Artigo
Recepção: Novembro , 15, 2021
Publicado: 10 Janeiro 2022
Resumo: Apresentamos os primeiros resultados do processo de implantação do Serviço de Psicologia Escolar na rede municipal de educação de Fortaleza (CE). A experiência iniciada em 2020, visa o cumprimento da Lei federal nº 13.935/2019 que dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia escolar e assistência social na rede pública de educação básica. Enquanto percurso metodológico de análise, utilizou-se a pesquisa documental e bibliográfica, recorrendo às bases de implantação do SPE na rede, bem como, dados de acompanhamento divulgados pela Secretaria Municipal de Educação. Gestores escolares encontraram, nos atendimentos, oportunidade de escuta sensível às suas demandas emocionais e profissionais; ampliou-se a articulação da rede municipal com outras instituições; criou-se documentação pedagógica de acompanhamento e monitoramento do SPE. A implantação desse serviço caracteriza-se como uma política pública de psicologia escolar, de caráter inovador.
Palavras-chave: Psicologia escolar, Acompanhamento pedagógico, Política pública, Gestão municipal.
Abstract: We present the first results of the implementation process of the School Psychology Service in the municipal education network of Fortaleza (CE). The experience started in 2020, aims to comply with the Federal Law No. 13.935/2019 that provides for the provision of school psychology and social assistance services in the public network of basic education. As a methodological path of analysis, documentary and bibliographic research was used, resorting to the bases of implementation of the PES in the network, as well as monitoring data released by the Municipal Secretariat of Education. School managers found, in the consultations, an opportunity for sensitive listening to their emotional and professional demands; the articulation of the municipal network with other institutions was expanded; pedagogical documentation was created for the follow-up and monitoring of the HPS. The implementation of this service is characterized as a public policy of school psychology, of innovative character.
Keywords: School psychology, Pedagogical monitoring, Public policy, Municipal management.
1 Introdução
O campo de pesquisa da Psicologia Escolar no Brasil tem suas raízes ainda na Primeira República (1906-1930) (MARINHO-ARAÚJO, 2005). No entanto, por conta de embargos à consolidação de uma proposta de trabalho, a atuação do psicólogo escolar associada às instituições e a processos educativos ocorre tardiamente. A ausência de formação para essa área de conhecimento foi outro fator decisivo para o atraso da consolidação de tal campo de atuação profissional e de pesquisa.
A partir da década de 1980, a Psicologia Escolar passa por um processo de renovação que modifica a concepção clínica de atuação profissional, atuando mais fortemente associada ao princípio pedagógico e voltando-se à saúde emocional e psicológica dos indivíduos que fazem parte do universo escolar. “O aluno, anteriormente considerado um indivíduo com problemas, passa a ser considerado um indivíduo em processo de desenvolvimento cognitivo, afetivo e social” (CASSINS, et. al., 2007, p.21).
É importante também assinalar dois papeis que se circunscrevem no campo de pesquisa: o do psicólogo escolar e o do psicólogo educacional. O psicólogo escolar ocupa-se do trabalho institucional e da dinâmica organizacional e de relações da escola. O psicólogo educacional é o pesquisador e formulador de documentos, ideias e processos a serem aplicados pelo psicólogo escolar. Esse profissional apresenta uma visão sistêmica sobre o objeto da psicologia escolar, compreendendo a execução do trabalho do psicólogo escolar. No entanto, essas distinções conceituais não contribuem para o efetivo exercício profissional e importante contribuição que o psicólogo possa oferecer ao processo educativo, tornando-se uma via de padronização de uma atuação que é humana, ampla e necessária (MARINHO-ARAÚJO; ALMEIDA, 2005).
Em 2001, por meio da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 02, que altera e regulamenta a Resolução CFP no 014/00, instituíram-se o título profissional de especialista em psicologia e o respectivo registro nos Conselhos Regionais. A partir da Resolução nº 8, de 2004 também pelo CFP, instituíram-se as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia. Nesse sentido, observam-se marcos temporais na consolidação da formação desse profissional no Brasil, um avanço normativo instituído em prol da qualidade de atuação e da concepção do campo profissional da psicologia. Nesse contexto, a luta para a regulamentação da presença dos serviços de psicologia nos espaços escolares iniciou a partir do Projeto de Lei nº 3.688, de 2000, que dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de educação básica.
Somente a partir da Resolução do Conselho Federal de Psicologia, nº 013 de 2007, que trata da instituição e da consolidação das “Resoluções relativas ao Título Profissional de Especialista em Psicologia e dispõe sobre normas e procedimentos para seu registro”, passou-se a considerar a Psicologia Escolar como área de especialidade do profissional psicólogo. Compreende-se que a identidade profissional do psicólogo que atua na instituição educativa vai para além de um trabalho específico, associa-se à dinâmica relacional e coletiva daqueles que fazem a instituição.
No campo da pesquisa sobre essa temática, observa-se que não há consenso quanto à definição do perfil de atuação do psicólogo escolar, e destacam-se inúmeras proposições de competências a serem executadas por esse profissional nas escolas (SANTOS, et. al., 2017). Tais dificuldades não estão estritamente associadas à identidade profissional do psicólogo escolar, mas sim à múltipla e dinâmica organização da escola e de seus partícipes, ou seja, uma vivência complexa, perpassada pelas questões relacionais que necessitam de mediações do profissional psicólogo.
O papel da Psicologia Escolar foi se alterando com o tempo, compreendendo o espaço escolar como espaço social, de formação cidadã. Nesse sentido, a atuação do psicólogo escolar perpassa a compreensão das relações sociais, humanas, para além das configurações de status quo, e entende-se essa formação escolar como ponte ao exercício da democracia e da cidadania. Resultado de intensas lutas em prol da efetivação da Psicologia Escolar enquanto serviço essencial à qualidade e ao desenvolvimento da função social da escola, após 20 anos da proposta apresentada em Projeto de Lei e resultado também de intensas negociações, idas e vindas, em 12 de dezembro de 2019, aprovou-se, no âmbito do Congresso Nacional, a Lei nº 13.935, que dispõe sobre a prestação de serviços de Psicologia e de Serviço Social nas redes públicas de educação básica. Desde então, iniciaram-se outros processos de luta na garantia da regulamentação e implementação da Lei. Para tanto, várias entidades se uniram a fim de estabelecer um diálogo junto às instâncias educativas e se articularam em todos os níveis de entes federados, o que deu início a visitas e reuniões junto ao secretário nacional de educação básica do Ministério da Educação (MEC), à Casa Civil da Presidência da República, à União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), ao Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), à Frente Nacional dos Prefeitos (FNP) e à Associação Brasileira de Municípios (ABM).
Dando continuidade aos reflexos da legislação na prática e experimentação das redes de ensino, é preciso refletir sobre contexto em que se materializam esses avanços. Em março de 2020, passamos a viver tempos incertos, de dores, perdas e grandes mudanças na rotina de vida, profissional e escolar com a pandemia da Covid-19. Com isso, as problemáticas de saúde emocional de crianças, jovens e adultos no Brasil se aprofundaram ainda mais, fruto das desigualdades sociais que historicamente vivenciamos em nosso país. Quanto às questões escolares, observou-se o grave impacto desses processos na trajetória escolar dos estudantes das escolas públicas e privadas – a incidência é ainda mais forte quando observamos o corte de classe nesse contexto. Desde as dificuldades de acesso à internet ou a computadores para acompanhar as aulas até mesmo as condições de habitação adequadas ao estudo em casa, com ambientes arejados e organizados para realização de tarefas, ou mesmo, o atendimento insuficiente a necessidades básicas, como alimentação, saúde e segurança, são problemáticas que se alargaram em territórios vulneráveis onde se situam a maior parte do público das escolas públicas.
Diante desse cenário, recuperamos o que dizem os autores Marinho-Araújo e Almeida (2005, p.69), este é o momento de a psicologia escolar "intensificar reflexões na busca de maior criticidade à sua formação e atuação, diante de um cenário político-econômico que agudiza” diante do agravamento das desigualdades sociais. Assim, o psicólogo no ambiente escolar, assume o dever profissional junto aos educadores, à comunidade, aos pais e aos alunos para com a garantia do direito à educação de qualidade socialmente referenciada. De acordo com o CFP (2019, p. 16), “a atuação de psicólogas(os) e de assistentes sociais estão alicerçadas nos direitos humanos e na defesa intransigente da educação como um direito de todas e todos, preconizado, entre outros, na Declaração Universal de Direitos Humanos e na Constituição Federal de 1988”. Portanto, devemos considerar que a rede de ensino que compreende o papel plural da escola e o contexto singular e complexo em que se circunscreve a sua função social que se aprofunda no atual contexto pandêmico admite a relevância do Serviço de Psicologia Escolar – doravante SPE – não como um trabalho pontual, mas sim como um trabalho interdisciplinar e integrado.
No dia 18 de março de 2020, o Ministério da Educação (MEC) instituiu a Portaria nº 343/2020[1], que dispõe sobre “substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus - COVID-19”. Dessa forma, iniciou-se um processo de adaptação das redes públicas e privadas de ensino para a continuidade das aulas, agora, no formato remoto. Nessas circunstâncias, o contexto pandêmico trazia à tona sentimentos de medo, incertezas e perdas. Num país tão desigual como o Brasil, problemáticas sociais, econômicas, físicas e emocionais aprofundaram-se drasticamente durante a pandemia. A pandemia lançou luz sobre as invisibilidades sociais e nos provocou a pensarmos sobre a necessidade de construirmos relações mais humanas e solidárias nesses tempos.
No cotidiano de adaptação dos sistemas de ensino e escolas ao ensino remoto, provocam-se novos tensionamentos, angústias e desafios que evocam a necessidade de uma prática multiprofissional, o que envolve outros sujeitos no acompanhamento e execução da prática educativa, tais como os psicólogos e psicólogas. Se antes da pandemia, a presença desse profissional já era identificada como uma necessidade emergente, no contexto pandêmico as urgências se ampliaram para o trabalho voltado à saúde mental. Como destacam estudos de Faro, et. al. (2020) e Zanon, et. al. (2020), em cenários de crise e incertezas sobre como os enfrentarmos no contexto da pandemia, um trabalho voltado à saúde mental e o cuidado de si tornam-se ainda mais necessários para dirimir os efeitos negativos desse momento, bem como, prevenir eventuais escolhas danosas à saúde física dos indivíduos. As restrições impostas pelas condições de isolamento social trouxeram severos impactos à saúde emocional das pessoas (GARRIDO; RODRIGUES, 2020), especialmente quando observamos a situação das crianças e adolescentes de regiões periféricas do país, que, muitas vezes, encontram nos espaços educativos, como a escola, a única possibilidade de interação, de comunicação, de acesso a outras culturas e de convívio com as diferenças, as quais tão importantes à formação social dos indivíduos
Uma maior procura e demanda por atendimento psicológico tem sido observada no âmbito dos sistemas públicos de ensino, bem como observa-se uma maior expansão de experiências de serviços de psicologia escolar construindo novos contornos no formato remoto. Como reforça o estudo de Pedroza e Maia (2021, p. 95), “o ineditismo da situação nos mobiliza não apenas enquanto profissionais, mas como sujeitos que temem a doença e a morte. Os desafios (...) fogem ao controle e ao planejamento de atuação enquanto psicólogas e psicólogos escolares.”
Faz-se necessário refletir também sobre o mundo pós-pandemia, para compreender que necessitamos construir novas formas de sociabilidade coletiva, para uma vida mais saudável e justa. Nesse aspecto, o papel da educação é singular, visto que sua função social ocupa lugar de destaque para formação cidadã. No entanto, compreendem-se os limites de observar a escola como espaço educativo único e possível de produção de novos saberes e conhecimentos em prol das mudanças sociais que almejamos. Faz-se necessário considerar os efeitos diversos por que tem passado essa instituição e sua constante precarização à serviço do aprofundamento das desigualdades sociais. Portanto, é oportuno dizer que a educação como direito social do povo brasileiro é também fruto de ações coletivas e plurais que se fazem e refazem em conjunto. Uma escola menos desigual se constitui a partir da coletividade dos sujeitos que a fazem, suas intenções, ações e compreensões sobre o fazer educativo. Reconhecemos também que é papel dos psicólogos escolares, nesse atual contexto, somar forças aos educadores por meio de “acúmulos produzidos neste momento – como as reflexões sobre o (auto)cuidado, as coletividades, a importância das condições materiais para a saúde – para apoiar um projeto de educação crítica e emancipatória” (CAMARGO; CARNEIRO, 2020, p. 9).
Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo apresentar o processo de implantação do SPE na rede municipal de educação de Fortaleza (CE). Portanto, propõe-se também pensarmos coletivamente novas propostas de trabalho e de atendimento à saúde emocional daqueles que fazem o espaço escolar. A experiência iniciada em 2020, intitulada de SPE na rede municipal de educação, tem sua origem atravessada pela pandemia da Covid-19 e absorve, em suas práticas, os novos desafios trazidos pelas incertezas desse contexto. Para tanto, o artigo organiza-se com apresentação dos procedimentos metodológicos de realização dessa pesquisa, apresentação dos dados acerca da implantação do SPE no município, bem como os desafios encontrados nessa fase de implantação e os resultados alcançados até o presente momento.
2 Metodologia
Quanto aos procedimentos metodológicos, a pesquisa situa-se no paradigma interpretativo (COUTINHO, 2005) de abordagem qualitativa (CRESWELL, 2010) e adota a perspectiva narrativa de implantação de uma política pública de serviços de psicologia escolar no município de Fortaleza (CE). Nesse sentido, foram realizadas coletas de dados produzidos e registrados pela Célula de Mediação Social e Cultura de Paz, por meio do SPE. Para tanto, solicitou-se a liberação de acesso às informações disponibilizadas e de sua análise por meio da formalização de protocolo junto à gerência responsável pelo setor do SPE, em atendimento aos princípios éticos de pesquisa.
Os registros coletados e analisados foram realizados por meio de formulários eletrônicos na plataforma Google Forms, através da qual os psicólogos inserem as informações dos atendimentos realizados no Plantão Psicológico Escolar, bem como atendimentos de demanda espontânea. Foram registrados também os atendimentos aos diretores escolares e aos coordenadores pedagógicos que participaram da ação de mapeamento psicoeducacional[2] para avaliar as necessidades específicas de cada unidade escolar. Os registros geraram consolidados mensais de atendimentos que permitiram a coleta de dados para a produção do artigo em tela.
Recorreu-se também ao levantamento bibliográfico e documental sobre o tema, realizado junto às bases de dados da Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza (CE), o qual acompanharam os documentos publicados do SPE e produções de estudos sobre o serviço. Esses procedimentos possibilitaram aproximações sobre a historicidade, a concepção e a identidade dessa proposta, com destaque ao processo de implantação em período pandêmico e à observância de seus impactos iniciais junto às escolas públicas da rede.
3 A implementação do serviço de psicologia escolar em Fortaleza (CE)
A experiência iniciada em 2020, intitulada de SPE, visa o cumprimento da Lei federal nº 13.935/2019, que dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia escolar e assistência social na rede pública de educação básica. A partir da promulgação da referida lei federal, a secretaria municipal da Educação de Fortaleza a ela se adequou iniciando o SPE em outubro de 2020 com a contratação de 12 psicólogos escolares, celetistas, em regime de 30 horas semanais. A distribuição dos psicólogos escolares se dá entre os seis distritos de educação[3], que absorvem todos os equipamentos escolares das 12 regionais[4], as quais se dividem executivamente a capital cearense. A equipe de Psicologia Escolar ficou constituída de 6 psicólogos atuando no turno da manhã das 7h às 13h, um em cada distrito de educação, e instituiu-se a mesma organização para o segundo turno, das 11h às 17h.
No ano de 2021, com a mudança de gestão municipal, o serviço foi transferido para a Coordenadoria de Articulação da Comunidade e Gestão Escolar, agora fazendo parte da Célula de Mediação Escolar e Cultura de Paz. Esta mudança de coordenadoria implica ainda em uma mudança de perspectivas e orientações acerca da consolidação dos trabalhos relacionados à Psicologia Escolar.
Compreendendo que o SPE tem em seu escopo legal e teórico a responsabilidade de oferecer suporte psicoeducacional às unidades escolares, é oportuna a alocação deste serviço, inicialmente em 2020, para a Coordenadoria de Ensino Fundamental da SME, uma vez que o SPE atuará com intervenções principalmente relacionadas à educação especial, orientando os professores e dando-lhes suporte. No entanto, com o advento do ensino remoto, a partir de março de 2020, a própria implantação do SPE que se fazia ainda de forma incipiente necessitou passar por uma adequação.
Frente às necessidades educacionais percebidas na rede municipal de educação, foi criado um Plantão Psicológico Escolar, com o intuito de ofertar à comunidade escolar um espaço de atenção emergencial a situações de crise emocional. Os profissionais vinculados à SME de Fortaleza, assim como alunos e familiares matriculados nos equipamentos escolares, podem usufruir deste serviço que é ofertado três dias na semana das 8h às 12h e das 13h às 17h. O atendimento é realizado por meio de ligação telefônica ou e-mail institucional e conta com o serviço de um psicólogo escolar para acolher as demandas emocionais da comunidade escolar.
A implantação do Plantão Psicológico Escolar – doravante PPE – visa responder à emergente necessidade da rede municipal de educação, principalmente frente ao processo pandêmico que tem originado situações de ansiedade, medo e luto, além de gerar uma nova perspectiva de ensino remoto que desconstrói as rotinas dos profissionais e dos alunos. Para tanto, fez-se necessária a iniciativa de ofertar à comunidade escolar um espaço de amparo e acolhida de demandas emocionais, ainda que em caráter breve, visto que a psicologia escolar não tem em seu objetivo principal o atendimento psicoterápico a longo prazo. O PPE permite realizar de 1 a 3 atendimentos, em caráter remoto. Nos casos em que se faça necessário um atendimento prolongado de cunho psicoterápico, a orientação é de que o usuário do plantão busque atendimento na unidade de saúde mais próxima de sua casa ou em instituições universitárias que têm ofertado parcerias e atendido aos casos encaminhados em suas clínicas-escolas[5].
Em 2021, com as mudanças gerenciais de caráter interno na Secretaria Municipal de Educação, o SPE migrou da Coordenadoria de Ensino Fundamental, para a Coordenadoria de Articulação da Comunidade e Gestão Escolar. Esta mudança representa mais do que uma reorganização funcional, ela traz uma mudança de perspectiva, derivada do próprio processo de implantação de uma política pública. Levando em consideração que a SME já dispõe de uma ampla rede de Atendimento Educacional Especializado (AEE), que visa, entre outros objetivos, assistir à unidade escolar frente às necessidades de orientações educacionais para alunos com deficiência, percebe-se que o SPE deve desempenhar uma função ainda mais desafiadora – a de corresponder às necessidades de gestão escolar. Ampliam-se as perspectivas de implantação deste serviço, que, embora novo, já carrega expectativas antigas da comunidade escolar. O SPE tornou-se um serviço da Célula de Mediação Social e Cultura de Paz, célula responsável por projetos de mediação de conflitos, prevenção do suicídio, segurança escolar e prevenção do estresse às vítimas de violência armada na escola, entre outros projetos.
Atualmente, o SPE encontra-se realizando um serviço de mapeamento psicoeducacional,que consiste na realização de uma sessão de escuta e acolhimento dos gestores escolares de todos os 587 equipamentos escolares: escolas municipais de tempo parcial, escolas municipais de tempo integral, centros de educação especial, centros de educação infantil e creches conveniadas; para compreender, na visão destes gestores, quais as necessidades psicoeducacionais de intervenção da unidade que gerenciam. Todas essas informações alimentam um banco de dados necessários para o planejamento das intervenções que deverão acontecer de maneira sistêmica e em rede, de modo a contemplar o maior número de sujeitos da comunidade escolar como um todo, isto é, alunos, professores, funcionários, gestores e familiares de alunos.
3.1 Os desafios encontrados
A articulação das demandas carentes de diagnósticos para crianças com dificuldades de aprendizagem, de atendimentos de caráter psicopedagógico, de tratamento de situações de ansiedade, depressão e prevenção de suicídio, de mediação de conflitos, entre outras faltas – que se supõe caber ao psicólogo sanar ou mitigar. Paralelamente, a implantação de um serviço novo traz em si suas próprias demandas, antes, latentes e diluídas sob a responsabilidade dos profissionais da educação. Faz-se necessário durante esse processo, a criação de documentos norteadores deste serviço dentro da SME. De igual modo, são necessárias a elaboração de protocolos de atendimento e a criação de formulários e de fluxos para o melhor andamento e encaminhamentos das demandas emergentes e de registros dos resultados já alcançados. O processo de documentação pedagógica do processo ofertado hoje no SPE oferecerá subsídios para avaliação e acompanhamento da eficiência desta proposta na rede de ensino, bem como, oferecerá suporte técnico e analítico aos psicólogos envolvidos nesse atendimento.
3.2 Os resultados alcançados
Embora recente, já se faz possível perceber a exequibilidade do SPE, ainda que sejam de se considerar os desafios já expostos. O serviço acontece na SME de maneira remota e realiza suas atividades por meio do PPE, de reuniões de equipe às segundas e às sextas-feiras, de atendimento personalizado por cada psicólogo escolar às demandas do distrito de educação de sua responsabilidade, juntamente com um técnico da célula de mediação escolar.
Desse modo, é possível compreender os resultados dos trabalhos já realizados neste serviço que, somente a partir de agosto de 2020 teve os Psicólogos Escolares contratados. O PPE teve o início de seus atendimentos em outubro de 2020. De outubro até maio, o Serviço de Psicologia já realizou 663 atendimentos a professores, diretores, coordenadores pedagógicos, funcionários das escolas, alunos e seus familiares.
Os atendimentos por meio do PPE totalizam 238 atendimentos. Aconteceram também atendimentos individualizados, com hora marcada com diretores escolares, para realização do mapeamento psicoeducacional, com um total de atendidos 308 diretores e 125 coordenadores pedagógicos que coordenam centros de educação infantil e creches conveniadas. Os atendimentos aconteceram nos últimos 8 meses, durante a situação de pandemia, de distanciamento social, de mudança de gestão municipal e da coordenação do SPE. No período dos meses de férias escolares, em dezembro e janeiro, houve criação do serviço e de sua divulgação à toda a comunidade escolar, para a qual o serviço se destina. As necessidades apresentadas pelos gestores atendidos são, em sua maioria, pedidos de orientação psicoeducacionais para lidar com ansiedade dos alunos em contexto de ensino remoto, questões associadas ao trabalho com crianças e adolescentes com déficit de atenção, sentimentos de tristeza e luto por situações da pandemia da Covid-19.
É possível encontrar um total de 15 publicações disponibilizadas no site da Secretaria Municipal da Educação de Fortaleza sobre o SPE. São produções em caráter informativo, orientativo e educativo com temáticas de saúde emocional, autocuidado, saúde da mulher, estratégias de ensino remoto, dicas de organização do espaço para estudo, dicas de filmes e atividades a serem realizadas por alunos, professores e familiares; elaboradas pela equipe de Psicólogos Escolares da SME com o objetivo de realização um trabalho de profilaxia socioemocional.
Os psicólogos escolares realizaram ainda a elaboração de um Manual de Psicologia Escolar (2021) com orientações para que a comunidade escolar saiba usufruir dessa nova modalidade de serviço. Paralelamente à construção desse manual, estão sendo elaborados documentos e protocolos de atendimento específicos para demandas que gradativamente vão surgindo mais frequentemente nos atendimentos do plantão psicológico e nos atendimentos de demanda espontânea por meio dos distritos de educação.
O SPE tem ainda respondido às demandas do Ministério Público na Comissão de Prevenção ao Suicídio – Vidas Preservadas – e às demandas do Programa de Prevenção ao Estresse por Violência Armada nas Escolas – Acesso Mais Seguro –, vinculado ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha. As atividades do SPE também se integram à promoção de atividades de escuta e acolhimento dos segmentos da comunidade escolar no processo de retomada das atividades escolares em formato híbrido e presencial, logo que orientados pelas autoridades responsáveis.
4 Considerações finais
Partindo das reflexões observadas no presente artigo, compreende-se que o SPE tem um relevante impacto na construção de uma educação com qualidade, equidade e saúde para toda a comunidade escolar. A lei que garante a presença de psicólogos em ambiente escolar torna-se um marco importante para a busca de um trabalho colaborativo, considerando-se a complexidade do processo formativo que engloba as responsabilidades que perpassam os desafios da educação na atualidade.
Contudo, os desafios para que este processo alcance a melhor versão de sua aplicabilidade ainda são muitos. Considerando a extensa rede de equipamentos escolares da capital cearense, a quantidade inicial de psicólogos que constitui a primeira equipe de profissionais do SPE da SME de Fortaleza ainda é inferior ao necessário. Sabe-se que o ideal seria a presença de 1 psicólogo escolar por equipamento do parque escolar. Atualmente a rede possui 12 psicólogos escolares em exercício.
Vê-se ainda que se faz necessário a maturação da rede educativa sobre o papel e o desempenho do psicólogo escolar. Ainda há interpretações confusas sobre a função do psicólogo em ambiente educacional, o que explica a necessidade de uma implantação do SPE paulatina e informativa, uma vez que a absorção destes profissionais em ambiente escolar poderia ser facilmente confundida com a aplicação da psicologia clínica, o que responde às demandas da Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Falta também uma orientação de psicologia de cunho estritamente assistencial ou social, o que diz respeito aos profissionais da assistência social. Tais dificuldades também estão presentes desde a origem dessa especialidade de trabalho da Psicologia, como pudemos observar na breve contextualização histórica apresentada neste trabalho.
Observa-se que, embora os desafios com relação ao quantitativo de profissionais em exercício no atendimento da psicologia escolar sejam ainda reduzidos, e a ausência de documentação que oriente a implementação dessa proposta seja ainda uma realidade na rede municipal, a recepção quanto ao SPE no município foi muito positiva e propositiva. Um bom número de educadores e instituições tem sido assistidos por este serviço na rede. Sabe-se que pela extensão do parque escolar de Fortaleza (CE), o atendimento hoje oferecido ainda cobre uma parte muito pequena de instituições e profissionais da educação. Apesar disso, levando em consideração que é um serviço novo, dando seus primeiros passos, percebe-se que o modelo de psicologia escolar que se desenha nessa proposta já absorve os contornos e expectativas de perfil profissional esperados e discutidos no âmbito da literatura sobre o tema (SANTOS, et. al., 2017).
Cresce, portanto, a necessidade de mais publicações e discussões acadêmicas que fortaleçam a perspectiva da Psicologia Escolar na rede pública de Ensino, ampliando as compreensões dos educadores sobre as formas de colaboração dos profissionais da Psicologia com os profissionais da educação e reciprocamente dos educadores na aplicabilidade dos psicólogos em ambientes escolares. Compreende-se que este trabalho de pesquisa não se encerra aqui, gerando subsídios para outros estudos do campo.
Referências
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