Artigo
Fanfictions no ciberespaço: novos modos de ler e formar leitores
Práticas Educativas, Memórias e Oralidades
Universidade Estadual do Ceará, Brasil
ISSN-e: 2675-519X
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 4, núm. 1, 2022
Resumo: O artigo em questão é resultado do trabalho de conclusão de curso na área da Pedagogia com ênfase na formação do leitor. Apresenta um recorte da pesquisa com foco na análise do processo de formação de leitores no ciberespaço por meio de fanfics, uma vez que esse tipo de escrita/leitura tem ganhado notoriedade entre os leitores quando se trata de novas formas de ler literatura. Parte-se do pressuposto de que a formação de leitores é uma atividade contínua e que a expansão do conceito de formação e de leitura para além da escola e dos livros impressos já é uma realidade. O objeto é analisar o processo de formação leitora no ciberespaço por meio das fanfics. Esta pesquisa qualitativa é tecida a partir das vozes dos jovens leitores em seus ambientes virtuais de leitura. Os resultados identificam leitores ávidos e participativos, os quais fazem dessa modalidade de leitura uma ponte para a leitura do texto literário, ampliando a formação de leitores de literatura no cenário digital.
Palavras-chave: Fanfictions Formação de leitores. Ciberespaço..
Abstract: The article in question is the result of the course conclusion work in the area of Pedagogy with emphasis on the formation of the reader. It presents an excerpt of the research focused on the analysis of the process of formation of readers in cyberspace through fanfics, since this type of writing/reading has gained notoriety among readers when it comes to new ways of reading literature. It is assumed that the formation of readers is an ongoing activity and that expanding the concept of education and reading beyond school and printed books is already a reality. The object is to analyze the process of reader formation in cyberspace through fanfics. This qualitative research is woven from the voices of young readers in their virtual reading environments. The results identify avid and participatory readers, who make this reading modality a bridge to the reading of the literary text, expanding the formation of readers of literature in the digital scenario digit.
Keywords: Fanfictions Reader training. Cyberspace..
1 Introdução
1.1 O ciberespaço e suas possibilidades para com a formação de leitores de literatura
Na virada do século XX para o XXI, ocorreram importantes mudanças nos setores sociais, econômicos, políticos e culturais. A partir delas, as relações sociais foram alteradas, passando-se a viver na Era da globalização, em que tudo acontece velozmente, especialmente depois do surgimento das inovações tecnológicas que vieram para facilitar a vida dos sujeitos em sociedade.
A literatura, como um dos saberes essenciais na formação dos sujeitos, também acompanhou essas mudanças e passou a ser chamada de “literatura contemporânea”, que, embora não seja um termo definitivo, é, geralmente, utilizado para referir-se à literatura dos dias atuais, concomitantemente, não se pode deixar de citar sua íntima relação com o ciberespaço, que é traduzido por Lévy (1994) como espaço cibernético. O autor define esse espaço como “[...] um terreno onde está funcionando a humanidade, hoje” (Lévy, 1994, p. 1).
Embora o posicionamento de Lévy tenha sido feito em 1994, é possível verificar que o ser humano tem se apropriando cada vez mais dos espaços desenvolvidos por meio dos recursos tecnológicos, por isso, os eventos ao nosso redor passaram a acontecer de modo acelerado, e os hábitos que costumávamos ter foram e vão continuar sendo alterados para se adequarem ao espaço cibernético ou espaço virtual.
Ao pensar em literatura nesse contexto, é perceptível que o leitor tem se tornando cada vez mais protagonista da criação literária, fato que se deve à sua participação mais ativa no processo de escrita dos próprios textos. Daí a necessidade de enxergá-lo, na contemporaneidade, não apenas como um receptor ou apreciador da escrita, mas como sujeito ativo e participativo (BRITTO, 2003).
As mudanças que se abrem no campo da leitura de literatura trazem ao leitor o papel de protagonista do processo formativo, que acontece a partir das transformações que ele próprio vai tecendo em meio ao contexto em que está inserido. Esse fato abre um leque de oportunidades para a leitura de literatura se tornar cada vez mais diversificada, emancipadora e acessível aos mais diversos públicos em diferentes suportes digitais.
Quando se fala em novas possibilidades de ler literatura e no papel do leitor, diferente do ser passivo, como se costuma ver ainda em grande parte dos espaços de leitura, é possível deparar-se com as fanfictions ou fanfics – histórias criadas por fãs, baseadas em diferentes personagens e enredos que pertencem a diversos produtos presentes na mídia, como livros, filmes, histórias em quadrinhos, séries, celebridades, cantores, bandas e grupos musicais, em que seu leitor é tão protagonista quanto o próprio texto. As fanfics são histórias que estão em alta desde meados dos anos 2010 devido ao surgimento da cibercultura, mas elas datam de muito antes. Nem se sabe ao certo quando elas surgiram no contexto cibernético.
Busin (2020, p. 23) fala que “[...] ao contrário do que o senso comum aponta, a internet não coloca em risco a literatura, mas sim a transforma como facilitadora ao acesso e, também descobrimento, de novos autores e leitores [...]”. Com isso, a adaptação às novas modalidades de leitura que têm surgido pode ser um desafio para muitos e até algo fadigoso para outros. No entanto, quando se volta para os leitores e autores de fanfics, pode-se perceber que seus costumes de navegação na internet são voltados para busca de histórias com as quais eles tenham algum vínculo, facilitando a leitura e inserindo-os em um contexto de criação de seus próprios textos.
Nessa direção, existe um grande problema que ainda não tem sido debatido: são rasas as políticas públicas voltadas para a garantia da leitura de literatura e para o acesso aos bons livros para todas as pessoas. Por isso, deve-se pensar a formação leitora para além da sala de aula e aos mais diversos tipos de leitores, pois passarão a existir novas propostas de se trabalhar pedagogicamente ao longo das transformações que ocorrem no mundo, e essas vão exigir que os professores estejam preparados para lidar com os mais variados tipos de leitores e leituras.
Daí a necessidade de aproveitar de forma eficaz os recursos que estão presentes no ciberespaço, para que a sala de aula não seja a única via de acesso às histórias, e que cada leitor se sinta pertencente ao meio social também pelas telas, conectadas em rede. Portanto, discutir o tema da formação de leitores no ciberespaço é uma realidade e uma necessidade.
O interesse em pesquisar essa temática deu-se a partir da trajetória da pesquisadora enquanto leitora, já que as fanfictions foram uma de suas primeiras fontes de acesso ao universo literário. Além disso, veio a se consolidar durante os aprendizados obtidos por meio da disciplina Literatura e Infância, no curso de Pedagogia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN (2021) e também da participação no projeto de Extensão UERN Vai à Escola (2021), como membro do eixo Formação do Leitor, ambas as experiências deram origem à pesquisa de monografia citada no início do texto.
Assim, reitera-se que essa discussão se faz necessária para valorizar os novos modos de se pensar a leitura e formar leitores, vista como uma prática prazerosa e significativa por meio das fanfics, proporcionando saberes em torno do processo das novas práticas de linguagem, além de ampliar os estudos nessa área, gerando dados que podem ajudar professores e mediadores responsáveis pela formação do leitor a (re) pensar suas práticas para com a leitura, especialmente de literatura.
Para isso, o artigo encontra-se organizado em quatro partes distintas: “O ciberespaço e suas possibilidades para com a formação de leitores de literatura”, que foi apresentada nesta seção, com algumas informações preliminares; “Caminho metodológico percorridos na pesquisa”, a qual apresenta as questões metodológicas que guiaram a pesquisa; “Literatura, leitor e as fanfictions”, onde se encontra a fundamentação teórica com as contribuições de estudos e pesquisas acerca da temática e, por fim, a apresentação de alguns dados para reafirmar a importância e as contribuições das fanfictions para a formação dos jovens leitores na contemporaneidade.
2. Caminho metodológico percorridos na pesquisa
A pesquisa encontra-se respaldada na abordagem qualitativa, de caráter bibliográfico, pois se busca responder questões particulares em torno do objeto de estudo (DESLANDES; GOMES; MINAYO, 2009, p. 21). Por meio desse tipo de estudo, percebem-se os múltiplos olhares do fazer científico, os quais proporcionam uma melhor percepção sobre o assunto, pois tornam únicas as experiências de cada sujeito. Além disso, a pesquisa qualitativa também é uma oferta flexível de acesso aos novos conhecimentos.
Nesse sentido, o estudo ocorreu em meio a um cenário pandêmico (2021), por isso se deu a reorganização de novas estratégias para sua concretização, uma delas foi adaptar a pesquisa de campo para o ambiente virtual. Assim, sendo o referido espaço extremamente vasto, optou-se por aplicar um questionário online com os leitores de fanfics participantes da comunidade booktwitter. A origem da palavra booktwitter vem da junção de book traduzido como livro e twitter que é uma rede social que funciona como uma espécie de microblog. Na referida rede social, pode-se compartilhar textos de até 140 caracteres além de fotos e vídeos. Dentro dessa rede social, existe uma série de comunidades. Nessa esteira, os aficionados por literatura nomearam seu grupo dentro do twitter como booktwitter, onde estão reunidas todas as pessoas que gostam de dialogar sobre livros e todos os tipos de leitura.
O questionário foi compartilhado no booktwitter a partir de um curto prazo de tempo para que os fanfiqueiros pudessem responder via google forms. Selecionadas as 100 primeiras respostas obtidas no período de 6 horas, optou-se por trabalhar com apenas a metade dessa quantidade, sendo que apenas um recorte constitui o presente artigo, em que foram selecionados trechos de acordo com uma das categorias de análises, a saber: “as contribuições das fanfictions para formação dos jovens leitores”. Em seguida, as respostas foram sistematizadas e interpretadas de acordo com o referencial teórico que respalda esta pesquisa. Os resultados foram ilustrados em quadros para uma melhor visualização e compreensão dos achados deste estudo.
3. Literatura, leitor e fanfictions
Quando se pesquisa no google a respeito da definição de literatura, é possível encontrar diversas definições, uma delas fala que ela é a arte da palavra (SARTRE, 2006). Por esse motivo, gera-se uma série de questionamentos em torno da literatura, os quais perpassam sentimentos e emoções. Assim, nesta pesquisa, preferiu-se compreender que a literatura é a arte da palavra, sobretudo, significativa para seus leitores.
É sabido que a origem da literatura remonta desde a época das cavernas. Segundo Todorov (2009, p. 22), “a literatura não nasce no vazio, mas no centro de um conjunto de discursos vivos, compartilhando com eles numerosas características; não é por acaso que ao longo da história, suas fronteiras foram inconstantes”. Nesse sentido, percebe-se que os processos em que se desdobram a prática da leitura de literatura sempre impulsionaram mudanças no leitor, seja em seu pensamento crítico, criativo, enfim, na vida.
Com essa perspectiva em torno de uma aproximação das ideias sobre a literatura, é ainda válido afirmar que ela tem um papel importante na formação humana, especialmente pelo fato de ela tocar em vias internas do leitor. As experiências que são possibilitadas a partir do contato com a narrativa alteram em nós mais do que se pode ser visto, ou seja, o processo reflexivo no qual se mergulha, altera quem somos, pois existe na literatura um caráter humanizador pertencente unicamente a ela (CANDIDO, 2017). Nessa linha de raciocínio, também é percebido que a sua influência é capaz de nos formar em leitores politizados, criativos e autônomos.
Sua importância na vida do jovem leitor, principalmente na contemporaneidade, só veio se solidificar, apesar dos índices apontarem que se vive em uma sociedade que lê pouco ou que lê quase nada. Nessa esteira, suas possibilidades, suscitadas por meio das fanfics, são apenas um pouco do que se pode encontrar no ciberespaço. São nativos da cultura digital, portanto, deve-se estabelecer uma relação significativa com a leitura literária no espaço contemporâneo digital, já que a literatura faz parte da vida e existe para auxiliar o desenvolvimento da melhor versão do ser humano (TODOROV, 2009).
Desde o surgimento da humanidade, existem determinados grupos de pessoas que se reúnem em torno de uma obra, seja ela musical, teatral ou literária, para admirá-la. As pessoas que hoje integram esses grupos são conhecidas como fãs. Segundo o site Conceito, “um fã é um ferrenho, adepto ou seguidor de algo ou de alguém”. O termo provém do inglês fanatic, equivalente ao conceito de fanático na nossa língua. O fã é uma pessoa que defende com paixão, garra e tenacidade as suas preferências. Com o passar dos anos, esses grupos em que os fãs se reúnem ficou conhecido como fã-clube. Nesses clubes, os fãs desenvolvem diversas atividades a fim de se sentirem mais próximos da pessoa, ou manifestação artística admirada (OLIVEIRA, 2021).
Os surgimentos da internet, das tecnologias digitais e do ciberespaço fizeram com que as atividades desenvolvidas por esses fãs, dentro dos fã-clubes, fossem transformadas para acompanharem as mudanças advindas do contexto digital com o qual a humanidade passou a vivenciar, e também alterou a nomenclatura desses fã-clubes para fandoms. Os fandoms são caracterizados como os novos fã-clubes da contemporaneidade, a palavra vem da junção de duas palavras da língua inglesa que são kingdom, que significa reino, e fan que significa fã, em tradução livre a palavra se torna reino de fãs. “Com o advento da internet, os fandoms passaram a agregar um número cada vez maior de pessoas, rompendo barreiras geográficas e até mesmo linguísticas [...]”. (VARGAS, 2015, p. 24).
Vale ressaltar que fandom não é um só, existem diversos tipos de fandoms. Se somos fãs de determinado livro, por exemplo, Harry Potter, pode-se dizer que pertencemos ao fandom dos Potterheads, que significa fãs de Harry Potter; se somos fãs dos livros da saga Percy Jackson, pertencemos ao fandom dos Semideuses; se gostamos de uma banda, como Mcfly, o fandom ao qual pertencemos é o dos Galaxy Defenders, e assim por diante.
Independentemente de qualquer que seja o fandom, as fanfictions são a principal atividade desenvolvida dentro desse universo de leitores. Elas são vistas como atividades que possibilitam cada vez mais o acesso dos jovens pertencentes a essas comunidades ao mundo literário contemporâneo, já que, para estes, é bem mais fácil se interessar pela leitura a partir de algo que eles já gostam, do que por um texto rebuscado, ou indicado pela escola, com o qual muitas vezes não sentem identificação.
Talvez a principal novidade do sistema fandom resida na sua contribuição efetiva para a formação de um novo leitor. Um leitor que, além de receber, compreender e interpretar um texto individualmente, procura nos livros a oportunidade de participar de uma comunidade na Internet. Este novo leitor, que nasceu na era virtual, não aceita uma recepção passiva e não entende a leitura como uma atividade isolada. Além disso, considera-se realmente um fã dos livros, assumindo a relação entre erudição, mídia e entretenimento. (MIRANDA, 2009, p.1).
Os jovens advindos da cultura digital têm a internet e todas as ferramentas para manuseá-la ao seu dispor, por isso, eles sempre buscam estar conectados e presentes nos mais variados espaços. O fandom vem proporcionar aos leitores justamente a oportunidade de participar de uma comunidade ativa na internet, aliada ao papel de protagonismo que esses novos leitores tanto almejam.
Quando se pensa em fanfictions, logo se associa esse termo a algo recente, que surgiu com a polarização da internet e das tecnologias digitais, porém, elas datam desde antes do surgimento dessas novas ferramentas, só que essa modalidade de escrita/leitura sempre foi vista apenas como entretenimento, de forma negativa e, muitas vezes, até infantilizada.
Todavia, Vargas (2015, p. 22) discorre: “tem-se notícia do surgimento das fanfictions a partir do momento em que houve registro de um público leitor interessado nelas”. Alguns até relacionam a escrita das fanfics com as fanzines, as quais ficaram conhecidas em meados de 1970. Essas fanzines eram escritas à mão e trocadas entre fãs, só que essa troca era algo bastante restrito, ficando apenas naquele círculo de fãs. É tanto que, se pararmos para analisar, pode-se perceber que o nome fanzine “[...] remete novamente à palavra fan, desta vez unida à magazine – revistas em inglês que apresentavam uma estrutura basicamente caseira, com tiragem e circulação bastante modestas” (VARGAS, 2015, p. 23). Em meados dos anos 70, do século XX, os fãs leitores passaram a desempenhar um papel participativo, mesmo que, nessa época, sua participação tivesse menos enfoque.
Muito da popularização das fanfictions se deve aos jovens consumidores, fãs das obras literárias publicadas pela indústria cultural que está presente em nossa sociedade desde o final do século XIX, porém, os impactos causados pelo seu surgimento só passaram a ser percebidos mediante os avanços tecnológicos.
Vale ressaltar que a escrita desse trabalho não tem como objetivo criar problematizações sociais, políticas e econômicas referentes à indústria cultural, principalmente se tratando na área da literatura, a qual contribuiu para que a cultura de massa passasse a existir a partir dos romances de folhetim – mas é preciso registrar que a defesa do direito à leitura de literatura é para todos. Infelizmente, ainda não é o caso de nosso país. Todavia, ao defender o acesso à educação de qualidade, faz com que os textos literários e as fanfics sejam lidos de forma crítica e possibilitem uma nova percepção de mundo, que pode ser alcançada por meio da formação leitora, conforme explica Yunes (2010):
[...] não apenas de livros, mas leitor de imagens, leitor de várias linguagens, leitor da política, leitor de administração pública, leitor efetivamente compromissado com o seu olhar crítico na discussão dos caminhos que a sociedade precisa tomar para alcançar um equilíbrio entre a produção, o lazer, o bem-estar e a criatividade. (YUNES, 2010, p. 54).
Apesar do constante desafio de formar leitores, acredita-se que existam formas de cativar o interesse desses indivíduos. Afinal, falar em novas possibilidades de ler não exclui os textos considerados cânones. O cânone não deve ser deixado de lado, pelo contrário, sua presença na formação é essencial, aliás, “[...] a leitura, como muitas coisas boas da vida, exige esforço e que o chamado prazer da leitura é uma construção que pressupõe treino, capacitação e acumulação”, explica Azevedo (2004, p. 38). Assim, a literatura se faz necessária em todas as suas ricas versões ao longo da histórias, sejam clássicos ou textos contemporâneos.
Muitos leitores não passaram por esse processo de construção/reflexão, pois para eles as obras indicadas pela escola, na maioria das vezes, são ou foram extensas e, por vezes, complexas, ausentes de mediação e/ou significados, causando falta de interesse e distância por parte deles. Porém, é preciso lembrar que os índices de pesquisas, voltadas para a prática da leitura, apontam que a principal fonte de acesso aos livros é a escola e cabe a ela (re)pensar a mediação e o significado das práticas de leitura e dos textos literários.
4. Contribuições das fanfictions para formação dos jovens leitores
Ser leitor na contemporaneidade implica em uma série de fatores, como interesse, foco, incentivo, autonomia e condições para a aquisição de um livro, o qual, como sabemos, não é barato. As fanfics, nesse contexto, são uma forma de escrita/leitura que funcionam de forma acessível e que podem contribuir com a formação do leitor. Nessa esteira, apresentam-se, a seguir, alguns trechos que ilustram a voz dos leitores de fanfics, identificando as contribuições dessas na formação leitora.
As fanfics contribuem para/com a formação de novos leitores? Justifique sua resposta. |
Azriel: Com certeza, existem muitos tipos de literatura de "nicho" que não encontramos em escolas/livrarias/bibliotecas e também o fato de muitas vezes "você" já ter um interesse no objeto de inspiração da fanfic é um grande incentivo ao consumo da obra. |
Oliver: Com certeza. As fanfics antes de tudo são a extensão de histórias que já amamos, então acredito que é muito mais gostoso ler sobre o que já conhecemos. Quando a história é interessante e bem escrita, aliada a personagens que já adoramos é muito fácil passar horas lendo sem perceber que já se passaram mais de 20 capítulos. Isso pode despertar nossa curiosidade para novas histórias fora do universo das fanfics, então acredito que ajuda a criar hábitos de leitura. |
Cara: definitivamente, eu já vi inúmeros conhecidos que não tinham hábito de leitura e chegavam a dizer não gostarem de ler adquirindo hábito de ler constantemente depois de terem sido apresentados às fanfics, acredito que o fato de serem gratuitas e de fácil acesso junto com a possibilidade de ler sobre o assunto que quiser com diversas opções de conteúdo ajudam muito a desenvolver maior gosto pela leitura. Fanfics dão também uma variedade enorme de conteúdo para pessoas que não tem condições de ficar comprando livros. |
Por meio das vozes apresentadas com nomes fictícios de personagens de fanfics famosas, pode-se visualizar que Azriel acredita que as fanfics contribuem para a formação de novos leitores, por sua variedade de gêneros que ficam disponíveis, os quais, muitas vezes, não são encontrados em escolas/livrarias/bibliotecas.
Oliver acredita que, por essas histórias serem extensão de algo que já se admira, torna a formação do leitor algo possível de ser alcançado. Cara, por sua vez, afirma que uma das contribuições que torna possível a formação do leitor por meio das fanfics é a gratuidade das mesmas, além disso, visualiza-se como contribuição o fato de as fanfics se passarem em um cenário estimulante, reconfortante e tecnológico, o que dá aos novos leitores uma sensação de pertencimento quando esses se deparam com esse tipo de leitura.
Miranda (2009) também destaca isso em seus estudos ao dizer que os textos precisam se converter em uma provocação argumentativa, um manancial de ideias a ser, continuamente, revisitado, desconstruído e recriado. Portanto, um dos pontos fortes de se formar leitores por meio desse tipo de leitura corresponde às contribuições afetivas para a formação desses novos leitores, os quais passam a adentrar o universo literário por meio da busca por algo com o qual já tem uma afinidade.
Quadro 2 – Contribuições da leitura/escrita de fanfics
Escrever ou ler fanfics mudou sua forma de ler textos literários? |
Lissandra: Sim! Depois que comecei a ler fanfics consigo notar mais nuances na forma de escrita dos autores, principalmente as fanfics que leio em inglês, então me ajuda demais a me familiarizar com uma gramática e forma de pensar diferente. |
America: Com certeza. Não apenas melhorou meu vocabulário e a minha escrita, como também me ajudou a aprender inglês. Foi passando minha adolescência no Tumblr consumindo conteúdo em inglês, principalmente fanfic, que me tornou fluente na língua. |
Lily: Sim. As fanfics me apresentaram gêneros e escritas variadas, além de formas de exercitar minha imaginação para uma boa história. Graças a elas, meu TCC - chamado de TG na minha universidade - foi produzido com uma excelência de escrita que jamais teria atingido se não tivesse me interessado em criar histórias. |
Como mostrado no quadro 2, escrever e ler as fanfics mudou a forma como esses leitores leem os textos literários, trazendo também diversas contribuições, como no caso da Lissandra, que passou a perceber melhor a escrita dos autores, principalmente nas fanfics lidas por ela em inglês. America também é um exemplo no quesito aquisição de novas linguagens, pois, por meio do consumo de fanfics, em inglês, ela se tornou fluente na língua. Sobre essas contribuições, Amarilha (2013) traz à luz a importância da literatura em nossa formação e defende que essa intensa relação com o ficcional transforma os sujeitos enquanto leitores e também enquanto pessoas.
A importância desses resultados na vida de cada sujeito é incontestável, além de outras contribuições, como ampliação da imaginação, melhora da percepção a respeito dos sentimentos diante das diversas narrativas, velocidade de leitura, melhora da interpretação, envolvimento com a história, entre tantos outros benefícios que essa prática desencadeia na vida daqueles que dela fazem uso. Essas mudanças só vieram somar à formação desses indivíduos, e é isso que a leitura faz, especialmente a leitura interativa. Segundo Yunes (2010, p. 55), “convocam o leitor e facilitam o desenvolvimento do pensamento crítico, encaminham a construção do próprio juízo e da própria opinião, favorecem o aparecimento do desejo mobilizado pela comoção, pela sensibilização da inteligência”.
No quadro 3, perguntou-se aos leitores quem eles são depois da experiência com a leitura das fanfics. Além disso, pediu-se para que eles descrevessem os benefícios dessa prática em suas vidas.
Quadro 3 – Benefícios advindos da leitura de fanfics
Quem é você depois da experiência com a leitura das fanfics? Descreva os benefícios dessa prática na sua vida. |
Ema: As fanfics me ajudaram a encontrar toda uma comunidade de outros leitores e facilitou meu processo de criar novos amigos. Graças a fanfics também tive acesso a novas culturas, a assuntos aos quais desconhecia. Representatividade é algo novo em livros, e que só começou a ser questionado nos últimos anos, mas em fanfics minorias estão presentes desde sempre. Fanfics retratam diferentes vivências, trabalhando diversos problemas sociais. Além de que, como escritora, consegui um público cativo e engajado. |
Lissandra: A leitura de fanfic me ajudou/ajuda muito em momentos de ansiedade, já que eu volto e releio aquelas que mais me marcaram ou que eu gostei além do normal. Além disso me ajudou muito com meu aprendizado de inglês, já que basicamente eu treino minha leitura todos os dias com elas há mais de 10 anos (eu consigo notar quando a gramática em uma fanfic não está tão boa quanto poderia). Eu nunca terminei um curso de inglês, então tudo que sei vem das fanfics (no âmbito da escrita e compreensão de leitura) e séries de tv (aspecto oral e de pronúncia). Dessa forma, consigo ler artigoscientíficos e livros essenciais para minha graduação sem grandes dificuldades (a grande maioria deles é em inglês). |
Cara: Sou ainda mais engajada na leitura e consigo ter acesso a conteúdo quenormalmente pra mim seria difícil encontrar. Eu leio MUITO e meu ritmo é muito intenso então eu não conseguiria bancar minha necessidade de leitura, com as fanfics eu consigo ler bastante sem falir minha família, eu tenho problemas sérios de ansiedade e ler é meuprincipal mecanismo para lidar com isso e acalmar então é ótimo eu conseguir ter acesso a leitura tão fácil. Além disso, como uma mulher lésbica, é bem difícil pra mim encontrar obras que mostrem sobre a minha vivência de jeito não estereotipado e hiper sexualizado, coisa que consigo com fanfics muitas vezes escritas e lidas por pessoas lésbicas assim como eu, me sinto acolhida e representada melhor em fanfics do que em muitas obras literárias e cinematográficas. Também ganhei melhor conhecimento da língua inglesa porler muitas fanfic estrangeiras em inglês. |
No quadro 3, encontram-se alguns destaques no quesito benefícios que o ato de ler fanfics trouxe para vidas dos participantes de nosso estudo. No caso da Ema, as fanfics a ajudaram a encontrar toda uma comunidade de outros leitores e facilitou no processo de aquisição de novos amigos. Lissandra fala sobre a leitura de fanfics como uma forma de terapia, já que a ajudam em momentos de ansiedade. Cara passou a se sentir mais representada por meio do contato com a leitura de fanfics. Segundo Benevides (2008), pela leitura, reconhecemo-nos parte da humanidade, integramo-nos como sujeitos coletivos e sociais. Existe um mundo de atitudes, de vocabulário e de significados que alimentam os membros da comunidade fandom.
Para Amarilha (2013), tanto o fandom como a própria fanfiction são expressões da resposta do jovem ao universo literário com o qual esses leitores interagem. Nesse sentido, os benefícios citados aqui são reflexo do contato dos jovens leitores com esse tipo de leitura.
Verifica-se que as vozes dos sujeitos da pesquisa em questão implicam uma discussão para além de ler histórias por meio das telas. Ademais, independente do gênero e do espaço no qual se manifeste, a leitura age como transformadora, já que a literatura é uma porta aberta para o saber. Quando se torna leitor, passa-se a perceber o mundo à volta de forma completamente nova, e essa leitura que se faz vai se interligando à leitura que já é fornecida pelo mundo, de modo que as transformações acontecem. Assim, mesmo em um contexto aflorado de distrações – como é o ciberespaço –, a seriedade da leitura nunca será anulada.
5. Considerações finais
Refletir sobre a formação do leitor nos tempos atuais é algo desafiador. A leitura de literatura tem de competir com os mais diversos tipos de apetrechos tecnológicos sem perder o seu espaço e, muitas vezes, não é possível se dar conta de que tudo que se faz em meio às plataformas digitais culmina no ato de ler. Infelizmente, existem muitas práticas de leitura de literatura que ainda são pouco conhecidas ou valorizadas. As fanfics abordadas neste trabalho são um exemplo disso.
Por meio do percurso teórico, juntamente as vozes dos fanfiqueiros, conclui-se que o ato de “fanficar” pode trazer inúmeros benefícios na vida dos jovens leitores, como o incentivo à sociabilidade, o apoio em momentos de ansiedade, a reflexão sobre os dilemas humanos, a aquisição de novos idiomas, entre tantos outros.
A pesquisa mostrou que esse novo modelo de leitura online é bastante valorizado pelos jovens leitores, e, por meio dela, é possível formar não apenas o sujeito leitor, mas também o sujeito social, o qual enxerga na leitura um mundo de possibilidades, afinal, por meio do ato de ler, se dá a via de transformação, por isso se deve estar atento à necessidade de se discutir novas formas de leitura, especialmente no contexto atual, principalmente depois de se ter vivenciado o contexto epidêmico que só veio intensificar cada vez mais o uso da leitura e da literatura nas plataformas digitais.
Diante de tudo que foi relatado, reafirma-se o potencial desse novo modo de ler literatura, uma vez que as fanfics têm seu espaço cada vez mais reconhecido como instrumento de formação de novos leitores. Assim, espera-se dar continuidade aos estudos sobre fanfics, já que esse é um tema vasto e cheio de possibilidades.
Acredita-se, ainda, que esta pesquisa pode contribuir de forma positiva para os mediadores de leitura, pedagogos em formação e comunidades leitoras, e que por meio dessa temática seja possível a elaboração de novos saberes acerca da formação do jovem leitor que está em constante transformação.
Referências
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