foi substituída pela Portaria do Ministério da Justiça nº 502. Editado pela primeira vez em 2006, o Manual da Nova Classificação, na versão de 2021, já incorporava as alterações propostas por esta nova portaria que, conforme o guia, “foi construída com a participação ampla da sociedade - órgãos de controle, sociedade civil e os demais órgãos da administração” (BRASIL, 2021, p. 6), por meio de consulta pública ocorrida entre os dias 1º de junho e 15 de julho de 2021. O Guia detalha ainda quais obras audiovisuais são analisadas levando-se em consideração três eixos temáticos distintos: “sexo e nudez”, “drogas” e “violência”, além da mensuração das fases descritiva e contextual dos conteúdos identificados. Em 27 de abril de 2023, uma nova portaria referente à classificação indicativa foi emitida pelo Ministério da Justiça, a de número 361. Vários artigos receberam nova redação. Entre as quais, o que prevê que “constatada a exibição de conteúdos incompatíveis com a autoclassificação em obras, a qualquer momento, a Coordenação de Política de Classificação Indicativa poderá pedir esclarecimentos à emissora, que devem ser prestados em até cinco dias contados a partir do pedido” (BRASIL. 2023).
Dessa trajetória em que o cinema e a televisão jamais deixaram de estar no centro da discussão sobre um cuidado, seja ético ou moral, tanto durante a ditadura quanto na pós-democratização, é que passamos agora às reflexões acerca de uma ética para o audiovisual mais firmada nos afetos alegres do que em uma moral normativa. Para tanto, fundamentamos esta compreensão no que trata Spinoza (2014) quando desenvolve a sua teoria dos afetos no livro Ética. Nessa obra, o filósofo ensina o quanto as discussões de cunho moralista podem ter as bases firmadas em afetos de tristeza (ódio, ira, medo, vingança, vergonha, arrependimento etc.) porque apregoa haver a existência do bem e do mal, algo que em nada contribui para que a humanidade alcance uma perfeição maior. O “bem e o mal” ao contrário do “bom e do mau” sustentam-se sobre dogmas, deveres, pecados, que estão na ordem da religião. Mas, precisamos lembrar que os costumes e a religião não são os mesmos para todos, já que aquilo que é sagrado para uns pode ser profano para outros, e o que é respeitoso para uns, para outros, pode ser desrespeitoso (SPINOZA, 2014, p. 146). Nos cursos que ministrou sobre Spinoza, entre 1978 e 1981, Deleuze (2009) reitera a importância de não confundir-se ética com moral. Conforme Deleuze, numa moral, há sempre um sistema de duplo julgamento (julgamos e somos julgados), em nome de uma instância superior em que o Uno é mais do que o Ser, enquanto, na ética de Spinoza, isso não ocorre porque trata das potências das ações. Jamais um moralista definirá o homem pelo que ele pode, um moralista define o homem pelo que ele é, pelo que ele é em direto. Então, um moralista definirá o homem por animal racional. É a essência. Spinoza jamais definirá o homem como um animal racional, ele define pelo que ele pode, corpo e alma (DELEUZE, 2009, p. 203-204). Sobre essa perspectiva da potência do corpo tratada por Spinoza, Iafelice (2015) ressalta que a teoria do direito natural mantém estreita relação com a ética e, por isso, impele-nos que se dê um novo sentido à palavra lei, diferentemente da clássica definição de perfeição ou de virtude. Iafelice observa que o próprio Deleuze alerta que lei moral apropriou-se das leis da natureza a tal ponto que a palavra “lei mostra-se viciada e contaminada pela moral, pois leis e mandamentos se tornaram semelhantes dentro dessa perspectiva” (IAFELICE, 2015, p. 84). Se considerarmos a ideias de Spinoza acerca da ética para analisar as práticas censórias da ditadura e o próprio debate que se instaurou após a redemocratização do país sobre novas formas de controle para a televisão, talvez possamos constatar que grande parte das discussões deu-se, sobretudo, no terreno dos moralistas e da moralidade. Sob pretextos da prática do bem e do combate ao mal, o que vivenciamos, salvo algumas exceções, parece muito mais reforçar afetos de tristeza, carregados de preconceito, racismo, intolerância, homofobia etc. Afinal, atualmente teríamos como explicar a polêmica em torno do caso do Seu Sete Rei da Lira, se não como intolerância religiosa?! Teríamos outro nome para dar se não LGBTfobia para inúmeras portarias e normativas que proibiram que se mostrasse, falasse, apresentasse ou representasse pessoas LGBTQIA+ na televisão? Um exemplo claro disso é a normativa nº 03/85-DCDP, tratada no ofício circular nº 1.265/85, de 09 de julho de 1985, que determinou que homossexuais só pudessem apresentar-se na televisão depois das 21 horas. Citava como fundamento o disposto na alínea “c” do artigo 41 do Regulamento aprovado pelo Decreto nº 20.493/1946, e as “reiteradas reclamações acerca da presença de travestis nas programações de televisão” (ARQUIVO NACIONAL, DCDP, 1985): I- A apresentação de travestidos, de homem ou de mulher aparentemente homossexual, respectivamente em atitude ostensivamente efeminada ou masculinizada, quer em telenovela como em programa de auditório, terão a veiculação televisiva autorizada para após às 21 (vinte e uma) horas. I.I - O tratamento cênico dado, assim por animador como por narrador, a travestido ou homossexual aparente não poderá ser ofensivo à dignidade humana do apresentado, nem apologética do transexualismo ou do homossexualismo. (ARQUIVO NACIONAL, DCDP, 1985). Por outro lado, da mesma forma que precisamos reconhecer que o controle e a censura ao cinema e à televisão deram-se em nome de uma moral, também se faz necessário pontuar que em ambos, ao longo das suas histórias, é possível constatar a potência que comportam, enquanto tecnologias sociais e espaços de conhecimentos e de promoção do pensamento, da cultura, da liberdade e da diversidade. Para uma pedagogia ética, saber tirar proveito dessas potencialidades, à luz Spinoziana, pode ser uma forma de exaltar a vida e prover-nos de afetos alegres, aqueles que aumentam as nossas potências de agir em direção à liberdade. Como nos lembra Deleuze (2014), Spinoza faz uma filosofia da vida e, como tal, alerta-nos que é o ódio que a perverte, inclusive, o ódio contra si mesmo e a culpabilidade. Nunca haverá ética firmada sobre afetos tristes, já que a Ética, para Spinoza, “é sempre uma ética da alegria: somente a alegria é válida, só a alegria permanece e nos aproxima da ação e a beatitude da ação” (DELEUZE, 2002, p. 34). Uma pedagogia ética para audiovisual, portanto, faz-se também à medida que soubermos usá-lo para a promoção da igualdade e a superação dos preconceitos e da intolerância. Algo que, no Brasil, o Cinema Negro tem sido extremamente promissor. E cada vez mais as telenovelas brasileiras também se inclinam nessa direção, ao trazer tramas com protagonistas negros e de promoção da diversidade.