Artigo

O Processo de Aprendizagem e Desenvolvimento à Luz da Psicologia Histórico-Cultural: contribuições à formação docente

Maria Luiza Barbosa Araújo
Universidade Regional do Cariri, Brasil
Cristina Cardoso de Araújo
Universidade Federal do Maranhão, Brasil
Francione Charapa Alves
Universidade Federal do Cariri, Brasil
Maria Márcia Melo de Castro Martins
Universidade Estadual do Ceará, Brasil

Práticas Educativas, Memórias e Oralidades

Universidade Estadual do Ceará, Brasil

ISSN-e: 2675-519X

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 4, núm. 1, 2022

rev.pemo@uece.br



Resumo: Este estudo objetiva analisar as teorias que perpassam o Projeto Pedagógico do Curso - PPC de Licenciatura em Ciências Biológicas de uma universidade pública do Ceará, com ênfase na Psicologia Histórico-Cultural. A investigação é de natureza qualitativa, e teve como método a pesquisa documental. Para a coleta de dados, utilizou-se PPC, que foi analisado por meio da técnica de Análise de Conteúdo. Os resultados obtidos mostram que o PCC é entrelaçado por uma diversidade de teorias da aprendizagem e do desenvolvimento, o que gera uma multiplicidade de metodologias e de práticas avaliativas. Tendo em vista que o PPC é um documento que deve contribuir com a elevação da qualidade do curso, assim como com a formação dos futuros professores, ressalta-se a necessidade de teorias críticas como a Psicologia Histórico-Cultural, para fundamentar as práticas docentes dos formadores de professores nos cursos de licenciatura, em particular, nas Ciências Biológicas.

Palavras-chave: Teorias da Aprendizagem e do Desenvolvimento, Psicologia Histórico-Cultural, Formadores de Professores, Ciências, Biologia.

Abstract: This study aims to analyze the theories that permeate the Pedagogical Project of the Course of Licentiate degree in Biological Sciences of a public university in Ceará, with emphasis on Historical-Cultural Psychology. The investigation is qualitative, and the method used was documental research. For data collection, PPC was used, which was analyzed using the Content Analysis technique. The results obtained show that the PCC is intertwined by a diversity of theories of learning and development, which generates a multiplicity of methodologies and evaluative practices. Considering that the PPC is a document that should contribute to raising the quality of the course, as well as to the training of future teachers, the need for critical theories such as Historical-Cultural Psychology is highlighted, to support the teaching practices of teacher educators, teachers of the Licentiate degree, in particular, of the Biological Sciences course.

1 Introdução

A formação de professores é práxis que necessita estar orientada quanto aos seus fundamentos filosóficos, epistemológicos e metodológicos, constituindo-se desafio importante para os cursos de licenciatura, os quais, em seus Projetos Pedagógicos de Curso - PPC, devem explicitar tais fundamentos, uma vez que estão diretamente relacionados com a forma/conteúdo da formação que se pretende materializar e com o papel social que assume no contexto da Educação, considerando que este complexo é essencial ao processo de humanização e transformação da sociedade, no sentido de contribuir com processos emancipatórios, destacadamente, no que diz respeito à superação do atual modelo de sociabilidade orquestrado pelo capital. Para tal intento, é mister considerar seriamente um dos processos essenciais à formação: a aprendizagem. Nas últimas décadas, tem-se investido em diversas estratégias de ensino, em metodologias que potencializem a aprendizagem, etc, mas precisamos indagar: tais proposições se ancoram em quais perspectivas e teorias de aprendizagem e desenvolvimento? Posto que é bastante questionável tratar de propostas de ensino, sem clareza de como os fundamentos destas concebem a aprendizagem e de como se articulam com ela. É fundamental que as metodologias/propostas de ensino sejam guiadas por teorias de aprendizagem e desenvolvimento alinhadas com o papel social que se pretende para a educação na perspectiva emancipatória de transformação social. É sabido da diversidade de teorias de aprendizagem e do desenvolvimento que, historicamente, foram produzidas e subsidiaram propostas educacionais, e que, assim como outras teorias no campo social, refletiram determinações dos contextos nos quais foram elaboradas, sejao econômico, o cultural, o político, etc, dentre as quais: Behaviorismo; Teoria da Aprendizagem por Transmissão/Tradicionalista; Teoria da Aprendizagem por Descoberta; Teoria da Aprendizagem Significativa; Teoria do Desenvolvimento Cognitivo de Piaget; Teoria do Desenvolvimento Afetivo de Wallon; Teoria Humanista de Rogers e Kelly; e, Psicologia Histórico-Cultural de Vigotski. Todavia, a escolha por uma ou outra, quando se trata da formação de professores, traz desdobramentos importantes sobre a forma como os(as) licenciandos(as) aprenderão os conteúdos e como, futuramente, conduzirão os processos de ensino em seus contextos de trabalho. Dentre as teorias elencadas, entendemos a Psicologia Histórico-Cultural de Vigotski como a que mais se alinha com o fim maior da Educação, a saber: a emancipação humana. Nesse sentido, e tendo por motivação as indagações, este estudo teve por objetivo analisar as teorias da aprendizagem e do desenvolvimento que perpassam o PPC de Licenciatura em Ciências Biológicas de uma universidade pública do Ceará, com ênfase na Psicologia Histórico-Cultural, tendo em vista a unidade teórico-metodológica, bem como uma formação humana integral. Metodologicamente, informamos que este estudo trata de uma investigação de natureza qualitativa, tendo como método a pesquisa documental. Como técnica de coleta de dados, foi utilizada a Análise Documental do PPC, mais precisamente de seus volumes 1 e 2, os quais tratam respectivamente, das perspectivas gerais do curso e das ementas de cada disciplina do curso. O estudo ancora-se nos autores das referidas teorias e em outros que nos ajudam a compreendê-las do ponto de vista de seus limites e avanços em relação à aprendizagem e desenvolvimento dos indivíduos. Aborda, brevemente, os fundamentos das teorias da aprendizagem e do desenvolvimento e a formação de professores; as teorias da aprendizagem que perpassam o Projeto Pedagógico da licenciatura em Ciências Biológicas e, antes das considerações finais, as contribuições da Psicologia histórico-cultural para a formação de professores de Ciências e Biologia.

2 Os Fundamentos das Teorias da Aprendizagem e do Desenvolvimento e a Formação de Professores

Antes de adentrarmos à análise, propriamente, e de explicitarmos as contribuições da Psicologia Histórico-Cultural à formação de professores, neste tópico, apresentamos brevemente os fundamentos de algumas teorias da aprendizagem e do desenvolvimento, a saber: Behaviorismo; Teoria da Aprendizagem por Transmissão/Tradicionalista; Teoria da Aprendizagem por Descoberta; Teoria da Aprendizagem Significativa; Teoria do Desenvolvimento Cognitivo de Piaget; Teoria do Desenvolvimento Afetivo de Wallon; Teoria Humanista de Rogers e Kelly; e Teoria Histórico-Cultural de Vigotski. Esta será retomada no tópico Contribuições da Psicologia histórico-cultural para a formação de professores de Ciências e Biologia. O Behaviorismo é uma abordagem comportamentalista de caráter empirista, ou seja, considera a experimentação como base para o conhecimento, sendo o conhecimento a forma de ordenar as experiências. Trazendo para o contexto educacional, para se proceder a uma análise comportamental é preciso considerar que tanto os elementos do ensino como as respostas que os alunos emitem podem ser analisadas com base no comportamento, embora no sistema de ensino haja padrões de comportamento que podem ser mudados através do treinamento de acordo com objetivos estabelecidos. Importante ressaltar que os objetivos estabelecidos são categorias de comportamento ou habilidades, sendo as habilidades as respostas emitidas (MIZUKAMI, 1986). O primeiro passo para o estudo do comportamento foi dado por Ivan Pavlov (1849-1936), que trabalhou com o reflexo condicionado, sendo esta uma das primeiras aproximações objetivas e científicas ao estudo da aprendizagem. Os trabalhos de Pavlov forneceram base para os estudos de John Watson (1878-1958), considerado o fundador do Behaviorismo. Watson estudou comportamento a partir dos princípios de estímulos e respostas aplicados em um determinado organismo, estando estes atrelados ao condicionamento de Pavlov (OSTERMANN; CAVALCANTI, 2011). De acordo com os estudos de Watson, a aprendizagem é resultado da conexão entre estímulo e resposta, em que essa conexão é construída baseada no condicionamento clássico de Pavlov. Watson se deteve ao estudo do comportamento observável, deixando de lado os processos mentais, os pensamentos e sentimentos de cada ser, pois apesar do mesmo não negar a existência destes processos mentais, para ele era improdutiva a pesquisa nesse meio. O mesmo defendia ainda a influência do meio no desenvolvimento do indivíduo, sendo para ele todo comportamento consequência das influências do meio, acreditando que todo ser nasce destituído de uma herança biológica, sendo considerado uma tábula rasa (JUNGES, 2017). Para Mizukami (1986), os behavioristas não se preocupavam muito com os processos cognitivos que se passavam na mente de um indivíduo durante o processo de aprendizagem, pois o foco dos mesmos era o controle do comportamento observável. Para eles a educação está ligada a transmissão cultural de conhecimentos e comportamentos éticos, práticas sociais e habilidades que são consideradas básicas para a manipulação do ambiente. Ligada às perspectivas behavioristas ou comportamentais da aprendizagem, situa-se a Aprendizagem por Transmissão ou Tradicionalista, que defende um ensino por transmissão, em que tem como centro do processo as exposições oratórias do professor que são encaradas como estímulos para os alunos (VASCONCELOS; PRAIA; ALMEIDA, 2003). Uma aprendizagem por transmissão está centrada no repasse conteudista do professor, em que estes conteúdos devem ser memorizados pelo aluno sem qualquer reivindicação (POZO; CRESPO, 2009). Os conteúdos abordados em um ensino por transmissão é puramente disciplinar, ocasionando assim uma ‘aprendizagem’ de conceitos puramente científicos que serão memorizados e em pouco tempo esquecidos (POZO; CRESPO, 2009). Com isso, percebe-se que não ocorre uma aprendizagem significativa, em que o discente possa realmente aprender assuntos que lhes sirvam para o dia a dia. Da mesma forma são as atividades, sendo estas de caráter memorístico e sem vínculo com o cotidiano do aluno, prevalecendo uma avaliação seletiva e não formativa. Nessa lógica, o professor assume o papel de autoridade máxima, sendo este o que sabe e que não deve ser questionado. É encarado como o provedor de informações que são transmitidas aos alunos da forma mais fiel e conteudista possível. O discente, por sua vez, assume uma postura passiva, sendo tratado como receptor de conhecimentos que devem ser reproduzidos como uma cópia original (VASCONCELOS; PRAIA; ALMEIDA, 2003). Em oposição ao modelo pedagógico behaviorista, surge a Teoria da Aprendizagem por Descoberta, proposta por Bruner, com o intuito de romper com a pedagogia transmissiva predominante, defendendo uma aprendizagem ativa, por meio da exploração e descoberta (VASCONCELOS; PRAIA; ALMEIDA, 2003)

Segundo Ostermann e Cavalcante (2011, p. 32), “[...] O método da descoberta consiste de conteúdos de ensino percebidos pelo aprendiz em termos de problemas, relações e lacunas que ele deve preencher, a fim de que a aprendizagem seja considerada significante e relevante [...]”.

Nessa perspectiva, a melhor forma de um aluno aprender ciências, por exemplo, é ele mesmo fazer essa ciência, pois com isso o mesmo terá a oportunidade de descobrir e ressignificar conhecimentos, tendo por base a metodologia da pesquisa científica. “Em outras palavras, a melhor maneira de aprender algo é descobri-lo ou criá-lo por você mesmo, em vez de outra pessoa ser intermediária entre você e o conhecimento” (POZO; CRESPO, 2009, p. 252). Essa afirmação de Pozo e Crespo (2009) remete-nos a uma reflexão sobre a profissão docente, pois sinaliza o esvaziamento do trabalho do professor. Nesse sentido, Facci (2004) esclarece que o profissional docente desde muito tempo é desvalorizado e tratado, não raro, de forma equivocada, desenvolvendo um papel que não é seu, como por exemplo, o de pai e mãe, tendo, ainda, sua identidade em crise, devido ao nível social que a profissão ocupa na sociedade, ou seja, sempre desvalorizada e tida como algo não tão fundamental para o processo de ensino e aprendizagem, como pressupõe o Ensino por Descoberta. Por esses e outros motivos é que a identidade dos professores precisa ser recuperada, de forma que haja valorização e respeito ao trabalho docente. Ainda na concepção de Pozo e Crespo (2009) as descobertas realizadas pelos alunos proporcionam a estes o acesso aos conhecimentos científicos, tornando-os, assim, sujeitos similares a cientistas. Em contraponto às ideias destes autores, é importante dizer que o papel do ensino de ciências na vida de um estudante e de qualquer indivíduo não é fazer com que o mesmo possa imitar cientistas, mas sim, formar um sujeito crítico e autônomo, em que a partir de seus estudos o mesmo possa entender como ocorreu a construção da ciência, qual a história da mesma, a importância desta para a sociedade, dentre outros fatores (KRASILCHIK, 1992). Quanto ao papel docente, este deve dirigir a pesquisa para que o aluno possa pesquisar e fazer suas próprias descobertas. Já a Teoria da Aprendizagem Significativa criada por Ausubel e colaboradores (1978) atribui à memorização um lugar distinto no processo de aprendizagem, quando comparada à Teoria da Aprendizagem por Descoberta. Fundamenta-se no construtivismo, pois considera o conhecimento como algo que vai sendo construído na estrutura cognitiva do aprendiz, a partir das interações entre sujeito e meio social. Assim, a aprendizagem é um processo pessoal que sofre influência tanto de fatores sociais, como também pela forma que é conduzida às aulas (VALADARES, 2011). Neste sentido, a estrutura cognitiva se fortalece através de fatores de ensino, como, por exemplo, uma exposição de conteúdo seqüencial. No entanto, vale ressaltar que se o conteúdo aprendido não estiver ancorado a conhecimentos já existentes na mente do aluno, não estará havendo uma Aprendizagem Significativa, mas uma aprendizagem mecânica (SILVA; SCHIRLO, 2014). Quanto a essa aprendizagem mecânica, a mesma consiste em quando uma “[...] nova informação é aprendida sem que haja interação com informações existentes na estrutura cognitiva do sujeito. A informação é armazenada de forma literal e arbitrária, contribuindo pouco ou nada para a elaboração e diferenciação daquilo que ele sabe” (GUIMARÃES, 2009, p. 199). Durante um processo de Aprendizagem Significativa, deve ocorrer a obtenção de conhecimentos, em que estes devem unir-se a um conceito subsunçor, segundo Ausubel, dando origem, assim, a pontes cognitivas. Desse modo, a relação existente entre as informações adquiridas e as já existentes não é uma relação qualquer, mas um processo de assimilação na qual o conceito subsunçor deve ser modificado, ou seja, ganhar significado (GUIMARÃES, 2009). No processo de Aprendizagem Significativa, a organização dos conteúdos ocorre de forma hierárquica, ou seja, parte dos conteúdos mais gerais para os mais específicos. As atividades de ensino devem ter uma relação entre o que o aluno já sabe e o que irá aprender, sendo de extrema importância os organizadores prévios de informações. Ainda em se tratando do construtivismo, situa-se a Teoria do Desenvolvimento Cognitivo de Piaget.

Para Ostermann e Cavalcanti (2011, p. 32), a Teoria de Piaget “não é propriamente uma teoria de aprendizagem, mas uma teoria de desenvolvimento mental. Ele distingue quatro períodos gerais de desenvolvimento cognitivo: sensório-motor, pré-operacional, operacional-concreto e operacional-formal”.

Em relação aos estágios de desenvolvimento intelectual, é importante lembrar que em cada estágio o indivíduo vai construindo estruturas cognitivas de acordo com as necessidades e situações vividas, em que essas estruturas vão sendo interligadas pelos diferentes estágios. Piaget considerou, ainda, conceitos importantes no que diz respeito ao desenvolvimento do conhecimento, como: assimilação, acomodação e adaptação. Assimilação é entendida quando a criança, por exemplo, se depara com algo novo e dele extrai informações que serão guardadas em sua mente. Acomodação ocorre a partir da assimilação, ou seja, ao assimilar uma informação deve haver modificações na estrutura mental da criança. Por isso que assimilação e acomodação só se efetivam se ambas acontecerem. Adaptação é um estado de equilíbrio entre assimilação e acomodação (SANTOS; OLIVEIRA; MALUSÁ, 2017). Outra contribuição de Piaget para a educação diz respeito ao processo de ensino reversível. Para Piaget, ensinar envolve a provocação de desequilíbrios que não devem ser irreversíveis, mas reversíveis a ponto do sujeito voltar ao estado de equilíbrio. É nesses desequilíbrios que o discente mostra suas habilidades e desenvolve novas competências, e tudo isso deve acontecer por intermédio do professor, que auxilia seu aluno na busca por um novo equilíbrio. Dessa forma, o processo de ensino e aprendizagem reversível deve ser alternado por equilíbrios e desequilíbrios, acontecendo, assim, assimilação e acomodação de informações (OSTERMANN; CAVALCANTI, 2011). Outra teoria bastante considerada no campo da Educação é a Teoria do Desenvolvimento Afetivo de Wallon. Wallon (1879-1962), foi fundamental para a educação e para o entendimento de como o ser humano se desenvolve e quais as condições ideais para este desenvolvimento. O mesmo estudou o funcionamento humano, levando em consideração os aspectos afetivo, cognitivo e motor, que influenciam e são essenciais ao longo da vida de um indivíduo. A Teoria do Desenvolvimento Afetivo de Wallon, apesar de não ter conseguido explicar todas as transformações que o ser humano vivencia, a mesma foi muito eficaz, pois proporcionou uma visão complexa do desenvolvimento de um indivíduo desde seu nascimento até a velhice. Inclusive, Wallon foi um dos únicos estudiosos que se deteve aos estudos do ser na velhice, já que este considerava que o sujeito nunca para de se desenvolver (PETRONI; ANDRADA; SOUZA, 2017). Na teoria de Wallon, os principais eixos do processo de desenvolvimento são a afetividade e integração. Integração entre o organismo e o meio e integração afetiva, motora e cognitiva. Considerando a integração entre o organismo e o meio, Wallon enfatizou que é essencial essa relação, pois os fatores socioculturais são fundamentais no desenvolvimento do ser humano. Quanto à integração afetiva, motora e cognitiva, Wallon denominou de conjuntos funcionais, incluindo, ainda, a pessoa como o quarto conjunto (MAHONEY; ALMEIDA, 2005). No campo das Teorias Humanistas, encontramos a Teoria Humanista de Rogers. De acordo com Mizukami (1986, p. 37-38), as teorias humanistas dão enfoque ao sujeito, com ênfase nas “[...] relações interpessoais e ao crescimento que delas resulta, centrado no desenvolvimento da personalidade do indivíduo, em seus processos de construção e organização pessoal da realidade [...]”. Rogers não objetivou entender o comportamento, o desenvolvimento cognitivo de um indivíduo, mas sim, o crescimento pessoal do aluno, pois o considera como uma pessoa que deve se autor realizar por intermédio do ensino, visando uma aprendizagem que engloba fatores afetivos, cognitivos e psicomotores. Para ele, os estudantes precisam ser muito mais compreendidos, do que avaliados, julgados e ensinados (OSTERMANN; CAVALCANTI, 2011). Mizukami (1986, p. 41) aponta que “para Rogers a realidade é um fenômeno subjetivo, pois o ser humano reconstrói em si o mundo exterior, partindo de sua percepção, recebendo os estímulos, as experiências, atribuindo-lhes significado [...]”, sendo “a experiência pessoal e subjetiva [...] o fundamento sobre o qual o conhecimento é construído, no decorrer do processo de vir-a-ser da pessoa humana” (MIZUKAMI, 1986, p.43). Quanto a Teoria Humanista de Kelly, esta leva em consideração a Psicologia dos Construtos Pessoais, ou seja, os construtos que são ideias construídas pelo próprio ser, implicam no processo de ensino e aprendizagem, uma vez que permitem a reconstrução dos paradigmas internos do indivíduo, ocorrendo aprendizagem na medida em que os construtos pessoais são repensados de acordo com os construtos formais. Nesse contexto, o professor torna-se um profissional mediador do processo, devendo facilitar e direcionar a formação de novos construtos, respeitando sempre os limites do aluno (SILVA, 2017). Por fim, a Teoria Histórico-Cultural de Vigotski que traz grandes contribuições a educação. O objetivo de Vigotski (1986-1934) esteve direcionado para o desenvolvimento da consciência, quer dizer, do psiquismo humano. Sua tese é que este é construído social e historicamente. Dentre seus estudos, um conceito importante é o de Zona de Desenvolvimento Imediato, que no Brasil chegou equivocadamente como Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). “Trata-se de um estágio do processo de aprendizagem em que o aluno consegue fazer sozinho ou com a colaboração de colegas mais adiantados o que antes fazia com o auxílio do professor, isto é, dispensa a mediação do professor” (VIGOTSKI, 2009, p.10). Para Vigotski, a aprendizagem ocorre a partir das interações entre o sujeito e a Cultura, em que o indivíduo não pode ser visto como uma lousa em branco, pois suas interações com o meio sócio-cultural devem ser consideradas, pois a partir destas pode-se construir conhecimentos mais profundos e elaborados (SILVA, 2017). Nesse processo de aprendizagem, Ostermann e Cavalcanti (2011) relatam que o professor é um mediador e peça fundamental no processo de ensino, pois o sucesso da aprendizagem discente depende muito da qualidade dos instrumentos usados pelo docente. Na Teoria de Vigotski, a aprendizagem é tratada como algo contínuo que vai sendo construído aos poucos e por intermédio de mediações. A relação socialque o sujeito vivencia, seja em casa ou na escola, contribui para que o mesmo possa perceber a diversidade sócio-cultural, como ainda ajuda no desenvolvimento intelectual. Por isso, que é importante uma relação de cooperação entre ambiente escolar e familiar, para que o aluno possa entender que ambos os espaços são propícios para a sua aprendizagem, pois antes mesmo do sujeito ir para escola ele já sabe muita coisa, aprende até mesmo durante o caminho, mas a escola oferece outros conhecimentos que podem ser assimilados pelo discente (COELHO; PISONI, 2012). Vislumbrando o potencial da Psicologia Histórico-Cultural para a formação de professores, esta teoria será retomada no tópico Contribuições da Psicologia Histórico-Cultural para a formação de professores de Ciências e Biologia.

3 As Teorias da Aprendizagem que Perpassam o Projeto Pedagógico da Licenciatura em Ciências Biológicas

O PPC analisado é resultado do trabalho conjunto de todo o colegiado do curso de Ciências Biológicas em questão, e demais cursos da instituição, que juntos, tentam buscar soluções para os constantes desafios que são postos aos profissionais da educação. Neste sentido, o PPC do referido curso é um documento que, a cada término da validação do curso, deve ser submetido à nova avaliação. No momento da pesquisa, o PPC estava vigente até o final do ano de 2019 (PPC, 2013). O PPC, por ser um documento coletivo e integrador, quando elaborado, executado e avaliado requer por parte deste coletivo um clima de cooperação e diálogo, visto que é um trabalho que envolve muitas vozes. A legitimidade de um PPC está diretamente relacionada com o grau e tipo de participação dos envolvidos no processo. Elaborar o PPC de um Curso de Formação significa ir em busca do enfrentamento do desafio da inovação emancipatória, pois bem mais difícil que elaborar, é executá-lo de forma emancipadora, política e democrática. Considerando as constantes mudanças científicas e tecnológicas que a sociedade enfrenta, o PPC expõe que, as instituições formadoras precisam sempre estar atentas em relação a seus projetos educativos, de forma que os mesmos possam manter-se atualizados, e assim contribuir para a formação de sujeitos críticos e ativos. Desse modo, escolas e universidades desempenham papel fundamental nessa formação, uma vez que os princípios formadores dessas instituições abrangem aspectos sociais, políticos, cognitivos, psicológicos, dentre outros (PPC, 2013). Legalmente, o PPC encontrava-se, à época da pesquisa, amparado pela Resolução nº. 01/2002 do Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em Nível Superior, em Cursos de Licenciatura, de Graduação Plena, nos Pareceres de nº. 9/2001 e 27/2001, também deste Conselho, na qual fornecem os princípios gerais que norteiam a organização dos Projetos dos Cursos de Licenciatura, conferindo qualidade ao currículo e ao processo formativo desses profissionais. Considerando a estrutura do vol.I do PPC do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, o mesmo organizava-se nas seguintes seções: informações gerais no que diz respeito ao PPC e à instituição; justificativa da elaboração do PPC; caracterização do curso; informações acerca do licenciado, levando em consideração os princípios norteadores, função e perfil profissional, habilidades e competências, campos de atuação; estrutura do curso, elencando os objetivos do curso, estrutura e organização curricular; Projetos de Monitoria e Iniciação à Docência; plano de avaliação; Projetos de Extensão; corpo funcional; estrutura física e equipamentos. Sobre os princípios norteadores da formação do licenciando elencados no PPC, estes aproximam-se da Teoria da Aprendizagem por Descoberta; Psicologia Histórico-Cultural de Vigotski, ao elencar que o espaço de formação deverá integrar teoria e prática profissional, desenvolver ações interdisciplinares, cujas atividades sejam orientadas metodologicamente pela problematização da realidade e abordem os conteúdos de ensino de acordo com a didática que melhor ampare o seu desenvolvimento (PPC, 2013). Consoante às ideias de problematização e contextualização da realidade como estratégia didática, Ricardo (2003, p. 6), apoiado nas ideias de Paulo Freire, aponta que, dessa forma “possibilita o diálogo, não só com a realidade do sujeito, mas também entre professor e aluno, o que caracteriza fundamentalmente a proposta de Freire [...]”. Esclarece ainda a relevância, “[...] de um conhecimento significativo que tenha sua origem no cotidiano do sujeito em sua tomada de consciência da realidade pronunciada e que os conhecimentos apreendidos possuam a dimensão da universalidade [...]” (RICARDO, 2003, p. 8). O PPC coloca que a nível de formação, o licenciando deve receber conhecimentos que lhes possibilitem uma prática docente no âmbito da Educação Básica que vá para além do uso exclusivo de modelos explicativos, devendo haver a exploração das capacidades de reflexão, análise e intervenção da realidade concreta, partindo de problemas sociais (PPC, 2013). Aqui, percebe-se uma crítica direcionada aos métodos tradicionais, indo assim, de encontro a Teoria da Aprendizagem por Transmissão/tradicionalista. Libâneo (1992, p. 4) aponta que “a pedagogia liberal tradicional é viva e atuante em nossas escolas [...]”, porém, apesar desse enraizamento profundo da Pedagogia Tradicional, a mesma pode ser inovada perante a outros métodos de ensino e de aprendizagem desde que alunos se apropriem dos conhecimentos social e historicamente produzidos de forma dinâmica mediados pela prática docente. No sentido de enriquecer o processo de aprendizagem nas instituições e trazer novas abordagens para integrar o campo do ensino-aprendizagem, o PPC propõe que “[...] o processo de formação dos professores será orientado no sentido de desenvolver o espírito de investigação, a capacidade de raciocínio e a autonomia de pensamento [...]” (PPC, 2013, p. 22). Diante disso, estão implícitas a Teoria da Aprendizagem por Descoberta e Teoria da Aprendizagem Significativa, uma vez que estas teorias propõem o uso da investigação, visto que podem contribuir para o desenvolvimento da capacidade cognitiva, afetiva e motora dos sujeitos envolvidos, indo essas ideias ao encontro das Teorias de Piaget, Wallon, Rogers. Uma vez alcançados o desenvolvimento afetivo, cognitivo e motor de um sujeito, essa conquista contribui para o aprimoramento da capacidade de raciocínio e autonomia de pensamento de cada educando. A formação de professores, segundo o PPC, deve caminhar em direção a uma prática docente democrática, autônoma e reflexiva, deixando de lado políticas autoritárias, que massificam o ensino e não promovem a aprendizagem discente. Conforme esta premissa, estão implícitas todas as teorias de aprendizagem tratadas nesta pesquisa, exceto a Teoria da Aprendizagem por Transmissão/tradicionalista, pois esta visa o professor como o centro do processo de ensino-aprendizagem, detentor do conhecimento, etc., contradizendo o que as demais teorias aqui expostas apresentam; e, o Behaviorismo, visto que professor para os behavioristas é tido como um engenheiro do comportamento, em que visa maximizar o conhecimento dos alunos. Gadotti (2003, p. 3) expõe que ser professor nos tempos atuais requer “[...] viver intensamente o seu tempo com consciência e sensibilidade. Não se pode imaginar um futuro [...] sem educadores. Os educadores, numa visão emancipadora [...] formam pessoas [...]”. Em síntese, o PPC (2013, p. 25) aponta que a finalidade da formação na Licenciatura em Ciências Biológicas “[...] se expressa pelo “conhecimento profissional de professor” cuja essência se forma pelo conjunto de saberes teóricos e experiências que não deverá confundir-se com a superposição de disciplinas mediada por conceitos e técnicas [...]”. Ainda para o PPC (2013, p. 25), “[...] por um saber fazer sobre uma situação concreta, viabilizada através dos núcleos estruturantes do currículo, devidamente articulados, em que os conhecimentos se constroem de forma problematizadora, por meio do trabalho individual e de grupo [...]”. Concorrendo para a consecução dessa finalidade, todas as teorias de aprendizagem expostas nessa pesquisa, exceto a Teoria da Aprendizagem por Transmissão/tradicionalista e Behaviorismo, podem auxiliar no cumprimento do papel da Licenciatura em Ciências Biológicas, uma vez que as mesmas viabilizam uma formação pautada nos aspectos da resolução de problemas ligados à realidade social do educando, aspectos cognitivos, afetivos, motores, didático-pedagógicos, etc. Com isso, como meio para materializar uma formação integradora e dinâmica, o PPC estabelece que o currículo formativo deverá apresentar dinamicidade que possibilite a ampliação de conhecimentos e experiências ligadas à prática profissional. Para isso, torna-se necessário “[...] mobilizar outros conhecimentos provenientes de diferentes experiências em tempos e espaços curriculares diversos, tendo em vista refletir, solucionar ou prever novas situações pedagógicas” (PPC, 2013, p. 26). Desse modo, manifesta-se acima a Teoria da Aprendizagem Significativa pois enfatiza o uso de conhecimentos existentes que cada educando carrega consigo, em que estes podem ser mobilizados para a construção de outros conhecimentos, podendo estes serem mais significativos. Gadotti (2003) chama atenção para o fato de que o aluno deve (re) construir seus conhecimentos a partir de experiências que lhes são significativas, por isso que, aprende-se aquilo que faz sentido para si. No que diz respeito à função profissional do licenciando, o PPC elenca diversas funções, contudo as principais indicam que os professores licenciados no âmbito do curso de Ciências Biológicas precisam dispor de competências, habilidades e atitudes que contribuam para a formação do cidadão, seguindo princípios éticos e políticos, a fim de alcançar as melhores estratégias de aprendizagem. Dentre as diversas funções que são atribuídas ao professor, estão implícitas todas as teorias de aprendizagem citadas nesta pesquisa, exceto a Teoria da Aprendizagem por Transmissão/tradicionalista e Behaviorismo. Nessa direção, a profissão docente não é uma tarefa simples de ser posta em prática, pois a mesma vai muito além da exposição de conteúdos. Toda atividade docente a ser realizada deve ser mediada pela reflexão de considerar qual a intenção desta atividade, e assim buscar meios para efetivar o trabalho pedagógico de forma que professores e alunos possam relacionar-se e juntos venham a construir uma aprendizagem transformadora de ideias, de vida e da realidade social (MENDES; BACCON, 2015). Ancorado nessas colocações, o curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, segundo o PPC, apresenta vários objetivos, perpassando por alguns deles o foco em usar métodos de investigação científica e a solução de problemas reais a partir da prática pedagógica docente, conforme explicitado a seguir: “Solucionar problemas reais da prática pedagógica, observando as etapas de aprendizagem dos alunos, como também suas características socioculturais, mediante uma postura reflexivo-investigativa” (PPC, 2013, p. 37 e 38). No âmbito dos objetivos específicos tratados no PPC, todas as teorias de aprendizagem se manifestam de forma implícita, pois estes contemplam uma formação pautada nos aspectos didáticos, pedagógicos, cognitivos, humanísticos, sócio-culturais, dentre outros. As situações de aprendizagem propostas pelos objetivos do curso vão ao encontro das teorias trabalhadas nesta pesquisa, como a exploração de problemas, atividades investigativas e de pesquisa, debates, domínio de conteúdos, etc. sendo isso algo de extrema importância, pois percebe-se que o curso de Ciências Biológicas propõe uma formação docente não restrita a uma só corrente de ensino-aprendizagem, mas sim um ensino que é envolvido por muitas teorias de ensino e de aprendizagem. Mizukami (1986) propõe que os cursos de formação de professores devem possibilitar, em suas propostas de ensino-aprendizagem, situações conflitivas entre as abordagens didáticas, pois cada teoria de aprendizagem não é algo prontamente acabado e inteiramente correta e eficaz, mas sim, várias teorias juntas podem promover um trabalho mais emancipador e transformador. Estes cursos devem também proporcionar aos professores uma análise de seu próprio trabalho docente, para que o mesmo possa estar ciente de suas ações, podendo, sempre que viável, refletir sobre o mesmo. Em relação às atividades didáticas que serão desenvolvidas em cada disciplina do curso, estas ficam a critério dos professores, contudo, o PPC sugere algumas atividades: desenvolvimento de pesquisas científicas, projetos temáticos, estudos de casos, produção textual e de material didático-pedagógico, seminários, oficinas, palestras, dentre outras. As atividades sugeridas pelo PPC se aproximam, de forma implícita, da Teoria da Aprendizagem por Descoberta, ao propor atividades de pesquisa de materiais que auxiliem o estudo dos alunos, projetos investigativos de determinados temas, etc. Estão implícitas também as ideias de Piaget, Wallon, Rogers e Kelly, Vigotski e Paulo Freire, uma vez que há atividades que requerem uma postura crítica e mais ativa dos sujeitos; e, Aprendizagem por Transmissão/tradicionalista e Behaviorismo, pois seminários e palestras a depender de como são realizados, apresentam traços dessas teorias. No que diz respeito ainda ao campo de atividades, o PPC (2013, p. 44) trata das atividades extracurriculares e de programas de monitorias e de iniciação à docência, como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), em que estas “compreendem estudos e atividades de natureza diversa que não fazem parte da oferta acadêmica do Curso [...]. Essas atividades visam à complementação da formação profissional do Biólogo para o exercício de uma cidadania responsável [...]”. No que diz respeito ao vol. II do PPC da Licenciatura em Ciências Biológicas, este é constituído pelo programa de disciplinas do curso, sendo, primeiramente, expostas as das disciplinas obrigatórias e, posteriormente, das disciplinas optativas. Na estrutura do programa das disciplinas apresenta: nome, código, créditos, horas/aulas, pré-requisitos da disciplina, ementa, objetivos, conteúdo programático, metodologia de ensino, formas de avaliação e referências. Para a coleta de dados desta pesquisa, todos os programas das disciplinas foram analisadas, com o objetivo de verificar quais teorias de aprendizagem se fazem presentes nas mesmas, especificamente em suas metodologias e avaliações. Salienta-se que, a explicitação das teorias de aprendizagem encontradas em cada ementa, nas seções metodologias e avaliações, será feita de forma geral, devido a limitação de páginas desta escrita. No geral, as disciplinas apontaram como recursos metodológico e didáticos ouso de: aula expositivo-dialogada, aula expositiva, estudo dirigido, seminário, grupo de discussão, debate, paineis, oficinas teórico-práticas, slides, transparências, pincel, quadro-branco, CDROM, retroprojetor e fitas de vídeo, aula prática em laboratório ou campo, trabalho em grupo, palestras, filmes, uso de exposições, leituras individuais e coletivas de textos e/ou artigos, resumo, pesquisa de campo, descrição morfológica/anatômica, dinâmicas, elaboração de projetos, aula de campo, estudo de caso, problematização. Com relação às formas de avaliações utilizadas, destacam-se: diagnóstica continuada, avaliação por meio de relatórios de aulas práticas de laboratório/campo/estágio, seminário, trabalho em equipe, provas objetivas e subjetivas, estudo dirigido e atividades de fixação, avaliação processual através de atividades elaboradas pelos alunos em sala de aula, frequência, pontualidade, interesse e participação nas aulas por parte dos alunos, cumprimento dos trabalhos programados e desenvolvidos em grupo, avaliação individual, avaliação por meio de projetos, expressão oral e/ou escrita, produção de material didático, avaliação progressiva, relacionamento interpessoal do aluno. Após a análise das ementas e mapeamento das metodologias e formas avaliativas, verifica-se a presença de todas as teorias de aprendizagem nos vol. I e II do PPC. Esse fato evidencia o quão diversificado pode ser o processo de ensino-aprendizagem no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, corroborando, assim, com as ideias de Mizukami (1986), que ressaltam a importância do trabalho conjunto entre as diferentes abordagens de ensino-aprendizagem. Ademais, é importante frisar que tanto na análise do vol. I, quanto do vol. II do PPC, em geral, as teorias manifestam-se no documento de forma implícita. Sobre o vol. II, ou seja, o documento das ementas das disciplinas, o que está posto em cada uma faz parte daquilo que pode-se denominar de conteúdo, porém, a forma como este irá chegar aos estudantes depende da prática pedagógica de cada professor, ou seja, das condições objetivas e subjetivas que permeiam o trabalho docente. Além disso, por vezes, a escrita no papel pode apontar para uma determinada teoria, mas na prática pode se direcionar e contemplar os fundamentos de outra. Disso decorre o cuidado ao lidar com essas teorias, devendo estas não serem anuladas e extintas do meio educacional, mas sim, discutidas e analisadas para que possam compor os cenários que melhor condizem com perspectivas emancipatórias de trabalho e formação docente.

4 Contribuições da Psicologia Histórico-Cultural para a Formação de Professores de Ciências e Biologia

A Psicologia Histórico-Cultural, tributária de Vigotski, Leontiev e Luria, alinha-se ao materialismo histórico dialético. Parte da compreensão de que “a humanidade não “nasce” nas pessoas a partir delas mesmas, mas resulta da humanidade objetivada e disponibilizada às suas apropriações” (MARTINS, 2013, p. 131), e volta-se “à análise das condições objetivas que, em uma sociedade de classes, reservam condições desiguais de humanização para diferentes indivíduos” (MARTINS, 2013, p. 132). Partindo dessa compreensão e não por acaso:

Vigotski (1996) dedicou-se ao estudo das relações entre ensino e desenvolvimento, apontando a ordem de condicionabilidade do primeiro sobre o segundo. Evidenciou que é o ensino que promove o desenvolvimento, diferentemente do que postulara as concepções naturalizantes e anistóricas veiculadas pela psicologia tradicional. Para o autor, apenas as contradições instaladas entre o legado da natureza e o disponibilizado pela cultura promovem a ascensão das estruturas mentais “simples”, elementares, em estruturas “complexas”, superiores. (MARTINS, 2013, p. 135-136).

Santos e Aquino (2014, p. 136), apontam que segundo Vigotski, “os conteúdos disponibilizados à apropriação encerram aspectos qualitativamente distintos, de sorte que nem toda aprendizagem é, de fato, promotora de desenvolvimento”.Os autores ainda destacam que Vigotski aponta que, “para que ela promova desenvolvimento há que incidir sobre as estruturas psíquicas, transformando-as”. Assim, conforme estes autores, os fenômenos psíquicos não podem ser considerados e estudados como meros objetos, mas como processos em mudança, nos quais a mediação tem papel importante, pois ela é elo fundamental entre o meio sócio-cultural e o indivíduo. Faz-se mister destacar que se esta ação mediadora para com o aluno for realizada por um professor, amigo, parente, etc., diz-se que é uma mediação pedagógica. Se a mesma for realizada através dos signos, sendo o signo mais importante à linguagem, a mediação é semiótica, posto que ocupa-se do estudo dos signos (COSTA, 2006). Bernardes (2010 apud SANTOS; COSTA, 2014, p. 79) afirma que:

Os signos e os instrumentos, como uma construção historicamente elaborada pelo homem, têm como finalidade mediar o processo de apropriação da realidade, e paralelamente criar condições para a transformação da natureza. Os signos agindo na transformação da atividade interna e os instrumentos na atividade externa ao homem.

Assim, “a mediação semiótica torna compreensível a origem e natureza social da vida psíquica, o caráter produtivo da vida humana e o processo social do conhecimento e da consciência (SANTOS; COSTA, 2014, p. 81).Esse entendimento é fundamental para a compreensão do papel social da Educação, da formação de professores e do ensino, no processo de humanização dos indivíduos, o que inclui o ensino de Ciências e Biologia na escola e a formação dos professores dessa área, processos que pressupõem uma aprendizagem efetiva por meio da apropriação dos conteúdos escolares, ou seja, do conhecimento produzido e sistematizado pela humanidade e capaz de intervir na realidade. A formação dos professores de Ciências e Biologia não pode prescindir dos fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural, sob pena de considerar a aprendizagem alheia aos aspectos sociais e de produção objetiva e subjetiva da vida. Tal produção diz respeito a como o conjunto dos homens se relaciona entre si e com o ambiente natural, na construção do mundo humano, tendo em vista a relação de dependência ineliminável que temos com a natureza. A Psicologia Histórico-Cultural, ao se comprometer com o desvelamento dessas relações, apresenta-se como referencial essencial a uma formação emancipatória, na direção da superação da sociedade de classes, geradora de alienação e limitadora do desenvolvimento pleno das potencialidades humanas.

Desse modo, Silva e Souza (2022, p. 2), elencam que, “diante dos dilemas e problemas atuais que influenciam a formação docente, é preciso pensar na profissão, sabendo que diversos elementos impactam a formação de professores, principalmente em um contexto repleto de contradições, como é no Brasil”. Assim sendo, é preciso que todos os que fazem parte desse processo formativo estejam “[...] inseridos na luta por melhores condições de trabalho, aprendizagem de todos os discentes, de condições de vida com dignidade e justiça para todos [...]” (SOUZA; ANSELMO, 2021, p. 11).

5 Considerações finais

O estudo em tela possibilitou suscitar reflexões sobre a necessidade de as práticas docentes no âmbito da formação de professores considerarem as teorias de aprendizagem e desenvolvimento que subsidiam o currículo das licenciaturas, na direção da transformação social e emancipação humana. Reafirma-se a importância de os professores formadores reconhecerem os fundamentos filosóficos e epistemológicos que sustentam suas propostas metodológicas, sob pena de adotarem uma prática empiricista no tocante ao que podem contribuir efetivamente para o processo de aprendizagem e desenvolvimento dos educandos. A clareza quanto aos fundamentos de seu fazer no processo de condução do ensino, tendo em vista a aprendizagem, possibilitará uma prática docente mais intencional, efetiva, sobretudo quando se trata da formação de professores, os quais também passarão a conduzir processos de ensino na Educação Básica. Nesse sentido, a defesa da Psicologia Histórico-Cultural como fundamento que precisa estar presente na formação de professores, deve-se a seus fundamentos no Materialismo Histórico Dialético e à concepção histórico-cultural de homem, de sociedade e da natureza educativa que pauta a relação entre ambos por meio da atividade vital humana, isto é, por meio do trabalho, como afirma Martins (2013), embora se reconheça a importância e contribuições de outras teorias que também estão voltadas para a aprendizagem. Em relação ao PPC, no caso específico do curso em questão, a Psicologia Histórico-Cultural foi identificada, explicitamente, nas disciplinas de Psicologia, o que suscitou indagar se essa teoria estaria restrita às disciplinas mencionadas ou se plasmam a formação dos futuros professores de Ciências e Biologia, de modo amplo e articulado. Questão que, certamente, suscitará novos estudos e requererá maior aprofundamento em relação à Teoria da Psicologia Histórico-Cultural.

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