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Possibilidades pedagógicas para uma educação antirracista a partir do filme Medida Provisória
Práticas Educativas, Memórias e Oralidades, vol. 5, núm. 1, pp. 1-17, 2023
Universidade Estadual do Ceará

Artigo

Práticas Educativas, Memórias e Oralidades
Universidade Estadual do Ceará, Brasil
ISSN-e: 2675-519X
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 5, núm. 1, 2023

Recepção: 19 Julho 2023

Aprovação: 20 Setembro 2023

Resumo: Este trabalho apresenta o cinema negro como importante ferramenta pedagógica para o resgate e a valorização da História e da Cultura Afro, de acordo com a Lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Apresenta o filme Medida Provisória (2022), escrito e dirigido por Lázaro Ramos, como possibilidade didática. Faz uma revisão bibliográfica a partir dos pressupostos teóricos de Abdias Nascimento (1840) e Frantz Fanon (2008), além de pautar-se em três artigos recentes publicados pelas Revistas Educação & Formação e Práticas Educativas, Memórias e Oralidade da Universidade Estadual do Ceará – UECE. Discute a necessidade de ruptura do pensamento colonizador predominante nas escolas brasileiras e incentiva a educação antirracista.

Palavras-chave: Cinema negro, Educação, Filme Medida Provisória, Racismo.

Abstract: This work presents black cinema as an important pedagogical tool for the recovery and appreciation of Afro History and Culture, in accordance with Law No. 10,639, of January 9, 2003. It presents the movie Executive Order (2022), written and directed by Lázaro Ramos, as a didactic possibility. It makes a bibliographical review based on the theoretical assumptions of Abdias Nascimento (1840) and Frantz Fanon (2008), in addition to basing itself on three recent articles published by the Revistas Educação & Formação, and Educative Practices, Memories and Orality of the State University of Ceará – UECE. It discusses the need to break with the predominant colonizing thinking in Brazilian schools and encourages anti-racist education.

Keywords: Black cinema, Education, Executive Order movie, Racism.

1 Introdução

A primeira projeção cinematográfica ocorreu em 1895, quando os irmãos franceses Louis e Auguste Lumière apresentaram um curta-metragem num café parisiense. Desde então, a sétima arte consolidou-se não apenas como forma de entretenimento, mas como manifestação artística e cultural. Um ano depois da exibição francesa, o cinema chegou ao Brasil e, gradativamente, começou a fazer parte da Educação, sobretudo em meados de 1930. Hoje, é entendido como potente instrumento pedagógico, pois vai além de propiciar aulas mais dinâmicas: estimula discussões acerca de pautas sociais urgentes como: preconceitos, desigualdades, fatores ambientais, entre outras. Ou seja,

A produção de uma obra cinematográfica interage diretamente com seu tempo, suas potencialidades e suas intencionalidades. Desde seu surgimento, em fins do século XIX, o cinema tem buscado dialogar com o mundo vivido dos sujeitos, projetando ora a realidade, ora os anseios, ora os devaneios desses indivíduos (SANTOS; JUNIOR; ZOBOLI, 2020, p. 9).

Sabe-se que um dos problemas histórico e culturalmente enraizados na realidade brasileira é o racismo. Os preceitos hegemônicos advindos da colonização e da escravização contaminaram a estrutura do pensamento coletivo, de modo que persistem até hoje. A hostilidade contra os negros está presente no cotidiano, em diversas esferas do corpo social: desde os ambientes esportivos aos escolares e profissionais. Apesar do esforço constante de se negar o problema – afinal, há grupos que se dedicam ao discurso de que não existe racismo no Brasil – a discriminação racial é escancarada amiúde, através de violências verbais, físicas e psicológicas, que nem sempre são noticiadas pelos grandes veículos de comunicação.

Assim, a normalização do preconceito favorece a manutenção de falas e comportamentos agressivos, os quais se introduzem no cotidiano escolar, tendo em vista que a escola é o espaço onde – devido à pluralidade de origens, contextos e valores – os conflitos sociais evidenciam-se repetidamente. Além da tentativa de negação do problema, há um movimento – fortalecido nos últimos anos – que visa a intimidar educadores no que se refere a abordar temas associados à formação humana, alegando que esta é uma responsabilidade exclusiva da família. No entanto, tais posicionamentos ideológicos obtêm um efeito reverso, no sentido de que evidenciam a necessidade de se adotar uma educação antirracista a fim de estabelecer mudanças assertivas e sólidas referentes aos princípios éticos e aos comportamentos que permeiam a sociedade.

Sendo a escola um importante espaço de construção de identidade (CARVALHO; FRANÇA, 2019), é impreterível legitimar o respeito e a valorização das diferenças. A Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, estabelece que

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. (...) Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’. (BRASIL, 2023, grifo do autor)

Apesar de relevante para um salto qualitativo no que diz respeito à adoção de uma educação antirracista, a Lei, se tida como única proposta de solução, mostra-se insuficiente. Embora proponha uma abordagem descolonial, pois “contribui para borrar as fronteiras da identidade negra fixada no passado escravocrata” (SANTOS; JUNIOR; ZOBOLI, 2020, p. 2), na prática, as questões negras ainda são tratadas de maneira fragmentada e dependente de eventos específicos, como ocorre em 20 de novembro – Dia Nacional da Consciência Negra. A ausência de representatividade cotidiana afeta o sentimento de pertencimento de estudantes que, podem encontrar pares no espaço escolar – inclusive no que diz respeito à cor, às origens e aos costumes – mas que, por outro lado, sentem-se desconexos dos temas ensinados em sala de aula.

Diante desse impasse, este artigo apresenta o cinema negro como importante recurso didático para a promoção de uma educação antirracista. A força das representações imagéticas, sonoras e textuais é capaz de sensibilizar o olhar para os entraves historicamente estabelecidos nas relações étnico-raciais brasileiras. Ademais, suscita discussões acerca da representação do corpo negro em diversos espaços, inclusive no cinema nacional, ainda tão repleto de eurocentrismos e visões estereotipadas. Ao se considerar a estética de películas escritas, dirigidas e/ou representadas por negros, resgata-se muitos elementos culturais, gerando o contato e a valorização de quem sempre ficou à margem. Logo, “a escola [...] torna-se um campo fecundo para assistir a filmes, para produzir filmes, para reconstruir histórias e memórias.” (SANTOS; JUNIOR; ZOBOLI, 2020, p. 1) Por conseguinte, este artigo trata do longa-metragem Medida Provisória (2022), dirigido por Lázaro Ramos, como recurso pedagógico que pode mobilizar olhares, discussões e posturas na escola, sobretudo entre estudantes do Ensino Médio, uma vez que a classificação indicativa do filme é para pessoas com idade a partir de 14 anos.

2 Metodologia

A fim de tratar acerca do filme Medida Provisória (2022), adotou-se uma metodologia de pesquisa essencialmente bibliográfica. O texto foi desenvolvido a partir da análise da Lei nº 10.639 e do levantamento de publicações que tratassem dos temas “cinema negro” e “educação”, articulando-os através da reflexão da prática docente e das experiências pessoais com a linguagem cinematográfica. Diante das buscas realizadas em bases como Scientific Eletronic Library Online (SciELO) e Google Acadêmico, encontraram-se literaturas pertinentes, as quais foram selecionadas de acordo com a atualização (preferindo-se, quando possível, trabalhos publicados há, no máximo, 5 anos), aderência ao tema e fundamentação teórica.

Das Revistas Educação & Formação e Práticas Educativas, Memórias e Oralidades, da Universidade Estadual do Ceará - UECE, foram selecionados os artigos: Estratégias de enfrentamento do racismo na escola: uma revisão integrativa (CARVALHO; FRANÇA, 2019), Cinema, educação e africanidades: a memória no documentário Caixa d’água: quilombo é esse? (SANTOS; JUNIOR; ZOBOLI, 2020) e Identidade e relações étnico-raciais na formação escolar (ARAÚJO; SOARES, 2019) para estudo e embasamento teórico. Em seguida, realizou-se uma revisão bibliográfica e fichamento das ideias de Abdias Nascimento (1840), em Quilombismo; Frantz Fanon (2008), em Pele Negra, Máscaras Brancas; Aldri Anunciação (2020), no texto dramatúrgico Namíbia, não! e de Lázaro Ramos (2022), em Diário do Diretor.

Sobre a abordagem do filme, este artigo segue os pressupostos de Penafria (2009) e realiza, primeiramente, uma descrição dos elementos centrais que constituem a obra; depois, reúne tais fatores constitutivos para examinar o conteúdo geral. Dessa forma, expõe a temática do longa, aprofundando-a sob uma perspectiva crítica, articulada com a realidade escolar, partindo da ideia de que a escola possui o dever pedagógico e cidadão de promover concepções antirracistas, contribuindo para o enfrentamento contra práticas discriminatórias associadas, nesse contexto, à cor de pele.

3 Panorama geral sobre o longa-metragem Medida Provisória (2022)

Fanon (2008, p. 35) define um povo colonizado como “todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural”. Ao longo da história brasileira, ficam evidentes, nos traços da herança eurocêntrica, a depreciação e o apagamento das culturas afro, uma vez que os negros são frequentemente caracterizados por seus fenótipos e reduzidos a espaços e a papéis sociais inferiores em relação aos brancos. Estes, por sua vez, sentem-se confortáveis em difundir ideias segregacionistas, num processo de inferiorizar e animalizar pessoas a partir da cor de pele. A seguir, apresenta-se um panorama geral da trama de Medida Provisória (2022), a fim de elucidar e destacar aspectos históricos, políticos e sociais. Num futuro distópico, cidadãos de melanina acentuada (RAMOS, 2022) – como os negros são chamados no enredo – conquistam o direito legal de serem ressarcidos devido aos anos de escravização. No entanto, ao considerar os impactos financeiros, o governo brasileiro logo altera a medida: em vez de receberem uma compensação financeira, os cidadãos negros são enviados para a África – a princípio, voluntariamente; depois, de forma arbitrária. A ideia é tão insensata que chega a ser vista como anedota, entretanto, a história ganha contornos dramáticos, inspirados no racismo cotidiano. Os protagonistas, interpretados por Alfred Enoch, Seu Jorge e Taís Araújo, representam a resistência negra, que luta bravamente para ocupar e firmar o seu pertencimento em território brasileiro, enquanto outros cidadãos de melanina acentuada refugiam-se em afro-bunkers – uma referência aos quilombos – a fim de não serem encontrados pela polícia e pelos agentes do governo. Em determinada cena do filme Medida Provisória (2022), o personagem André, interpretado por Seu Jorge, ironiza a inspetora Isabel Garcéz (Adriana Esteves) – nome em nítida referência à Princesa Isabel, conhecida por ter assinado a Lei Áurea. Ao ouvir a proposta de repatriação para o continente africano, André reforça a pergunta sobre quem irá lustrar os dentes dos cidadãos de melanina acentuada (RAMOS, 2022), referindo-se à animalização ontológica e à objetificação dos negros. Sendo assim, a trama de Medida Provisória (2022) denuncia o racismo cotidiano, estrutural e institucional, através de uma situação aparentemente absurda - não fosse a terrível semelhança com a realidade brasileira.

O longa é uma adaptação cinematográfica da peça teatral Namíbia, não! (ANUNCIAÇÃO, 2020), o que por si só já carrega alguns obstáculos referentes à linguagem. Entretanto, o diretor Lázaro Ramos (2022, p. 8) revela que “adaptar uma história sobre racismo e identidade para os ouvidos do Brasil atual” também configurou muitos desafios. “Aquela peça, que no início se aproximava do teatro do absurdo, começou a ter semelhanças estranhíssimas com o nosso dia em um país rachado. O texto foi ganhando mais relevância e atualidade” (RAMOS, 2022, p. 12).

Para analisar a obra, é importante considerar alguns acontecimentos que cruzam a história do Brasil: o longo processo de escravização de africanos; a Lei n.º 3.353, conhecida como Lei Áurea – a qual não assegurou a ressocialização e a dignidade de pessoas escravizadas; a polarização política que assolou o país nos últimos anos, sobretudo, a partir do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e os anos de gestão de Jair Messias Bolsonaro, marcados por discursos e comportamentos de ódio contra grupos socialmente marginalizados, como os negros.

Além disso, para um olhar mais profundo e crítico acerca do filme, vale notar que a existência de um negro é marcada pela cor, ou seja, a melanina determina o tratamento recebido, independentemente dos esforços de adequação para a realidade do branco. A história de Medida Provisória (2022) ocorre num Brasil distópico e futurista, apesar do alinhamento com o presente. Antônio (Alfred Enoch), um homem negro e advogado, entra com um requerimento de indenização ao Estado pelos anos de escravização. O governo considera o impacto financeiro do pedido e, numa postura antagônica à democracia e ao respeito às diferenças, implementa, num dia 13 de maio, a Medida Provisória 1888, a qual impõe que todos os “cidadãos de melanina acentuada” (ANUNCIAÇÃO, 2020, p. 37) – como são chamados os negros – retornem à África. Supostamente, seria uma forma de reparação pelo fato de os seus ascendentes terem viajado compulsoriamente ao Brasil para serem escravizados. Diante desse cenário, os três protagonistas: Antônio (Alfred Enoch), já mencionado; Capitu (Taís Araújo), mulher negra e médica; André (Seu Jorge), homem negro e jornalista combativo, primo de Antônio, e outros personagens enfrentam episódios de racismo enquanto lutam bravamente para ter garantia de identidade e espaço em território nacional. A resistência demonstrada ao longo da trama relaciona-se às palavras de Fanon sobre esperança:

Desperto um belo dia no mundo e me atribuo um único direito: exigir do outro um comportamento humano. Um único dever: o de nunca, através de minhas opções, renegar minha liberdade. Não quero ser a vítima da Astúcia de um mundo negro. Minha vida não deve ser dedicada a fazer uma avaliação dos valores negros. Não há mundo branco, não há ética branca, nem tampouco inteligência branca. Há, de um lado e do outro do mundo, homens que procuram. Não sou prisioneiro da História. Não devo procurar nela o sentido do meu destino. Devo me lembrar, a todo instante, que o verdadeiro salto consiste em introduzir a invenção na existência. No mundo em que me encaminho, eu me recrio continuamente. (FANON, 2008, p.189,190).

O longa corrobora a necessidade de descolonização: lembra aos negros que jamais devem render-se aos preconceitos dos brancos, mas reafirmar a negritude individual e coletiva, enquanto os brancos precisam entender que não são superiores nem detentores dos modelos ideais de sociedade. Ademais, rompe paradigmas estabelecidos no cinema nacional, como a predominância de atores, diretores, roteiristas e produtores brancos. A Cultura, enquanto instituição, ainda é ocupada, majoritariamente, por classes (e cor) privilegiadas. Dessa forma, Lázaro Ramos explica que no projeto de criação do filme:

As conversas sobre a importância de ter profissionais negros na escrita do roteiro rolavam (...) éramos fundamentais para a autoria do projeto, como criadores de conteúdo e entretenimento negro, artistas de palco e das telas pensando narrativas sob outras perspectivas. (...) Existe a vontade de explorar as histórias da população negra experimentando linguagens. (RAMOS, 2022, p. 15, 16)

Trata-se de um marco no cinema nacional, pois desde o texto e a direção até o elenco e as referências literárias e sonoras, a potência da negritude prevalece. O filme traz visibilidade e representatividade, ao mesmo tempo em que denuncia e combate ao racismo. A partir de agora, este artigo seleciona alguns fragmentos da obra para serem analisados sob uma ótica crítica e articulada aos pensamentos de Frantz Fanon e Abdias Nascimento, numa articulação de cunho pedagógico que visa a incentivar a educação antirracista.

3.1 Possibilidades de trabalho com o filme Medida Provisória (2022) em sala de aula

Quanto aos protagonistas Antônio (Alfred Enoch), Capitu (Taís Araújo) e André (Seu Jorge), é possível notar que fogem do estereótipo de sujeitos marginalizados, tendo em vista que ocupam cargos profissionais de prestígio: advogado, médica e jornalista, respectivamente. O enredo, portanto, propõe uma quebra de expectativa, visto que é comum – no cinema nacional – que negros sejam retratados em contextos periféricos e criminosos. Contudo, as posições sociais das personagens não se mostram suficientes quando o governo brasileiro, representado pelo fictício Ministério da Devolução, inicia uma empreitada para deportar cidadãos de “melanina acentuada” (ANUNCIAÇÃO, 2020, p. 37) A proposta é tão absurda que chega a fazer rir; porém, ao perceber a gravidade da situação, o personagem André (Seu Jorge) questiona: “Rapaz, como é que a gente não viu isso? Como é que a gente deixou chegar a esse ponto? Como é que a gente riu disso?” (RAMOS, 2022). A cena faz refletir acerca da normalização de comentários racistas, comuns no cotidiano escolar e na mídia, frequentemente justificadas como humor. Relaciona-se ao depoimento de Fanon sobre o reconhecimento da sua cor. Ele relata a situação de ser observado por uma criança na rua: “Mamãe, olhe o preto, estou com medo!” Medo! Medo! E começavam a me temer. Quis gargalhar até sufocar, mas isso tornou-se impossível” (FANON, 2008, p. 105). Uma sugestão de atividade pedagógica a ser desenvolvida em sala de aula é: após a exibição da cena e a leitura do trecho escrito por Fanon, instigar a discussão com os estudantes acerca de piadas e comentários racistas encontrados na mídia e em outros contextos comuns ao meio em que vivem. A turma pode, inclusive, realizar uma pesquisa mediada sobre o assunto – partindo de notícias e reportagens, por exemplo. A partir disso, é possível direcionar a atenção para o perigo de tratar preconceitos e violências como meras anedotas e propor para que os alunos discutam e registrem como reagirão em futuras ocasiões nas quais esse cenário aconteça.

Ao se descobrir negro, Fanon descreve o seu sentimento:

“Preto sujo!” Ou simplesmente: “Olhe, um preto!” Cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido nas coisas, minha alma cheia do desejo de estar na origem do mundo, e eis que me descubro objeto em meio a outros objetos. Enclausurado nesta objetividade esmagadora, implorei ao outro. (FANON, 2008, p. 103)

Logo, é necessário que a escola promova a ideia de que a luta contra o racismo é de todos. Assim, outra sugestão didática pauta-se na pergunta feita pelo personagem Antônio: “Será que a gente nota quando a história está acontecendo?” (RAMOS, 2022). Esse questionamento, associado à exibição da cena, pode servir como disparador para a criação de um painel físico ou digital com casos recentes de racismo, uma vez que se observa uma constante tendência de se associar o problema apenas aos anos de escravização. A exposição de um trabalho assim pode ser capaz de sensibilizar o olhar dos agentes escolares, de modo que sintam a necessidade de adotar uma postura mais incisiva e ativa contra o preconceito.

Em um dado momento do filme, há forte repressão policial e vários negros estão sendo detidos. Numa tentativa desesperada de se proteger, um dos rapazes presos afirma ser branco e, em seguida, é censurado por seu amigo, o qual o lembra da sua cor. A cena aproxima-se da problemática apresentada pelo personagem André (Seu Jorge), que cobre o seu corpo com espuma de barbear (branca), a fim de simbolizar o branqueamento e denunciar a desigualdade e o preconceito. Existe uma alusão ao título da obra Pele Negra, Máscaras Brancas (FANON, 2008), que deve ser apresentada aos alunos na biblioteca escolar, caso a instituição possua esse espaço ativo e a obra em questão. Nessa linha de raciocínio, seguem algumas sugestões de perguntas a serem lançadas aos estudantes:

· Você conhece casos reais de repressão policial a negros? Pesquise a respeito e, em seguida, explique por que, em sua opinião, isso acontece. (Aqui, pode-se trabalhar o uso de jornais e revistas impressos e/ou digitais.) · O filme apresenta outra cena em que uma pessoa branca aponta uma arma de fogo para os protagonistas. Qual é a sua opinião sobre a cultura que relativiza o acesso a armas e a utilização da violência? Você vê riscos nesse comportamento? Por quê? · Nas cenas exibidas acerca da repressão policial e da “fuga” de André (Lázaro Ramos), por qual motivo os personagens utilizaram, simbolicamente, “máscaras brancas” (FANON, 2008)? · Em sua opinião, quais são as consequências do apagamento de uma cor, no que diz respeito à história de um povo? · Quais são as suas sugestões para que as nossas aulas sejam um espaço para o reconhecimento e a valorização da história e da cultura afro?

Além dessas sugestões, outras possibilidades apresentam-se diante da fotografia minuciosa e das escolhas do enquadramento de câmera da película, as quais destacam fenótipos e elementos que traçam relações com a cor negra, como o foco em uma xícara de café puro, por exemplo. Ademais, a trilha sonora compreende canções de Cartola, Elza Soares, Emicida, entre outros nomes de destaque para a música negra brasileira. Tanto as letras quanto os ritmos podem ser explorados em sala de aula, estimulando um trabalho rico e diverso acerca das linguagens artísticas e do repertório cultural. O objetivo deste artigo não é esgotar as possibilidades pedagógicas ou elaborar sistematicamente sequências didáticas, mas apontar o filme Medida Provisória (2022) como ferramenta potente para uma proposta de educação antirracista.

Abdias Nascimento lembra-nos de que o sistema educacional brasileiro possui grande parcela de culpa no apagamento da história negra e no embranquecimento do país, dado que

a classe dirigente e seus porta-vozes técnicos, historiadores, cientistas sociais, literatos, educadores, etc., formam uma consistente aliança a qual tem exercido, há séculos, a prática e a teoria da exploração dos africanos e seus descendentes no Brasil (NASCIMENTO, 1840, p. 84)

É fato que a escola vem formando, ao longo de séculos, cidadãos com mentalidade e referências eurocêntricas, uma vez que o pensamento hegemônico prevalece na seleção de conteúdos e autores estudados. Por outro lado, a formação crítica exige que tais padrões sejam questionados e rompidos, a fim de que a voz dos negros seja finalmente ouvida. A pluralidade presente no contexto educacional deve fomentar a quebra das barreiras do preconceito, através do entendimento das relações étnico-raciais. É um equívoco acreditar que os brancos devem dar voz aos negros. Eles já têm voz, o que precisa ser feito – urgentemente – é ouvi-los, numa concatenação à cena do filme Medida Provisória (2022), em que a personagem Capitu (Taís Araújo) pede para que Santiago (Pablo Sanábio), um homem branco, fique em silêncio e apenas ouça o que ela tem a dizer (RAMOS, 2022).

A sociedade vê-se por meio das lentes da branquitude e modificar essa estrutura de pensamento requer esforço e resistência. Abdias Nascimento elucida:

O eurocentrismo dominante pretende resolver o problema do branco, pois este é a minoria que está sempre e sempre tentando erradicar compulsoriamente os negros. Que nem são mencionados como existentes, poucos ou muitos (...) Sob o olho azul da hipocrisia e do ódio itamaratianos, (...) pretendem a liquidação maciça dos afro-brasileiros. Mas se trata de uma pretensão, apenas. Os negros têm resistido e resistirão. Até o instante intolerável e inevitável da confrontação que os negros brasileiros vão desencadear em face dos opressores e exploradores de quase cinco séculos. (NASCIMENTO, 2008 p.163)

Numa cena da parte final do longa-metragem analisado, o personagem Antônio (Alfred Enoch) grita: “Esse país também é meu” (RAMOS, 2022). À medida que o Brasil é, de fato, de todos os seus cidadãos – independentemente de cor de pele, gênero, crença, orientação sexual e outros fatores de ordem biológica e/ou pessoal, as escolas do país também precisam ser de todos os estudantes. Torna-se cada vez mais indispensável a existência de representatividade negra dentro dos espaços formais de ensino. Na prática, isso significa: a contratação de professores e gestores negros, rompendo a (i)lógica perversa e discriminatória de que o quadro de prestadores negros restringe-se a serviços de limpeza e de manutenção dos espaços; a adoção de referências teóricas e culturais negras no currículo escolar, visto que é comum que sejam trabalhadas apenas em temas transversais e eletivos (ARAÚJO; SOARES, 2019); o ensino e a valorização das tradições afro-brasileiras, incluindo manifestações artísticas e religiosas, assumindo a mesma importância atribuída a festividades e expressões de origem europeia/cristã; a utilização de ferramentas e estratégias pedagógicas que favoreçam o reconhecimento de vozes negras como: cinema negro, música negra, falas de influenciadores digitais negros, entre outras possibilidades.

Portanto, admitir que a educação brasileira é uma adjacência do pensamento colonizador é o primeiro passo para modificá-la. Em síntese, só é possível romper um preconceito quando este é notado e reconhecido. Torna-se urgente desmascarar a educação, em mais uma referência a Fanon (2008). O branqueamento do currículo, dos discursos, dos pensamentos e das práticas pedagógicas precisa ser urgentemente substituído pela diversidade de cores e histórias existentes em território nacional. Num país em que mais da metade da população não é branca, não faz sentido perpetuar o predomínio de um padrão eurocêntrico. As relações étnico-sociais devem ser pauta política, social e educacional séria, não há espaço para discursos negacionistas nem para a submissão a posturas que mantêm, reproduzem e justificam o racismo.

Logo, não há lugar para se trabalhar o tema apenas em novembro ou em ações pedagógicas isoladas. O combate ao racismo precisa ser diário e coletivo. É necessário despertar a criticidade dos estudantes para questões associadas ao colorismo, a nomenclaturas e ao fato de parte da história ser apagada do currículo escolar e do imaginário popular. É relevante que se discuta o fato de que a ideia de afro-brasileiro, por si, é colonizadora porque desconsidera o passado dos povos africanos anterior aos séculos de escravização. Sendo a escola um importante espaço de construção de identidades (CARVALHO; FRANÇA, 2019), deve repensar no seu papel como extensão do pensamento colonizador (ARAÚJO; SOARES, 2019) ou agente de transformação e resistência. A fim de auxiliar a luta, o cinema negro mostra-se como um recurso potente para o direcionamento do olhar para as questões raciais, através de uma abordagem que resgata a história e cultura afro. A polissemia da linguagem cinematográfica favorece que o público assista, reflita e interprete fatos através de diversos ângulos, solidificando a criticidade dos estudantes, sobretudo, acerca de problemas sociais, como o racismo.

4 Considerações finais

Após os irmãos Lumière apresentarem o primeiro curta-metragem num café parisiense, o cinema difundiu-se pelo mundo e chegou ao Brasil, sendo adotado como recurso didático, em especial, nos anos 30. Devido à sua capacidade de proporcionar aulas mais dinâmicas, concatenadas com a realidade e despertar a criticidade, a sétima arte é vista como ferramenta pedagógica potente para fomentar discussões acerca de problemáticas sociais, como o racismo. A escola reflete os conflitos existentes no país e na comunidade, uma vez que abriga contextos e valores plurais. Entretanto, observou-se, nos últimos anos, um discurso negacionista e intimidador no que tange à discussão de pautas sociais, alegando que a escola deve ser meramente reprodutora de conteúdos. Tal visão beneficia e perpetua pensamentos hegemônicos e segregacionistas que não cabem no espaço escolar, o qual contribui para a formação de identidade e do senso coletivo.

A Lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003, estabelece que a História e a Cultura afro sejam ensinadas na Educação Básica. No entanto, para que a lei seja efetiva, não basta trabalhar as temáticas de forma transversal ou em datas específicas, como no dia 20 de novembro. Nesse sentido, o cinema negro configura-se como um importante recurso pedagógico a fim de promover uma educação antirracista, a qual sensibilize o olhar para as questões étnico-raciais e ofereça representatividade em espaços tomados pelo eurocentrismo e estereótipos. Este artigo selecionou o longa-metragem Medida Provisória (2022), escrito e dirigido por Lázaro Ramos, para articular os temas “cinema negro” e “educação”. Pautando-se, sobretudo, nos pressupostos de Abdias Nascimento (1840) e Frantz Fanon (2008), apresentou algumas possibilidades didáticas que fomentem o senso crítico dos estudantes.

O objetivo deste estudo não foi esgotar as propostas de sequência didática a partir do filme, mas discutir a necessidade da desconstrução do pensamento colonizador nas escolas brasileiras, as quais servem como extensão de um projeto eurocêntrico. O filme escolhido, inspirado na peça Namíbia, Não! (ANUNCIAÇÃO, 2020), traz diversas referências históricas, políticas e culturais a serem trabalhadas com os estudantes. Aborda, também, questões ligadas ao colorismo, à violência cotidiana, à repressão policial e, sobretudo, à resistência. É necessário mostrar aos alunos que, se a resistência faz-se necessária, significa que há um entrave social. A seleção do elenco e da trilha sonora promovem uma quebra de paradigma no cinema nacional, já habituado ao predomínio da branquitude. Assim, é possível referenciar os discentes com personalidades e produções essencialmente negras, num processo de aprendizagem e valorização destas.

A pesquisa também chamou a atenção para cenas específicas da película e seus possíveis desdobramentos em sala de aula. Apresentou sugestões de trabalho a partir de temáticas como: comentários e piadas racistas; a história que se constrói no presente através do racismo cotidiano; repressão policial e branqueamento como tentativa de adequação do povo negro aos padrões vigentes. Baseou-se nas considerações de Abdias Nascimento (1840) para questionar a reprodução e a manutenção de estruturas eurocêntricas na Educação brasileira e incentivar, urgentemente, a ruptura do pensamento colonizador. Sendo a escola um espaço de todos, é imprescindível que a representatividade, de fato, aconteça – no currículo, no quadro de funcionários, nas escolhas referenciais que fundamentam as atividades pedagógicas e nos recursos utilizados em sala de aula. Nesse sentido, o cinema negro configura-se como ferramenta potente para a formação crítica, que combate desigualdades e constrói uma sociedade mais justa, diversa e feliz.

Referências

ANUNCIAÇÃO, Aldri. Namíbia, Não! In: ANUNCIAÇÃO, Aldri. Trilogia do Confinamento. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2020.

ARAÚJO, Aldevane de Almeida; SOARES, Emanoel Luis Roque. Identidade e relações étnico-raciais na formação escolar. Rev. Pemo, Fortaleza, v. 1, n. 1, p. 1-14, 2019. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/revpemo/article/view/3628. Acesso em: 01 jun. 2023.

BRASIL. Decreto nº 10639, de 09 de janeiro de 2003. Dispõe sobre as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm . Acesso em: 01 jun. 2023.

CARVALHO, Daniela Melo da Silva; FRANÇA, Dalila Xavier de. Estratégias de enfrentamento do racismo na escola: uma revisão integrativa. Revista Educação & Formação, Fortaleza, v. 4, p. 148-168, 2019. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=585861585008. Acesso em: 01 jun. 2023.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira - Salvador: EDUFBA, 2008.

MEDIDA PROVISÓRIA. Direção: Lázaro Ramos. Produção de Lebery Produções e Lata Filmes. Brasil: Estados Unidos: Globo Filmes, 2022.

NASCIMENTO, Abdias do. Quilombismo. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 1980.

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