Artigo
Recepção: 09 Junho 2023
Aprovação: 13 Setembro 2023
Resumo: A educação sexual tem sido atravessada por diferentes modelos que compõem perspectivas acerca de gênero. Desses, destaca-se o modelo biológico e higienista, que naturaliza as diferenças sociais entre os gêneros, e o modelo queer, que busca questionar essencialismos tomando como base uma não-normatividade. A distinção entre pênis e falo proposta pela psicanálise pode auxiliar essa última percepção, no sentido em que há um foco em uma questão imaginária, distanciando-se de uma primazia dos órgãos genitais. Dessa forma, esse trabalho de delineamento qualitativo, exploratório-descritivo, busca explorar quais têm sido as abordagens acerca de gênero na educação sexual formal escolar através de uma revisão de literatura e a categorização de sintagmas identificados nos artigos selecionados, em função dos modelos propostos por Furlani. Assim, percebeu-se que ainda há uma hegemonia do modelo biológico e higienista, enquanto o modelo queer ainda não aparece nas práticas educativas escolares.
Palavras-chave: Educação Sexual, Gênero, Queer, Psicanálise, Falo.
Abstract: The sex education has been crossed by different models that compose perspectives surrounding gender. From those, the biological and hygienist model, that naturalizes the social differences between genders, and the queer model, that tries to question essentialisms taking a non-normativy as basis, can be highlighted. The distinction between penis and phallus proposed by psychoanalysis can help this last perception, in the sense that it focuses in an imaginary question instead of the primacy of the genital organs. That way, this work of qualitative delimitation, explorative-descriptive, tries to explore which has been the approaches about gender in the formal school sex education through a literature review and the categorization of identified phrases in the selected articles using the eight models proposed by Furlani. Thus, it was noticed that there is still a biological and hygienist model hegemony, while a queer model still doesn’t appear in the school educational practices.
Keywords: Sex Education, Gender, Queer, Psychoanalysis, Phallus.
1 Introdução
A obra de Foucault demonstra que a sexualidade é um dispositivo histórico que articula saber e poder visando o reforço dos controles, das resistências, da formação de conhecimento e da estimulação de corpos, na tentativa de controlar os desejos e os corpos, impedindo que os sujeitos sigam suas pulsões e impulsos biológicos, levando a modos de subjetivação específicos da cultura ocidental, uma vez que sua análise se baseia nela. Ele traz a hipótese repressiva da sexualidade, ligada a interdição do sexo, característico da era vitoriana, e propiciando o ideal familiar burguês heterossexual (CARVALHO; OLIVEIRA, 2017). Deste modo, entende-se a sexualidade como um dispositivo normatizador, que leva ao processo de exclusão de sexualidades não adaptadas.
Para além deste paradigma, Furlani (2005) apresenta sete outros que devem ser considerados quando se pensa a discussão acerca da educação sexual, sendo: moral tradicionalista, que atrela princípios conservadores e religiosos; abordagem terapêutica, que busca explicações acerca das vivências sexuais que eram qualificadas como anormais visando a cura para esses fenômenos; abordagem religiosa radical, que traz o discurso religioso como um dogma na disseminação do que seria uma sexualidade “normal”; abordagem dos direitos humanos, com uma educação sexual que problematiza e desconstrói identidades “excluídas”; abordagem dos direitos sexuais, que visa a equidade sexual, promovendo respeito e reconhecimento a grupos marginalizados historicamente; abordagem emancipatória, que traz o contexto repressor mas afirma, também, que é preciso lutar por liberdade e, por fim, a abordagem queer, que propõe uma não-normatividade, recusando essencialismo quando se trata das questões da sexualidade.
A importância de pensar nas abordagens que orientam a educação sexual se baseia na perspectiva de que o contexto educacional funciona “como campo não apenas de produção e reprodução das representações excludentes, mas também como local de contestação e resistência de grupos subordinados” (FURLANI, 2009, p. 298). Deste modo, é interessante avaliar quais são os pressupostos que norteiam essas abordagens e apresentar teorizações que possam contribuir nesse processo de resistência e contestação. A abordagem queer trabalha, então, com a rejeição de essencialismos acerca da identidade sexual, podendo ser até mesmo pensada como uma epistemologia queer que tem como premissa básica a rejeição de normalidade, rompendo com o modelo heterossexual de análise quando trata de identidades sexuais e de gênero, tratando de “discutir na Educação Sexual como cada identidade é construída, (des)valorizada, assumida ou não, e desconstruir o processo que estabelece a normalidade” (FURLANI, 2009, p.316)
Considerando isso, a psicanálise apresenta apontamentos pertinentes quando pensamos noções que podem ser aprofundadas para passagem de uma abordagem médico-higienista para uma educação sexual mais emancipatória ou até mesmo uma abordagem queer. Uma noção importante que permite pensar a questão do gênero, entendido como anatomia na visão médico-higienista, é o falo, que já estava presente na teoria freudiana, mas é retomado e aprofundado por Jacques Lacan.
Freud trata da organização genital infantil propondo que para ambos os sexos se tem somente uma questão em torno do órgão genital masculino, colocando uma primazia do falo, mas não uma primazia dos órgãos genitais. O autor coloca que a criança percebe uma distinção entre homens e mulheres, mas ela não estaria vinculada ao órgão genital destes e sim a um processo de igualdade ou diferença ao que ela própria possui, algo que será entendido depois, ao se deparar com a ausência de pênis em outros, como resultado da castração, de uma punição que retiraria o pênis, mas esse entendimento não é generalizado de uma forma rápida a todas as mulheres pela criança (FREUD, 1923/2010). Então, tem-se que
a questão da diferença dos sexos é abordada pela criança no terreno de uma lógica psíquica do tipo: por que simplificar quando se pode complicar? De fato, o real dos sexos impõe que sejam anatomicamente diferentes. Ora, constatamos que este real é imediatamente elaborado psiquicamente pela criança numa construção imaginária onde esta diferença é assujeitada à ordem de uma falta (DOR, 1989, p.75).
Portanto, o que se apresenta é que a noção de falo, central na construção do complexo de édipo e de castração, deixa de ser atrelada ao pênis e se mostra como algo que marca a diferença para a criança. De modo que “O que a criança percebe como atributo possuído por alguns e ausente em outros não é o pênis, mas sua representação psíquica, seja sob forma imaginária, seja sob forma simbólica” (NASIO, 1997, p.34). Então, considerando a questão fálica como uma marca psíquica não orgânica, trabalhar com essas noções em uma abordagem de educação sexual parece distanciar a visão de uma abordagem médico-higienista, sendo possível questionar as desigualdades existentes entre os gêneros.
Ademais, o falo, na teoria lacaniana, “permite a instalação do sujeito numa determinada posição como sujeito do inconsciente, ou seja, como sujeito barrado, que possibilita sua identificação, a partir dessa posição subjetiva, com “o tipo ideal de seu sexo” (RABINOVICH, 2005, p.11), marcando que o sujeito do inconsciente não apresenta um sexo definido, mas tem a possibilidade de identificar-se com um. Partindo dessa identificação, Branco, Thisoteine e Gellis (2022) trazem que é possível pensar um caminho das identidades a partir dela, colocando a questão do imaginário e a relação com o outro no ponto de entendimento das questões de gênero, aproximando, portanto, a psicanálise desse debate a partir da estruturação do eu.
Ainda, para pensar esse processo de identificação é necessária a compreensão da estruturação do eu na teoria lacaniana, que envolve uma relação entre o exterior e o interior, de modo que a articulação entre o dinamismo libidinal e o desejo deixa de ser ligado a uma força orgânica que vem do fundo do sujeito e apresenta um caráter associado ao mundo exterior, mundo este que confecciona inicialmente o sujeito a partir de uma exterioridade (OGILVIE, 1988). Ou seja, pensar a libido e a sexualidade a partir dessa visão traz o aspecto de uma não natureza, um processo ligado às relações e não apenas a um dado biológico e genital.
Isto coloca a questão que “não há formação do eu através de sua exteriorização, de um movimento do interior para o exterior, mas ocorre o inverso: o eu é completamente exteroceptivo ou não existe” (JULIEN, 1993, p. 16-17). Esses aspectos colocam que a sexualidade se constitui em articulação com o ambiente simbólico em que a criança está desde seu nascimento, uma vez que
A importância do simbólico na realização sexual, seja na constituição da identidade sexual (situar-se subjetivamente corno homem ou mulher) ou na realização por cada um de seu sexo, de seu ser sexuado em relação a um outro sexuado ou no destino da vida erótica, é incessantemente reafirmada por Lacan que, seguindo Freud, dá todo seu peso ao Édipo, isto é, uma relação simbólica que orienta e regula o campo do pulsional e o campo do imaginário (a relação com a imagem) e, conseqüentemente, a função simbólica fálica (castração) na medida em que ela legifera o desejo e ordena a sexualidade de cada um. (DESPARTS-PÉQUIGNOT, 1996, p. 471)
O que implica que
A diferença entre os sexos, no sentido biológico ou anatômico, não decide portanto necessariamente a questão da reivindicação de urna identidade sexual conforme ao sexo anatômico ou biológico e não reflete as modalidades inconscientes segundo as quais cada um, homem ou mulher, negocia a questão da diferença dos sexos e sua posição subjetiva como ser sexuado que mantém uma relação com outro ser sexuado (DESPARTS-PÉQUIGNOT, 1996, p. 471)
Deste modo, trabalhar essas noções quando se pensa um processo de educação sexual parece trazer bons frutos na tentativa de incluir sexualidades que historicamente foram colocadas como estranhas e desviadas do que seria o “normal”, algo que é baseado apenas em um quesito biológico.
Cabe aqui uma precisão, quando se trabalha a educação sexual, entende-se que ela é composta por atitudes, valores, comportamentos e manifestações relacionados à sexualidade apreendidos no decorrer da vida dos sujeitos. Existem, no entanto, dois âmbitos em que podem ser pensada essa educação, sendo o âmbito formal e o informal. Na educação sexual informal, há uma não intencionalidade e é possível a observar desde o nascimento (MAIA; RIBEIRO, 2011). Ela se constitui de discursos culturais, como o religioso, midiático e artístico, compondo o que se denomina pedagogias culturais, instâncias culturais que extrapolam uma mera representação e produzem formas de ser e ver o mundo (SABAT, 2001).
Em contrapartida, a educação sexual formal é caracterizada por um planejamento e uma intencionalidade, ou seja, ela se configura como um projeto. Sob esta ótica, entende-se o ambiente escolar como o espaço mais propício a uma ação intencional, planejada e organizada, pois se permanece nesse ambiente durante parte significativa do início da vida, ainda, a escola possui a função social de transmitir os conhecimentos historicamente cristalizados (MAIA; RIBEIRO, 2011).
Com isso, a psicanálise parece oferecer noções interessantes para pensar as percepções que circundam a educação sexual formal. Deste modo, este trabalho tem como objetivo levantar práticas pedagógicas de educação sexual que trabalhem a questão de gênero na tentativa de observar a qual dos paradigmas eles estão mais relacionados, propondo discuti-las através da teoria psicanalítica, levantando aproximações entre os campos, uma vez que pensar o gênero nesse aspecto interdisciplinar pode oferecer novos caminhos para uma sociedade e uma educação sexual mais inclusiva. Para isso, antes é necessário compreender em que momento essa discussão está atualmente.
2 Metodologia
Esta pesquisa é de natureza qualitativa, de tipo exploratória-descritiva e bibliográfica (GIL, 2002) por realizar uma revisão narrativa da literatura (UNESP, 2015). Para o levantamento dos artigos na literatura, realizou-se uma busca na plataforma Periódicos CAPES, no mês de junho de 2023, filtrando artigos revisados por pares em inglês e português publicados no período dos últimos cinco anos na plataforma. Para busca de artigos foi utilizada a seguinte estratégia: "Educação sexual" [Descritor de assunto] AND "gênero" [Descritor de assunto] e "Educação sexual" [Descritor de assunto] AND "pênis" [Descritor de assunto] com a exclusão, utilizando-se o NOT, de "câncer", "doença" e "tratamento”. Essa busca resultou em 55 itens com repetição, destes, foram retirados artigos que não tratavam de práticas educativas na educação sexual formal, especificamente no espaço da sala de aula escolar e artigos que não abordavam a questão de gênero nessas práticas educativas, deixando um total de sete artigos.
Após isso, os artigos foram listados de acordo com título, resumo, palavras-chave, introdução, metodologia, resultados e discussão. Deles foram extraídas as passagens que contêm os sintagmas ‘educação sexual’, ‘gênero’ e ‘pênis’. Para a análise dos dados, valeu-se da análise de conteúdo (BARDIN, 2011), priorizando a elaboração de categorias mutuamente exclusivas, sendo elaboradas quatro categorias com base na abordagem das práticas educativas identificadas nos artigos selecionados.
3 Resultados e Discussão
Foram levantados e analisados sete artigos. O quadro a seguir indica as informações dos artigos selecionados e o número de sintagmas encontrados em cada um deles:
Após isso, tem-se as categorias elaboradas e a discussão a partir do método de análise. As categorias foram elaboradas tendo como norte as oito formas de abordar a educação sexual propostas por Furlani (2005):
3.1. Categoria (1) Práticas educativas sobre gênero de abordagem biológica e higienista
Como abordagem da educação sexual formal historicamente hegemônica, a abordagem biológica e higienista aparece com maior incidência nas práticas educativas presentes nos artigos, o que indica uma manutenção de sua prevalência nos currículos escolares. Essa perspectiva privilegia questões ligadas à saúde, com destaque para discussões sobre reprodução humana, IST, gravidez indesejada e puberdade, e assume uma postura determinista biológica, onde as desigualdades imanentes das categorias binárias de gênero são naturalizadas (FURLANI, 2005).
Nota-se, a partir dos artigos, que uma visão organicista do gênero se mantém no discurso dos professores e outros agentes da educação sexual formal, como gestores e agentes de saúde. Guimarães e Cabral (2022), ao acompanharem a ação de profissionais de uma unidade básica de saúde em uma escola pública de um bairro periférico de São Paulo, se depararam com essa postura, principalmente através da discussão acerca da gravidez precoce. Percebe-se também a incorporação de termos médicos, como a denominação dos discentes como grupo de risco, por exemplo. Pode-se identificar vários dos elementos característicos da abordagem biológica e higienista na fala de uma das profissionais, a exemplo:
Conforme vai passando a idade, vocês querem fazer o quê? [respostas: sexo, sexo!] As meninas querem namorar, os meninos muitas vezes querem sexo. A diferença é essa. [...] A primeira relação sexual precisa ser no seu tempo. Quando você estiver preparada pra isso. Não é porque você namora que você é obrigada a ter relações. [...] É no seu tempo... porque você engravida, você acha que o pai da criança vai ficar com você? Às vezes fica, mas é raro. Ele fica 1 ano, no ano seguinte ele tá com outra. Por quê? Porque a outra não tem filho. A outra vai pra baladinha, e você não vai. [...] hoje em dia, as meninas estão mais saidinhas do que os meninos [muito alvoroço na turma de meninas]. Alguém vê menino com bebê no colo pra cima e pra baixo? Não. [...] E eu atendo muita gente grávida sem os pais. Então não se iludam. Eles não vão ficar com você porque teve um filho com você. Não se iludam. Pensem, filho é pra sempre, relacionamento acaba. E o pior, se além de uma gravidez, eu pegasse uma DST [doença sexualmente transmissível]? E aí, como seria? Além de grávida com HIV. Putz, lascou, hein? Acabou o mundo (GUIMARÃES; CABRAL, 2022, p. 10).
Destaca-se na fala a centralidade da questão da prevenção da gravidez indesejada e de IST, a naturalização de julgamentos morais, como na afirmação de que as meninas estão mais “saidinhas”, e de desigualdades de sexo e gênero e a negligência aos aspectos socioculturais, como na percepção de que as meninas buscam principalmente relações românticas, enquanto os meninos buscam sexo. Cabe pontuar também o uso do termo “DST” ao invés de “IST”, demonstrando um vocabulário desatualizado. Ainda, observa-se em Silva et al. (2022) e em Choé (2022) que as discussões acerca de gênero foram ministradas nas disciplinas de Ciências e Biologia. Mesmo fora dessas disciplinas, há uma recorrência significativa de noções naturalizadas e biologizantes da sexualidade e do gênero (SOUZA; ROCHA, 2020; CHOÉ, 2022).
3.2. Categoria (2) Práticas educativas sobre gênero de abordagem moral tradicionalista
A abordagem moral tradicionalista apresenta um cunho conservador e religioso, frequentemente associada à abstinência sexual. Essa visão é marcada pela censura que impossibilita o acesso à informação acerca de temas da sexualidade e o entendimento de que a educação sexual é responsabilidade da família (FURLANI, 2005).
Dessa forma, observa-se nos artigos selecionados uma dificuldade por parte dos docentes e gestores em trabalhar temas da educação sexual, muitas vezes delegando a função aos pais e responsáveis dos discentes (OLIVEIRA; MUZZETI, 2020; CHOÉ, 2022). Mesmo quando há intenção de apresentar questões acerca de gênero e sexualidade, os professores são instruídos a evitarem o assunto (SILVA et al., 2022). Além disso, há uma postura de repreensão da temática quando levantada como demanda pelos alunos, assegurando o silenciamento das discussões (OLIVEIRA; MUZZETI, 2020).
Pode-se observar também que há uma intersecção entre a abordagem moral tradicionalista e a abordagem biológica e higienista, onde os valores conservadores são naturalizados e tratados como dados orgânicos numa fusão entre religião e ciência. Exemplo disso é o posicionamento assimétrico acerca da gravidez na adolescência na fala da profissional de saúde supracitada e a presença de valores morais no seu julgamento (GUIMARÃES; CABRAL, 2022).
3.3. Categoria (3) Práticas educativas sobre gênero de abordagem dos Direitos Humanos/Sexuais
Apesar da alta incidência das abordagens biológica e higienista e moral tradicionalista, é possível encontrar também práticas educativas associadas aos Direitos Humanos e aos Direitos Sexuais. Enquanto a abordagem dos Direitos Humanos se volta para as denominadas minorias, assumindo uma postura de denúncia, problematização e desconstrução de identidades marginalizadas, a abordagem dos Direitos Sexuais busca abordar, com base nas mobilizações de movimentos sociais, toda a amplitude dos temas pertinentes à educação sexual, como a ordem afetiva e prazerosa das práticas sexuais, as identidades sexuais não heterossexuais, entre outros (FURLANI, 2005).
Essa perspectiva fica evidente nas percepções e nas práticas educativas da educação sexual por parte de alguns professores:
As principais justificativas apontadas para necessidade do ensino de educação sexual é o cuidado com o corpo, respeito as diversidades e prevenção a possíveis abusos. Quando perguntados sobre a abordagem interdisciplinar da educação sexual, o debate convergiu no sentido de que a abordagem interdisciplinar seria necessária para normalizar o tema e retirar o estigma de “tabu” sobre a educação sexual. Foi sugerido que há problemas na abordagem programada, onde ocorre em determinada ocasião e depois não se toca mais no assunto, como “semana de prevenção a IST ́s e gravidez”, pois isso não favorece a naturalização do tema e pode tornar esse momento caricato ou vergonhoso (DAMASCENO; BOUHID, 2022, p. 435).
Nesse contexto, há uma preocupação em discutir temas como gênero e identidade sexual, principalmente no sentido de combater violências e discriminações (SOUZA; ROCHA, 2020). Percebe-se também uma crítica às abordagens biológicas e higienistas, que são descritas como muito pontuais e pouco eficientes. Valença e Carvalho (2021) apontam para a presença de temáticas acerca da diversidade sexual, na perspectiva de feminismos, questões LGBTQIA+ e raciais e diferentes formas de manifestação da sexualidade. Tem-se como objetivo promover e impulsionar processos de autoaceitação, resistência e respeito às diversidades.
3.4. Categoria (4) Práticas educativas sobre gênero de demais abordagens
Além das quatro abordagens supracitadas, notou-se uma menor recorrência de outras abordagens, especificamente a terapêutica e a religiosa radical. De acordo com Furlani (2005), a abordagem terapêutica tem como intuito encontrar causas explicativas para as vivências sexuais não normativas e a abordagem religiosa radical toma interpretações literais da Bíblia como base para as práticas educativas.
Uma perspectiva explicativa de manifestações da sexualidade consideradas desviantes ou anormais aparece na fala da diretora em Oliveira e Muzzeti (2020), onde a entrevistada afirma que há uma coordenadora que supervisiona os discentes e que em casos de manifestações sexuais os pais e os professores são contatados para que busquem o que está acontecendo com a criança. Essa visão acaba caindo em conclusões imediatistas e reducionistas, que falham em contemplar a complexidade e amplitude por trás da sexualidade.
Já a abordagem religiosa radical fica explícita na própria formação dos educadores. A maioria dos professores afirma não ter passado por uma educação sexual formal e os que passaram foram principalmente através de disciplinas de Ciências e Biologia e ensinamentos dos pais a partir de princípios bíblicos (SILVA et al., 2022). Essa abordagem também costuma fundamentar a própria criação dos filhos dos educadores, como se vê na fala:
Eu acredito muito na palavra de Deus e eu sempre sigo a Bíblia, eu respeito muito essa questão, só que eu busco criar meus filhos e mostro a eles claro que não devemos ter preconceito, mas devemos seguir o princípio de acordo com a lei de Deus (SOUZA; ROCHA, 2020, p. 221).
Dessa forma, aponta-se para a incidência de interpretações literais da Bíblia na transmissão de saberes acerca de sexualidade e gênero, especialmente como resposta ao avanço de movimentos sociais, ação característica da extrema-direita conservadora (FURLANI, 2005). Assim, após a identificação dos sintagmas e categorização para análise de conteúdo, percebe-se uma prevalência da perspectiva biológica e higienizante na educação sexual formal escolar, com oito entradas no total. Desse modo, as práticas educativas acerca de gênero têm sido voltadas para noções da saúde, como IST e reprodução, conteúdos ministrados principalmente nas disciplinas de Ciências e Biologia. Além disso nota-se uma naturalização das diferenças de gênero, através de uma visão acrítica, que as toma como constituintes orgânicos dos gêneros.
A abordagem moral tradicionalista e as abordagens dos Direitos Humanos e Direitos Sexuais apresentam o mesmo número de sintagmas. Com quatro entradas, metade das identificadas na abordagem biológica e higienista, vê-se um conflito entre noções conservadoras, que privilegiam a abstinência sexual, e noções mais progressistas, que buscam abarcar identidades dissidentes da norma, promovendo a autoaceitação e o respeito às diversidades. Cabe ressaltar que os professores que adotam as abordagens dos Direitos Humanos e Direitos Sexuais são confrontados pela perspectiva moral e tradicionalista como um dos principais obstáculos a suas práticas educativas.
Ainda assim, percebe-se que por mais progressistas que as abordagens identificadas aparentam ser, nenhuma delas chega a se configurar como uma abordagem queer acerca de gênero. A compreensão de minorias que atravessa as abordagens dos Direitos Humanos e Direitos Sexuais não questiona a própria normatividade, compondo também, dessa forma, o discurso dominante (FURLANI, 2005).
Sob essa ótica, se mostra pertinente retomar o processo de estruturação do eu proposto pela psicanálise, uma vez que este eu só existe a partir de uma relação com a exterioridade, se constituindo em relação a ela e não sendo algo biológico, dado ao nascimento (JULIEN, 1993), sendo necessária uma articulação simbólica para que se possa pensar a existência desse eu (LACAN, 2009). Isso marca, então, que não seria possível pensar em essencialismos na psicanálise, algo que parece contribuir para as noções de educação sexual mais emancipatórias, e até mesmo queer, proposta por Furlani (2005).
4 Considerações finais
Tendo em vista o objetivo deste artigo de identificar como gênero tem sido tratado nas práticas educativas contemporâneas na educação sexual escolar formal, através de um levantamento dessas práticas em uma revisão narrativa de literatura e a categorização dos artigos selecionados, com base nos modelos paradigmáticos propostos por Furlani (2005), este trabalho apresentou quatro categorias: práticas educativas sobre gênero de abordagem biológica e higienista; práticas educativas sobre gênero de abordagem moral tradicionalista; práticas educativas sobre gênero de abordagem dos Direitos Humanos/Sexuais; práticas educativas sobre gênero de demais abordagens. Nesse sentido, ainda se observa uma predominância de discursos essencialistas e biologizantes nas práticas educativas da educação sexual formal e uma ausência de perspectivas mais emancipatórias e queer. Mesmo as noções dos Direitos Humanos e dos Direitos Sexuais de alguns professores encontram resistência significativa de uma parcela mais conservadora de pais e gestores.
A educação sexual no Brasil parece ter ainda um longo caminho a trilhar para poder alcançar uma visão queer e não essencialista. Deste modo, pensar as noções psicanalíticas pode gerar grandes frutos, uma vez que pautado pela noção de que o falo e a assunção do sexo nada tem a ver com o biológico, com o órgão genital, parece permitir uma saída da concepção biológica e higienista, que apresentou o maior número de entradas, permitindo um novo olhar acerca dessas questões.
Ademais, esse artigo não visa propor uma educação sexual psicanalítica, mas apresentar algumas noções que se mostram pertinentes para o avanço de uma educação que vise realmente a inclusão e o fim da discriminação para com sexualidades que, como visto no levantamento, ainda são consideradas dissidentes ou anormais, permitindo um diálogo entre as áreas na tentativa de poder abordar de forma mais ampla a questão do gênero, ainda tão marcada por estigmas.
Referências
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