Artigo

Poesia para Nossa Senhora da Conceição: a escrita e a vivida

Alan José Alcântara de Figueiredo
Universidade do Estado da Bahia, Brasil
Célia Tanajura Machado
Universidade do Estado da Bahia, Brasil

Práticas Educativas, Memórias e Oralidades

Universidade Estadual do Ceará, Brasil

ISSN-e: 2675-519X

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 5, núm. 1, 2023

rev.pemo@uece.br

Recepção: 23 Junho 2023

Aprovação: 28 Agosto 2023



Resumo: Este texto, de caráter autobiográfico, estrutura-se, basicamente, nas memórias do percurso de escritor literário-memorialista do primeiro autor, evocadas para este fim, ou mesmo na forma de autorreferenciação. O autor parte da devoção à Padroeira de sua cidade natal, Macaúbas – Bahia, Nossa Senhora da Conceição, cuja relação, quase simbiótica entre população/devotos-religioso/histórico, desperta e encaminha o seu interesse pelas coisas e pelos fatos de sua comunidade até se tornar um escritor local, cuja obra oferece subsídios para a história regional e estadual. O método (auto)biográfico quebra a hegemonia do uso da terceira pessoa no texto científico e, ao produzir uma narrativa, entrelaça os fatos narrados com teóricos afins, produzindo uma reflexão ampla sobre o tema estudado. Dessa forma, o resultado é um texto poético-narrativo que fixa elementos da cultura religiosa da cidade de Macaúbas e fornece subsídios para estudiosos da história regional.

Palavras-chave: Autobiografia, Padroeira de Macaúbas, Memória regional.

Keywords: Autobiography, Patron saint of Macaúbas, Regional memory

Para início de conversa

Era uma noite de relâmpagos que iluminavam as frestas do telhado. Observar o próximo relâmpago divertia-me e minha mãe cantarolava embalando-me e, mais uma vez, eu pedi: “canta a da casinha!” E ela, pela ducentésima vez, entoou à meia voz: “Você sabe de onde eu venho? / De uma casinha que eu tenho/ Fica dentro de um pomar. / É uma casa pequenina/ Lá no alto da colina, donde se ouve longe o mar [...]/ Minha santa padroeira/ Que está sempre em seu altar...” – Mãinha, o que é “santa padroeira”? E ela deu-me uma explicação da qual não me recordo, mas o exemplo ficou: “Nossa Senhora da Conceição é a Padroeira de Macaúbas”. O exemplo permitiu-me captar a ideia, pois ainda muito pequeno já intuíra a importância da Festa de 8 de dezembro para a comunidade macaubense.

Alguns fatos que presenciava, ligados à festa, ou de que participava podem ser citados como: minha avó materna – Petrina Rego Figueiredo (1914-1987) – confeccionando arremates com flores de tecido para as meninas que faziam a primeira comunhão no dia 8, ou asas de anjo para a procissão do grande dia. Lembro-me, também de ela preparando uma prenda com queimados acondicionados em trouxinhas de papel de seda que pareciam pequenos ninhos. Bem assim, toda a cidade movimentava-se nos dias da novena preparatória para a festa. Os fogos e o bimbalhar festivo dos sinos enchiam os ares de festa.

Os sinos são elementos marcantes na cidade de Macaúbas; eles anunciam a festa e a dor e convidam os fiéis para as funções religiosas com uma linguagem própria para cada evento. Como Freire (1989), que destaca o aprendizado da leitura de mundo precedendo a leitura da palavra no quintal de sua infância, no Recife, posso dizer que o som dos três sinos do nosso campanário tenha sido minha primeira leitura do mundo externo. Brincando no grande quintal da casa avoenga, sabíamos da morte de homens ou de mulheres, do chamado para o catecismo ou outras funções religiosas. Guardo uma imagem sinestésica de som de repique festivo entrelaçado aos raios de um sol vivo de verão coados entre as folhas da mangueira e da goiabeira sob as quais brincávamos, ao meio-dia, em dias de novena de Nossa Senhora da Conceição. Essa imagem sonoro-visual é de uma emoção indescritível, é a minha imagem da “Festa de Nossa Senhora”.

Permitam-me uma ruptura na linearidade para um salto ao ano de 2001, quando se destacava o “Centenário do Sino Grande”, concomitante à Festa da Padroeira. Aconteceu que, no segundo dia da novena, o sino rachou... No auge da dor que perpassava o coração dos macaubenses, escrevi esta pequena crônica lírica que, lida ao fim da novena, levou a assembleia às lágrimas:

Quem o pranteará? Ontem ele abriu a Festa que era também a FESTA DO SEU CENTENÁRIO. Ainda hoje ao meio-dia saudou festivamente a sua Senhora. Agora... Ele não existe mais. Sim. Por que de que adianta um sino sem som? Aquele som inigualável e inconfundível; Aquele som que incontáveis vezes anunciou a festa, a dor, que chamou os paroquianos à penitência; Aquele som que anunciou à cidade o milagre da transubstanciação ou que Jesus era levantado para abençoar o povo; Aquele som que pranteou nossos avós e bisavós e que nossas trisavós se uniram para adquiri-lo; Aquele som que marcou as horas batendo as Ave Marias pela manhã, ao meio-dia e à tarde antes que os relógios se popularizassem. Como era enternecedor ouvi-lo à tardezinha... Aquele som... nunca mais ou ouviremos ao vivo. E agora? Como serão nossas Festas? E nossas Quaresmas e preces? E nossos enterros? O SINO GRANDE não suportou o peso da idade e morreu aos cem anos... E quem dobrará por ele? (LIVRO, 1991, fls. 60 – 60v).

Retomando o fio do tempo, volto à minha infância. Aos seis anos, tive a honra de ser um dos encarregados da “noite das crianças”. Minha mãe preparou uma lista e orientou-me a ir pedir óbolos nas casas conhecidas em que havia crianças. Ela, com outras mães esmeraram-se no embelezamento da noite.

Cresci ávido por ouvir as histórias de outros tempos de nossa cidade: suas festas, sua política(gem), sua genealogia, inicialmente ouvidas em família, depois de um casal amigo, integrado na vida cultural e religiosa de Macaúbas. Trata-se do maestro José Benedito do Amaral (1921-2009) e Idalina Guedes do Amaral (1926/-). Da casa desse casal, saíram, por muitos anos, os elementos embelezadores da Festa de Dezembro, como andores, ornamentações do altar-mor, coroações de Nossa Senhora, novos dobrados. Vejo aqui uma clara semelhança motivadora para o conhecimento das coisas do povo com a casa da avó de Naipul (2017) “A casa de minha avó era cheia de religião; havia muitas cerimônias e leituras, algumas das quais duravam dias” (NAIPUL, 2017, p. 102). Na casa do casal citado, desde outubro, tudo girava em torno da preparação da Festa da Padroeira e, quase sempre, do Terno de Reis a partir do Natal.

No ano em que eu concluí o Ensino Médio (1988), voltou para Macaúbas o Professor Doutor Ático Frota Vilas-Boas da Mota (1928/2016), grande estudioso do Folclore, cujo lema era tirar Macaúbas do anonimato e dar a ela o merecido destaque no cenário (inter)nacional, o que, em parte, conseguiu. Então, fiz-me um de seus discípulos. Essa etapa proporcionou-me um pouco de cientificismo àquilo de que eu gostava e praticava com gosto de curiosidade, de preservação ou de ressurreição, sem compreender ainda que a dinamicidade e a funcionalidade são fatores inerentes à manifestação folclórica ou de cultura popular (CARTA, 1995, p. 2) e que, portanto, as transformações ocorridas ao longo do tempo nas formas de se comemorar a Festa da Padroeira eram possíveis e inevitáveis.

As celebrações da Festa de 8 de Dezembro, em Macaúbas, constituem o ponto de partida para esta história de vida. Com essas celebrações, aprendi, religiosa e culturalmente; para ela, produzi e por ela arquivei e encantei-me. Na sequência, o campo de interesse ampliou-se. Sobre essa experiência, tratarei neste texto pondo, talvez, mais emoção do que ciência, mas certo de que não faltando doses de nenhuma delas, a emoção dará o tempero que fará a ciência mais leve e palatável às pessoas comuns.

A memória autobiográfica é definida por Kotre (1997, p. 14) como sendo “a lembrança de pessoas, lugares, objetos, acontecimentos e sentimentos que fazem parte da vida de alguém.” Este texto de caráter autobiográfico estrutura-se, portanto, basicamente em memórias de meu percurso de escritor literário-memorialista, evocadas para este fim ou mesmo na forma de autorreferenciação. Freire (1989) e Naipul (2017) dão o aporte teórico básico a partir de produções também autobiográficas.

Ao referir-se às Festas de Nossa Senhora da Conceição de seu tempo de criança, minha avó lembrava-se sempre dos encamisados, das argolinhas, das cavalhadas, das lanternas postas nas fachadas das casas da “Rua Grande” (Praça da Matriz) na véspera da festa e dos fogos de planta de Antônio Lula. Certamente, esses elementos eram comuns nos dias de regozijo público, pois há uma semelhança com a descrição que Aguiar (1979) faz das comemorações do 2 de Julho de 1882,

[...] em que afluiu durante muitos dias à vila uma população de umas dez mil pessoas, que se entregavam, na melhor ordem, a todos os divertimentos, constantes de batalhões patrióticos, cavalhada, argolinha, mouramas ou guerra de mouros, ataques de fortalezas e sobretudo a curiosa encamisada, cavalhada noturna com lanternas, assemelhando-se, pelo vestuário branco dos cavalheiros vestidos à turca, montados em cavalos cobertos de alvas e compridas mantas, a uma verdadeira escaramuça oriental de que falam as histórias da antiga cavalaria. (AGUIAR, 1979, p. 169; grifos do autor).

Do casal já referido, José Benedito e Idalina, ouvia as recordações, principalmente, da parte musical, pois ele era músico desde 1938, e ela, cantora sacra. Eram citados os nomes de algumas missas, com destaque para a “Conceição” por ser composição do macaubense Egídio Cardoso, portador de anoftalmia bilateral. Esse contato íntimo e familiar com o passado de nossa comunidade foi imprescindível para despertar o amor pelas coisas de minha comunidade natal. Naipul (2017) põe em relevo o poder que as histórias contadas pelo pai jornalista tinham para alimentar sua vocação para escritor: “O que ficava mais próximo de mim eram as histórias de meu pai sobre a vida de nossa comunidade. Eu adorava como elas eram escritas e, também, o trabalho que tinha visto sendo dedicado à sua composição” (NAIPUL, 2017, p. 36).

Quando eu contava doze anos, aconteceu o lançamento do livro de memórias “Um Filho de Macaúbas”, de Almir Turisco de Araújo. Com esse livro, pude ler, em texto gráfico, as primeiras notícias do passado de Macaúbas. O autor dedica este parágrafo à Festa da Padroeira:

No dia 1º de novembro, carregava-se o mastro em sentido eréctil, acompanhado de grande massa popular e da banda de gaitas (pífanos) e zabumba de mestre Pedro. Era o começo da festa da Imaculada Conceição e no dia 8 de dezembro o povo acordava com o repicar dos sinos de Sebastião Defensor (ARAÚJO, 1983, p. 18).

Todas essas informações fervilhavam em minha cabeça, com vontade de fazer voltar o brilho e o estrépito das festas de outrora. Em minha adolescência, as Festas de Nossa Senhora haviam-se tornado muito singelas do ponto de vista litúrgico e totalmente apagadas externamente. Restavam os leilões, que já não aconteciam em todas as noites, e a bênção dos carros na véspera da Festa, a noite dos motoristas. Eu tanto mexi que motivei a comissão de 1989 a levantar o mastro, sem o barulho do passado e sem a possibilidade de conduzi-lo em sentido eréctil até a Matriz pelo emaranhado dos fios elétricos.

Não se pode precisar o início das celebrações da Festa de Nossa Senhora da Conceição em Macaúbas, por inexistirem documentos escritos. O mais antigo documento de devoção à excelsa Padroeira é a escritura de doação de terras que Inácio Alves da Silva fez, em 1826, para a ampliação da primitiva capela de Nossa Senhora da Conceição (FIGUEIREDO, 2015).

Envolvimento com a Festa de Nossa Senhora da Conceição

Como dito anteriormente, em 1977, pela primeira vez, fui responsável por uma noite de novena, mas minha primeira participação efetiva na organização da Festa ocorreu em 1990. Em minha ânsia de conhecer o passado de nossa comunidade, “descobri” no Arquivo da Arquidiocese de Salvador (ainda na Praça da Sé) a data da criação da Paróquia de Macaúbas que comemorava, portanto, seu sesquicentenário naquele ano de 1990. Além da comissão da festa que fora eleita no ano anterior, o Pároco Padre Oswaldo Ribeiro dos Santos nomeou uma comissão auxiliar de doze membros para atuar nas comemorações jubilares. Integrei esta equipe e, nessa condição, vi impresso meu primeiro trabalho sem, contudo, assiná-lo, pois tratava-se do livreto com o programa-convite da Festa da Padroeira.

A capa (Figura 1) foi uma criação minha apresentando em desenhos, quatro aspectos do lado externo da Matriz de Macaúbas. A “segunda igreja” foi um retrato falado a partir da lembrança do maestro José Benedito e a primeira foi, portanto, a segunda sem as torres laterais, tomando-se também por base as capelas das vilas de Lagoa Clara (Macaúbas) e Bucuituba (Boquira), que conservam suas características originais.

Figura 1: Capa do Programa da Festa da Padroeira de Macaúbas – 1990
Figura 1: Capa do Programa da Festa da Padroeira de Macaúbas – 1990
Arquivo do autor.

Além da capa, escrevi um breve histórico da Paróquia de Macaúbas, cometendo alguns erros por falta de fontes históricas. Mas desse programa, o que se destaca é o tom poético do convite propriamente dito, que adiante vai transcrito:

Meu filho, há 150 anos recebo tuas provas de amor filial invocando o meu privilégio único da Imaculada Conceição; há 150 anos medio tuas súplicas ao Coração de meu Filho, que tanto te ama; há 150 anos, enfim, a Paróquia de Macaúbas caminha a serviço do Evangelho de Nosso Senhor. Vem, meu filho, celebrar a minha Festa de 8 de dezembro para juntos agradecermos à Santíssima Trindade pelo jubileu de tua Paróquia, a quem tanto amo. E, sabendo que aquele que ama quer ver o objeto de seu amor por todos amado, convida teus amigos, vizinhos e familiares para que durante a novena a Mim dedicada, Eu lhes fale de meu Filho.

Atende ao programa, sê pontual, participa do Sacramento da Confissão e do Banquete Eucarístico, abre teu coração à voz dos oradores e conhecerás as maravilhas que Nosso Senhor reserva àqueles que o amam. (FESTA, 1990, s.p.).

Em 1992, juntamente com quatro amigos/as, formei a comissão da Festa da Padroeira. Tentamos resgatar alguns aspectos da Festa, perdidos ao longo das décadas. Deles, destaco o “anúncio da festa” e a levantada do mastro no Dia de Todos os Santos. No sábado precedente, o bando anunciador percorreu as principais ruas da cidade e vários pontos da feira livre semanal convidando o povo para a abertura da festa no dia seguinte e apresentando, em resumo, a programação.

Documentos reunidos

Sempre envolvido nas festas religiosas, curioso sobre as conversas com os mais velhos, fui conhecendo detalhes de outras festas, tendo acesso a velhos programas, cartas com pedidos de óbolos e outros registros sobre os quais falarei à frente. Dessa forma, recebi, de uma família amiga, uma velha lata de biscoitos Aymoré contendo algumas cartas com pedidos de óbolo para várias festas religiosas e outros papéis antigos. Quatro dessas cartas referem-se à Festa da Padroeira, entre 1919 e 1935. Uma manuscrita (1919), duas impressas (1926 e 1927) e a última datilografada (1935). Os procuradores que assinaram essas cartas foram José de Queiroz Matos, em 1910; Antônio Borges de Figueiredo, em 1926; Cláudio Domingues, em 1927; e Lauro Domingues, em 1935.

Desse mesmo período, há um longo texto em versos intitulado “Lembrança da festa de Desembro (sic) de 1929”, composto por Judith Pereira Aires, o qual consta um álbum com outros poemas da mesma autora, conservado pela família. Dada a extensão, serão transcritas somente algumas estrofes:

De uma religiosa festa Que saudosa me lembro Realizada aqui nesta No dia 8 de dezembro. Sendo o humilde procurador José Aurélio Pereira Escolhido pela Virgem Nossa excelsa Padroeira. [...] Íamos às rezas todas contentes Ao ouvir o sino badalar E voltando imediatamente Para a festa íamos trabalhar. Foram uns dias venturosos Que sempre recordarei E jamais em minha vida Prazer igual eu terei. [...]

Dando um pulo de quatro décadas, chegamos a 1973, quando a Festa de Nossa Senhora da Conceição foi organizada pelo casal José Benedito do Amaral e Idalina Guedes do Amaral. Para levantar recursos financeiros, foram enviadas cartas aos “conterrâneos ausentes”. Alguns deles, além da contribuição solicitada, enviaram cartas agradecendo a lembrança. Damos destaque para a carta de Alice Domingues Pereira – Quena –, filha do procurador de 1929. Eis um trecho de sua carta

“[...] quero no momento, agradecer aos meus conterrâneos e dizer-lhes que por motivo de minhas ocupações comerciais não me é possível estar presente nos festejos que no dia 08 de dezembro toda nossa Macaúbas comemora com o maior brilhantismo em homenagem a nossa padroeira Nossa Senhora da Conceição” (Guanambi, 30/11/1973).

Essa carta ilustra a tradição que se passa de uma geração a outra na devoção a Nossa Senhora da Conceição. No meu caso, diretamente, já citei minha mãe e minha avó materna, mas é justo que também cite meu avô paterno – Manoel Messias de Figueiredo (1906-1977) – que foi procurador em 1942, cuja festa foi notícia na edição de 15/12/1942, em A Tribuna, um jornal local:

Embora que as chuvas torrenciais caídas ultimamente nesta Cidade tivessem criado dificuldades sem conta, as festas dedicadas a N. Senhora da Conceição, graças aos esforços ingentes e à dedicação incomparável do festeiro Sr. Manoel Messias de Figueiredo, que contou com um grupo de dedicados amigos e teve a colaboração positiva de quase toda Macaúbas não destoaram do brilhantismo das anteriores continuando assim, as tradições da terra (Figueiredo, 2006, p. 42).

Ampliação do campo de interesse

A religiosidade e o misticismo são elementos muito poderosos na definição de comunidades pequenas. A vida do grupo gira em torno do calendário e de eventos religiosos, que costumam ser marcantes para cada pessoa em particular. Naipul (2017, p. 28) relembra que “Um dos primeiros grandes eventos públicos a que me levaram foi a Ramlila, a peça baseada no Ramayana, o épico sobre o banimento e posterior triunfo de Rama, o herói-divindade hindu”.

Para nós, macaubenses, a Matriz de Nossa Senhora da Conceição, com suas celebrações e tradições, constitui-se o centro da cultura e da história local. Nossa história coletiva e oficial começa com a primitiva capela construída não se sabe por quem em local incerto ao pé da Serra Geral de Macaúbas. As festas religiosas assinalam (bem mais no passado) a vida social do município. Era para essas festas que se ensaiavam missas com coro e orquestra, que se compunham dobrados, que se faziam roupas novas. Há, dessa forma, uma simbiose entre a devoção à Padroeira e o ser macaubense. Unir esses elementos é um importante recurso para a manutenção da cultura local, pois, segundo Kotre (1997, p. 121), “nós, seres humanos, precisamos ficar em contato com a realidade do passado a fim de sobrevivermos.” Partindo dessa lógica, procurei contribuir com o fortalecimento do senso de pertencimento como servem de exemplos os dados seguintes.

Em 1991, restauramos o “Terno A Mocidade em Flor” para conseguir recursos para a renovação do instrumental da Filarmônica Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Para aumentar o repertório das marchas de rua, troquei os versos de um jingle político composto pelo maestro José Benedito na década de 1950. Na marcha, Nossa Senhora da Conceição aparece como “a Rainha”: Levando flores / Vamos todos à lapinha, / Com muito amor / Flores também para a Rainha.

Em momento posterior, compus uma musiquinha para as meninas da “oferta de flores” do mês de maio, cuja segunda estrofe é assim composta: Estas flores, Mãe querida / Macaúbas oferece / E a Vós se eleva em prece: / Dai-nos paz por toda a vida.

Fechamos esse grupo de exemplos do entrelaçamento entre o ser macaubense com a devoção a Nossa Senhora da Conceição, com o Hino de Macaúbas, oficializados pela Lei nº 699/2019 a partir da proposta à Câmara Municipal de uma letra sobre o “Dobrado Macaúbas”, composto pelo maestro José Francisco de Figueiredo Filho – Zé Preto – (1897-1977). A segunda parte da letra evoca o passado do município nestes termos: Primeira num vasto sertão / A difundir conhecimento, / A aplicar real justiça / A propagar o viver cristão. / Heróis com garra e com bravura / Plantaram civilização / Trouxeram em sua bagagem / Sonho e determinação. O “viver cristão”, que o hino menciona, refere-se à “Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas”, criada pela Lei Provincial nº 124/1840.

Além de uma caminhada de fé

Ser escritor foi um projeto que alimentei desde a infância e que se realizou. Hoje posso perceber que a razão que estava latente em mim era o querer exaltar minha terra natal – Macaúbas, Bahia – porque também desejava ser prefeito para fazer uma série de obras de melhoria para a cidade; porque também desejava ser professor e aqui, o mesmo sentimento de amor à terra, pois desejava melhorar as escolas, restaurando antigas atividades perdidas com o tempo, as quais faziam da escola um ambiente vivo, prazeroso para além do bê-á-bá e do dois-mais-dois. Para tanto, precisava ser diretor e realmente o fui, por mais de uma década. Consegui realizar com meus pares e estudantes uma porção de eventos culturais e esportivos que devolveram o orgulho de ser estudante e de ser professor. Outros projetos foram mais ou menos realizados. Evoco tudo isso porque ajuda a fornecer um autorretrato mais completo. Tomo emprestado a imagem do poliedro que o Papa Francisco (2020) utilizou na Encíclica Fratelli Tutti para retratar a multiplicidade de aspectos formadores de uma sociedade para também dar a ideia da variedade de facetas que representa cada pessoa humana e esteio-me também em Sales (2008) que afirma: “[...] somos o que somos capazes de contar o que somos.” (SALES, 2008, p. 29)

Em que mundo eu estava imerso que me possibilitasse esse “querer escrever um livro”? Cresci ouvindo as histórias que minha avó materna contava sobre o passado de nossa cidade. Eu estava próximo da posição do “menino francês” que Naipul (2017) usa como exemplo fazendo oposição a si mesmo: “[...] o conhecimento está à espera. Esse conhecimento estará a sua volta. [...] E na escola, o trabalho de gerações de eruditos, reduzidos para os textos escolares, lhes proporcionará alguma ideia da França e dos franceses” (NAIPUL, 2017, p. 104). Cresci numa família letrada, tinha acesso a livros e discos infantis

Minha avó e meu pai liam para mim à noite. A prefaciadora de “A Educação em Macaúbas” faz um retrato desse período de minha vida:

A vivacidade do Prof. AUTOR o fez menino com referências ligadas sempre ao estudo, à leitura, às brincadeiras criativas, apreciador da boa música, colecionador por vocação. Não me lembro um só momento de AUTOR, senão com suas coleções de livros e discos, no trajeto que fazia todos os dias entre a casa da sua avó Petrina, na rua Dr. Vital Soares, e sua casa na rua Dois de Julho. (Alves, 2012, p. 9).

Tive a sorte de ter durante quase todo o primário, como professora, a dona da cadeira de Didática do Colégio Estadual Aloysio Short, Maria Jesuína Defensor Vaz – a querida Professora Zu – que trazia nossa cidade para as suas aulas. Em torno do 6 de julho – aniversário do município – aspectos econômicos, históricos, geográficos e culturais de nosso município eram assunto das aulas de Estudos Sociais. Tenho ainda guardados os velhos cadernos com cópias, ditados e exercícios sobre esse tema. Se não nos faltava a motivação, faltava-nos ainda o texto impresso e isso me despertava a vontade de “escrever um livro sobre a história de Macaúbas”!

Em 1991, com vinte anos, tive acesso ao livro “Simplesmente Barreiras”. Foi a gota d’água para pôr as mãos à obra! E comecei a escrever “Macaúbas, terra bendita” (primeiro verso de uma canção do maestro José Benedito). Cheguei mesmo a rabiscar uma capa, mas logo percebi que meu projeto não caberia em um único livro. Guardei os rabiscos, mas continuei armazenando dados, que deram origem à uma coleção com o título escolhido, a qual conta, atualmente, com seis volumes, a saber: 1 – Ternos e Reisados em Macaúbas – parceria com Idalina Guedes do Amaral (1997); 2 – Efemérides Macaubenses (2000); 3 – Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas (2001); 4 – A Música em Macaúbas (2003); 5 – A Educação em Macaúbas (2012) e 6 – Aspectos da História de Macaúbas (2015).

Entretanto, minha estreia em uma capa de livro, deu-se, quase por acaso, como organizador da antologia “Poetas de Macaúbas”, lançado em comemoração ao 161º aniversário de Macaúbas – 6 de julho de 1993. Aconteceu assim: em conversa com o professor Ático Mota, no gabinete da Presidência da Fundação Cultural Prof. Mota, surgiu a ideia de se comemorar o aniversário de Macaúbas com uma antologia. Parti, incontinente, à cata de textos com os poetas e poetisas que conhecia, reunindo dezenove vates. De posse dos poemas, datilografei os textos e o professor Ático levou o material para Brasília entregando-o ao seu editor, o português Victor Alegria. Em um trabalho de vinte sete horas, a Editora Thesaurus imprimiu o livro e o editor, pessoalmente, veio trazer a encomenda. Num final de domingo, o professor Ático ligou-me chamando para eu ver meu nome impresso na capa. Surpresa enorme! E assim, tornei-me um jovem escritor macaubense.

Cada livro tem uma história; não recordarei todas, mas o primogênito tem um sabor – literalmente sabor – especial. Orora – apelido carinhoso de Idalina Guedes do Amaral, esposa do maestro José Benedito e minha prima em segundo grau – tem uma afinação e um ouvido maravilhosos. Passei incontáveis manhãs em sua cozinha anotando letras, depois transcrevendo as melodias em meio a cheiros deliciosos de comida sendo posta ao fogo, cafés com avoador e brevidade ou licores de jenipapo, de canela ou de leite. Isso durou alguns anos. Nesse tempo, íamos organizando ternos, criando peças, inclusive parodiando. Tempo bom, de despreocupação como, inclusive escrevi ao musicar, tempos depois, um swing do maestro José Benedito para um bailado d’A Mocidade em Flor: “Gozar a mocidade é preciso, / Pois não se repete essa quadra / Em que a alma respira suaves perfumes / E que o viver se resume somente em sorrisos!” E o livro foi lançado no dia em que comemorei bodas de papel com Acidália Paula e batizamos nosso primogênito Miguel Inácio (1º de junho de 1997).

O leitor atento terá percebido um grande intervalo entre os volumes 4 e 5 da coleção “Macaúbas, terra bendita”. Entre 2003 e 2012, produzi outros trabalhos fora da coleção, como também diminuí o ritmo, pois em 2007 assumi a direção do Colégio Estadual Aloysio Short, que se transformou, durante minha gestão, em Cetep da Bacia do Paramirim. A partir de 2009, fiz três especializações, duas delas em consequência do cargo de diretor e, entre 2013 e 2015, o Mestrado Profissional em Letras/UNEB. Nesse período, lancei a série “Cadernos Macaubenses” com três opúsculos (2004) e aventurei-me pelo campo da ficção com a novela “Ponte do Tempo” (2005), que por sua grande acolhida e por integrar projetos de leitura nos colégios municipais, alcançou uma segunda edição em 2018.

Na sequência, vieram dois trabalhos biográficos. Em 2006, escrevi o opúsculo “Centenário de Manoel Messias de Figueiredo (1906 – 5 de dezembro – 2006)” para comemorar o centenário de meu avô paterno. Em 2009, lancei “O Capitão que desafiou o Império”, como resultado de muitos anos de pesquisa. Este, posso afirmar, foi meu trabalho mais científico, até então, inclusive, foi comprado pela Universidade do Texas; esse livro também teve uma segunda edição.

Posso comparar meu trabalho ao de garimpeiro por terrenos ignotos ou de colheita em uma seara há muito abafada pelas ervas daninhas por não ter quem lhe cuidasse. Os dados estavam em algum lugar, mas de difícil acesso... gastei horas no Arquivo Público da Bahia, por exemplo, até encontrar a designação do primeiro professor público de Macaúbas. Traço outro paralelo com Naipul (2017):

Trabalhei de forma intuitiva. Todas as vezes meu objetivo foi fazer um livro, criar algo que fosse fácil e interessante de ler. Em cada estágio eu só podia trabalhar com o meu conhecimento, sensibilidade, talento e visão de mundo. Essas coisas foram se desenvolvendo livro a livro. E tive que fazer os livros que fiz porque não havia outros sobre esses assuntos para me dar o que eu queria. Eu tive que esclarecer meu mundo, elucidá-lo para mim mesmo. (NAIPUL, 2017, p. 107):

Não digo que não tive um plano, mas posso dizer que ele foi alterado devido às descobertas que iam sendo feitas, inclusive na apresentação de “Aspectos da História de Macaúbas” corrijo informações constantes dos referenciais histórico-geográficos de “Ternos e Reisados em Macaúbas”. Entre os volumes 2 e 4 da coleção “Macaúbas, terra bendita” há sempre uma lista de títulos a serem lançados, entretanto, o que se vê é o crescimento da coleção com títulos não previstos.

A partir de 2018, dei um salto mais alto, saindo da história local para a estadual, publicando “O Apostolado da Oração na Bahia” (2018) e “As Congregações Marianas na Bahia” (2019). O primeiro teve uma tiragem maior e foi bem mais divulgado, com três lançamentos. Inicialmente, em Barreiras, durante um evento da Diocese local; depois em Macaúbas e, finalmente, em Salvador, durante o II Simpósio do Apostolado da Oração da Arquidiocese. Simbolicamente, pode-se dizer que o livro atravessou a Bahia de oeste a leste.

Finalmente, durante a pandemia da COVID-19, lancei “O Semeador de Letras” (2020), uma coletânea de oito artigos sobre o trabalho pedagógico do Doutor Abílio César Borges, o Barão de Macahubas, cujo método de alfabetização foi meu objeto de estudo/dissertação durante o Mestrado Profissional. Esse livro foi o primeiro lançado por uma editora comercial e na versão e-book.

Encerrando a conversa

Com este texto, fiz um mergulho em meu passado, privilegiando aspectos ligados ao meu lado escritor: pessoas fatos, situações que me incentivaram direta ou indiretamente. Ao estruturá-lo, usei da liberdade que o método (auto)biográfico dá-nos de fugir da opressão classificatória (SALES, 2008). Dessa forma, fugi a uma introdução nos moldes atuais, pois a narrativa de vida assume feições de “[...] ficção baseada em fatos reais” (JOSSO, 2008, p. 28).

á está por demais provado que o ambiente familiar é o primeiro elemento incentivador para o desenvolvimento das potencialidades individuais. Assim, tomei como ponto de partida um momento de aconchego e poesia que me foi propício para (re)conhecer Nossa Senhora da Conceição como “minha santa padroeira” e o tempo me fez compreender a simbiose entre Ela e Macaúbas. De modo análogo, e como exemplos, podemos tomar a imagem de Nossa Senhora Aparecida como o primeiro elemento de identidade nacional (Alvarez, 2014), ou o Senhor do Bonfim, cujo hino (popular) composto em 1923 para comemorar o 1º Centenário da Independência na Bahia num misto de civismo e religiosidade “[...] é o canto que identifica a Bahia, e se constitui, consagrado pelo povo, em seu hino oficial” (Dois Séculos, [1995], p. 36).

Ao longo da vida, fui conhecendo pessoas e situações, ou mesmo escavando-as, que continuaram o trabalho incentivador da infância e, de forma intuitiva, fui produzindo mesclando literatura e historiografia. Alencar (2015) faz esta observação: “Mestre das vernáculas por formação e historiador por natureza, Alan transmite em sua obra o entusiasmo histórico e o gênio literário necessário em ambas as áreas” (Alencar, 1915, p. 13), no que combina com Trindade (2009) ao prefaciar “O Capitão que desafiou o Império”: “Para finalizar, gostaria de dizer que o livro transcende as características de obra sobre história. Avança sobre o terreno da literatura” (Trindade, 2009, p. 12).

Buscando uma chave de ouro, cito Freire (1989) com seu anseio de formar leitores proficientes a partir de sua cultura: “De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de ‘escrevê-lo’ ou de ‘reescrevê-lo’, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente” (Freire, 1989, p.20). De uma coisa tenho certeza: as gerações que me sucedem e sucederão não sentirão a mesma falta que senti de nos encontrarmos no texto impresso, enquanto comunidade. Poderão, sim, encontrar falhas e aperfeiçoar, num processo de reescrita. Mas, como bairrista inveterado, que mais eu poderia desejar que outros seguissem pela estrada que ajudei a abrir, quase como pioneiro?

Referências

AGUIAR, Durval Vieira de. Província da Bahia. 2.ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979.

ALVAREZ, Rodrigo. Aparecida. São Paulo: Globo, 2014.

ALVES, Maria Perpétua Brito Bastos. Prefácio. In: FIGUEIREDO, Alan José Alcântara de. A Educação em Macaúbas. Macaúbas: [s.n.], 2012.

ALVES, Tiago Alencar de Aquino. Prefácio. In: FIGUEIREDO, Alan José Alcântara de. Aspectos da História de Macaúbas. Macaúbas: [s.n.], 2015.

ARAÚJO, Almir Turisco. Um Filho de Macaúbas. [s.l.]:[s.n.], 1983.

CARTA do Folclore Brasileiro. Salvador: [s.n.], 1995.

DOIS SÉCULOS e Meio de Devoção de um Povo. Salvador: Devoção do Senhor Bom Jesus do Bomfim, [1995].

FESTA da Excelsa Padroeira de Macaúbas Nossa Senhora da Conceição – Sesquicentenário da Paróquia. 1990.

FIGUEIREDO, Alan José Alcântara de. Aspectos da História de Macaúbas. Macaúbas: [s.n.], 2015.

FIGUEIREDO, Alan José Alcântara de. Aspectos do Folclore Macaubense. Caetité: Gráfica Globo, 2004.

FIGUEIREDO, Alan José Alcântara de. Centenário de Manoel Messias de Figueiredo (1906 – 5 de dezembro – 2006). Caetité: Gráfica Globo, 2006.

FRANCISCO, Papa. Fratelli Tutti. São Paulo: Paulinas, 2020.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados/Cortez, 1989.

JOSSO, Marie-Christine. As narrações centradas sobre a formação durante a vida como desvelamento das formas e sentidos múltiplos de uma existencialidades singular – plural. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade. Salvador, v.17, n.29, p. 17 – 30, jan./jun., 2008.

KOTRE, John. Luvas Brancas: como criamos a nós mesmos através da memória. São Paulo: Mandarim, 1997.

LIVRO Tombo da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas, aberto em 1991.

NAIPUL, V. S. Ler e Escrever. Belo Horizonte: Âyirê, 2017.

SALES, Marcea Andrade. História e personagens que (ainda) não estão em livros: o memorial-formação na licenciatura em pedagogia em Irecê/BA. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade. Salvador, v.17, n.29, p. 147 – 158, jan./jun., 2008.

TAPAJÓS, Paulo. Paulo Tapajós recorda. São Paulo: Continental, [s.d.] 1 disco (12,5”), 33 rpm.

TRINDADE, Marcos. Prefácio. In: AUTOR. O Capitão que desafiou o Império. Caetité: Gráfica Globo, 2009.

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