Artigo
“Disciplinas de expressão” nos programas para as escolas primárias (Distrito Federal, 1929)
Práticas Educativas, Memórias e Oralidades
Universidade Estadual do Ceará, Brasil
ISSN-e: 2675-519X
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 5, núm. 1, 2023
Resumo: Analisar as propostas para as “disciplinas de expressão” presentes nos Programmas para os Jardins de Infância e para as Escolas Primárias é o objetivo deste estudo. O documento publicado em 1929 e assinado pela comissão composta por Fernando de Azevedo e outros seis educadores organizou as temáticas que deveriam ser trabalhadas no ensino público da capital brasileira. Dentre elas, interessa investigar o conteúdo programático do ensino de linguagem, desenho e trabalhos manuais que tinha por finalidade cultivar, nas crianças, meios de expressarem seus pensamentos e sentimentos. Para tanto, a discussão fundamenta-se teórica e metodologicamente na literatura que elege o impresso em questão como fonte de estudo (VIDAL, 1996; CAMARA, 2004; PAULILO, 2015). Destarte, perscrutar esse manuscrito possibilita o aprofundamento das iniciativas implementadas pela Reforma da Instrução Pública do Distrito Federal.
Palavras-chave: Reforma da Instrução Pública, Fernando de Azevedo, Escola Nova, História da Educação Brasileira.
Abstract: This study aims to analyze proposals regarding artistic disciplines present in “Programs for Kindergartens and Primary Schools”, a document published in 1929 and signed by Brazilian Educator Fernando de Azevedo and other six educators. It proposed and organization of topics that should be considered in public education in the Brazilian capital. Amongst these, it is of interest to investigate the syllabus of teaching language, drawing and crafts that aimed to foment, in children, ways to express their thoughts and feelings. Therefore, the discussion is theoretically and methodologically based on the literature that considers the printed matter as a source of study (VIDAL, 1996; CAMARA, 2004; PAULILO, 2015). Thus, scrutinizing this manuscript makes it possible to deepen the initiatives implemented by the Public Instruction Reform of the Federal District.
Keywords: Public Instruction Reform, Fernando de Azevedo, The New School Movement, History of Brazilian Education.
1 Introdução
A Reforma da Instrução Pública do Distrito Federal (1927-1930), em seus diferentes desdobramentos, tem sido objeto de interesse de diversos pesquisadores do campo da História da Educação Brasileira. Liderado por Fernando de Azevedo, o trabalho realizado na então capital do Brasil era difundido por sua aspiração de inculcar nas crianças novos hábitos higiênicos e comportamentais de modo a “conscientizá-las” a respeito de seus deveres perante a sociedade. Para tanto, o educador organizou o empreendimento educativo – regulamentado pelo Decreto 2.940 de 22 de novembro de 1928 (DISTRICTO FEDERAL, 1928) – que intentava não se restringir apenas a sala de aula, mas abranger todo o aparelho escolar. Em meio às reformas urbanísticas realizadas na capital federal, o mineiro assumiu o cargo de Diretor Geral da Instrução Pública e propôs um trabalho que relacionava escola e cidade. De acordo com Paulilo e Silva (2012, p. 134, grifos dos autores), a iniciativa de “[...] pedagogizar as relações sociais cariocas, de modo que os preceitos educativos pudessem vir a contribuir para a organização e disciplinarização do cotidiano, figurou uma estratégia que prestigiou diferentes linhas de ação no período”. Desse modo, o educador concentrou esforços em empreender uma reforma que articulasse interesses educacionais, políticos e a aceitação da população local. As iniciativas perpassavam não apenas pelos aspectos curriculares, mas pela (re)organização escolar apostando na “[...] definição das bases científica, pedagógica e social, transformando a escola num instrumento de transformação social e adequação às exigências da nova civilização que se formava” (BALDAN, 2015, p. 65). Para tanto, Fernando de Azevedo se inspirava nas teorias defendidas por intelectuais estrangeiros e nas reformas organizadas em outros países, especialmente nos trabalhos engendrados pelo movimento internacional da Educação Nova, que ganhava maior visibilidade naquele momento ao difundir anseios modernos para a educação. Na capital do país, especialmente durante a década de 1920, “[...] exasperava-se no debate educacional [...] a defesa de que as práticas de escolarização primária poderiam funcionar como dispositivos para ensinar a modernidade e uma atitude moderna à população” (SILVA, 2009, p. 21). Tal conduta diz respeito às práticas higiênicas e comportamentais que deveriam ser difundidas nas instituições de ensino. Nesse caminho, “esteio a partir do qual a reforma do ensino do Distrito Federal deveria se pautar, o plano de reorganização previa a articulação das instituições educativas com a realidade social e os princípios modernos de educação” (CAMARA, 2021, p. 776). O empreendimento propunha tornar a escola um espaço que atendesse crianças de diferentes classes sociais, possibilitando sua formação para a vida em comunidade, assim como para o trabalho. O idealizador da reforma objetivava “[...] tornar o sistema público de ensino uma instância de poder público na reformulação do sistema produtivo, na formação de uma identidade nacional e na conformação moral dos hábitos e condutas da criança carioca e brasileira” (PAULILO, 2001, p. 33). A esse respeito, considerando a influência emanada da capital federal, Xavier (2002, p. 123) assevera que Fernando de Azevedo manifestava “[...] clara intenção de promover uma reforma que servisse de modelo para a organização dos sistemas de ensino dos demais estados da federação”. A fim de propalar esse empreendimento, o educador utilizou a imprensa como forma de ganhar notoriedade. Na introdução dos Programmas para os Jardins de Infancia e para as Escolas Primarias (1929), texto (re)publicado em diferentes periódicos, escreveu que seu trabalho tinha o intuito “[...] de dar à escola uma consciência profunda de sua tarefa social e nacional e de a aparelhar dos meios necessários à realização dessa tarefa poderosamente educadora, tanto pela intensidade, como pela extensão de sua influência” (AZEVEDO, 1929, p. 3). Para alcançar tal fim organizou a educação primária em escola única, escola do trabalho e escola comunidade, pois “[...] tendo o labor como meio e objeto, e a sociedade como fim deveria espelhar no seu ensino, no que diz respeito ao rol das disciplinas, tal caracterização” (VIDAL, 1996, p. 32). Dentre os diversos documentos que regiam as iniciativas difundidas pela Reforma da Instrução Pública do Distrito Federal (1927-1930), utilizo como fonte de pesquisa os Programmas para os Jardins de Infância e para as Escolas Primarias (1929), disponível na biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), com o objetivo de analisar as propostas para as “disciplinas de expressão”. Para tanto, esse artigo foi organizado em duas seções. A primeira trata dos aspectos materiais desse impresso, em especial o que diz respeito ao que era alvitrado para o ensino primário; na segunda, respectivamente, intenta-se perquirir o conteúdo programático do ensino de linguagem, desenho e trabalhos manuais.
2 Programas para as Escolas Primárias
Ao eleger documentos impressos que circularam dentre grupos específicos, nesse caso a escola, como fontes históricas, é possível compreendê-los como indícios de um passado que se deseja iluminar, uma vez que apontam conexões entre sujeitos/as, aspectos cotidianos e trabalhos desenvolvidos em uma determinada época. Segundo Vasconcelos (2014, p. 39), “essas informações transformam-se em uma fonte expressiva usada para analisar a demanda pela educação, uma vez que permitem localizar as instituições de maior destaque, o seu alcance, as suas práticas e concepções educativas”. Entretanto, também é importante considerar que a seleção de um manuscrito “oficial” requer o cuidado de perceber que nesse tipo de fonte, geralmente, “[...] enfatiza-se a história dos grandes homens, das guerras, dos acontecimentos políticos e sociais. Mas, ao dar um novo enfoque aos mesmos documentos, questionando o predomínio da história, outras explicações podem surgir” (CARLI, 2013, p. 191). Sendo assim, “só a análise do documento [...] permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento da causa” (LE GOFF, 1990, p. 545). Interessa, nesse estudo, averiguar as propostas elaboradas para o ensino de linguagem, desenho e trabalhos manuais presentes no “Programa para as Escolas Primárias” e no “Programa (plano de distribuição da matéria)”. Para tal, o acesso ao documento ocorreu virtualmente, após digitalização e envio por e-mail, o que demandou cuidados teórico-metodológicos nos procedimentos de análise. Diferentemente do contato com fontes físicas, o processo de “[...] rematerialização envolve o desaparecimento parcial ou total de uma gama de propriedades organolépticas (a cor, o brilho, a luz, o odor, a textura, a maciez, o som, o sabor etc.) que, de fato, podem ser determinantes na descrição de determinadas fontes históricas” (BRASIL; NASCIMENTO, 2020, p. 201). Sendo assim, cabe ressaltar, por exemplo, que não foi possível averiguar as dimensões de tamanho, cor e o tipo de papel utilizado. Apesar de tais questões, convém concordar com Barros (2022, p. 73) ao afirmar que “trabalhar com arquivos digitais, [...], é uma realidade para os historiadores de nosso tempo”.
A comissão composta por Fernando de Azevedo, Paulo Maranhão, Everardo Backheuser, Celina Padilha, Maria dos Reis Campos, Affonsina das Chagas Rosa e Alcina Moreira de Souza, foi responsável por organizar os Programmas para os Jardins de Infancia e para as Escolas Primarias, datado a 25 de maio de 1929. Ao longo de 80 páginas, “[...] propunham outra forma de relação com a escola, assim como de perceber o aluno a partir de algumas de suas individualidades e prepará-lo para o trabalho e para a vida em comunidade” (PIRES, 2021, p. 195). Tais idealizações tinham o objetivo de evidenciar determinados conceitos e conteúdos perante o quadro discente das escolas públicas do então Distrito Federal. Esses “[...] programas apresentavam orientações pelas quais deveriam se pautar as escolas, estabelecendo as finalidades objetivas às quais professores, alunos e demais funcionários deveriam nortear seus procedimentos e condutas” (CAMARA, 2004, p. 163). Nesse sentido, intentava-se que a instituição escolar se tornasse um espaço de formação de hábitos e condutas que colaborassem na inserção da criança à sociedade que se (re)organizava naquele momento. Para tanto, o educador mineiro acreditava que “[...] os professores eram os responsáveis pela inculcação e difusão da educação moral e cívica entre os alunos” (SILVA; MELO, 2022, p. 13). O projeto de reforma articulava-se aos anseios sociais, políticos, culturais e econômicos idealizados no processo de constituição da nação republicana. Com esse fim, a construção dos programmas privilegiou noções que articulavam a atuação docente e a (re)organização escolar em suas “[...] técnicas de leitura, escrita, cálculo, nos hábitos de higiene, de saúde, de patriotismo, nos valores morais, nas normas de polidez, nas noções de vida doméstica e social [...]” (CAMARA, 2004, p. 164). Dessa forma, “[...] abordavam as práticas sociais envolvidas no processo de escolarização inicial e, assim, as relações professor-aluno, a participação da família no ambiente escolar e a atuação da escola sobre o meio” (PAULILO, 2015, p. 247). Na tentativa de subsidiar a formação que se objetivava alcançar, o manuscrito foi assim estruturado: “Introdução”; “Programma para os Jardins de Infancia”; “Programa para as Escolas Primárias”; “Programa (plano de distribuição da matéria)”; e “Plano Esquemático para o Ensino de Conjunto”. Ao lançar olhares para a sistematização das propostas para o ensino primário é possível observar que no documento consta “[...] um plano de distribuição de disciplinas comum pelos cinco anos da escola primária, diferindo os conteúdos e metodologias a serem adotados pelos professores a cada ano” (CAMARA, 2004, p. 165). Para analisar o conteúdo programático das disciplinas presentes nesses programmas é importante considerar que: As disciplinas não são, com efeito, entidades abstratas com uma essência universal e estática. Nascem e se desenvolvem, evoluem, se transformam, desaparecem, engolem umas às outras, se atraem e se repelem, se desgarram e se unem, competem entre si, se relacionam e intercambiam informações (ou as tomam emprestadas de outras) etc. Possuem uma denominação ou nome que as identifica frente às demais, ainda que em algumas ocasiões, como se tem advertido, denominações diferentes mostram conteúdos bastante similares e, vice-versa, denominações semelhantes oferecem conteúdos nem sempre idênticos. Tais denominações constituem, além disso, sua carta de apresentação social e acadêmica. Ao mesmo tempo, as disciplinas escolares podem também ser vistas como campos de poder social e acadêmico, de um poder a disputar. De espaços onde se entre mesclam interesses e atores, ações e estratégias (VIÑAO, 2008, p. 204). Dessa forma, o “Programa para as Escolas Primárias” foi organizado em: Disciplinas de Instrução (Geografia – Ciências Físicas e Naturais); Disciplinas de Expressão (Linguagem, Desenho e Trabalhos Manuais); Iniciação Matemática (Aritmética e Geometria); História Pátria; Educação Social; Educação Higiênica (Higiene e Puericultura); e Educação Doméstica. De igual interesse para esse estudo, o “Programa (plano de distribuição da matéria)” ficou assim disposto:
ANO | DISCIPLINA | CONHECIMENTOS |
1º | Conhecimentos Gerais | Disciplinas de observação |
História | ||
Educação Social | ||
Disciplinas de Expressão | Linguagem | |
Desenho | ||
Trabalhos Manuais | ||
Iniciação Matemática | Aritmética | |
Geometria | ||
Educação Higiênica | - | |
Educação Doméstica | - | |
2º | Conhecimentos Gerais | Disciplinas de observação |
História | ||
Educação Social | ||
Disciplinas de Expressão | Linguagem | |
Desenho | ||
Trabalhos Manuais | ||
Iniciação Matemática | Aritmética | |
Geometria | ||
Educação Higiênica | - | |
Educação Doméstica | - | |
3º | Disciplinas de Observação | Geografia |
Ciências Físicas e Naturais | ||
Disciplinas de Expressão | Linguagem | |
Desenho | ||
Trabalhos Manuais | ||
Iniciação Matemática | Aritmética | |
Geometria | ||
História Pátria | - | |
Educação Social | - | |
Educação Higiênica | - | |
Educação Doméstica | - | |
4º | Disciplinas de Observação | Geografia |
Ciências Físicas e Naturais | ||
Disciplinas de Expressão | Linguagem | |
Desenho | ||
Trabalhos Manuais | ||
Iniciação Matemática | Aritmética | |
Geometria | ||
História Pátria | - | |
Educação Social | - | |
Educação Higiênica | - | |
Educação Doméstica | - | |
5º | Disciplinas de Observação | Geografia |
Ciências Físicas e Naturais | ||
Disciplinas de Expressão | Linguagem | |
Desenho | ||
Trabalhos Manuais | ||
Iniciação Matemática | Aritmética | |
Geometria | ||
História Pátria | - | |
Educação Social | - | |
Puericultura | - | |
Educação Doméstica | - |
O impresso foi fabricado (DE CERTEAU, 1982) para “orientar” o corpo docente da capital brasileira quanto ao que deveria ser ensinado para as crianças. Segundo Camara (2004, p. 165), “para além de se constituir como currículo a ser desenvolvido na escola, o programa se estabeleceu como um balizador das condutas a serem observadas pelo professor a partir da fixação de princípios que nortearam as práticas produzidas na escola”. Assim sendo, sua constituição se deu a partir do entrelaçamento entre o que era intentado tanto pela esfera pública quanto pelas diversas arenas que compunham a sociedade da época, aspirando conferir “soluções” para as adversidades citadinas.
3 Expressar pensamentos e sentimentos: o ensino de linguagem, desenho e trabalhos manuais
Conforme analisado por Camara (2004, p. 165), “[...] algumas disciplinas passaram a constituírem-se como auxiliares imprescindíveis dos professores, independentemente da disciplina que trabalhassem”. Era o caso do ensino de linguagem, desenho e trabalhos manuais que deveriam ser utilizadas no ensino de todas as disciplinas. As denominadas “disciplinas de expressão” foram elaboradas com a finalidade de incentivar nas crianças meios usuais de expressarem seus sentimentos e pensamentos. Para tanto, era necessário cultivar os sentidos, transformados, a partir das impressões, em ideias; assim como a observação e a experimentação, que, associadas, ofereciam as noções de mundo. Ao professor caberia o papel de observar e não “abafar” a espontaneidade do aluno, como também de ir o “[...] habituando a ver sabendo o que vê e como vê e a sentir com consciencia do que sente e de como sente” (DISTRICTO FEDERAL, 1929, p. 4, grifos do original). No ensino da linguagem ambicionava-se que as crianças conseguissem expressar seus pensamentos de forma inteligível, por meio da fala; assim como que compreendessem as expressões descritas por outrem, a partir da audição e da leitura. Para alcançar tal fim, deveriam ser realizados exercícios de elocução, leitura, redação e estudo da gramática. Os assuntos tratados circunscreviam-se ao cotidiano do alunado, em especial à “[...] vida dos animaes domesticos, descripções da sala de aula, da escola, da casa, do que vê no trajecto da escola” (DISTRICTO FEDERAL, 1929, p. 35). Quanto aos aprendizados acerca do cotidiano citadino, aprenderiam regras de conversação, principalmente a gesticulação, entonação, pausas, altura da voz e a não interromper aquele que fala; o que colaboraria com o alcance do “desembaraço” necessário para se expressar, de maneira comedida, em público. O professor, por sua vez, poderia escolher seus métodos de ensino (desde que o diretor e o inspetor escolar concordassem) a fim de atuar como um facilitador do processo de aprendizagem ao se propor a conversar com os alunos sobre as temáticas trabalhadas. Igualmente era sua função incentivar as práticas de leitura e escrita ordinárias. Também diz respeito ao ensinamento dessa disciplina a prática de caligrafia, na qual a criança aprenderia a ter uma letra “nítida”, começando pela escrita com a letra de imprensa e, posteriormente, passando a empregar o uso da letra cursiva; utilizando lápis e, após adquirir o “desembaraço” necessário, poderia valer-se do emprego da tinta. O ensino da linguagem intentava despertar e cultivar nas crianças uma ideia de união entre a nação brasileira, assim como “[...] o interesse e respeito por tudo quanto é nosso, formando assim, nos alumnos, apoiado no amor á lingua patria, o espirito de brasilidade, que tanto precisamos desenvolver” (DISTRICTO FEDERAL, 1929, p. 37). Já o ensino de desenho tinha por objetivo dar grande importância à “[...] educação do sentido visual e no desenvolvimento da imaginação, da memoria, da capacidade de observação, na exteriorização das personalidades e no cultivo do gosto esthetico” (DISTRICTO FEDERAL, 1929, p. 38), incentivando o aluno a expressar seus pensamentos e sentimentos. Caberia ao professor não corrigir o que via, mas guiar e pontuar aspectos da reprodução artística de modo que a representação apresentada se tornasse o mais fiel e proporcional possível, tendo como comparação a figura humana. Tais construções seriam estimuladas a partir da observação, na qual objetos não poderiam ser copiados, aumentando os níveis de exigência de detalhes conforme fossem avançando os anos escolares. Outrossim, o fomento ao aprendizado das composições decorativas tinha por horizonte o cultivo do gosto estético. Desse modo, aspirava-se o incentivo ao espírito criador. Por fim, os trabalhos manuais eram considerados forma na qual as crianças aprenderiam o sentido econômico (aprender fazendo) e a educação estética, uma vez que eram tidos como meio de expressar e manifestar impressões e observações, assim como sentimentos e pensamentos. Além disso, visava a formação integral, colaborando com a instrução que daria à criança “[...] uma capacidade muito maior de collaborar no ambiente social pelo senso pratico que nella se irá formando” (DISTRICTO FEDERAL, 1929, p. 39). O exercício docente far-se-ia por meio do respeito às interpretações individuais dos alunos, bem como no ensino de técnicas. Para executar esses trabalhos era importante desenvolver habilidades de coordenação dos movimentos por meio da educação muscular, o que implicaria, igualmente: na atenção, raciocínio, memória, imaginação e na inteligência prática. Além disso, tais ensinamentos atuam na formação moral, tal que o exercício de concentração no momento da produção ajuda a desenvolver a iniciativa, perseverança, hábito de ordem e método, reflexão e a tenacidade. Dessa forma, Em trabalhos feitos individualmente ella aprende a bastar-se, resolvendo sozinha as difficuldades; naquelles executados em cooperação, adquire o dominio sobre si e o sentimento de grupo, que lhe ensinará a defender a sua personalidade respeitando a alheia e a collocar a obra collectiva acima do ponto de vista individual (DISTRICTO FEDERAL, 1929, p. 40). A relação teoria e prática colaborava na preparação para o mercado de trabalho, pois no aprender fazendo as crianças adquiriam conhecimentos científicos acerca da inteligência industrial que os preparavam para serem os futuros operários, profissão que tomava grandes proporções do mercado profissional da época. Em resumo, “[...] todas as disciplinas do curso primario devem associar-se com os trabalhos manuaes para concretização dos estudos: os trabalhos manuaes fazem basear, emfim, a educação em factos e não em simples palavras positivamente” (DISTRICTO FEDERAL, 1929, p. 40). O ensino dos trabalhos manuais foi descrito como exercício que se presta ao aperfeiçoamento da imaginação e da capacidade criadora. As confecções do alunado poderiam ser incluídas no embelezamento da escola ou da casa daquele/a que o construiu. Também teriam oportunidade de expor essas feituras nas reuniões dos Círculos de Paes e nas exposições de fim de ano, as quais alguns itens seriam vendidos. Os valores arrecadados seriam divididos entre a caixa escolar, a cooperativa, a biblioteca e os alunos que dispuseram seus trabalhos, o que incentivaria a confiança e o aumento do gosto de confecções futuras. As disciplinas prescritas nos “Programas para as Escolas Primárias” eram baseadas nas iniciativas difundidas pelo movimento escolanovista. Dessa forma, foram preceituadas a partir dos centros de interesse e do incentivo para que o aluno aprendesse fazendo, entrecruzando, cotidianamente, teoria e prática. Para alcançar os objetivos intentados pelo trabalho reformístico, era importante relacionar questões citadinas com o que era desenvolvido dentro da sala de aula. A esse respeito, Chervel (1990, p. 220) ressalta que “as disciplinas escolares intervêm igualmente na história cultural da sociedade. Seu aspecto funcional é o de preparar a aculturação dos alunos em conformidade com certas finalidades: é isso que explica sua gênese e constitui sua razão social”. Presente nos cinco anos da escola primária, as atividades a serem desenvolvidas nas disciplinas de linguagem, desenho e trabalhos manuais foram pormenorizadas no “Programa (plano de distribuição da matéria)”, levando-se em conta as necessidades inerentes ao momento vivenciado em cada etapa de escolaridade: Primeiro ano: exercícios de elocução e narrativas, tomando como assunto as observações feitas; recitação de historietas, quadrinhas e fábulas aprendidas por audição; transmissão de recados; jogos para aquisição de vocabulário e formação de sentenças; prática de variações de gênero, número e pessoa; desenhos como expressão de observações feitas; desenhos ligados à linguagem, à aritmética, à higiene e aos demais conhecimentos adquiridos no primeiro ano; reprodução de formas do natural feitas paralelamente à geometria e à modelagem; alinhavos de cor cobrindo contornos picotados ou traçados em cartão ou pano; enfiados de contas e grãos em fibras e arame, com aplicações decorativas; confecção de pequenos objetos ou brinquedos com material e rafia, papelão ou madeira mole; jardinagem. Segundo ano: leitura silenciosa (não precedida de explicação) e oral precedida de explicação; recitação de pequenas fábulas, quadras, diálogos, etc., aproveitando o mais possível do assunto lido; dramatizações; ordenar sentenças dadas, destacando os vocábulos necessários ao sentido; bilhetes, cartas, relatórios de observação, tudo feito por escrito, em colaboração ou individualmente; modelagem sobre armações de arame; costura: alinhavos, bainha simples e de laçada: pregas, franzido, cerro; aplicações em peças do vestuário e de adorno para a casa; remendos; pregar botões, colchetes e pressões; ponto cruzado em pano grosso, cobrindo os desenhos; dobradura em papel com aplicações em envelopes, sacos, brinquedos; tecidos e trançados em papel, pano, arame, barbante, palha e taquara; nós e laços; escultura em madeira; criação de animais. Terceiro ano: desenvolvimento do estudo da proposição com os complementos do verbo; conhecimento do nome, do adjetivo, do pronome, do verbo; redação preparada no quadro negro e à vista de estampas; bilhetes e cartas fáceis, dirigidos a um destinatário real, quando possível; reprodução de cenas e interpretação de contos e fábulas; medidas com régua ou lápis para observação do natural (arestas do quadro negro, esquadrias das janelas etc.); cópia de corpos de forma cônica e cilíndrica; colorir desenhos em silhuetas; modelagem livre e aplicada, de memória e cópia do natural; dobrados e cartonagem em correlação com o estudo de geometria; trabalhos de contas, tecidos, nós e tranças, ampliando os programas anteriores; crochê; sericultura e apicultura. Quarto ano: estudo das palavras variáveis, com maior desenvolvimento que no terceiro ano; advérbio; proposição; prefixos e sufixos mais usados; pontuação; redução e ampliação de períodos; diário do aluno e jornal da classe; declamação; cópia de corpos com as mesmas formas indicadas para o terceiro ano e mais os de forma prismática (cubo, paralelepípedo, etc.) e piramidal; motivos isolados em disposição radiada e circular com aproveitamento de folhas, flores e frutos, de animais radiados, moluscos e insetos; costura: bainhas abertas com pontos vários e substituição de fios; aplicação de todos os pontos aprendidos em peças do vestuário e de adorno da casa; bordados; trabalhos de contas, tecidos, nós e tranças sugeridos pelas oportunidades; envernizamento e pinturas com anilinas. Quinto ano: comentários de projeções luminosas, fixas e animadas, quadros; discussões sobre assuntos de educação moral; comentário oral e escrito de pequenos trechos literários, visando a compreensão da forma e da época em que foi escrita a notícia biográfica do autor; interpretação e transformação de trechos em prosa e verso, visando a compreensão do sentido; emprego da crase; reprodução de cenas e interpretação de contos e fábulas; cópia de objetos ou frutos de formas derivadas da esfera, dos ovoides e elipsoides; frisos com disposições alternadas, verticiladas e opostas com emprego de folhas e flores simples e frutos; costura a máquina; enxoval de recém-nascido; bordados; tricô; trabalho de pequena tipografia; cultivo de plantas. Atravessada por relações de poder, a organização desses programmas, inerentes às entidades educativas da capital federal, constitui-se como produto sociocultural que produz identidades individuais e coletivas intentando atender os objetivos idealizados por aqueles que a elaboraram. A documentação “oficial”, então, indicia algumas das intencionalidades que se desejava alcançar perante os aspectos sociais, políticos, econômicos e educacionais daquela época, início do século XX. Dessa forma, as instituições (re)produzem culturas escolares que vão “[...] desde a história do fazer escolar, práticas e condutas, até os conteúdos, inseridos num contexto histórico que realiza os fins do ensino e produz pessoas” (OLIVEIRA; GATTI JÚNIOR, 2002, p. 75). A investigação dessas disciplinas escolares e os conteúdos a elas prescritos ajuda no processo de compreensão da produção de atores sociais por meio da escola, assim como o que se objetivava na arena social que ora se ordenava. Logo, ao analisar as propostas para as “disciplinas de expressão” (o conteúdo programático do ensino de linguagem, desenho e trabalhos manuais), presentes nos Programmas para os Jardins de Infancia e para as Escolas Primarias (1929), foi fundamental perquirir o suporte que as fundamentaram, como também os anseios citadinos e reformísticos e as intencionalidades formativas que permearam a fabricação desse componente curricular.
4 Considerações finais
O estudo de elementos que compõem as iniciativas implementadas pela Reforma da Instrução Pública do Distrito Federal (1927-1930), liderada por Fernando de Azevedo, ilumina algumas das estratégias que configuraram a arena escolar da então capital brasileira. Dessa forma, cabe ressaltar que estiveram em disputa diferentes setores da sociedade aspirando uma (re)configuração citadina por meio das ações desempenhadas pela escola, de forma a alcançar grande número de pessoas através da formação das crianças. Nesse interim, compreendiam-se os saberes e direcionamentos educativos como meio de forjar um “novo” cidadão. Para tanto, almejava-se incutir pensamentos, atitudes e valores específicos nos meninos e meninas cariocas de modo a, consequentemente, alcançar suas casas e famílias. Como forma de disseminar outros ideários pedagógicos, inspirados nos modelos escolanovistas advindos do estrangeiro, onde os conhecimentos práticos eram balizadores do processo de aprendizagem ao preparar para o mercado de trabalho, foram selecionados os conteúdos para as disciplinas escolares (publicados em documentos “oficiais”). Sendo assim, tais práticas corroborariam no processo de fabricação de uma infância que se intentava formar baseada em preceitos sociais modernos. Compreender esses percursos requer direcionar atenção para algumas das tensões que envolviam os movimentos reformadores que se configuravam no Brasil e têm sido objeto amplamente discutido pela historiografia.
Referências
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