Artigo

A educação da criança no Século XIII: reflexões acerca da importância da formação cristã na perspectiva de Ramon Lull

Cláudia Sena Lioti
Universidade Estadual do Paraná, Brasil
Márcia Marlene Stentzler
Universidade Estadual do Paraná, Brasil

Práticas Educativas, Memórias e Oralidades

Universidade Estadual do Ceará, Brasil

ISSN-e: 2675-519X

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 4, núm. 1, 2022

rev.pemo@uece.br



Resumo: Neste artigo, temos como proposta apresentar uma reflexão sobre as concepções presentes na educação das crianças no século XIII. Partimos de uma revisão bibliográfica, em que buscamos apresentar argumentos com base em escritos já consolidados sobre a crença na importância de uma educação na qual o princípio norteador foi a fé cristã, mas que deu valor semelhante à aprendizagem da ciência e das artes liberais para a formação humana. Nosso estudo terá por base Ramon Lull e sua obra Doctrina Pueril (1274-1276). Tal ensaio foi escrito e direcionado ao seu próprio filho (Domingos) e apresenta preceitos acerca de como se deve educar a infância, tendo em vista a formação de um sujeito com fé e virtudes necessárias para a vida social. As reflexões apresentadas no artigo evidenciam a importância que se dava, desde a Idade Média, para uma formação que desenvolvesse a humanidade de cada indivíduo, embora, o contexto da época aponte para uma educação com íntimas ligações com a religiosidade.

Palavras-chave: Educação da infância, Idade Média, Heranças culturais.

Abstract: In this article, we propose to present a reflection on the conceptions present in the education of children in the thirteenth century. We start from a bibliographic review, in which we seek to present arguments based on consolidated writings on the belief in the importance of an education in which the guiding principle was the Christian faith, but which gave similar value to the learning of science and the liberal arts for human training. Our study will be based on Ramon Lull and his work Doctrina Pueril (1274-1276). Such an essay was written and directed to his own son (Domingos); presents precepts on how to educate children, with a view to the formation of a subject with faith and virtues necessary for social life. Finally, it is hoped that this study can stimulate new discussions and reflections to think about the education of children in different historical periods.

Keywords: Education of the child. Middle Ages. Cultural heritages.

Keywords: Education of the child, Middle Ages, Cultural heritages.

A educação da criança no Século XIII: reflexões acerca da importância da formação cristã na perspectiva de Ramon Lull

Introdução

Autores clássicos adquirem esta caracterização pois, suas ideias seguem respondendo à problemas do cotidiano por meio de intrínsecas ligações com a realidade atual. De modo que, mesmo com o passar do tempo, continuam servindo como base para levantar reflexões acerca de proposições que estão em debates em outros momentos históricos. Assim, os clássicos “[...] chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa, e atrás de si, os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram, ou, mais simplesmente, na linguagem ou nos costumes” (CALVINO, 1993, p. 11). Isto é, uma obra ou um estudioso clássico expressa conhecimentos que superam o tempo e se tornam heranças culturais e patrimônio da humanidade.

Neste artigo, apresentamos algumas considerações sobre a obra Doctrina Pueril (1274-1276), do filósofo clássico Ramon Lull, tal ensaio foi escrito em forma de manual aspirando orientar quanto à educação da criança do século XIII. Um momento histórico em que o ensino estava voltado para o bom comportamento e para a civilidade. A obra lembra também os “guias” para a educação da criança deixados por Erasmo de Rotterdam, como a obra “De civilitate morum pueriliu”, ou “Da civilidade das crianças”, de 1530, considerada uma das primeiras publicações dirigidas à educação pueril. Portanto, um manual com conselhos e sugestões direcionados ao ensino da criança pequena.

A compreensão que temos da infância está circunstanciada às características socioculturais do tempo histórico que vivenciamos. Assim, não se pode analisar a infância de todos os momentos da história do modo como a conhecemos hoje, ou, com o mesmo enfoque. Tais assertivas estão presentes em Ariès (1981). Nesta obra, o historiador apresenta uma concepção de infância que varia de acordo com o tempo, com a conjuntura social e com os diferentes cenários individuais, familiares, sociais, políticos, econômicos e geográficos[1].

As condições de saúde e higiene no século XIII eram precárias (HEYWOOD, 2004, p.87). A mortalidade infantil apresentava índices altíssimos, a grande maioria das crianças se quer conseguiam vencer os primeiros anos de vida, e aqueles que sobreviviam à primeira infância, precisavam enfrentar seus dias com adultos que pouco compreendiam a especificidade desta fase da vida, e que lhes atribuíam atividades semelhantes às desempenhadas por eles próprios. Na Idade Média não se investia muito tempo, cuidado e esforço em um pequeno ser humano “[...] que tinha tantas probabilidades de morrer com pouca idade” (HEYWOOD, 2004, p.87).

Heywood (2004) enfatiza que ainda que, neste período, alguns cuidados eram dedicados à criança muito pequena em seus primeiros anos de vida ou reservados àqueles que possuíam privilégios financeiros e sociais. Uma vez ultrapassada esta fase inicial da existência humana, as crianças eram incorporadas ao mundo e às atividades dos adultos (LEVIN, 1997).

No século XIII, a educação da criança estava voltada para o desenvolvimento do caráter e da razão, objetivando o bom comportamento, com participação preponderante dos princípios da Igreja auxiliando a família na tarefa do educar. Buscava-se, por meio do ensino, formar um cidadão leal, honrado e respeitoso, que agisse movido por preceitos cristãos diante dos dilemas, conflitos e da cotidianidade da vida social, ou seja, formava-se para a civilidade.

Nosso estudo está fundamentado em Ramon Lull, e em sua obra Doctrina Pueril, ou Doutrina para Crianças (1274-1276). Neste texto, Lull defende que a educação da criança tem como pilar os exemplos familiares, ou seja, inicia-se no seio familiar e lá aprende-se as primeiras e mais importantes lições e ensinamentos para que possa viver de maneira ética e plena, em sociedade.

O ensaio Doctrina Pueril tem características análogas a um projeto pedagógico para o século XIII, em que Lull escreve para o seu filho Domingos orientações que tinham por objetivo nortear um caminho, e indicar a principais ações que findariam na boa educação da criança. Uma educação cristã que garantisse a boa convivência e que pudesse levar esse futuro adulto a trilhar seus caminhos de forma que um dia pudesse alcançar a salvação de sua alma.

Este artigo caracteriza-se por ser uma revisão bibliográfica, que para Cooper e Hedges (1994), simboliza a análise dos mais relevantes estudos publicados sobre um conteúdo específico. É uma tentativa de redescobrir, refletir, evidenciar e resumir os conhecimentos ali postos. Portanto, defende-se uma concepção a partir das evidências encontradas na literatura já existente, e criam-se novas literaturas, incorporando os conhecimentos, as informações, os dados, os métodos, os sistemas, os pensamentos e as práticas já consolidadas pelo meio acadêmico e pela ciência.

Objetivamos apresentar uma reflexão sobre as concepções presentes na educação das crianças no século XIII. A partir dos argumentos aqui expostos, espera-se, estimular novas discussões e reflexões para se pensar a educação da criança nos diferentes períodos históricos. Não se trata, contudo, de levantar comparações do passado com o presente mas, de lembrar que, conforme Montaigne, outro estudioso do período medieval, a educação sempre foi um objeto susceptível à revisão, desconfiança e mudanças: “Viso aqui apenas a revelar a mim mesmo, que porventura amanhã serei outro, se uma nova aprendizagem mudar-me” (MONTAIGNE, 2002, p. 221). [2]

Neste contexto, entendemos o homem como um ser criador, transformador e histórico, que cada geração começa a vida num mundo de conhecimentos, informações, objetos e fenômenos criados pelas gerações precedentes, assim, o movimento da história humana só é possível quando reorganizamos, observamos, reproduzimos e transmitimos os conhecimentos que incorporamos das culturas anteriores para as novas gerações.

A educação da criança no Século XIII: uma intensa ligação com a igreja e com os valores cristãos

Ariès, em seus estudos reunidos no livro “História Social da Criança e da Família” (1981), discute as posições ocupadas pela criança na sociedade de cada momento histórico, principalmente, no contexto medieval e moderno. Essas variações, na compreensão da infância, articulavam-se com o ensino que deveria ser ofertado a essa fase da vida humana.

Compreender as diferentes características da educação e da infância em cada momento histórico é importante, pois é por meio da compreensão da história que o homem se torna consciente das transformações socioculturais e históricas. Ou seja, a consciência rompe com a naturalização do que está posto, de modo que “[...] nada há mais proveitoso do que a História para adquirir prudência, nem mais poderoso que ela para despertar virtudes, mais saudável para sanear as feridas da República, nem mais aprazível para o deleitamento da vida” (OSÓRIO, 1804, p. 3). Para esse estudioso, o homem deve buscar conhecer o processo de criação da cultura e da historicidade deixada pelas gerações anteriores. Asserções na mesma direção estão presentes nos estudos de Le Goff (2003, p. 210).

Compreender o tempo nas sociedades, a distinção do presente e do passado implica essa escalada na memória e essa libertação do presente que pressupõem a educação e, para além disso, a instituição duma memória coletiva a par da memória individual.

A educação na Idade Média estava intimamente atrelada à Igreja. Muitas escolas, inclusive, funcionavam em espaço anexos às catedrais. Deste modo, a Igreja abarcou a missão de disseminar a educação e a cultura para a criança do período medieval, uma vez que, os hábitos religiosos se constituíram num importante canal de educação.

Além disso, foi na Igreja que se concentrou a cultura e o conhecimento herdado da Antiguidade Clássica por meio dos livros, pergaminhos, manuscritos e documentos. Estes ficaram, muitas vezes, guardados nos mosteiros e nas universidades.

Os padres e os monges dispunham de praticamente todo o monopólio da cultura erudita. De acordo com Manacorda (2006), as intervenções do clero mudaram os conteúdos de ensino, ou seja, as bases conteudistas trabalhadas na cultura greco-romana clássica foram paulatinamente modificadas, dando espaço para os ensinos religiosos e bíblico-cristãos.

De Cassagne (2015), afirma que os monges criaram instituições de atendimento infantil semelhantes a verdadeiros “jardins de infância” em seus mosteiros, e buscavam receber indistintamente todos que procuravam estes espaços em busca de educação para seus filhos. Estes sistemas educacionais se opunham radicalmente às práticas pedagógicas vigentes das populações bárbaras, pois as mesmas tinham fundamentavam-se na frieza nas relações humanas desde a infância, uma forma de brutalizar o coração das crianças preparando-as para a guerra e a violência. Já os monges, pelo contrário, ensinavam o amor, a ética, a responsabilidade, o respeito, a serenidade e a honra, ou seja, um ensino voltado para o bom comportamento e para a civilidade.

Nesses mosteiros as crianças recebiam os ensinamentos até os quinze anos de idade. Os professores eram clérigos de ordens menores e lecionavam as sete artes liberais: gramática, aritmética, retórica, astronomia, lógica, geografia e música, além de estudos da bíblia. Estas disciplinas, mais tarde, serviriam de base para a construção do currículo de muitas universidades, por muitos séculos.

Segundo os estudos Bettenson (2001), os monges valorizaram as crianças e desenvolviam um processo de educação direcionado, de cunho integral e igualitário, o que pode ser observado nas escolas monacais carolíngias[3]. Segundo este estudioso, estas escolas davam, inclusive, preferência para as crianças filhas de escravos e servos, em detrimento aos filhos de homens livres e nobres, uma forma de instruir um grupo ainda mais amplo, quanto à orientação religiosa e doutrinal.

A educação da criança na Idade Média, mais especificamente, do século XIII, compreendeu também a importância da aprendizagem da ciência e das artes liberais, contudo, o enfoque educativo tinha por objetivo conduzir a criança a aprendizagem que não a afastasse dos caminhos e do agrado de Deus.

3 Ramon Lull e a educação voltada para a religiosidade

Ramon Lull foi um dos mais importantes escritores, filósofo, poeta, missionário e teólogo da língua catalã, deixou escritos também em árabe e latim. Nasceu em Palma de Maiorca, na Espanha. Não se sabe a data exata do seu nascimento, mas calcula-se que tenha ocorrido entre o fim de 1232 e começo de 1233. Para Eco (2014), o lugar em que Lull nasceu foi determinante para a sua formação cultural, pessoal e para suas produções, pois Palma de Maiorca era uma encruzilhada por onde transitavam visitantes e habitantes praticantes das culturas cristã, islâmica e judaica. Essa diversidade cultural e linguística oportunizou a Lull conhecer essas culturas. A maior parte de suas obras são conhecidas por terem sido escritas, inicialmente, em árabe e catalão.

Ramon era filho de uma família com boa situação financeira. Aos 22 anos casou-se com Blanca Picany e teve dois filhos: Domingos e Madalena. Domingos é a pessoa para quem ele destina as concepções apesentadas na obra Doctrina Pueril (ECO, 2014).

Em 1263, Lull converteu-se definitivamente ao cristianismo e passou a viver motivado pela tentativa missionária da conversão do “infiel”. Em 1314, aos 82 anos, Ramon Lull viajou para o norte da África, onde foi apedrejado por uma multidão enfurecida de muçulmanos, em Túnis, na Tunísia, em razão de embates religiosos. Machucado e muito doente, foi levado para sua casa em Palma de Maiorca e morreu alguns meses depois, em 1316.

Entre os anos de 1275 e 1276 escreveu a obra Doctrina Pueril para seu filho Domingos, na qual aponta a importância da formação humana desde a primeira infância. Em Doctrina Pueril, o autor defende um tríplice de elementos primordiais para a educação do ser humano: fé, conhecimento e movimento racional.

A obra parte de um de seus estilos próprio de escrita, tendo por base o diálogo inter-religioso. Nela, Lull constrói seu texto de modo semelhante a um diálogo com o seu filho. Seu desejo é de apresentar argumentos capazes de fazer com que o filho e os demais leitores compreendam que a sociedade em que viviam contribuía com a corrupção dos indivíduos.

Para Lull, os comportamentos estimulados no meio social, expressos nos sete pecados mortais: ira, gula, luxúria, avareza, inveja, acídia e soberba, afastavam o homem de seu criador. Estas ações deturpavam as sete virtudes humanas: fé, esperança, caridade, temperança, prudência, justiça e fortaleza. Lull defendeu que a educação das crianças deveria estar fundamentada nestas virtudes, pois, as mesmas eram o caminho para formar o cidadão justo e disciplinado, além de aproximarem o indivíduo de sua salvação.

Lull criticou também a preocupação dos homens em dedicar muito tempo de suas vidas ao trabalho, quando o objetivo fosse apenas o de acumular riquezas e patrimônios. Para ele, o ofício que se exercia apenas no sentido de amontoar bens materiais não encaminhava a alma para a salvação, para o entendimento, ou para a felicidade. “[...] tu podes ter e possuir as riquezas deste mundo, e ser pobre de espírito” (LULL, 1961, p. 62). Logo, segundo Lull (1961, p.24) “Quanto maiores forem tuas riquezas, filho, mais serás culpado caso não faças o bem que puderes, e serás obrigado a ouvir a cruel sentença de Deus”.

Lull, por meio de sua obra, empenhou-se em mostrar ao filho e à sociedade daquele momento histórico que a vida na terra era rápida e temporária, e que a fé era o sentimento mais importante que um indivíduo poderia ter, pois, ela encaminharia para a vida eterna. Que o entendimento da ciência e das artes eram importantes “[...] o entendimento é o poder da alma” (LULL, 1961, p. 62), mas, tais conhecimentos não teriam valor, se o afastassem do criador, “Filho, muitos homens têm ciência por aprendizado. Mas, a ciência que o Espírito Santo dá é infundida e é muito maior e mais nobre que aquela que o homem aprendeu na escola de seu mestre” (LULL, 1961, p. 62). No tocante ao conhecimento e à sabedoria, Lull assevera ainda que:

Através da sabedoria que o Espírito Santo dá, o homem conhece de onde vem, o que é, onde está, para onde vai, o que fez, o que faz e o que fará. Assim, se tu, filho, desejas ter sabedoria em todas essas coisas, esforça-te, tanto quanto podes, para amares, honrares e temeres o Espírito Santo, que dá tais dons (LULL, 1961, p. 27).

Lull compreendia o valor da aprendizagem da ciência e das artes liberais para a formação humana e afirmava que o conhecimento pode ser adquirido por meio de duas maneiras, porém, com diferentes aspectos: na primeira o conhecimento é adquirido por meio da razão e o homem faz uso de tais informações para atender seus desígnios próprios “Muitos são os homens que amam ter ciência mas não podem tê-la, porque não têm o entendimento claro” (LULL, 1961, p. 27). A segunda forma de adquirir conhecimento concerne à fé e à razão, dada pelo Espírito Santo e faz com que o homem tenha ações baseadas em princípios que levam à salvação e ao elevado conhecimento espiritual “Filho, o Espírito Santo ilumina de entendimento a alma do homem, como o círio ardente ilumina o quarto ou como o resplendor do Sol que ilumina todo o mundo” (LULL, 1961, p. 27).

Esses entendimentos, para Lull, possibilitam a aquisição da inteligência e promove a compreensão de questões que não se compreende pela via da razão. Nesse sentido, Ramon Lull afirma que:

Amável filho, o Espírito Santo dá ao teu entendimento as coisas que consegues entender [...] E se tu entendes a ti mesmo e a este mundo, é o Espírito Santo quem dá ao teu entendimento a capacidade de entender a ti mesmo e a este mundo [...] Ah, filho, tantos homens são presos, enganados, traídos e mortos porque lhes falta o entendimento [...] Amável filho, maior que castelos, vilas, cidades e reinados é o elevado e exaltado dom do entendimento que o Espírito Santo dá ao homem. Pois o rei que não tem o entendimento sutil não pode conhecer a Deus, a si mesmo e nem o que Deus lhe dá; mas o homem que tem um entendimento sutil conhece a Deus, a si mesmo e é grato a Deus pelos bens que Ele lhe dá (LULL, 1961, p. 27).

Essa postura, em relação ao que deveria ser considerado ao educar uma criança, também aparece quase três séculos mais tarde, precisamente em 1580, quando Montaigne publica “Ensaios”. Este filósofo francês assevera que a criança deve ser educada “[...] entre pessoas sábias e inteligentes” (MONTAIGNE, 2002, p.258).

Em Doctrina Pueril (1275 a 1276), Lull reitera a relação entre os aprendizados que se adquirem no ambiente familiar e ao longo da vida, com aqueles necessários para a formação científica e cidadã “[...] através da educação do corpo, a educação da alma é habituada, e através da educação da alma, a educação do corpo é também acostumada” (LULL, 1961, p. 79).

A obra Doctrina Pueril (1275 a 1276) pode ser definida como um guia que visa instruir os pais na educação de seus filhos. Esta educação, para Ramon Lull, deve começar desde muito cedo, pois, “[...] crianças, no princípio, se acostumam à boa educação ao a má” (LULL, 1961, p.78). Assim, a educação da criança teria como pilar os exemplos familiares, ou seja, se inicia no seio familiar e ali aprende as primeiras e mais importantes lições e ensinamentos para que se possa viver de maneira ética e plena na sociedade.

O homem que deseja educar bem seu filho não deve ter em sua casa um homem mal educado, para que seu filho não receba má educação. E a senhora que deixa sua filha quando sai de casa, deveria ficar com ela. Sabes por quê? Para que ela não acredite na má serva (LULL, 1961, p. 83).

Montaigne (2002), em “Ensaios”, analisa de forma crítica a sociedade do século XVI a partir de temas variados como, a importância dos ensinamentos através dos exemplos familiares para a boa formação da criança, dentre outros temas. Para isso, utilizou a relação que estabeleceu o seu próprio pai, na infância, como exemplo [...] ele fora aconselhado a me fazer apreciar a ciência e o dever por uma vontade não forçada e por meu desejo pessoal, e a educar minha alma com toda a doçura e liberdade, sem rigor nem imposição” (MONTAIGNE, 2002, p.260).

Os excertos anteriores são exemplos de estudos do período medieval que defendem que, o que a criança presencia em casa e as memórias familiares, podem definir que tipo de caráter que ela virá a ter. Para Perin e Oliveira (2018), a proposta de educação de Lull demonstra a preocupação social do autor em relação à forma como os pais educavam os filhos, neste período. As autoras afirmam que, para Lull, “[...] era preciso que os pais tivessem, desde cedo, uma atenção especial para com a formação dos filhos” (PERIN; OLIVEIRA, 2018, p. 236).

Acostumar tua criança a recordar, entender Deus e amar a Igreja é costumar sua vontade em amar Deus, seu pai e sua mãe. A memória que lembra, o entendimento que entende e o temor envergonhado engendram a vontade que desama as faltas e ama as virtudes. Por isso, a criança deve ser educada com temor envergonhado para que tenha amor ao bem e desamor ao mal (LULL, 1961, p. 83).

Os comportamentos errôneos perante a criança seriam muito prejudiciais e teriam o poder de interferir no seu corpo e na sua alma, pois, podem direcionar a criança à hábitos e caminhos que levam aos “[...] pecados mortais, que dizimam a alma e, ainda assim, são considerados naturais” (LULL, 1961, p. 84), na vida adulta. “Por isso, a criança não deve ser educada em um lugar insalubre e não deve se acostumar com os odores que lhe movem às vaidades, às inconveniências e às cogitações” (LULL, 1961, p. 79).

Há vários outros pontos no tocante à educação da criança a serem debatidos com base na obra Doctrina Pueril, o manual está organizado em 95 páginas com tópicos que discutem sobre a formação com vistas ao bom comportamento, à civilidade e à religiosidade.

Poderíamos, então, apresentar outras discussões sobre temáticas também discutidas por Lull em Doctrina Pueril, como, avareza, soberba, inveja, e tantos outros, contudo, nossa intenção não é esgotar as discussões sobre as posições e argumentos presentes neste texto, até porque, existe a delimitação natural de um artigo, espera-se, apenas, que este estudo possa estimular novas discussões e reflexões para se pensar a educação da criança nos diferentes períodos históricos e a compressão de que formar um bom cidadão por meio da educação, é uma preocupação de gerações que vieram muito antes de nós.

Considerações finais

A obra Doutrina para Crianças (1275 a 1276) de Ramon Lull se caracteriza como um projeto pedagógico voltado para a formação de um ser humano com princípios morais e cristãos, inclinados para o bem coletivo, para a paz e para a salvação da alma.

As orientações têm por intuito desenvolver a humanidade na criança, aproximando-a dos bons ensinamentos, para que estes, desde muito cedo, pudessem despertar o amor para com o outro e o temor a Deus. Ao longo da obra o autor evidencia que se a criança, desde muito pequena é bem orientada e educada, torna-se um adulto leal, honrado, respeitoso e consciente de seu papel social, com condições de agir em prol do bem coletivo em detrimento de ações subjetivas ou particulares. As reflexões apresentadas por Lull evidenciam a importância que se dava, desde a Idade Média, para uma formação que desenvolvesse a humanidade de cada indivíduo, embora, o contexto da época aponte para uma educação com íntimas ligações com a religiosidade.

Hoje, lutamos por uma educação baseada nos princípios que compõem a laicidade: liberdade de consciência, igualdade e separação entre Estado e religiões, mas, seguimos em busca da formação de um sujeito com capacidade de gerir suas relações sociais com responsabilidade, que possa conviver de forma civilizada com pessoas de diferentes crenças. De modo que esta obra, em alguns aspectos segue atual, desde que os olhares religiosos não atravessem a ação docente, não transformem a configuração da transmissão dos conteúdos escolares e não influenciem na socialização dos estudantes.

Nisto consiste a importância de se estudar um clássico, pois “[...] são como teias de aranha: densos, concêntricos, transparentes, bem estruturados e sólidos” (ADORNO, 1993, p. 75) e seguem respondendo a questões de tempos históricos tão diferentes daqueles em que foram escritos, ou seja, ainda que se tenham transformações históricas, as obras e estudiosos clássicos continuam auxiliando na compreensão de diferentes épocas e públicos, e provocando reflexões críticas.

Por fim, essas obras e estudiosos continuam despertando novas considerações, ainda que tenham sido escritas, como em Doutrina para Crianças, há cerca de oito séculos.

Referências

ADORNO, T. W. Mínima moralia. São Paulo: Ática, 1993

ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2ª ed. Rio de Janeiro, RJ: Guanabara, 1981

BETTENSON, H. Documentos da Igreja cristã. São Paulo: ASTE, 2001.

CALVINO, I. Por que ler os clássicos? Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

COOPER, H.; Hedges, L. Research Synthesis as a Scientific Process. in: H. Cooper, L. Hedges & J. Valentine (Edts.). The Handbook of Research Synthesis and Meta-Analysis, (2nd ed., pp. 3-18). New York, NY: Russel Sage Foundation, 1994.

DE CASSAGNE, I. Valorización y educación del Niño en la Edad Media. Tradução: Ricardo da Costa. A Educação Infantil na Idade Média. Prof. Adjunto de Hist. Medieval da UFES Universidade Federal do Espírito Santo. Disponível em: http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm Acesso em: 22 ago. 2021

ECO, H. The Ars Magna by Ramon Llull. Vol 1 Dall'Antichità al Medioevo, edited by Umberto Eco (1932–2016) and Riccardo Fedriga, Editore Laterza, Roma-Bari, 2014.

ERASMO. R. Civilidade Pueril. Tradução de Luiz Feracine. Revista Intermeio, Campo Grande, n. 2, 1998. Encarte Especial.

HEYWOOD, C. Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea no Ocidente. Porto Alegre: Artmed, 2004.

KUHMANN JR, M. Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea no ocidente. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 125, maio/ago. 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/TQgx5RMHkwGHdJXJtN6ynVg/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 22 ago. 2021.

LE GOFF, J. Passado/Presente. In: Memória e história. Campinas: Ed. da Unicamp, p. 207-233, 2003.

LEVIN, E. A infância em cena: constituição do sujeito e desenvolvimento psicomotor. Petrópolis: Vozes, 1997.

LLULL, R. Doctrina Pueril. In: LLULL, Ramon.Antologia de Ramon Llull. Madrid: Dirección General de Relaciones Culturales, 1961. Disponível em: https://www.ricardocosta.com/traducoes/textos/doutrina-para-criancas Acesso em: 21 ago. 2021.

MANACORDA, M. A. História da educação: da Antiguidade aos nossos dias. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

MONTAIGNE, M. A. de. Os Ensaios: livro I. Trad. Rosemary Costhek Abílio, precedido de “um estudo sobre Montaigne”, de Pierre Villey sob direção e com prefácio de V. L. Saulnier. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

OSORIO, J. Da vida e feitos d’el Rei D. Manoel. Lisboa. Impressão Régia. Volume 3,1804. Disponível em: https://purl.pt/409/3/ Acesso em: 22 ago. 2021.

PERIN, C. S. B; OLIVEIRA, T. Um projeto de educação para a criança no século XIII: considerações acerca da pedagogia de Ramon Llull. Educar em Revista. Curitiba, v. 34, n. 72, p. 231-247, Dec. 2018 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602018000600231&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 22 ago. 2021.

LIOTI, Cláudia Sena; STENTZLER, Márcia Marlene. A educação da criança no Século XIII: reflexões acerca da importância da formação cristã na perspectiva de Ramon Lull. Rev. Pemo, Fortaleza, v. 4, e47104, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.47149/pemo.v4.7104

Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
HMTL gerado a partir de XML JATS4R