Artigo
Cinema negro e educação antirracista
Práticas Educativas, Memórias e Oralidades
Universidade Estadual do Ceará, Brasil
ISSN-e: 2675-519X
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 5, núm. 1, 2023
Resumo: Este artigo teve como objetivo pensar o cinema negro na construção da educação antirracista. Para tanto, realizou-se uma pesquisa bibliográfica acerca das relações étnico-raciais na sociedade (CARNEIRO; 2005; GONZALEZ, 1983; NASCIMENTO, 1978; SOUZA, 1983); da educação antirracista numa perspectiva decolonial (MIGNOLO, 2003; OLIVEIRA; CANDAU, 2010; WALSH, 2005) e da trajetória do cinema quanto às questões raciais (CARVALHO, 2022; SOARES, 2009), com enfoque no cinema negro (PRUDENTE, 2018, 2019; SOUZA, 2013, 2020). Posto isso, discutiu-se sobre o papel pedagógico do cinema (BENATTI; TERUYA, 2022; FREITAS; COUTINHO, 2013) e as contribuições do cinema negro para um currículo antirracista. Ademais, foi apresentada uma proposta de intervenção pedagógica através do filme “Ewé de Òsányìn: o segredo das folhas”. Como resultado da pesquisa, destaca-se a potencialidade do intercruzamento dos debates sobre relações étnico-raciais, cinema negro e educação antirracista para se pensarem possibilidades concretas de abordagem de uma epistemologia Afro-Brasileira no cotidiano escolar.
Palavras-chave: Cinema negro, Educação antirracista, Cotidiano escolar.
Abstract: This article aims to consider the role of black cinema in building an anti-racist education. We carried out bibliographical research on ethnic-racial relations in society (CARNEIRO, 2005; GONZALEZ, 1983; NASCIMENTO, 1978; SOUZA, 1983); anti-racist education in a decolonial perspective (MIGNOLO, 2003; OLIVEIRA; CANDAU, 2010; WALSH, 2005); and the trajectory of cinema regarding racial issues (CARVALHO, 2022; SOARES, 2009), with a focus on black cinema (PRUDENTE, 2018, 2019; SOUZA, 2013, 2020). In addition, the pedagogical role of cinema was discussed (BENATTI; TERUYA, 2022; FREITAS; COUTINHO, 2013) and black cinema's contributions to an anti-racist curriculum. Finally, we presented a proposal for pedagogical intervention through the film "Ewé de Òsányìn: o segredo das folhas." As a result, we found the potentiality of the intercrossing debates on ethnic-racial relations, black cinema, and anti-racist education to think about concrete possibilities for approaching an Afro-Brazilian epistemology in school life.
Keywords: Black cinema, Anti-racist education, School life.
1 Introdução
Ao abordar a supremacia branca, Neusa Souza (1983) explica que a branquitude atravessa os campos ontológicos e epistemológicos, determinando modos de saber e de ser. Nesse sentido, a estética, a narrativa e a subjetividade branca são um modelo a ser seguido em uma sociedade racista. Realidade que não é diferente em se tratando do conhecimento perpetuado e construído na escola: a maior parte das referências são brancas e europeias. Nesse contexto, é proposta uma descolonização do currículo para que seja possível construir uma educação antirracista que dê ênfase a práticas sociais e epistêmicas não pautadas na branquitude (MIGNOLO, 2003). Saberes e narrativas até então apagados surgem como um enfrentamento não limitado à denúncia, mas propositivo: está em jogo a construção de novos modos de saber (WALSH, 2005). Nessa disputa, figura a Lei 10.639/ 2003, que prevê a história da África e da cultura afro-brasileira no currículo escolar. É uma legislação com referências decoloniais e antirracistas (OLIVEIRA; CANDAU, 2010). O presente artigo parte desse contexto para, inicialmente, pensar: como aplicar o referido dispositivo legal no cotidiano, sendo a realidade da escola complexa e ainda espaço de reprodução de valores e epistemologias colonizadas? Como criar condições para que a sala de aula torne-se espaço de denúncias, confrontos e negociações epistêmicas? No intuito de responder a esses questionamentos iniciais, propomos uma discussão mais aprofundada sobre o racismo e a educação antirracista. Posteriormente, abordamos a relação entre cinema e questões raciais e apontamos o cinema negro como contranarrativa que desafia a hegemonia branca e desconstrói estereótipos racistas. Por ser uma representação estética e ideológica que amplia a compreensão das experiências negras, o cinema negro tem um grande potencial no campo da educação. Assim, chegamos à última questão (mais específica) a ser respondida neste artigo: como o cinema negro pode contribuir na elaboração de uma proposta didática antirracista nas aulas de História? Como será visto mais adiante, já há pesquisas consistentes sobre o cinema negro em si (PRUDENTE, 2018,2019; SOUZA, 2013, 2020). O presente estudo justifica-se mais pela urgência de pensar possibilidades para lidar com a supremacia branca na escola. É fato que também há pesquisas sobre educação antirracista e função educativa do cinema. Entretanto, como veremos mais à frente, Freitas e Coutinho (2013) apontam o uso do audiovisual para um adestramento didático, criticando a mobilização desse recurso apenas para a transposição de ideias já estabelecidas. Os autores propõem outras formas de o cinema figurar na sala de aula. Formas essas que procuramos contemplar com uma proposta didática a qual aborda uma epistemologia Afro-Brasileira por meio do filme "Ewé de Òsányìn: o segredo das folhas". O filme suscita o diálogo sobre questões simbólicas e espirituais, trazendo à tona narrativas e subjetividades negras de forma delicada e poética. Assim, inspirada pela ideia da história a contrapelo de Benjamin (2012), a sequência didática visa a ampliar a visibilidade e o reconhecimento das contribuições do povo negro para a cultura e a sociedade brasileira, incentivando a reflexão crítica e a valorização da diversidade étnico-racial no ambiente educacional. A ideia é que, da reflexão teórica à proposta didática, este artigo contribua para pensar o cinema negro como linguagem potente para a criação de espaços de aprendizagem que promovam o respeito, a valorização e a compreensão das diversas experiências e perspectivas raciais, sendo possível a formação de alunos comprometidos com a defesa de uma sociedade antirracista.
2 Metodologia
Para atender ao objetivo de pensar o cinema negro na construção de uma educação antirracista, foi realizada uma pesquisa bibliográfica sobre as relações raciais na sociedade; a educação antirracista; o cinema e as questões raciais e o potencial pedagógico do cinema negro. O modo como se dão as relações raciais na sociedade foi abordado a partir do olhar de autores negros como Carneiro (2005), Gonzalez (1983), Nascimento (1978) e Souza (1983). Quanto à educação antirracista, foi pensada em uma perspectiva decolonial (MIGNOLO, 2003; OLIVEIRA; CANDAU, 2010; WALSH, 2005), a qual evidencia a necessidade de desconstruir as relações de dominação no processo educacional, abordando outras maneiras de ver, sentir e compreender o mundo que não a branca e europeia. Ao tratar da trajetória do cinema, focamos em análises que primam pelas questões raciais (CARVALHO, 2022;SOARES, 2009), dando destaque às discussões referentes ao cinema negro (PRUDENTE, 2018,2019;SOUZA, 2013, 2020). Posteriormente, levantamos reflexões sobre o papel pedagógico do cinema (BENATTI; TERUYA, 2022; FREITAS; COUTINHO, 2013) e as potencialidades do cinema negro na construção de um currículo antirracista no cotidiano escolar Além da pesquisa bibliográfica, como contribuição para se pensar uma educação antirracista, apresentamos uma ideia de intervenção pedagógica (OLIVEIRA, 2017) a partir do filme “Ewé de Òsányìn: o segredo das folhas” - escolhido por permitir a discussão sobre a relação entre humanos e natureza em uma epistemologia Afro-Brasileira.
3 Relações étnico-raciais na sociedade brasileira
A noção de "raça" desempenha um papel fundamental na estruturação das relações sociais e no acesso a direitos básicos. Embora seja amplamente aceito que ela não existe biologicamente, continua a ser um fator social significativo nas desigualdades sociais, sendo inclusive uma categoria que leva à animalização, isto é, à desumanização sistemática das pessoas negras. Embora seja fundamental pensar a ideia de raça para compreender as dinâmicas sociais do Brasil, persiste no país uma ideologia que mascara o racismo como fonte das desigualdades. De acordo com Nascimento (1978), o mito da democracia racial é uma narrativa fantasiosa que exalta a miscigenação e o sincretismo religioso com o objetivo de preservar a hegemonia das elites brancas. É uma falsificação da nossa trajetória histórica, procura-se esconder a existência de uma violência racista no cerne da identidade nacional. A força de narrativas falseadas como essa evidenciam o impacto da supremacia branca na maneira como entendemos a realidade social. Conforme explica Neusa Souza (1983), essa supremacia (a que chama branquitude) não é determinada por aspectos biológicos ou genéticos, mas é resultado de uma construção histórica e ideológica que confere privilégios e poder às pessoas brancas. Nesse sentido, a branquitude desempenha um papel decisivo na produção de um campo ontológico, epistemológico e de poder. Esses campos estão interligados para moldar formas de conhecimento e subjetivação, configurando o chamado dispositivo de poder. De acordo com a pensadora Sueli Carneiro (2005), no Brasil, existem duas formas de compreensão da racialidade. Uma é baseada no adestramento de sujeitos racializados, com base em visões historicamente produzidas pela branquitude. A outra é a lógica do biopoder, que opera em uma dimensão mais abrangente e configura um dispositivo híbrido: a norma é que negros e brancos precisam demonstrar em suas vidas o que é atribuído às suas respectivas raças, sendo imperativa a produção dessas realidades para a legitimação das hierarquias. Esse dispositivo é responsável pela produção e reprodução sistemática de raças subordinadas. Nesse contexto, Lélia Gonzalez (1983) destaca a importância de diferenciar a consciência da memória no trato com os referidos dispositivos de poder. A consciência refere-se ao desconhecimento, encobrimento, alienação e até mesmo ao saber ao qual o discurso ideológico manifesta-se. Já a memória é considerada um não saber que conhece, um espaço de inscrições que resgata uma história não escrita, um lugar onde a verdade estrutura-se como “ficção”. A consciência é o lugar da rejeição, expressando-se como o discurso dominante (ou os efeitos dele) em uma determinada cultura, ocultando a memória e impondo sua própria versão da verdade. Mas a memória possui suas artimanhas e sua dinâmica psicossocial, fala por meio dos atos falhos presentes no discurso da consciência. É no jogo dialético entre essas duas noções que podemos compreender melhor o racismo e o sexismo na cultura brasileira. De acordo com Lélia Gonzalez, é justamente a mulher negra anônima, que vive nas periferias e nas camadas mais marginalizadas da sociedade, é quem sofre de forma mais intensa os efeitos da opressão racial. Nesse sentido, ser negra é uma experiência complexa e permeada por diversas formas de opressão. Essa vivência envolve o sofrimento causado pela supressão da identidade, em que a mulher negra é constantemente desconsiderada em suas perspectivas e submetida a exigências alienadas. No entanto, tornar-se negra também implica resgatar a história por meio da memória, recriando as próprias potencialidades. É um compromisso em libertar-se das amarras impostas pela sociedade, valorizando a cultura e a identidade negra na luta contra o racismo. Dessa forma, tornar-se negra é um processo de resistência (SOUZA, 1983). Se por um lado a autoafirmação da negritude é um ato de empoderamento, por outro lado é problemático o fato de a referência do negro continuar sendo o branco, seja para afirmar-se ou para negar-se. Souza (1983) explica que o branco permanece sendo visto como algo que transcende o sujeito concreto e inscreve-se como uma estrutura simbólica ou um lugar no discurso. A autora propõe uma definição precisa do que seria essa instância normativa, denominada por Freud como “Ideal do Eu” – ideal esse que cria as condições objetivas para que a branquitude reproduza as desigualdades raciais ao trabalhar com a ideia de um "padrão branco" como norma a ser seguida. Neusa Souza aponta que isso fragmenta a identidade do sujeito negro, minando seu orgulho e desarticulando a solidariedade do grupo. Assim, vivida subjetivamente, essa situação tem repercussões graves no tecido social. Dessa forma, é preciso reconhecer a existência de um dispositivo de racialidade/biopoder e compreender como ele opera, por exemplo, na educação básica brasileira. De forma explícita, ele manifesta-se principalmente por meio do controle do acesso, do sucesso e da permanência dos estudantes racializados no ensino público de qualidade (CARNEIRO, 2005). Além disso, o dispositivo de racialidade e biopoder é responsável também por produzir e reproduzir uma educação que se baseia em saberes e práticas que promovem a branquitude e silenciam as experiências e conhecimentos das pessoas afrodescendentes, reforçando assim o racismo e o epistemicídio (CARNEIRO, 2005). No entanto, esses processos não se realizam plenamente, uma vez que existe um movimento de resistência. O próprio reconhecimento de como opera a engrenagem da branquitude é importante para a luta das comunidades marginalizadas contra a opressão e a subjugação. São muitas as estratégias e táticas adotadas pelas comunidades negras no Brasil, dentre elas está a disputa por narrativas no contexto educacional.
4 Educação antirracista
Propõe-se que a educação antirracista parta da perspectiva da decolonização, isto é, “da luta contra a não-existência, a existência dominada e a desumanização” (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 24). Com isso, é possível construir outras formas de viver, poder e saber, dando visibilidade a práticas sociais, epistêmicas e políticas não brancas e não eurocêntricas. Mignolo (2003) explica que se trata de uma proposta de reordenamento geopolítico do conhecimento, o qual passa pela crítica da inferiorização histórica de saberes e pela necessidade de construir nova modalidade epistemológica nesse sentido. Em outras palavras, no contexto de uma educação antirracista, os estudantes teriam a oportunidade de reconhecer e refletir sobre os apagamentos históricos, mas não se limitariam a essa crítica: haveria também o estudo de referências outras, construindo-se o conhecimento a partir de narrativas e saberes cujo maior pilar não é a branquitude. Vale destacar que tais narrativas e saberes não estariam completamente livres das perspectivas de branquitude. O conceito de “pensamento crítico de fronteira”, trabalhado por Walsh (2005), explicita que a abordagem decolonial não implica a criação de uma sociedade ideal, pois as relações de poder são estruturais e não desaparecem facilmente. Assim, o pensamento de fronteira compromete-se com o questionamento e transformação contínua do pensamento dominante – que continua sendo uma referência, mas a ideia é colocá-lo em xeque, criando fissuras na sua hegemonia. Walsh (2005) ainda aponta que a interculturalidade tem um importante papel nessa abordagem decolonial, pois passa por outra ideia de mundo e de conhecimento, por uma virada epistêmica. Nesse sentido, não seria suficiente a inclusão de temas relacionados à raça no currículo, a autora aponta a necessidade de questionar a base ideológica do conhecimento escolar e não se limitar à narrativa da revitimização – o que é bastante comum no estudo de temas como a escravidão, quando os negros não são vistos como sujeitos que constroem a história, apenas figuram nela. Walsh (2005), portanto, sugere uma insurgência educativa propositiva, de forma que a denúncia não basta e é preciso construir novos modos de saber. Considerando os recentes esforços para descolonizar o currículo, Oliveira e Candau (2010) dissertam sobre as mudanças na legislação brasileira desde 1988 e destacam a Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que prevê a inserção obrigatória da história da África e da cultura Afro-Brasileira no currículo escolar. Acrescentam que não se trata de algo pontual, mas de uma proposição pensada em diferentes níveis da legislação brasileira, estando ela em consonância com reflexões decoloniais e antirracistas. Entretanto, fica o questionamento de como aplicar essa lei, criando condições para que a sala de aula torne-se espaço de denúncias, confrontos e negociações epistêmicas. Cavalleiro (2001) lista oito características de uma educação antirracista, o que pode ajudar a pensar como construir o currículo no cotidiano:
1. Reconhece a existência do problema racial na sociedade brasileira. 2. Busca permanentemente uma reflexão sobre o racismo e seus derivados no cotidiano escolar. 3. Repudia qualquer atitude preconceituosa e discriminatória na sociedade e no espaço escolar e cuida para que as relações interpessoais entre adultos e crianças, negros e brancos sejam respeitosas. 4. Não despreza a diversidade presente no ambiente escolar: utiliza-a para promover a igualdade, encorajando a participação de todos/as os/as alunos/as. 5. Ensina às crianças e aos adolescentes uma história crítica sobre os diferentes grupos que constituem a história brasileira. 6. Busca materiais que contribuam para a eliminação do ‘eurocentrismo’ dos currículos escolares e contemplem a diversidade racial, bem como o estudo de ‘assuntos negros’. 7. Pensa meios e formas de educar para o reconhecimento positivo da diversidade racial. 8. Elabora ações que possibilitem o fortalecimento do autoconceito de alunos e de alunas pertencentes a grupos discriminados (CAVALLEIRO, 2001, p. 158).
No estudo “Racismo e antirracismo nas escolas reais”, Gillborn (1995) também traz contribuições para pensar o cotidiano escolar. Aponta a importância de o professor fazer da aula um espaço democrático, em que os alunos expressem-se sem medo das interpretações e julgamento dos outros, havendo contexto para elaborar ideias racistas e desconstruí-las e para o confronto epistemológico. Além disso, o autor trata da importância de o multiculturalismo ser abordado de maneira crítica, extrapolando a celebração. Assim, ir do apontamento da diferença à análise da desigualdade é essencial não apenas nas reflexões em sala de aula, mas no currículo oculto, afinal, isso permite uma desautomatização no tratamento desigual entre os sujeitos que compõem a escola. Quanto às possibilidades metodológicas na educação antirracista, é relevante trazer para a sala de aula narrativas não brancas, ampliando a perspectiva dos estudantes sobre modos de poder, de viver e de ser. Nesse contexto, o cinema é uma linguagem poderosa, pois articula possibilidades estéticas e ideológicas na construção de universos que podem romper com a ordem social vigente. Como aponta Bell (2003, p. 4), “histórias não são simplesmente produções individuais, mas culturais e ideológicas também [...] as histórias que contamos são aquelas que são culturalmente disponíveis para os nossos dizeres”. Assim, como produção cultural e ideológica, o cinema pode tanto perpetuar como romper valores já estabelecidos.
5 Cinema e questões raciais: considerações sobre o cinema negro
Como bem explicita Carvalho (2022, p. 26), “a linguagem cinematográfica pode – e não é raro que o faça - naturalizar uma ordem social e suas hierarquias”. Ao longo do século XX, o audiovisual estabeleceu-se como ferramenta de conquista e difusão de modos de vida. Especificamente com relação ao cinema, Hollywood foi e é basilar na difusão do consumo do American way of life, firmando-o como modelo de homogeneização cultural (SOUZA JUNIOR, 2018), com o protagonismo da figura do homem branco, ocidental. De forma semelhante, o cinema europeu e o soviético também assumiram em suas bases características hegemônicas (QUEIROZ; PACHECO; SOARES, 2022). No início da história do cinema, nos Estados Unidos, apenas poucos filmes mostravam os afro-estadunidenses como humanos. Tanto nos palcos como nas telas, a maioria dos personagens era de atores e atrizes brancos usando maquiagem preta (blackface) – o que se estendeu por toda a história do cinema até o momento em que ativistas e artistas negros passaram a questionar os estereótipos racistas e reivindicar autorrepresentação (CARVALHO, 2022). A partir da necessidade de representação do povo negro pelo próprio negro e além dos estereótipos, Willian D. Foster fundou a Foster Photoplay Company, a primeira companhia negra cinematográfica, em 1910, em Chicago. Seu primeiro filme, “The Railroad Porter” (“O Porteiro da Estrada de Ferro”), pioneiro por ser dirigido e representado por negros, foi lançado em 1913 (ALMEIDA, 2013, p. 16). No ano de 1916, George Johnson e Noble Johnson fundaram a Lincoln Picture Company e lançaram “Ambição de um Negro”. Em 1918, veio “O Nascimento de uma Raça”, obra mais conhecida, em que foram representados soldados, famílias e heróis negros (SOUZA, 2013). Como as aludidas empresas, muitas outras dirigidas por negros iniciaram a produção dos chamados “race movies” (“filmes de raça”), o que pode ser considerado como o nascimento do cinema negro estadunidense. Essa reação aos estereótipos e à quase ausência de atrizes e atores negros em Hollywood foi feita com recursos escassos e em circuitos paralelos, mas teve impacto especialmente nas comunidades afrodescendentes. Um dos mais importantes realizadores desse período inicial, entre os anos 1920 e 1950, foi Oscar Micheaux, com o filme “The Homesteader” (“O proprietário”), o primeiro longa-metragem produzido por um negro em seu país (SOUZA, 2013). Já no Brasil, no início da produção cinematográfica, nos tempos do cinema silencioso, negros e negras foram representados em diversas películas, como “Dança de um baiano” (1899), “Dança de capoeira” (1905) e “O carnaval cantado” (1918) (CARVALHO, 2022). Contudo, tal representação deu-se de forma marginal, periférica no enquadramento e no conteúdo. Explica Carvalho (2022, p. 26): É possível fazer uma homologia entre as posições sociais dos negros no período imediatamente posterior a abolição e as suas imagens laterais ocupando as bordas e o fundo dos enquadramentos. Elas «escaparam» ao controle dos cinegrafistas. A partir dos anos 1910, com desenvolvimento da decupagem, a profissionalização e o desenvolvimento comercial da produção essas imagens invasoras desapareceram completamente. Quando eram propositalmente representados nas telas, aos negros restaram os estereótipos a partir da desumanização da experiência de vida dessa população, de forma alegórica firmando o discurso hegemônico (CARVALHO, 2022). De modo distinto, os grupos dominantes não são representados alegoricamente, mas são exibidos como naturalmente diversos, sem generalizações (SHOHAT; STAM, 2006). O estereótipo foi elemento essencial na Chanchada, gênero de filme brasileiro que, por meio da sátira, explorava a comicidade em situações do cotidiano e em manifestações populares, como o samba e o carnaval. Com auge entre 1930 e 1950, essa tendência seguia os Grandes Studios estadunidenses com a finalidade de receber recursos externos. Assim, criou-se um cinema popular nacional baseado no folclore, representando-se a cultura como algo estático e genérico. Seguindo um positivismo industrialista, o camponês e o indígena foram retratados como alheios ao progresso, enquanto o negro foi invisibilizado, apesar de o samba assumir o posto de unidade nacional. Usou-se a alma do negro, mas foi negado o seu corpo como intérprete (PRUDENTE, 2019). Em nível global, um grande marco para o cinema negro foram as produções dos anos 1970 nos Estados Unidos, que seguiram os movimentos por direitos civis da população negra das décadas 1950 e 1960. Inclusive em Hollywood, passaram a ser produzidas diversas películas dirigidas, interpretadas e direcionadas ao público negro. Tal tendência, posteriormente passou a ser denominada “Blaxploitation”, caracterizando-se pela representação mais real e autêntica da população negra, diferentemente dos padrões estereotipados das produções clássicas do cinema estadunidense. No chamado “Terceiro Mundo”, a década de 1960 foi um período de potente reação à homogeneização cultural do cinema hegemônico. Pode-se dizer que, alicerçada em ideologias de construção de uma identidade, opondo o nacional ao estrangeiro e, também, de políticas culturais com foco na mudança social pela mobilização das massas (SOARES, 2014), a ideia de um cinema autóctone caracterizou e uniu esse “cinema à margem”, apesar da diversidade das produções (SOARES, 2009). Proliferaram-se, nas Américas, manifestos pela criação de “cinemas novos”, a exemplo de “Estética da Fome” (1965) de Glauber Rocha, “Por un cine imperfecto” (“Por um cinema imperfeito”, 1969) de Julio García Espinosa e “Hacia el tercer cine” (“Rumo ao terceiro cinema”, 1968) de Fernando Solanas e Octavio Getino (NASCIMENTO, 2015). Assim, como nas vanguardas artísticas, o cinema do contexto periférico apresenta “o caráter de novidade e de reescritura, de ruptura com matizes tradicionais”, que “leva à necessidade de se produzir não só artisticamente, mas, inclusive, teoricamente” (SOARES, 2009, p. 211). Em especial, o Cinema Novo brasileiro buscou romper com a perspectiva colonialista e empreendeu novas maneiras de representar a identidade nacional, com outra perspectiva para pensar o protagonismo de negros e indígenas na construção do Brasil (COSTA; GALINDO, 2018). O que marcou o movimento foi, sobretudo, o desenvolvimento de temas nacionais, o caráter político e social, além da produção a partir de recursos mais limitados. Nesse cenário, o negro transformou-se no referencial estético: sua cultura passou a ser anunciada como cultura popular brasileira, em oposição ao de fora, ao colonialismo cultural. Com um viés marxista, o negro passa a significar a expressão da pobreza, na base da luta de classes contra o burguês branco, símbolo da riqueza (PRUDENTE, 2019). Dessa forma, nos filmes do Cinema Novo, tiveram destaque personagens adeptos dos cultos afro-brasileiros, heróis e sambistas, por exemplo (SOUZA, 2013). O antropólogo e cineasta Celso Prudente compreende que o referido movimento “radicalizou a posição da africanidade no contexto cinematográfico” e enxerga o diretor Glauber Rocha como “o inventor do cinema negro brasileiro”, dando especial destaque ao filme “Barravento” (1962) (PRUDENTE, 2019). Segundo o autor, o cinema novo colocou o negro e a sua cultura em um inequívoco protagonismo substancial à sua estética, no genial esforço artístico-intelectual do baiano afrodescendente Glauber Rocha” (p. 20) Por outra perspectiva, há autores que discordam dessa posição, entendendo que o Cinema Novo não foi capaz de mudar a forma de representação do negro no cinema nacional. Para José Carlos Rodrigues, por exemplo, o filme “Barravento” apresenta os negros como culturalmente atrasados (SOUZA, 2013). De forma distinta, Carvalho (2022) interpreta que, de fato, o Cinema Novo colocou a questão da representação racial no centro, inserindo o negro como uma metáfora para o povo, analfabeto, favelado, camponês, operário e migrante, figurando como o “homem brasileiro”. Entretanto, argumenta que houve uma desracialização, pois o negro foi idealizado como universal (povo, proletário, explorado) para gerar identificação por parte de uma plateia majoritariamente branca, intelectualizada e de esquerda. De qualquer forma, Edileuza de Souza (2013) reconhece que, mesmo ainda preso a estereótipos, o Cinema Novo retratou diversas temáticas e características da cultura negra brasileira, além de ter um papel significativo na introdução de atrizes e atores negros no mundo do cinema, a exemplo de Léa Garcia, Luiza Maranhão, Antônio Pitanga, Zózimo Bulbul, Milton Gonçalves e Valdir Onofre. Tal espaço foi importante, inclusive, porque muitos desses artistas passaram, posteriormente, a dirigir seus próprios filmes, como Zózimo Bulbul, com “Alma no olho” (1973) e Músicos brasileiros em Paris (1976), Valdir Onofre, com “As aventuras amorosas de um padeiro” (1976) e Antônio Pitanga, com “Na boca do mundo” (1978) (CARVALHO, 2022). Em todas as fases do cinema nacional, como bem explica Edileuza de Souza (2013), a militância, por meio de diferentes formas de organização coletiva, foi decisiva, ao trazer discussões sobre a construção das imagens do negro nos meios de comunicação. Cite-se a Frente Negra Brasileira (FNB) que, na década de 1930, reivindicava a necessidade de representações negras na mídia paulistana e culminou com a criação do jornal “O Menelik”, posteriormente, “O Clarim d’Alvorada”. Por seu turno, o Teatro Experimental do Negro (TEN) surgiu como uma companhia de artistas e intelectuais nos anos 1940, com o objetivo de aumentar e qualificar a presença de negros e negras no teatro brasileiro e que serviu de inspiração para vários outros grupos negros na dramaturgia. As décadas 1960 e 1970 foram um período de ebulição de inúmeras organizações e entidades do movimento social negro, com destaque para o Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978 pelos ativistas Neuza Maria Pereira, Wilson Prudente, Celso Prudente, Milton Barbosa, Rafael Pinto e Hamilton Cardoso. Tal organização foi fundamental para derrubar o mito da democracia racial no Brasil e denunciar o racismo institucional (PRUDENTE, 2019). A militância passou, então, a realizar seus próprios filmes, a exemplo do curta-metragem “Por que Eritreia?” (1978), filmado na Etiópia; o curta “Axé, alma de um povo” (1987), de Celso Prudente, gravado em Angola; bem como “Alma no olho” (1973), realizado na França pelo artista Zózimo Bulbul, atualmente reconhecido como o pai do Cinema Negro brasileiro. Assim, de acordo com Celso Prudente (2019, p. 23), esse é o momento em que se fez a “invenção do cinema negro, como uma tendência na qual o negro vai além do protagonismo de referencial estético do cinema novo”, mas assume “o papel de sujeito histórico, escrevendo com a objetiva sua própria história”. No ano de 1998, documentaristas e curta-metragistas negros uniram-se para divulgar mutuamente seus trabalhos. Em 1999, Daniel Santiago e Jefferson De organizaram um encontro de cineastas negros brasileiros no 11º Festival Internacional de Curtas de São Paulo, quando lançaram o “Movimento Dogma Feijoada”, que criou uma agenda para pensar um cinema negro e oportunizou uma discussão a respeito do tema. Em 2001, no 5º Festival de Cinema do Recife, lançou-se o “Manifesto do Recife”, que reivindicava maior participação dos afro-brasileiros em todas as esferas da produção audiovisual. A partir de situações como essa, Edileuza de Souza (2020, p. 178-179) entende cinema negro como um “conceito cunhado luta diária de combate ao racismo, ao preconceito e toda e qualquer discriminação”, “corporificado pela militância negra que se finca no território e na territorialidade e nos orienta que é possível transcender da porteira para dentro”. Em caminho semelhante, Prudente (2019) afirma que o cinema negro tornou-se o cinema das minorias, explorando possibilidades avessas à euro-heteronormatividade. Nesse movimento, percebe-se a construção da imagem de afirmação positiva do afrodescendente como minoria. Revela-se, portanto, a dimensão pedagógica do cinema negro: Nota-se que, desta maneira, as minorias constroem, por meio da dimensão pedagógica do cinema negro, sua imagem de afirmação positiva, humanizando ainda mais as relações humanas, na medida em que ensina a sociedade a se libertar do peso do preconceito, que a dificulta viver a contemporaneidade do conhecimento, que é antitético em relação ao preconceito (PRUDENTE, 2018, p. 105).
6 Cinema negro e educação antirracista: uma proposta didática
Inicialmente, é preciso fazer uma breve contextualização sobre o uso da linguagem cinematográfica na educação. Segundo Benatti e Teruya (2022), em 1912 já havia menções sobre o uso sistemático do cinema na escola, mais especificamente, no ensino de História. No final da década de 1920, criou-se um consenso no que concerne à função pedagógica da linguagem cinematográfica e ao impacto dela nas metodologias de ensino (DUARTE; ALEGRIA, 2008). No que se refere ao caráter educativo, Freitas e Coutinho (2013) comparam a trajetória do cinema à arte barroca, cuja imagem visual gera devoção, incita modos de ser e regula as ações dos fiéis. Nesse sentido, os autores apontam o percurso hegemônico, repetido e utilitarista do cinema na educação, criticando o seu uso para a transposição didática de ideias, situações ou conceitos já estabelecidos – o que consideram uma proposta predominantemente disciplinadora e normalizadora. Diante disso, Freitas e Coutinho (2013) questionam o que pode o cinema para além do adestramento didático e, com base em Deleuze, são propostos três usos diferenciais. Ao cinema caberia, em primeiro lugar, abalar o pensamento vigente, provocando uma ruptura na forma de entender a realidade. Trata-se de um golpe em nossa razão a partir do momento em que se revela a quase ausência de pensamento, dado que não há originalidade ou autoria, sendo as ideias repetições de representações socialmente estabelecidas. Em segundo lugar, o cinema seria um espaço de invenção do que falta, sendo possível criar um devir revolucionário que inspira o espectador a construir novas maneiras de estar no mundo. Por último, o cinema para uma cartografia do tempo presente permitiria a análise dos modos de subjetivação da vida, possibilitando a percepção mais lúcida do que acontece na contemporaneidade e do que nos tornamos e estamos nos tornando. É possível apontar o trabalho com o cinema negro em sala de aula como uma maneira de contemplar os três pontos levantados, afinal contesta-se a existência social do branco como norma, criando-se universos que reverberam outras interpretações simbólicas, outras formas de regulação das identidades coletivas e individuais (BENATTI; TERUYA, 2022). Nesse sentido, vale explicitar que o cinema negro não se limita à abordagem da temática do racismo, trata-se de uma linguagem que reconhece e afirma as subjetividades negras, desconstruindo estereótipos e, por esse motivo, é um cinema antirracista (LACERDA; BENATTI, 2021). Nessa lógica, as formulações estéticas afro-diaspóricas também se configuram como uma contraestratégia ao regime racista. Benatti e Teruya (2022) explicam que, pelo fato de a racionalidade estética ter sido menos colonizada, a integridade criativa de um filme pode ser uma forma de trabalhar uma ideia de realidade contra-hegemônica:
Como uma manifestação intrinsecamente artística, a produção fílmica articula a criação [poiesis], a contemplação, o devaneio, a ficção, o acaso, a desordem. Nem ciência (mas potencialmente uma), nem lógica (mas potencialmente uma), nem tecnologia (mas potencialmente uma), os filmes constituem um exercício de significação, de produção de sentidos que evocam e provocam das instâncias mais banais da vida cotidiana, até as formas mais metafóricas de existência da fantasia. Transterritorializado, o filme requisita um processo de tradução que se coloca na mediação entre o mundo, o sujeito que o produz e o sujeito que o experiencia. A possibilidade pedagógica de tradução do real pelas contínuas operações da linguagem fílmica, nos aproxima de uma práxis de explicação fenomenológica contrária a uma filosofia que busca essencialmente a verdade. (p. 16).
Não se trata, portanto, de utilizar o cinema negro apenas para pautar temas como a escravidão, mas de ofertar aos estudantes outras narrativas e maneiras de compor a realidade por meio da ficção. Nesse sentido, a educação antirracista pelo cinema estrutura-se tanto pela desconstrução da branquitude (até então encarada como a verdade e o único modo de entender o mundo e o viver) como pela tarefa de “afirmação do processo de construção da identidade negra” (p. 18). Nesse contexto, para Cruz (2022, p. 23), o Cinema Negro de Animação (CNA), em contraposição à educação colonizadora eurocêntrica, “é uma ferramenta griot contemporânea que instrumentaliza educadoras/es para realização de práticas educativas que promovam estéticas e epistemologias negras”. Entende-se como griot o contador de história que repassa a sabedoria ancestral para as novas gerações. O CNA teria a importante função de contar histórias tradicionais das culturas africanas e afro-diaspóricas, realizando uma mediação estética para a formação da juventude antirracista. Após as explanações sobre cinema negro e educação, voltamos à pergunta mais específica deste artigo: como o cinema negro pode contribuir para a elaboração de uma proposta didática antirracista nas aulas de História? Antes de tudo, para pensar a relação entre a História e a educação antirracista, é essencial reconhecer que a primeira não é uma narrativa estática, mas uma construção contínua, moldada pelas interpretações e escolhas dos historiadores. Assim, o historiador é responsável pelo ato de “separar, de reunir, de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira” (CERTEAU, 2008, p. 8). Pensando a História enquanto uma reflexão sobre o passado - feita a partir da seleção de documentos -, é possível apontar que, ao longo dos séculos, as narrativas têm sido moldadas pelos vencedores, pelos conquistadores e pelos detentores do poder. É comum encontrarmos relatos que enaltecem os feitos gloriosos dos vencedores, ressaltando suas vitórias e conquistas, enquanto relegam ao esquecimento as vozes e experiências dos vencidos. Nesse sentido, Walter Benjamin (2012) aponta a necessidade de "fazer uma história a contrapelo". O autor defende a ideia de desafiar a narrativa tradicional, questionar os vencedores e trazer à tona as histórias dos silenciados. Contar a história a partir da perspectiva dos vencidos permite-nos desafiar as estruturas de poder existentes e questionar as narrativas dominantes. Ao ouvir as vozes marginalizadas, as histórias de resistência e as lutas por justiça social, somos confrontados com as contradições e injustiças que podem ter sido negligenciadas nas versões convencionais dos eventos. Nesse contexto, a já citada Lei 10.639/03 alinha-se à proposta de "fazer uma história a contrapelo", uma vez que a inclusão da história afro-brasileira e africana nos currículos escolares é uma forma de romper com a narrativa dominante e abrir espaço para a construção de uma história mais crítica, que reconhece que é a partir das relações de poder, das escolhas e das interpretações dos historiadores que se constroem as narrativas históricas. Ainda que seja “necessário ampliar o debate e a preparação pedagógica para efetivar uma Educação Antirracista” (ROCHA; SILVA, 2013, p. 24), assuntos controversos que envolvem as condições de negros e negras como a violência, o trabalho forçado e a pobreza passaram a ser trabalhados com mais frequência. Entretanto, a lei é bastante abrangente e permite trabalhar a história afro-brasileira para além da questão do negro enquanto escravo ou como contribuidor da cultura brasileira. Com base nos estudos sobre o cinema enquanto instrumento de reflexão sobre a sociedade (FERRO, 1976; MEIRELLES, 1995; STAM, 1996), é possível, por exemplo, trabalhar o filme "Ewé de Òsányìn: o segredo das folhas" na sala de aula, colocando os negros como protagonistas na produção de conhecimento. O filme gira em torno de uma criança que nasce com folhas em seu corpo, o que a leva a enfrentar um processo de discriminação na escola: é alvo de bullying e isolamento por parte de outras crianças que não compreendem sua singularidade. Sentindo-se deslocada, a protagonista decide fugir para a mata, buscando refúgio e respostas em um ambiente mais próximo da natureza. É nessa jornada de autodescoberta que ela depara-se com seres encantados inspirados nas tradições africanas e afro-brasileiras. Entre os personagens que a criança encontra, destacam-se Ossanha (o orixá das folhas) e Ogum (o orixá dos caminhos). Esses seres tornam-se guias e mentores para a protagonista, auxiliando-a a compreender sua própria identidade, a encontrar força e a abraçar sua singularidade. No filme, os orixás são retratados de uma maneira que vai além de uma simples mitologia distante ou uma visão mística e antiquada do mundo. Eles são apresentados como representações de forças da natureza e como formas de conexão dos seres humanos com o ambiente ao seu redor, destacando-se a importância da espiritualidade e da relação com o mundo natural. O encontro com Ossanha, por exemplo, representa a ligação profunda entre os seres humanos e a natureza, valorizando a sabedoria das plantas e a conexão com o reino vegetal. O encontro com Ogum, por sua vez, representa a busca do personagem principal por trilhar seu próprio caminho, enfrentar seus medos e encontrar a força interior para superar desafios. Em suma, ao explorar a jornada do personagem principal, o filme destaca a importância de reconectar-se com a natureza e com as forças que a regem. Os orixás são construções metafóricas que constituem uma epistemologia negra. Eles são apresentados como representações simbólicas de forças e aspectos da natureza e da experiência humana, proporcionando uma maneira única de compreender o mundo e a si mesmo. Essa abordagem metafórica dos orixás destaca a riqueza e a profundidade da espiritualidade africana e afro-brasileira. Eles não são vistos como meras figuras mitológicas, mas como modelos que abrangem aspectos universais da condição humana e da relação com o ambiente. Cada orixá representa uma faceta específica da existência humana, como sabedoria, coragem, amor, justiça, fertilidade, entre outros. Eles são personificados por meio de histórias e símbolos, proporcionando uma linguagem poética para entendermos e relacionarmo-nos com esses conceitos abstratos. Feito na técnica do “stop-motion”, que em tradução livre significa “movimento parado”, o curta é composto por diversas fotos de objetos de massinha de modelar, as quais foram colocadas em sequência, criando a ideia de movimento. Ao contrário do esperado em filmes com essa técnica, o personagem principal parece não ter o acabamento necessário: é possível ver que suas mãos, dedos, pernas e pés possuem um excesso de massa. Se a princípio pode parecer um erro, essa estética pode ser também encarada como uma escolha para enfatizar que o personagem é feito de barro, deixando implícita a relação com o mito iorubá da criação. Segundo a narrativa ancestral do povo do sudoeste da Nigéria (LEÃO; SANDOVAL, 2019), Oxalá recebeu de Olodumaré a incumbência de criar os seres humanos, mas apenas com a ajuda de Nanã, que tinha o domínio da água parada e do pântano, conseguiu cumprir a sua missão: com o barro oferecido por ela, moldou a figura humana. Nanã, por sua vez, fez apenas uma exigência: que um dia o ser humano retornasse ao pó, ao barro de onde veio – o que é uma referência à morte. Assim, a ênfase dada ao barro no filme "Ewé de Òsányìn: o segredo das folhas" pode ser uma abordagem estética com referências ancestrais e ainda alinhada à ideia de que não é possível separar o ser humano da natureza. Contextualizada a animação, passamos à descrição da proposta de como trabalhá-la em uma aula de História direcionada para os anos finais do ensino fundamental. Inicialmente, o/a professor/a faria uma sensibilização com os estudantes perguntando se existe uma forma correta de ver o mundo; se outros povos, como os indígenas, veem e relacionam-se com a natureza da mesma forma que nós; e como a natureza é vista pelos brancos. Depois de escutar algumas respostas, o/a professor/a exibiria o filme e pediria que os alunos prestassem atenção na forma como os humanos e a natureza relacionam-se na obra. Finalizada a animação, o/a professor/a faria uma discussão com a turma por meio de algumas perguntas disparadoras, a saber: “qual o significado por trás do fato de o personagem principal ter nascido com folhas pelo corpo?”; “Por que Ogum e Ossanha não abrem a boca para falar?”; “Explique o que Ossanha quer dizer com a fala: ‘esses que fizeram isso (o desmatamento) não querem ver os mistérios. Como você não via. Eles não veem via. Como você não via’”. Primeiramente, caso nenhum estudante tenha tocado no assunto, o/a professor/a falaria sobre o fato de os personagens serem negros e, a partir disso conduziria a discussão para que a turma percebesse como o filme procura elucidar que, em outros modos de saber e de ser, ser humano e natureza são elementos intrínsecos. A partir dessa reflexão, o/a docente sistematizaria, junto com os comentários da turma, o motivo para o personagem principal ter folhas pelo corpo. Quanto a Ogum e Ossanha não abrirem e fecharem a boca para falar, os discentes devem perceber que os recursos audiovisuais estão sendo utilizados para mostrar que, na verdade, não são seres humanos, mas sim orixás, de forma que o que vemos é apenas uma representação humanizada. Além disso, como já mencionado, o/a professor/a deve explorar os comentários dos estudantes acerca da fala de Ossanha: “esses que fizeram isso (o desmatamento) não querem ver os mistérios. Como você não via. Eles não veem. Como você não via”. A ideia é que os discentes reconheçam a cegueira, isto é, a limitação da perspectiva branca, e compreendam como diferentes povos e etnias construíram maneiras mais complexas e menos destrutivas de se relacionar com a natureza. Com esse gancho, o/a professor/a discutiria a forma como, há muito tempo, a branquitude relega aos negros a papéis secundários e invisibiliza seus modos de saber, de ser e de poder. Nesse sentido, a discussão levaria os estudantes a pensarem a perspectiva negra como um legítimo ponto de vista que permite, por exemplo, compreender a natureza não como algo externo a nós - e, por isso, passível de uma exploração desenfreada –, mas sim como elemento de uma relação de interdependência.
7 Considerações finais
Com a pesquisa realizada, concluímos que a construção de uma sociedade antirracista passa não só pela denúncia de violências, mas pela proposição de formas de saber não pautadas na branquitude. Assim, uma educação antirracista precisa ser propositiva, de modo que os educadores devem-se comprometer a trabalhar narrativas e as subjetividades negras. Nesse contexto, consideramos que a Lei 10.639/03 desempenha um papel crucial por contribuir para o rompimento da branquitude enquanto referência de conhecimento. Ao propor a inserção da cultura e da história negra no currículo escolar, essa lei abre caminhos para a abordagem de outros modos de saber, de ser e de poder. O cinema negro figura como uma linguagem potente nesse movimento de ruptura epistemológica na escola, pois, ao invés de perpetuar a ordem vigente, põe em xeque o racismo estrutural ao criar universos que reverberam outras interpretações simbólicas, outras formas de regulação das identidades coletivas e individuais. Dessa forma, esse cinema desnaturaliza modos de subjetivação da vida, sendo espaço de invenção do que falta. Assim, é possível criar nele e por ele outras formas de viver. Contudo, consideramos que essa constatação não basta, sendo necessário que pesquisas proponham, de forma mais concreta, como o cinema negro pode ser abordado em sala de aula na construção de uma educação antirracista. Assim, no que concerne à proposta didática, destacamos a importância de o/a professor/a ter estratégias para mediar a experiência do filme não só quanto ao enredo e tema, mas principalmente em relação aos aspectos estéticos e ideológicos, de forma que o aluno reconheça símbolos, conceitos e paradigmas negros. Esperamos ter contribuído com educadores/as que, no cotidiano escolar, procuram romper o pacto da branquitude e pensar com estudantes narrativas outras, permitindo que a escola seja um espaço onde a História é escovada a contrapelo e onde se criem, cada vez mais, fissuras nos modos de saber hegemônicos.
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