Artigo

Ainda é preciso enegrecer o feminismo: contra o genocídio da população negra

Luciana Garcia de Mello
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

Práticas Educativas, Memórias e Oralidades

Universidade Estadual do Ceará, Brasil

ISSN-e: 2675-519X

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 5, núm. 1, 2023

rev.pemo@uece.br

Recepção: 03 Julho 2023

Aprovação: 06 Setembro 2023



Resumo: O objetivo deste artigo é resgatar as principais críticas de Sueli Carneiro ao Movimento Feminista hegemônico, destacando-se a ênfase da autora sobre a necessidade de enegrecer o feminismo para demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso da questão racial. Busca-se demonstrar a relevância de tal proposta, colocando-se em evidência tanto a manutenção das desigualdades intragênero quanto a persistência do genocídio contra a população negra. Em termos metodológicos, recorreu-se a uma revisão bibliográfica de textos publicados pela autora e a dados estatísticos sobre a situação socioeconômica da mulher negra para sustentar o argumento de que ainda é preciso enegrecer o feminismo, pois está em curso um genocídio da população negra, destacando-se o caso das mulheres, que se materializa por meio da submissão a condições de vida subumanas e pelo extermínio físico desse grupo.

Palavras-chave: Sueli Carneiro, Movimento de Mulheres Negras, Enegrecer o Feminismo, Desigualdade intragênero, Genocídio.

Abstract: The purpose of this article is to rescue Sueli Carneiro's main criticisms of the hegemonic Feminist Movement, highlighting the author's emphasis on the need to blacken feminism in order to demarcate and institute the weight of the racial issue on the agenda of the women's movement. It seeks to demonstrate the relevance of such a proposal, highlighting both the maintenance of intra-gender inequalities and the persistence of genocide against the black population. In methodological terms, a bibliographic review of texts published by the author and statistical data on the socioeconomic situation of black women were used to support the argument that it is still necessary to blacken feminism, since a genocide of the black population is underway, highlighting the case of women, which materializes through submission to subhuman living conditions and the physical extermination of this group.

Keywords: Sueli Carneiro, Black Women's Movement, Blacken Feminism, Intragender inequality, Genocide.

Em termos genéricos e de forma sucinta, o Movimento Feminista pode ser definido como um movimento social que luta pelo direito das mulheres. Desde o seu surgimento, no fim do século XIX, até os dias atuais, várias bandeiras de luta foram levantadas pelas mulheres que compõem essa mobilização, o que remete à ideia de que o movimento feminista tem diferentes “ondas”. Ao mesmo tempo, não se pode falar em homogeneidade, sendo possível identificar diferentes vertentes do feminismo. O próprio conceito de feminismos no plural traz à tona o fato de que a luta não diz respeito somente a mulheres brancas de classe média em busca de direitos civis.

Neste artigo, busca-se trazer para a discussão a crítica que a filósofa Sueli Carneiro aporta ao Movimento Feminista hegemônico, que é composto, majoritariamente, por mulheres brancas de classe média. Importa para essa autora, trazer as contribuições do pensamento feminista negro – advindo do movimento de mulheres negras – para complexificar o entendimento das questões de gênero e marcar o lugar central da raça nas dinâmicas sociais e nas estruturas de poder de nosso país. A partir da discussão de Carneiro, torna-se possível pensar na singularidade histórica da mulher negra e na intersecção entre gênero, classe e raça. Uma das contribuições principais dessa pensadora está em chamar a atenção para o fato de que o racismo produz gêneros subalternizados. Esses são fatores que nos ajudam a compreender a necessidade de enegrecer o feminismo.

Seguindo a intuição de Sueli Carneiro, e mesmo retomando questões já trabalhadas por essa intelectual, argumenta-se neste trabalho, que ainda é preciso enegrecer o feminismo, pois há uma luta contra o genocídio da população negra. A partir da apresentação de dados estatísticos, demonstra-se neste trabalho as disparidades intragênero em diferentes âmbitos sociais, o que também reforça a pertinência de se enegrecer o feminismo. Contudo, o que se procura enfatizar é o processo atual de genocídio que se materializa tanto por meio da submissão a condições de vida subumanas quanto pelo extermínio físico. É na proposta de radicalização de justiça social, que integra o Movimento de Mulheres, que se torna possível vislumbrar uma transformação social que viabilize a superação desse quadro.

Este trabalho está organizado em duas etapas: na primeira, procura-se apresentar a interpelação que Sueli Carneiro faz ao Movimento Feminista, trazendo a sua ideia de enegrecer o feminismo; na segunda, procura-se responder por que ainda é preciso enegrecer o feminismo. Desse modo, na segunda parte do trabalho, recorre-se a dados que apresentam a disparidade intragênero e o genocídio atualmente em curso contra a população negra, destacando-se que as mulheres negras não estão imunes a esse processo.

2 Enegrecer o Feminismo: Sueli Carneiro Interpela o Movimento Feminista

Na sociedade brasileira, a partir de meados dos anos 1970, há o ressurgimento do movimento feminista. Soares (2000) aponta que, nesse período, tal movimento tinha algumas características em comum com aqueles que surgiram na Europa e nos Estados Unidos nos anos 1960, sendo formado predominantemente por mulheres brancas e de classe média. Por um lado, considerando o contexto de ditadura militar, o movimento feminista não assumiu uma postura radical em relação à liberação feminina; por outro, foi possível a articulação com as militantes de partidos de esquerda e com mulheres engajadas na luta pela redemocratização. Retomando Anette Goldberg, Soares afirma que se tratava de um “feminismo bom para o Brasil”. Deve-se ter em conta também que o movimento feminista brasileiro da década de 1970 recupera a experiência histórica de participação das mulheres, contudo, rompe com seu papel tradicional. Ainda segundo Soares, esse movimento é influenciado pelos ideais de contestação social que surgiram na Europa e nos Estados Unidos nos anos 1960, particularmente aqueles advindos dos movimentos feministas, negro, pacifistas e hippie. Havia um questionamento do papel da mulher na família, no trabalho e na sociedade que remetia à luta pela transformação nas relações humanas e na extinção das relações baseadas na discriminação social e de gênero.

Com a transição do regime autoritário para a democracia, a partir da metade dos anos 1970, tem-se a proliferação dos movimentos populares, a consolidação da oposição e a reorganização da esquerda, ainda que persistisse de forma abrandada a repressão política. Soares (2000) também explica que, nesse contexto, devido ao imaginário social que via as mulheres como cidadãs despolitizadas ou intrinsicamente apolíticas, foi possível que esse grupo conseguisse ocupar um maior espaço de ação política. Desse modo, as primeiras manifestações públicas partiram de movimentos constituídos majoritariamente por mulheres que, diferentemente dos sindicatos, partidos políticos e movimento estudantil, encontraram formas de se expressar sem serem perseguidas politicamente. A autora aponta que o ano de 1975 costuma ser citado como aquele em que os grupos feministas reapareceram nos principais centros urbanos. As comemorações públicas do Dia Internacional da Mulher, reforçadas pelo início da Década da Mulher, propostas pela ONU, impulsionaram o surgimento de várias organizações feministas e vários jornais.

A temática do gênero vai-se impondo ao “feminismo bom para o Brasil”. Soares (2000) explica que as feministas que trouxeram o movimento de volta à cena eram, na sua maioria, mulheres que já possuíam experiência política prévia, seja no movimento estudantil, seja nas organizações clandestinas de esquerda, seja nos partidos políticos prescritos, entre outras. Depois da anistia em 1979, juntaram-se ao movimento mulheres vindas do exílio e muitas que saíram das prisões. Havia uma defesa da autonomia do movimento feminista e o tom era de crítica à esquerda por considerar que essa vertente analisava as condições de exercício da cidadania de homens e mulheres, baseando-se apenas na ideia de classe, ignorando, portanto, as diferenças de sexo. No entanto, essas mesmas feministas também não incorporaram a questão racial como condição essencial para compreender a situação da mulher negra. A emergência do movimento de mulheres negras está diretamente relacionada a essa ausência. Deve-se acrescentar ainda que as mulheres tiveram um papel central no ressurgimento do movimento negro no final da década de 1970. Gonzalez (1982), ao falar sobre a articulação das mulheres negras no Rio de Janeiro, revela que, em um dado momento, as mulheres reuniam-se de forma separada e depois partiam para uma sala maior, onde discutiam os problemas em comum. Havia machismo e paternalismo, mas, por outro lado, a solidariedade e o entendimento mútuo também estavam presentes. Essas mulheres, ainda segundo Gonzalez, passaram a participar do Movimento Negro Unificado.

Posteriormente, no centenário da Abolição em 1988, conforme Carneiro (1993a), houve uma ampla mobilização de mulheres negras em torno de suas questões específicas e na maioria dos estados brasileiros desenvolveram-se reflexões sobre as mulheres negras em encontros estaduais, debates, seminários, entre outros. Essas atividades convergiram para a realização do I Encontro Nacional de Mulheres Negras, ocorrido de 2 a 4 de dezembro de 1988, em Valença, Rio de Janeiro, que contou com a participação de 450 mulheres negras, representando 17 estados brasileiros, além de militantes do Movimento de Mulheres e representantes de outros países como Equador, Canadá e Estados Unidos. Ainda segundo a autora, o Centenário da Abolição foi um momento propício para que as mulheres negras expressassem com maior visibilidade a sua crescente mobilização e organização na defesa de seus interesses específicos. Carneiro cita a importância da ação política de diversos grupos institucionais e autônomos, tais como o Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo, o Nzinga Coletivo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, o Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista, a Casa Dandara de Belo Horizonte, as mulheres das Comissões de Negros do Partido dos Trabalhadores, entre outros. Nas entidades, comissões ou grupos formados começou a instituir-se um movimento específico que busca redefinir a ação política tanto do Movimento Negro quanto do Movimento Feminista.

Ainda que a expressão enegrecer o feminismo tenha sido utilizada de forma explicita nas publicações de Sueli Carneiro somente em 2003, pelo menos desde 1984 essa intelectual negra vem-se esforçando para marcar em seus trabalhos as singularidades do feminismo negro, interpelando, dessa forma, o feminismo hegemônico. No texto “O Poder Feminino no Culto aos Orixás”, escrito em parceria com Cristiane Abdon Cury, as autoras buscam construir um marco referencial para um possível feminismo negro que, ao mesmo tempo em que se alimenta, revitaliza a cultura ancestral. O artigo refere-se a uma pesquisa realizada com filhas de santo em Candomblés em São Paulo, no período de 1980 a 1982. As autoras (1993c) buscaram compreender os modelos femininos presentes na mitologia yorubá passíveis de se constituir como fonte de inspiração para as mulheres concretas que se deparam no seu dia a dia com problemas semelhantes aos de suas ancestrais mitológicas. Assim como todas as culturas produzidas pela humanidade, a cultura africana apresenta em sua mitologia, modelos exemplares de explicação da necessidade de controlar as mulheres. Tal dominação justifica-se, pois elas seriam caracterizadas pela voracidade, intolerância e excessos. Já nos homens, é identificada a ponderação, a paciência, a razão, a capacidade de produzir cultura e construir a história. As autoras explicam que essa é uma das razões pelas quais não se permite à mulher conhecer os mistérios do jogo de adivinhação de Ifá, que representam a história e o destino do povo yorubá. Por outro lado, o equilíbrio de forças entre os dois sexos está sempre presente nos mitos. Do ponto de vista do homem, a necessidade de controlar a mulher surge não devido à sua inferioridade, mas porque ela tem potencialidades e características capazes de submetê-lo. Ambos sabem que possuem equivalência física e psicológica. O universo místico nagô, por exemplo, do qual o candomblé é remanescente, estrutura-se como várias outras mitologias no princípio da sexualidade. A partir da interação dinâmica e conflituosa, tudo é gerado. Para as autoras, discutir a mulher no candomblé remete imediatamente às figuras míticas femininas que compõem um perfil da compreensão que o sistema mítico do candomblé possui da condição feminina. Carneiro e Cury apresentam um importante relato de uma filha de Oxumaré, quando foi interpelada sobre a relação entre homem-mulher do ponto de vista do candomblé.

Eu vejo. Eu vejo o seguinte: que a mulher de candomblé, ela é mais homem, vamos dizer assim, ela não se subestima em termos do homem e a mulher de outra religião, ainda sim. Elas ainda estão naquela de homem estar acima e eu estou um pouquinho mais abaixo, eu vou chegar lá, e a mulher de candomblé não, a maioria já pensa nós estamos lá, nós estamos juntos...Eu acho que justamente pelo fato de que no candomblé existir muita mulher, muitos cargos femininos, a presença da mulher é muito mais marcante, muito mais tradicional... ela se confronta mais porque é um fato: ela dentro do candomblé, ela convive com o homem ali, páreo a páreo, e de maneira geral, eu acho que ela se sobressai, de maneira geral. Então, aquilo ela leva adiante, se ela se sobressai lá, por que ela não vai se sobressair da porta prá fora? [...] (CARNEIRO; CURY, 1993, p. 28).

Dois elementos são importantes de serem destacados a partir dessa citação. Em primeiro lugar, Carneiro e Cury consideram que o candomblé torna possível à mulher abrir um espaço de competição com o homem e a sociedade machista, que a rigor, não lhe é dado. Com o apoio dos orixás, a mulher justifica uma possível rejeição ao homem, com ele se confronta abertamente e, por vezes, afirma sua capacidade de superá-lo. Em segundo lugar, nas palavras das autoras, a compreensão dessa autoimagem remete necessariamente à história da mulher negra e de seu posicionamento diante da realidade da sociedade brasileira, principalmente no pós-abolição. A mitologia africana apontando de modo insistente para as estratégias mais diversas de insubordinação – simbólicas ou reais – abre para as mulheres negras a possibilidade de criar mecanismos de defesa para sobreviver e conservar seus traços culturais de origem no novo contexto. Desse modo, a organização social do candomblé procurará reviver a estrutura social e hierárquica dos reinos africanos – especialmente de Oyó – que a escravidão destruiu. Contudo, na diáspora, essa forma de organização, segundo as autoras, visará reorganizar a família negra, perpetuar a memória cultural e garantir a sobrevivência do grupo e, também, a transmutação nos deuses africanos será a fonte de sustentação dessas mulheres para o confronto com uma sociedade hostil.

No texto “Identidade Feminina” (1993b), Sueli Carneiro põe em questão a ideia de uma identidade feminina homogênea que abarque todas as mulheres. No início do texto, Carneiro explica que a identidade é resultado de um processo histórico-cultural, em que se atribui distintas definições para os indivíduos. A questão é que a diferença que se estabelece entre homens e mulheres, brancos e negros, na cultura ocidental, é tida e vivida como inferioridade. A identidade feminina constrói-se em oposição à identidade masculina e, desse modo, uma visão biológica define a mulher como inferior ao homem em razão de sua força física; uma visão religiosa identifica a mulher como subproduto do homem, tendo em vista que foi construída a partir da costela de Adão; uma visão cultural define um campo específico para a atividade feminina e outros privilegiados para as atividades masculinas. Em conjunto, esses argumentos atribuem uma identidade negativa para a mulher, servindo de justificativa para os diversos níveis de opressão e subordinação a que este grupo está submetido, promovendo ainda a aceitação de um papel subordinado socialmente. A autora argumenta que a identidade feminina é um projeto em construção que depende da aquisição de um conjunto de direitos capazes de garantir às mulheres o exercício de uma cidadania plena. Faz-se necessário, portanto, desmontar os modelos introjetados de rainha do lar, do destino inexorável da maternidade, da restrição ao espaço doméstico familiar, procurando resgatar as potencialidades abafadas durante séculos pela ideologia machista e patriarcal. Para além disso, têm-se múltiplas bandeiras de luta: igualdade no mercado de trabalho; ruptura com estereótipos presentes no sistema de educação formal que direcionam as mulheres para as “carreiras femininas”; defesa de um programa de atenção integral à saúde da mulher em todas as fases da vida; exigência da atuação do Estado em relação à saúde reprodutiva, não só oferecendo diferentes métodos de contracepção, mas também combatendo a esterilização em massa das mulheres negras, o combate à violência doméstica, ao espancamento e ao estupro, entre outras demandas.

A interpelação que Carneiro faz ao feminismo fica explícita quando a autora questiona se o conjunto de direitos demandados – decorrentes das várias bandeiras de luta - será capaz de garantir cidadania plena a todas as mulheres. Pergunta ainda se através de tais direitos promoveremos a construção de uma identidade unívoca para as mulheres e se a identidade feminina é a mesma para todas as mulheres. É nesse ponto que a autora tensiona pressupostos feministas que universalizam a categoria mulher.

Quando falamos do mito da fragilidade feminina que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós mulheres negras fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas este mito, porque nunca foram tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas como vendedoras, quituteiras, prostitutas etc; mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar (CARNEIRO, 1993b, p. 11).

A autora pontua que as mulheres negras são tidas como um objeto que no passado estavam a serviço de frágeis sinhazinhas e senhores tarados e, no presente, são empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação. Ainda com o intuito de diferenciar mulheres brancas e negras, Carneiro cita que as mulheres negras não são rainhas de nada, figurando como as antimusas da sociedade brasileira, dado que o padrão estético predominante é o da mulher branca. Também fazem parte da análise da autora as desigualdades no trabalho, em que se exige “boa aparência”, e no sistema de saúde. Particularmente, em relação a esse último domínio, há uma crítica à assessoria do ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, que elaborou uma proposta de esterilização massiva das mulheres negras, sob o argumento de que era necessário controlar o crescimento populacional dos negros para evitar que no ano 2000 esse grupo tornasse-se maioria absoluta, podendo disputar o controle do poder político no país.

Carneiro (1993b) sublinha que as mulheres negras provém de uma experiência histórica diferenciada e o discurso clássico sobre a opressão da mulher é incapaz de dar conta da diferença qualitativa da opressão que elas sofreram, bem como do efeito que essa opressão teve e ainda têm sobre essas mulheres. Em sentido semelhante, hooks (2015) crítica as mulheres brancas de classe média, quando elas insistem que o sofrimento não pode ser medido. A autora concorda com Benjamin Barber no momento em que esta afirma que o sofrimento não deve ser concebido como uma experiência única e universal, pois está relacionado a situações, necessidades e aspirações. Desse modo, deve haver alguns parâmetros históricos e políticos para o uso do termo, permitindo que se encontre prioridades políticas para que se possa dar mais atenção a diferentes formas e graus de sofrimento. Em ambas as autoras, percebe-se a ênfase em considerar o fato de que nem a opressão, nem o sofrimento devem ser vistos como categorias universais. Uma adequada compreensão das experiências de diferentes mulheres pressupõe justamente analisar o modo como essas se desenvolvem em contextos socio-históricos específicos.

Em 1988, ano de criação do Geledés e da realização do 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras, a intelectual escreve o texto “A Organização Nacional das Mulheres Negras e as Perspectivas Políticas”. Neste trabalho, há uma crítica mais direta tanto ao movimento feminista hegemônico quanto ao movimento negro. Como explica Carneiro (1993a), o Movimento de Mulheres Negras já nasce marcado pela contradição relativa à necessidade de demarcar uma identidade política em relação a esses dois movimentos, apesar de compartilhar com eles temáticas e propostas gerais. O ponto central da crítica é o caráter subordinado que a questão da mulher negra tem na pauta de ambos. Um exemplo da reivindicação das mulheres negras está presente na fala da militante Alzira Rufino:

Durante o 9º Encontro Feminista em PE (set./87), nós do coletivo cobramos do movimento de mulheres esse racismo que ainda permeia as relações entre as mulheres brancas e de outras etnias. Sob outro aspecto, o machismo, podemos fazer a mesma crítica ao movimento negro, onde a mulher negra não tem espaço para a sua especificidade, vista ainda como tarefeira, a que deve ficar calada e invisível (CARNEIRO, 1993a, p. 14).

Apesar de uma crítica comum de diferentes militantes negras, não emergiu uma unanimidade em termos de estratégias de luta, havendo diferentes perspectivas. Carneiro cita algumas posições políticas que naquela ocasião atravessavam o emergente Movimento de Mulheres Negras no Brasil. A primeira reconhece a importância e a gravidade da questão da mulher negra, mas defende a subordinação da organização das Mulheres Negras ao Movimento Negro. Um dos motivos para essa posição é o temor de que a ação política das mulheres negras viesse a promover a quebra de uma suposta unidade na luta geral do negro, pela possível dispersão de quadros militantes. Uma segunda visão compreendia que o Movimento de Mulheres Negras deveria assumir um caráter cada vez mais feminista, tendo autonomia em relação ao Movimento Negro. O tema da mulher negra deveria ser incorporado ao Movimento Feminista. A terceira perspectiva entende a organização das mulheres negras como um dos aspectos da necessidade de organização dos diferentes setores sociais oprimidos. A organização estaria situada na perspectiva da luta de classes e voltada para a transformação radical da sociedade. Há uma imposição de determinadas posturas político-partidárias independentemente de elas dialogarem com as questões colocadas pelas mulheres negras. Por fim, a quarta visão advoga pela ação política das mulheres negras a partir da dupla militância, ou seja, tanto no Movimento Negro quanto no Movimento Feminista. Caberia às mulheres negras sensibilizar esses dois movimentos para assumirem na sua prática política que o racismo e o sexismo são elementos estruturantes e não periféricos quando se trata de estabelecer um projeto de sociedade justa e igualitária.

A ideia latente de enegrecer o feminismo transparece quando Carneiro (1993a, p. 17-18) menciona que, independentemente do ponto de vista sobre o modo de atuação, a luta se encaminha sempre na direção da construção da plena cidadania para as mulheres negras brasileiras, o que significa ir além das defesas dos direitos constitucionalmente conquistados pelos Movimentos de Mulheres. A autora menciona que as mulheres negras não participam do processo produtivo em igualdade de condições com os outros grupos, situando-se na base da hierarquia social como consequência da penalização da falta de oportunidade de mobilidade na estrutura ocupacional. Desse modo, uma das bandeiras de luta é contra os mecanismos de discriminação racial no mercado de trabalho como, por exemplo, o eufemismo “boa aparência”. Tem-se aqui a defesa de ações compensatórias que busquem eliminar as desvantagens historicamente acumuladas. Outra demanda apresentada nesse texto publicado originalmente em 1988 é pela coleta e análise do quesito cor em todos os recenseamentos oficiais para tornar possível a identificação das condições de vida da população, viabilizando o conhecimento sobre as desigualdades raciais. A autora ainda cita uma série de reivindicações: a) aplicação do princípio constitucional que torna crime a prática de discriminação; b) erradicação das péssimas condições de vida, que levam as mulheres negras a recorrer ao aborto; c) criação de condições básicas para a população negra para que seja possível romper com o círculo vicioso que confina a população negra em geral e, particularmente, as mulheres negras nos subterrâneos da sociedade brasileira.

Em 2003a, quando Sueli Carneiro escreve o texto “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”, tem-se uma síntese dessas ideias que já vinham sendo gestadas. Muitos elementos já expostos anteriormente são retomados nesse trabalho, mas há um aprofundamento da reflexão sobre a hierarquia de gênero. A autora considera que a apropriação social das mulheres do grupo derrotado no processo de colonização – no caso as mulheres negras – é um dos elementos emblemáticos da afirmação da superioridade dos vencedores. Ao mesmo tempo, pode-se afirmar que tal apropriação é uma manifestação explícita do racismo. Como postula Foucault (1999), a emergência do biopoder inseriu o racismo como um elemento central para o exercício de poder nos Estados modernos. Uma das funções do racismo é fragmentar e fazer cesuras entre as raças (estabelecer um corte entre o que deve viver e o que deve morrer). Já a segunda função definida por Foucault, permite-nos pensar de modo mais claro a relação entre o colonizador e a mulher negra. Tal função permite uma relação positiva: “quanto mais você matar, mais você fará morrer”, ou “quanto mais você deixar morrer, mais, por isso mesmo, você viverá” (Foucault, 1999, p. 305). A vida de um e de outro é posta em relação, sendo que a subjugação das mulheres negras é encarada como a superioridade do homem branco. Nesse sentido, o assassinato direto e indireto são fundamentais nesse tipo de relação.

Ainda sobre a hierarquia de gênero, Carneiro pontua que a violação colonial perpetrada pelos senhores brancos contra as mulheres negras e indígenas, bem como a miscigenação daí resultante, estrutura o mito da democracia racial e é o cimento de todas as hierarquias de gênero e raça, que ainda se mantém intactas. Já Gonzalez (1984), destaca o endeusamento da mulata como uma sintomática de como o mito da democracia racial exerce um efeito desproporcional sobre as mulheres negras. A autora pontua que o endeusamento dessa figura que ocorre no momento do carnaval contrasta com a persistência das mulheres negras no trabalho doméstico. Nesse sentido, a mulata e a doméstica são, na verdade, a mesma figura. Também para pensar a hierarquia de gênero e sua relação com a sociedade colonial, é importante mencionar que Abdias do Nascimento (2016) destaca que a nossa sociedade escravocrata herdou a estrutura de família patriarcal de Portugal e a mulher negra acabou pagando um preço alto por isso. O desequilíbrio demográfico entre homens e mulheres durante a escravidão e a assimetria da relação entre senhores e escravos tornou possível que o homem branco tivesse monopólio sexual sobre as poucas mulheres existentes. Apesar dessas relações serem forçadas (estupros), elas não eram consideradas crimes. Além disso, de um modo geral, tais relações também não resultavam em casamento. De acordo com o autor, criou-se uma divisão em que cada mulher tinha um papel “branca pra casar, negra pra trabalhar, mulata pra fornicar” (2016, p. 62). A representação da mulata era ambígua: por um lado, destacava-se a sua habilidade culinária, sua higiene, sua resistência ao trabalho, a sua sensualidade irresistível e sua capacidade de seduzir; por outro, informa o autor, ela seria caracterizada pela falta de moralidade e irresponsabilidade. De qualquer modo, ela não tinha o mesmo status da mulher branca e, sobretudo, a possibilidade de constituir família será praticamente inexistente, não apenas com o homem branco, mas também com o homem negro. Isso reforça o entendimento de Sueli Carneiro e de Lélia Gonzalez de que o mito da democracia racial é um elemento fundamental não apenas para as hierarquias de raça, mas também de gênero.

A partir da reflexão sobre a desigualdade intragênero, Carneiro (2003a) defende que para as mulheres negras, impõe-se uma perspectiva feminista na qual o gênero seja uma variável teórica, mas que não pode ser separada de outros eixos de opressão. É preciso considerar o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em nossa sociedade. Ao mesmo tempo, a autora (2003b) reitera que, de um lado, a formulação clássica feminista possui uma identidade branca e ocidental; de outro, ela mostra-se insuficiente – do ponto de vista teórico e prático político – para integrar as diferentes expressões do feminismo construídos em sociedades multirraciais e pluriculturais. Assim, a luta é pelo combate às desigualdades entre gênero e intragênero, adotando uma perspectiva feminista negra, que está relacionada à condição específica de ser mulher, negra e, em geral, pobre. Também deve-se mencionar que tal perspectiva é inseparável da luta antirracista. Em síntese, a autora explica que:

Enegrecer o feminismo brasileiro tem significado, concretamente, demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; introduzir a discussão sobre as doenças étnico/raciais ou as doenças com maior incidência sobre a população negra como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras (CARNEIRO, 2003a, s/p).

A ideia trazida por Carneiro sobre a necessidade de demarcar o lugar da mulher negra dentro do movimento feminista aproxima-se do debate sobre a interseccionalidade das formas de opressão, ao lembrar que as mulheres negras estão submetidas, simultaneamente, a formas de opressão provocadas por questões de gênero, de classe, de raça, entre outras. Assim, por exemplo, pode-se mencionar que há uma clara aproximação entre a perspectiva dessa autora e a proposta de Crenshaw (2002), que usa o conceito de interseccionalidade para conceituar a associação de sistemas múltiplos de subordinação. Crenshaw recorre à metáfora das avenidas para explicar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre os diferentes eixos de subordinação. Esses eixos, que se sobrepõem e cruzam-se, podem ser vistos como avenidas que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos e provocam dinâmicas de desempoderamento. É justamente esse desempoderamento que justifica a necessidade de ainda enegrecer o feminismo, tal como será discutido no item a seguir.

Por que ainda é preciso enegrecer o feminismo?

Ao longo de sua história, o Movimento de Mulheres Negras brasileiro foi obtendo importantes conquistas. A construção de uma perspectiva internacionalista de luta, como aponta Carneiro (2003), é uma das razões para que as questões relativas à mulher negra tenham ganhado maior espaço na agenda política. Como explicam Prá e Epping (2012) com a realização de conferências internacionais e a assinatura de tratados, acordos, protocolos ou convenções, tornou-se possível encontrar formas de apoio para confrontar o problema das desigualdades de gênero, tanto em países desenvolvidos quanto naqueles em desenvolvimento. O Movimento de Mulheres Negras teve participação ativa nessas Conferências Internacionais. Já na década de 1980, como informa Ribeiro (1995), no processo de preparação para a III Conferência Mundial das Mulheres, realizada pela ONU em 1985 em Nairobi, o Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo, que possuía uma Comissão da Mulher Negra, construiu um diagnóstico sobre a situação da mulher negra no país. O estudo elaborado por Sueli Carneiro e Thereza Santos apresentou uma série de dados socioeconômicos para demonstrar a realidade vivenciada pela população negra em geral e pela mulher negra em particular. Além disso, tratou de apontar caminhos para a superação dessas desigualdades. Na preparação para a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (realizado no Cairo, em 1994), ainda de acordo com Ribeiro, o Geledés – Instituto da Mulher Negra – organizou o Seminário Nacional de Políticas e Direitos Reprodutivos das Mulheres Negras. A partir desse seminário, as propostas em relação à temática foram unificadas e expressas na Declaração de Itapecerica da Serra das Mulheres Negras. No documento declarou-se que:

Cabe ao Estado a tarefa garantir as condições necessárias para que os brasileiros, as mulheres, e em particular as mulheres negras, possam exercer a sua sexualidade e os direitos reprodutivos, controlando a sua própria fecundidade para ter ou não ter os filhos que desejam, garantindo acesso a serviço de saúde de boa qualidade, de atenção à gravidez, ao parto e ao aborto (RIBEIRO, 1995, p. 454).

As mulheres negras levaram para a conferência a ideia de que “em tempos de difusão do conceito de populações supérfluas, liberdade reprodutiva é essencial para as etnias discriminadas, para barrar as políticas controladoras e racistas” (CARNEIRO, 2003, s/p). Anteriormente, na Conferência de Direitos Humanos de Viena, realizada em 1993, saiu o compromisso, sugerido pelo governo brasileiro, para a realização de uma conferência mundial sobre o racismo, antes dos anos 2000. Carneiro pontua que, por um lado, a Declaração de Viena avança na compreensão da universalidade dos direitos humanos das mulheres, mas, por outro, ficou ausente uma referência explícita à violação dos direitos da mulher baseada na discriminação racial. No que diz respeito a esse ponto, avanços concretos apareceram na IV Conferência da Mulher, realizada pela ONU em 1995. Carneiro destaca que, devido ao esforço das mulheres nessa conferência, o Brasil, pela primeira vez na diplomacia internacional, obstruiu uma reunião do G-77 (grupo dos países em desenvolvimento) por discordar da retirada do termo étnico-racial do Artigo 32 da declaração de Beijing. Era uma questão inegociável para as mulheres negras do Brasil e dos países do Norte. No final, o artigo estabeleceu a necessidade de:

intensificar esforços para garantir o desfrute, em condições de igualdade, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais a todas as mulheres e meninas que enfrentam múltiplas barreiras para seu desenvolvimento e seu avanço devido a fatores como raça, idade, origem étnica, cultural, religião... (CARNEIRO, 2003, s/p).

Tal como pontua Soares (2000), de forma inédita, nos documentos da ONU, foi reconhecido que o racismo é um dos empecilhos para a igualdade de oportunidades.

Além de uma maior sensibilização para a questão das mulheres negras na agenda política, deve-se ter em conta que a relação entre o Movimento de Mulheres Negras e o Movimento Feminista foi-se transformando. Ribeiro (1995) considera que, dos anos 1970 aos 1990, apesar das dificuldades, houve avanços no que refere à relação das mulheres negras com o Movimento Feminista. Segundo a autora, as análises dos processos históricos vivenciados pela população negra ainda não são totalmente absorvidas de modo eficaz, mas ampliaram-se as possibilidades de diálogo, parcerias e ações conjuntas. O Movimento Feminista mostrou-se mais atento ou vigilante às ações das mulheres negras, passando a qualificar seu discurso e prática e, também, incluindo a questão étnica e racial como importantes na luta por democracia e por cidadania.

Contudo, apesar desses elementos supracitados, a situação socioeconômica das mulheres negras ainda é alarmante, mostrando que a agenda de mudanças proposta por Carneiro (2003a,2003b) ainda permanece atual. Assim, por exemplo, quando olhamos indicadores de pobreza, não só a desigualdade racial, mas também a desigualdade intragênero são expressivas. O indicador de pobreza monetária, que de acordo com o IBGE (2021) diz respeito somente à insuficiência de rendimento das famílias, revela que as taxas de extrema pobreza e pobreza entre pretos e pardos são mais do que o dobro daquelas observadas para a população branca: 7,4% dos pretos e pardos são extremamente pobres (contra 3,5% dos brancos) e 31% eram pobres (contra 15,1% dos brancos). As mulheres pretas ou pardas são as que estão em situação mais desvantajosa, quando observamos esse indicador: 7,5% são extremante pobres (contra 3,7% das mulheres brancas) e 31,9% são pobres (contra 15,5% das mulheres brancas). De acordo com a mesma pesquisa, domicílios que têm mulheres pretas ou pardas como responsáveis, sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos, são os que apresentam maior incidência de pobreza. Nesses arranjos domiciliares, 17,3% dos moradores tinham rendimento domiciliar per capita inferior a US$1,90, o que os classifica como extremamente pobres e, em 57,9%, o rendimento era inferior a US$5,50, podendo ser considerados pobres. No entanto, na literatura e nos tratados internacionais, a pobreza é reconhecida pela sua multidimensionalidade. Desse modo, tendo-se por referência o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – ODS 1 – da Agenda 2030 da ONU são recomendados para monitoramento da situação da pobreza não apenas indicadores monetários, mas também de cobertura de proteção social, de acesso a recursos econômicos e a serviços e bens sociais desmercantilizados, tais como educação, saúde e saneamento (IBGE,2021). Sem nos determos em todos esses indicadores, cabe ressaltar alguns fatores da desigualdade intragênero na área da saúde. Em 2017-2018, conforme estimativas da Pesquisa de Orçamentos Familiares - POF do IBGE, apenas 26% da população tinha acesso a plano de saúde privado. Entre as mulheres pretas ou pardas, o percentual era de 18,3%, já entre as brancas tem-se 37,1. Também de acordo com a pesquisa do IBGE (2021), quem tinha plano de saúde tendeu a declarar em maior proporção um padrão de vida familiar “bom” (58,8%). São também as mulheres negras que apresentam as maiores restrições no acesso a serviços de saúde, conforme a POF: em 2017/2018, 22,5% dos arranjos familiares formados por mulheres negras sem cônjuge e com filhos de até 14 anos de idade sofreram restrição a medicamentos e 35,6% a serviços de saúde. Para se ter uma ideia das distâncias sociais, o percentual de arranjos nas mesmas condições que tem como responsáveis mulheres brancas apresentaram 17,5% de restrição a medicamentos e 30,1% a serviços de saúde, revelando assim uma diferença de aproximadamente 5 pontos percentuais para ambos os indicadores. Para completar esse quadro, em 2019, 7,3% mulheres pretas ou pardas estavam sem realizar uma consulta médica há mais de dois anos ou nunca tinham realizado uma consulta (contra 5,5 das mulheres brancas).

Soares (2000) assinala que a questão da pobreza pesa desproporcionalmente sobre as mulheres negras, uma vez que estas sofrem discriminação baseada tanto no gênero quanto na raça. Soma-se a isso o fato de que para essas mulheres, muitas vezes responsáveis pelos cuidados da família, a deterioração dos serviços públicos (saúde, escola, creche) incide de modo direto sobre sua qualidade de vida, ou seja, são as mulheres negras as mais atingidas pela falta de políticas públicas adequadas. Ao mesmo tempo, os programas sociais têm importância crucial para essa camada da população. De acordo com o IBGE (2021), a concessão dos benefícios de programas sociais em 2020 permitiu que as desigualdades não se ampliassem no período de crise, sobretudo, entre aqueles que estão na extrema pobreza. Sem o suporte de renda de programas sociais, mulheres pretas e pardas alcançariam uma taxa de pobreza de 42,4% (com o benefício, a taxa ficou em 31,9%) e de extrema pobreza de 17,7% (com o benefício, ficou em 7,5%).

Ainda para falar da desigualdade intragênero, é preciso mencionar a situação da mulher negra no mercado de trabalho. Um dos primeiros desafios que elas enfrentam é conseguir fazer parte dessa esfera social. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNADC), no primeiro trimestre desse ano, das 48,8 milhões de mulheres negras em idade de trabalhar, pouco mais da metade (51,5%) estava no mercado de trabalho, procurando emprego ou ocupada.

O percentual de mulheres brancas é ligeiramente superior, ficando em 54%. Já o percentual de homens brancos e negros é o mesmo, ficando em 72,2%. Além das desvantagens na taxa de participação, as mulheres negras são as mais atingidas pelo desemprego. No primeiro trimestre desse ano, mais de 4,1 milhões de mulheres negras estavam desempregadas, o que equivale a uma taxa de desemprego de 16,3% (contra 10,5% das mulheres brancas e dos homens negros; e 7,4% dos homens brancos). Outro dado importante é a taxa de informalidade, já que trabalhadores nessa situação costumam ter menos acesso à proteção social. No primeiro trimestre de 2022, 43,3% das mulheres negras estavam em trabalhos informais. Essa taxa só é menor que a dos homens negros que estava em 46,6%; por outro lado, a população branca apresentava taxas menores, sendo de 34,8% para os homens brancos e de 32,7% para as mulheres brancas. Deve-se acrescentar também que as mulheres negras estão inseridas majoritariamente na base da estrutura ocupacional. Um exemplo disso é a concentração desse grupo no trabalho doméstico. Ainda que esteja ocorrendo uma diminuição de pessoas ocupadas no trabalho doméstico, conforme Lima e Prates (2019), se focalizarmos somente a população negra (preta e parda), houve um aumento significativo entre 2002 e 2012 de pessoas inseridas nesse tipo de ocupação, passando de 56,7% para 64%. Esse percentual ainda se mantém, pois atualmente, 65% das trabalhadoras domésticas do Brasil são negras. Além de estar sobre representadas nessa atividade que é desvalorizada socialmente, esse grupo apresenta outras desvantagens em relação à mulher branca. Em trabalho anterior (MELLO,2021b), demonstramos que as mulheres brancas estão mais bem posicionadas no trabalho doméstico, tendo maior inserção em atividades como atendentes de creche ou acompanhantes de idosos; já as mulheres negras se encontram em maior proporção como trabalhadoras domésticas em geral. Outro dado importante é que as mulheres brancas têm vantagem na obtenção do vínculo de trabalho formal (carteira de trabalho assinada), o que lhes garante maior acesso a direitos e proteção social e, também, melhores rendimentos. Quanto a esse último critério, em qualquer uma das regiões do país, as mulheres brancas que estão inseridas no trabalho doméstico possuem rendimento superior ao das mulheres negras. O privilégio branco é inquestionável. Ao mesmo tempo, tal como pontua Biroli (2018), as mulheres pretas, em comparação às brancas e aos homens brancos e negros, devido ao racismo estrutural e à organização social desigual e capitalista, apresentam trajetórias profissionais mais marcadas por processos de exploração e opressão.

Essa inserção desvantajosa tem impacto nos rendimentos das mulheres negras. Os quatro grupos populacionais – homens brancos, homens negros, mulheres brancas e mulheres negras – tiveram crescimento real dos rendimentos entre 2012 e 2020. As diferenças de rendimento entre os grupos também diminuíram ao longo do tempo. No entanto, as mulheres negras ainda apresentam os menores rendimentos médios. No primeiro trimestre de 2022, as mulheres pretas e pardas ganhavam o equivalente a 62% dos rendimentos das mulheres brancas e amarelas e menos da metade que os homens brancos. Ao longo da última década, ainda que as desigualdades tenham diminuído, os avanços foram tímidos, pois em 2012, as mulheres negras recebiam 60% dos rendimentos das mulheres brancas, ou seja, o ganho foi de apenas 2 pontos percentuais em 2022. Já na comparação com os homens brancos, o ganho foi um pouco maior, pois o percentual passou de 41% em 2012 para 47% em 2022. De qualquer modo, foram as mulheres brancas as que mais conseguiram diminuir as desigualdades nesse quesito. Em 2012 elas recebiam o equivalente a 69% dos rendimentos dos homens brancos; em 2022 esse percentual subiu para 76%. Deve-se considerar que mesmo nas áreas em que a mulher negra predomina, ela sofre desvantagens em relação ao rendimento, tal como foi demonstrado ao abordarmos o trabalho doméstico.

Os dados sobre a desigualdade intragênero no mercado de trabalho mostram o que já foi apontado alhures pelas mulheres negras (por exemplo, Gonzalez, 2020), que é a coexistência da divisão sexual do trabalho com a divisão racial. Desse modo,

[...] se a divisão sexual do trabalho configurou papéis à mulher que o movimento feminista busca questionar e redefinir, a divisão racial do trabalho instaura papéis e funções diferenciadas no interior do grupo feminino, onde a avaliação dos custos e benefícios auferidos expressa os níveis diferenciados de exploração e opressão que cabem às mulheres dos diferentes grupos raciais” (CARNEIRO apud SOARES, 2000, p. 266).

Essa situação de vulnerabilidade socioeconômica das mulheres negras, a nosso ver, é apenas mais uma faceta do genocídio da população negra. Abdias do Nascimento (2016), parte inicialmente de duas definições de genocídio:

O uso de medidas deliberadas e sistemáticas (como morte, injúria corporal e mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimento), calculadas para o extermínio de um grupo racial, político ou cultural ou para destruir a língua, a religião ou a cultura de um grupo (WEBSTER’S THIRD NEW INTERNATIONAL DICTIONARY OF THE ENGLISH LANGUAGE apud NASCIMENTO, 2016, p. 15).

A outra definição é a seguinte:

Genocídio s.m. (neol.). Recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas instituições políticas, sociais, culturais, linguisticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos. Ex.: perseguição hitlerista aos judeus, segregação racial etc. (DICIONÁRIO ESCOLAR DO PROFESSOR apud NASCIMENTO, 2016, p. 15).

Pode-se perceber que no entendimento do autor, o genocídio não se resume somente à eliminação física ou à morte letal, tendo também uma dimensão que poderíamos relacionar a formas de morte social. Nascimento identifica duas estratégias de genocídio contra a população negra. A primeira está relacionada ao processo de miscigenação, que está fundado na exploração sexual da mulher negra. Como explica o autor, a mancha negra da população brasileira seria resolvida pela eliminação da população afrodescendente, pois o crescimento da população mulata levaria ao desaparecimento da raça negra e ao progressivo clareamento da população do país. A política de embranquecimento estava estruturada de forma a limitar de qualquer modo o crescimento da população negra, tendo a política imigratória do pós-abolição também um papel crucial nesse processo. A segunda estratégia de genocídio apontada pelo autor reside no embranquecimento cultural. Segundo Nascimento, as classes dominantes brancas têm à sua disposição os órgãos de poder (governo, leis, polícia, capital, forças armadas) e meios de controle social e cultural, tais como o sistema educativo, os meios de comunicação de massa e a produção literária. No seu entendimento, todos esses instrumentos são utilizados para destruir o negro tanto como pessoa quanto como criador e condutor de uma cultura própria. O único privilégio concedido aos negros é o de se tornarem brancos por dentro e por fora. E ainda, esse imperialismo da brancura e, também, do capitalismo, responde a apelidos bastardos como assimilação, aculturação, miscigenação (2016, p. 111). É interessante notar que Nascimento sugere que o genocídio seja pensado historicamente, partindo: Da classificação grosseira de negros como selvagens e inferiores, ao enaltecimento das virtudes da mistura de sangue como tentativa de erradicação da “mancha negra”; da operatividade do “sincretismo” religioso à abolição legal da questão negra através da Lei de Segurança Nacional e da omissão censitária [...] a história não oficial do Brasil registra o longo e antigo genocídio que se vem perpetrando contra o afro-brasileiro (NASCIMENTO, 2016, p. 111).

Seguindo essa intuição, Elisa Nascimento (2016), no posfácio do livro, argumenta que o tema do genocídio segue atualíssimo. A autora fala, sobretudo, da violência letal, relembrando a matança diária de centenas de pessoas que têm sido tema não só de comissões parlamentares, mas também de campanhas de organizações de direitos humanos, tal como a Anistia Internacional. Ao mesmo tempo, tem-se várias formas de mobilização da população negra para se contrapor a essa violência, podendo ser citado como exemplo o movimento “Reaja ou Será Morto! Reaja ou Será Morta! Os elementos apontados por Elisa Nascimento ajudam-nos a pensar na passagem das formas de assassinato indireto para o assassinato direto. A descartabilidade da vida da população negra sempre foi uma constante em nossa história, contudo no período da escravidão esse grupo tinha um valor relativo que estava associado a sua condição de mercadoria, já a partir do pós-abolição, esse fator já não está mais presente e escancara-se o projeto genocida em relação aos negros. As formas indiretas de provocação da morte letal e social – que podem ser relacionadas as duas estratégias apontadas por Abdias do Nascimento – nos últimos tempos tornam-se cada vez mais explícitas.

O argumento que se quer trazer é que nesse momento o genocídio da população negra materializa-se, principalmente, de duas maneiras: a) através da submissão a condições de vida subumanas; b) e, por meio da exterminação física. Já falamos neste artigo sobre a pobreza a qual estão submetidas as mulheres negras. Não obstante, é preciso sublinhar que a pobreza relaciona-se a outros problemas e o que queremos destacar aqui é o processo de encarceramento em massa que está ocorrendo com essas mulheres, que provoca a sua morte social. De acordo com Germano et al. (2018), desde os anos 2000, o encarceramento de mulheres vem crescendo em um ritmo alarmante, não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro. Proporcionalmente, a população carcerária feminina está crescente de forma mais rápida que a população carcerária masculina. Tendo por referência os dados da 2ª edição do InfoPen Mulheres, as autoras afirmam que o número de mulheres encarceradas aumentou em torno de 656%, sendo que até junho de 2016 havia 42 mil mulheres presas e no final do mesmo ano chegou-se a 44.721 detentas. Contudo, o que é mais importante sublinhar é o perfil das mulheres privadas de liberdade em nosso país. Em primeiro lugar, são mulheres jovens: 27% têm idade entre 18 e 24 anos; e 23% têm idade entre 25 e 29 anos. Em segundo lugar, são principalmente as mulheres negras que estão sendo encarceradas. Essas representam 62% das mulheres privadas de liberdade no Brasil. Importante destacar que em 2016, as mulheres negras formavam 54% da população feminina no Brasil, o que escancara a representação desse grupo no sistema carcerário. Se analisarmos a distribuição da população prisional de acordo com a raça/cor por unidade de federação, a situação ainda é mais alarmante em algumas localidades. No Acre, 97% das mulheres privadas de liberdade são negras; esse percentual fica em 94% no Ceará e 90% no Maranhão, no Piauí e em Tocantins. Novamente, é preciso reforçar que em todas essas localidades, o percentual de mulheres negras encarceradas supera o de mulheres negras na população total. O encarceramento é uma forma de morte social tanto em razão das condições em que as mulheres presas cumprem a pena, em geral, sem qualquer observância de direitos humanos básicos, mas também pelas dificuldades de reinserção social, após a vida no cárcere.

Já o extermínio físico das mulheres negras pode ser constatado de várias maneiras. Um deles é a violência letal provocada pela polícia que tem atingido a população negra de modo absurdamente desproporcional. De acordo com pesquisa realizada pela Rede de Observatórios de Segurança, a cada quatro horas uma pessoa negra é morta em ações policiais na Bahia, no Ceará, no Piauí, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Pernambuco. Entre as 2.653 mortes provocadas pela polícia, em que consta a informação racial nos seis estados da Rede, 82,7% delas eram pessoas negras. O Rio de Janeiro é o estado recordista em mortes de pessoas negras em ações policiais. Nesse estado, dos 1.092 mortos que tiveram a cor/raça informada, 939 eram pessoas negras. A pesquisa também revela que nos seis estados mencionados, a proporção de negros mortos pela polícia é superior à proporção desse grupo na população nos respectivos estados, o que revela o racismo que estrutura as ações policiais. Apesar de nem sempre as pesquisas sobre violência policial apresentarem recorte por gênero, pode-se afirmar que as mulheres negras não estão imunes à ação violenta da polícia. Carvalho (2022), para driblar a falta de dados sobre as mulheres, recorreu à análise de notícias veiculadas na mídia como fonte de informação. A autora coletou 250 notícias na plataforma Google News entre 20 de janeiro de 2022 e 12 de março de 2022. Nesse corpus, foram identificados: 9 reportagens sobre mulher negra agredida em ação policial; 39 reportagem sobre mulher negra espancada por policiais; 8 reportagens sobre mulher negra morta por policial e 21 reportagens sobre mulher negra vítima de bala perdida. Assim, percebe-se que, do total de 250 reportagens, tem-se a menção explícita às mulheres negras em 30%. Deve-se considerar que nem todas as reportagens permitem a identificação racial.

Ainda sobre a eliminação física das mulheres negras, pode-se citar os dados sobre homicídio e feminicídio desse grupo. Gonçalves (2022), tendo por referência o Mapa da Violência, informa que houve um aumento de 54% nos homicídios de mulheres negras, sendo que o número passou de 1.864 em 2003 para 2.875 para 2013. Em sentido oposto, nesse mesmo período, a quantidade anual de homicídios das mulheres brancas caiu 10%, ficando em 1.676 em 2013. Ressalta-se que o número de mulheres brancas mortas em 2013 é inferior ao de mulheres negras mortas em 2003. A autora também relata que os dados apresentados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 revelam que nos anos de 2017 e 2018 os crimes de feminicídio correspondem a 29,6% das mortes que têm mulheres como vítimas fatais. Novamente, têm-se as mulheres negras como vítimas preferenciais, pois entre aquelas que perderam a vida em razão do feminicídio, 61% são negras, contra 38,5% das brancas, 0,3% das indígenas e 0,2% das amarelas, informa Gonçalves. Um dado revelador apontado pelo estudo de Gonçalves é que as mulheres negras são mais assassinadas na via pública e não tanto no ambiente doméstico, o que indica a limitação do alcance das atuais políticas de combate à violência doméstica, quando se trata de mulheres negras.

O que os dados apresentados nesta etapa demonstram é algo já apontado por Carneiro (2005): a negritude está inscrita sob o signo da morte. Isso se torna explícito na análise das distinções que se apresentam no processo nascer-adoecer-morrer ou simplesmente no processo viver-morrer de negros e brancos na sociedade brasileira. O que nos faz argumentar sobre a atualização do genocídio, ainda recorrendo a Carneiro (2005, p 76), é a sua afirmação de que “onde não há para o dispositivo de racialidade interesse de disciplinar, subordinar ou eleger o segmento subordinado da relação de poder construída pela racialidade, passa a atuar o biopoder como estratégia de eliminação do Outro indesejável”. Em resumo, a autora assevera que branquitude e negritude detêm condicionantes diferenciados quanto ao viver e ao morrer.

Considerações finais

As mulheres da minha geração compreenderam o sentido das palavras liberdade e igualdade em função da sede que a ausência de liberdade e igualdade nos provocou (CARNEIRO apud FRATESCHI, 2021, p. 6).

Neste artigo procurou-se resgatar as críticas principais que Sueli Carneiro dirige ao Movimento Feminista hegemônico. Interessou-nos, sobretudo, resgatar a sua proposta de enegrecer o feminismo que, entre outros elementos, destaca-se pela ênfase na necessidade de demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial possui na configuração da sociedade em diferentes âmbitos.

Como apontado ao longo do texto, a relação entre o Movimento de Mulheres Negras e o Movimento Feminista foi-se transformando no decorrer dos anos. Contudo, uma afirmação feita por Ribeiro (1995) parece ser ainda atual: a questão racial tem ficado a cargo das mulheres pretas como se apenas elas fossem marcadas pela raça. Ribeiro, do mesmo modo como Sueli Carneiro, acentua que é necessário compreendermos que a raça, assim como o gênero, constituem relações de poder e, portanto, determinam tanto a vida de mulheres e homens pretos quanto a vida de mulheres e homens brancos. Isso por si só já é uma razão para enegrecer o feminismo. No entanto, a motivação para enegrecer o feminismo foi buscada através da colocação em evidência da manutenção da desigualdade intragênero, que pode ser atestada por diferentes indicadores, tais como aqueles relativos à pobreza e a forma de inserção e participação no mercado de trabalho. Tendo por referência qualquer um desses domínios, pode-se constatar de forma inquestionável o privilégio branco e o fato de que tal, como já assinalado por Ribeiro, as conquistas do Movimento de Mulheres privilegiam as mulheres brancas em detrimento das negras.

Acima de tudo, o argumento que sobressai a partir dos dados apresentados é que é preciso enegrecer o feminismo para agir contra o genocídio da população negra. Como argumenta Carneiro (2005, p. 78), a racialidade inscreve a branquitude no registro do vitalismo e a negritude no signo da morte. Mostrou-se que atualmente, o genocídio contra a população negra, destacando-se o caso das mulheres, materializa-se tanto através da submissão a condições de vida subumanas (pobreza e encarceramento em massa, por exemplo) quanto por meio da exterminação física (violência letal provocada pela polícia e feminicídio). Assim, tem-se a conjugação da morte social com a morte letal, ambas provocadas pela articulação de múltiplas formas de opressão relacionadas a questões de gênero, classe e raça. É nesse contexto que o pensamento de Sueli Carneiro torna-se absolutamente relevante. Uma das ideias principais da autora que precisa ser resgatada é a de que grupos de mulheres negras possuem demandas específicas que, essencialmente, não podem ser tratadas de forma exclusiva sob a rubrica da questão de gênero, se essa não levar em consideração as especificidades que definem o ser mulher (CARNEIRO, 2003b). Sem sombra de dúvidas, a opressão de gênero pesa sobre as mulheres, mas como venho argumentando (MELLO, 2021a) pode-se falar em primazia da raça no debate sobre interseccionalidade. Em Carneiro, essa percepção parece estar explicita quando a intelectual afirma que “a “variável” raça produziu gêneros subalternizados, tanto no que toca a uma identidade feminina estigmatizada (das mulheres negras), como a masculinidades subalternizadas (dos homens negros) com prestígio inferior ao do gênero feminino do grupo racialmente dominante (das mulheres brancas)” (2003b, p. 119). Assim, a autora argumenta que o racismo rebaixa o status dos gêneros, instituindo como primeiro degrau de equalização social a igualdade intragênero. Além disso, como já mencionado neste artigo, Carneiro também considera que o racismo superlativa os gêneros através de privilégios oriundos da exploração e exclusão dos gêneros subalternos.

Por fim, cumpre mencionar que há claramente no pensamento de Sueli Carneiro uma proposta de transformação radical da realidade que, como não podia deixar de ser, passa pela superação do racismo. Para a autora, o racismo é, ao mesmo tempo, entrave para a democracia, para a realização da condição humana e, também, para a implantação da “justiça igualitária no Brasil” (CARNEIRO apud FRATESCHI, 2021, p. 6). Interessa notar que a ideia de radicalização de justiça social do pensamento feminista negro, tal como o de Sueli Carneiro, tem um potencial transformador abrangente e não somente para um grupo, daí a sua suprema importância.

Referências

BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades: Limites da Democracia no Brasil. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018. 227p.

CARNEIRO, Sueli. A Organização Nacional das Mulheres Negras e as Perspectivas Políticas. In: Mulher Negra. São Paulo: Cadernos Geledés, p. 13-18. 1993a. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2015/05/Mulher-Negra.pdf. Acesso em 10 nov. 2022.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. 2003a. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/375003/mod_resource/content/0/Carneiro_Feminismo%20negro.pdf. Acesso em 10 maio 2022.

CARNEIRO, Sueli. Identidade Feminina. In: Mulher Negra. São Paulo: Cadernos Geledés, p. 9 – 12. 1993b. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2015/05/Mulher-Negra.pdf. Acesso em 10 nov. 2022.

CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Estudos Avançados, 17 (49), p. 117 – 132, 2003b. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/Zs869RQTMGGDj586JD7nr6k/. Acesso em 05 nov. 2022.

CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em: https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf. Acesso em 30 out. 2022.

CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane Abdon. O Poder Feminino no Culto aos Orixás. In: Mulher Negra. São Paulo: Cadernos Geledés, p. 19 – 35. 1993. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2015/05/Mulher-Negra.pdf. Acesso em 10 nov. 2022.

CARVALHO, Daiane da Silva. “Respeita a Polícia”: A Violência Policial como uma Manifestação da Violência contra Mulheres no Brasil. 98f. Monografia (Curso de Bacharelado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2022. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/243142. Acesso em 04 dez. 2022.

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, ano 10, p. 171- 188, 2002. Disponível: https://www.scielo.br/j/ref/a/mbTpP4SFXPnJZ397j8fSBQQ/abstract/?lang=pt. Acesso em 20 out. 2022.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975 – 1976). 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 380p.

FRATESCHI, Yara. O pensamento feminista negro de Sueli Carneiro para além dos reducionismos de classe e gênero. Blog Boitempo, 22 de outubro de 2021. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2021/10/22/o-pensamento-feminista-negro-de-sueli-carneiro-para-alem-dos-reducionismos-de-classe-e-genero/. Acesso em 01 de nov. 2022.

GERMANO, Idilva; MONTEIRO, Rebeca; LIBERATO, Mariana. Criminologia Crítica, Feminismo e Interseccionalidade na Abordagem do Aumento do Encarceramento Feminino. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 38, n. 2, p. 27 -43, 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/MHtjGhJrYXTLYzWmS6X4W6Q/abstract/?lang=pt. Acesso em 10 out. 2022.

GONÇALVES, Suelen Aires. Vidas Passíveis de Luto? Mortes de Mulheres Negras e Interseccionalidades de Gênero, Raça e Classe. Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós-graduação em Sociologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2022.

GONZALEZ, Lélia. O Movimento Negro na Última Década. In: GONZAZEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1. ed. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982. p. 9 -66.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (ORG). Por um feminismo afro-latino-americano. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p.139 – 150.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS, 1984. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf Acesso em: 15 mar. de 2022.

hooks, bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 16, p. 193- - 210, janeiro – abril, 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcpol/a/mrjHhJLHZtfyHn7Wx4HKm3k/?lang=pt. Acesso em 15 de maio 2022.

Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN Mulheres – 2ª Edição. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional, 2017. Disponível em: https://conectas.org/wp-content/uploads/2018/05/infopenmulheres_arte_07-03-18-1.pdf. Acesso em 01 ago. 2022.

LIMA, Márcia; PRATES, Ian. Emprego doméstico e mudança social. Reprodução e heterogeneidade na base da estrutura ocupacional brasileira. Tempo Social, v. 31, n. 2, p. 149-171, may-aug. 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ts/a/mZtFVwnF8twnKKwnD9FhZnG/?lang=pt. Acesso em 10 maio 2022.

MELLO, Luciana Garcia. O lugar da raça e do racismo no debate sobre interseccionalidade. In: SILVA, Márcia Alves. Coisas D’Generus: produções do Núcleo de Estudos Feministas e de Gênero. v. 2, 1. ed. Porto Alegre: Editora Fi, 2021a. p. 114-135.

MELLO, Luciana Garcia. O privilégio da cor no trabalho doméstico: inserção e participação de mulheres brancas e negras. In: 20º Congresso Brasileiro de Sociologia, 2021b, Para. Anais do 20º Congresso Brasileiro de Sociologia. Pará, 2021b, p. 1-22. Disponível em: https://www.sbs2021.sbsociologia.com.br/atividade/view?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozNToiYToxOntzOjEyOiJJRF9BVElWSURBREUiO3M6MjoiMTYiO30iO3M6MToiaCI7czozMjoiYzA5ZTM2ZjJhNDE4ZjI0MmUwNzliZDYyN2UwNjAwNjkiO30%3D&ID_ATIVIDADE=16&impressao&printOnLoad. Acesso em: 01 de fev. 2022.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3. ed. São Paulo: Perspectivas, 2016. 232p.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. O Genocídio no Terceiro Milênio. In: NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016. p. 209-218.

PRÁ, Jussara Reis; EPPING, Léa. Cidadania e feminismo no reconhecimento dos direitos humanos das mulheres. Estudos Feministas, 20 (1), p. 33 – 51, janeiro – abril, 2012. Disponível em https://www.scielo.br/j/ref/a/s3wGPJ9MM33JKRHPn5MW6CS/?lang=pt. Acesso em: 04 jun. 2022.

RIBEIRO, Matilde. Mulheres negras brasileiras: de Bertioga a Beijing. Estudos Feministas, ano 3, n. 2, p. 446 – 457, 1995. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16459. Acesso em 01 dez. 2022.

ROLAND, Edna. O movimento de mulheres negras brasileiras: desafios e perspectivas. In: GUIMARÃES, Antônio S.; HUNTLEY, Lynn. Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 237-256.

Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, 2021. IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Rio de Janeiro: IBGE, 2021. 206p. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?viewn=detalhes&id=2101892. Acesso em 1 out. 2022.

SOARES, Vera. O verso e o reverso da construção da cidadania feminina, branca e negra no Brasil. In: GUIMARÃES, Antônio S.; HUNTLEY, Lynn. (Orgs.) Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 257-282.

Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
HMTL gerado a partir de XML JATS4R