REFORMATÓRIO KRENAK E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: REFLEXOS DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 0064483-95.2015.4.01.3800
Direito em Movimento
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2179-8176
ISSN-e: 2238-7110
Periodicidade: Semestral
vol. 20, núm. 2, 2022
Recepção: 12 Julho 2022
Revised: 25 Agosto 2022
Aprovação: 26 Agosto 2022
Resumo: Aborda-se perfil da política estatal aplicada às populações indígenas, mais especificamente durante a ditadura militar brasileira, iniciada em 1964. O artigo tem como ponto de estruturação os reflexos da sentença proferida na Ação Civil Pública nº 0064483-95.2015.4.01.3800, ajuizada pelo Ministério Público Federal, que colocou a Justiça de Transição como objeto da demanda, considerando a prática de violações aos direitos indígenas ocorridas no Estado de Minas Gerais, mais precisamente no Reformatório Agrí cola Indígena Krenak e na Fazenda Guarani. A Justiça de Transição pode ser definida como um conjunto de ações e estudos que visam a superar momentos de conflito e de violação de direitos humanos contra determinado grupo social, e tem como base a promoção dos direitos à memória e à verdade. O termo está ligado aos processos históricos de luta em prol da transição de ditaduras para regimes democráticos e busca confrontar o abuso do passado e servir de apoio para a transformação política, reafirmando o respeito aos direitos humanos.
Palavras-chave: Justiça de Transição, Reformatório Krenak, Violações de Direitos Humanos, Direitos dos povos indígenas.
Abstract: It addresses the profile of the state policy applied to in digenous populations, more specifically, during the Brazilian military dictatorship, which began in 1964. The article has as its structuring point the reflexes of the sentence rendered in the Lawsuit nº 0064483-95.2015.4.01.3800, filed by the federal prosecutors, which placed the transitional justice as the object of the demand, considering the practice of violations of indigenous rights that occurred in the State of Minas Gerais, more precisely in the Krenak Indigenous Agricultural Reformatory and Guarani Farm. Transitional justice can be defined as a set of actions and studies aimed at overcoming moments of conflict and violation of human rights against a particular social group, and it is based on the promotion of the rights to memory and truth. The term is linked to the historical processes of struggle for the transition from dictatorships to democratic regimes and seeks to confront the abuse of the past and serve as support for political transformation, reaffirming respect for human rights.
Keywords: Transitional Justice, Krenak Reformatory, Human Rights Violations, Indigenous Peoples’ Rights.
INTRODUÇÃO
Desde a chegada dos primeiros exploradores europeus ao território que o Brasil hoje ocupa, a relação entre índios e não índios é conflituosa. Diferentes políticas foram feitas em diferentes momentos num estado, cujo território é povoado por diversas populações culturalmente diferentes. Algumas políticas estatais foram elaboradas para tentar sanar os problemas de conflitos de terras, entre eles, a ocupação de áreas consideradas remotas e a tentativa de pacificação dos conflitos.
O artigo pretende relatar e analisar o perfil da política estatal aplicada às populações indígenas, mais especificamente durante a ditadura militar brasileira, iniciada em 1964. Há a hipótese de que a tomada das terras indígenas pelo Estado justificou a perseguição e a prisão política de diversos indígenas de etnias variadas. Alguns reformatórios indígenas foram construídos no país como espaços de encarceramento dos índios durante aquele período, como o Reformatório Krenak, na cidade de Resplendor, e a Fa zenda Guarani, na cidade de Carmésia, localizados no Estado de Minas Gerais. As instituições faziam parte da política de perseguição aos povos indígenas – com elas, era possível prender os índios que incomodavam o regime militar – e tinham a finalidade de receber os índios considerados “criminosos” pelo sistema estatal e, por conseguinte, “recuperá-los”.
Há registro de denúncias, entre elas, a do Relatório Figueiredo de 1967, sobre as violações de direitos humanos dos povos indígenas na ditadura militar. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) em 2014 possibilitou o questionamento, por parte dos indígenas, sobre a forma de análise de mortos e desaparecidos, que não levava em conta os índios. A comissão, de início, não tinha como escopo analisar os casos indígenas, pois acreditava que não era seu trabalho, uma vez que os índios não são considerados mortos e desaparecidos oficialmente. Desde então, surgiram diversos questionamentos sobre a falta de estudos relacionados aos povos indígenas no período da ditadura militar, sendo, por isso, necessário analisar novas vertentes das violências praticadas pelo Estado no período de repressão. A partir desse questionamento, a CNV voltou parte de seus estudos para as violações de direitos humanos contra os povos indígenas.
O artigo tem como ponto de estruturação os reflexos da sentença pro ferida na Ação Civil Pública nº 0064483-95.2015.4.01.3800, ajuizada pelo Ministério Público Federal, que colocou a Justiça de Transição como objeto da demanda, considerando a prática de violações aos direitos indígenas ocorridas no Estado de Minas Gerais, mais precisamente no Reformató rio Agrícola Indígena Krenak. Serão abordados, portanto, resultados que apontam para a realização da Justiça de Transição, que pode ser definida como um conjunto de ações e estudos que visam a superar momentos de conflito e de violação de direitos humanos contra determinado grupo social, e tem como base a promoção dos direitos à memória e à verdade (VAN ZYL, 2009, p. 115). O termo está ligado aos processos históricos de luta em prol da transição de ditaduras para regimes democráticos e busca confrontar o abuso do passado e servir de apoio para a transformação política, reafirmando o respeito aos direitos humanos.
1. BREVE HISTÓRICO DO POVO KRENAK E VIOLAÇÕES AOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL
Os Krenak ou Borun constituem os últimos “Botocudos do Leste”, nome atribuído pelos portugueses no final do século XVIII aos grupos que usavam botoques auriculares e labiais. São conhecidos também por Aimorés, nominação dada pelos Tupis, e por Grén ou Krén, sua autodenominação (SOCIOAMBIENTAL, 2020).
O nome Krenak se deve ao líder do grupo que comandou a cisão dos Gutkrák do Rio Pancas, no Espírito Santo, no início do século XX. A reser va Krenak conta com extensão de quatro mil hectares e foi criada pelo SPI – Serviço de Proteção aos Índios na década de 1920, situada à esquerda do Rio Doce, entre as cidades de Resplendor e Conselheiro Pena, em Minas Gerais. Outros grupos Botocudos do Rio Doce se estabeleceram, como os Pojixá, Nakre-ehé, Miñajirum, Jiporók e Gutkrák. Os Krenak pertencem ao grupo linguístico macro-jê e falam uma língua denominada “Borun” (SOCIOAMBIENTAL, 2020).
Consta que o território original dos Botocudos era a Mata Atlântica no Baixo Recôncavo Baiano, tendo sido expulsos do litoral pelos Tupis, quando passaram a ocupar a faixa de floresta paralela, conhecida como “Mata Pluvial Tropical”, localizada entre a Mata Atlântica e o rebordo do Planalto Central. Depois do século XIX, os Krenak deslocaram-se para o sul, chegando à região do Rio Doce entre os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo (SOCIOAMBIENTAL, 2020).
Desde os primeiros contatos com os colonizadores, em meados do século XVI, foram acusados de antropofagia, argumento usado para motivar os constantes ataques e conflitos, além de convencer outros grupos indígenas – Tupi, Malalí, Makoní, Pataxó, Maxakalí, Pañâme, Kopoxó e Kamakã-Mongoió – a se aldearem para ocupar suas terras com promessas de proteção e acesso aos bens (SOCIOAMBIENTAL, 2020).
A Coroa Portuguesa decretou no Brasil, por meio de uma série de cartas régias, uma política de violência, exemplificada por cativeiro e escravização no início do século XIX. A primeira carta régia determinava a guerra aos Botocudos de Minas Gerais, por considerar que impediam a expansão da colônia e que eram irredutíveis à “civilização”. A monarquia autorizava o confisco das terras ocupadas, que passavam a ser consideradas como devolutas e deveriam ser distribuídas como sesmarias. Aos novos proprietários, seria autorizada a escravização dos indígenas. Também foi determinada a criação de aldeamentos administrados por particulares para “educação” dos índios. Embora as três cartas régias se referissem especificamente à capitania de Minas Gerais, as suas deliberações foram estendidas às capitanias da Bahia e do Espírito Santo. A política levou a criação de sete divisões e quartéis militares na região do Vale do Rio Doce, Vale do Jequitinhonha e Mucuri (SOCIOAMBIENTAL, 2020).
Após muita resistência, mortes, epidemias e derrotas, incluindo o sequestro e escravização de crianças indígenas, os grupos passaram a viver aldeados perto das unidades militares. No início do século XX, o recém-criado Serviço de Proteção ao Índio – SPI organizou unidades de monitoramento denominados “postos indígenas”, incluindo o aldeamento onde ficaram os Krenak. Mais tarde, o local foi batizado como “Posto Indígena Guido Marlière”, em homenagem a um militar francês enviado para a região em 1819, para continuar a política de “pacificação” dos botocudos (SOCIOAMBIENTAL, 2020).
Posteriormente, a invasão por moradores da região e o arrendamento pelo SPI das terras do Posto Indígena Krenak, determinou o desmantelamento do grupo no final da década de 1940. O processo de diáspora prosseguiu sob a administração do SPI e depois pela sucessora FUNAI em 1953 para o Posto Indígena Maxakalí, de onde retornaram a pé em 1959. A partir de 1968, sob a égide da ditadura militar, foram mais uma vez enviados para o Reformatório Agrícola Indígena Krenak ou Centro de Reeducação Indígena Krenak. Em 1972, foram compulsoriamente deslocados para a Fazenda Guarani em conjunto com “índios infratores”, deslocados de vários pontos do país (MAPA DOS CONFLITOS, 2018).
O Reformatório Agrícola Indígena Krenak foi implantado sob a administração do capitão Manoel Pinheiro, da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, em 1968, para onde foram enviados os indígenas que opunham resistência aos administradores das aldeias ou eram considerados como socialmente desajustados. No estabelecimento, eram mantidos em regime de cárcere, vitimados por tortura e maus tratos (MAPA DOS CONFLITOS, 2018).
Havia trabalho forçado na agricultura, sob forte vigilância de soldados da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, além de índios agregados à Guarda Rural Indígena – GRIN, uma milícia também fundada pelo Capitão Pinheiro, que recrutava índios na região do Rio Araguaia para atuarem como força de polícia nas áreas indígenas (MAPA DOS CONFLITOS, 2018).
A Comissão Nacional da Verdade – CNV recomendou mais investigações sobre a GRIN, para apuração das responsabilidades dos militares envolvidos em sua criação e manutenção, bem como a necessidade de reparação aos indígenas atingidos (BRASIL, 2014a, p. 212).
O reformatório é fechado em 1972, devido a conflitos por propriedade na região de Resplendor. A alegação de extinção do povo Krenak e a negação de identidade dos indígenas foi uma estratégia usada por fazendeiros para tomar as terras dos índios (BRASIL, 2014a, p. 212).
Além de sem terras e incitados em conflitos fundiários, a CNV constatou uma profunda omissão na política de saúde a partir de 1969, ao lado de uma forte política de assimilação cultural preconizada pelo plano de desenvolvimentismo do Estado, que se caracterizou como um programa de genocídio. Ao se descaracterizar os índios como sujeitos de direitos, promoveu-se uma desagregação social, como mortandades e massacres, com profunda perseguição política ao movimento indígena (CABRAL, MORAIS, 2020, p. 111).
O período de governos militares analisado teve início em 1964 e terminou em 1985, quando teve fim o mandato do ex-presidente João Batista Figueiredo. Apesar de ter sido encerrado ainda na década de 80, as influên cias e consequências do período militar deixaram um legado de prováveis reflexos aos dias atuais (ARAÚJO, 2006, p. 150).
Há, ainda, outro documento que registrou o contexto de violências praticadas contra os grupos indígenas, incluindo os Krenak: trata-se do Re latório Figueiredo, finalizado em 1967, fruto de investigação que apurou matanças de comunidades inteiras, torturas e toda sorte de crueldades praticadas contra indígenas em todo o país — principalmente por latifundiários e funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio – SPI (BRASIL, 1968, p. 4.912).
O Relatório Figueiredo, supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultura, foi encontrado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, com mais de 7 mil páginas preservadas e contendo 29 dos 30 tomos em 2013. Entre denúncias de caçadas humanas promovidas com metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, inoculações propositais de varíola em povoados isolados e doações de açúcar misturado a estricnina – um veneno –, o texto, redigido pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia, também foi analisado pela CNV (BRASIL, 2014a, p. 212).
O relatório da Comissão Nacional da Verdade acerca das violações de direitos humanos contra os povos indígenas estima que cerca de 8.350 indígenas foram mortos em decorrência da ação ou da omissão de agentes governamentais (BRASIL, 2014a, p. 250). O documento deixa claro que essa estimativa leva em conta apenas casos documentados que davam mar gem a alguma estimativa. No entanto, enfatiza que o número de mortos e afetados deve ser muito maior, já que não se conhece com completude o que de fato ocorreu naquele período, tendo em vista que apenas uma pequena parcela dos afetados foi analisada.
O capítulo do relatório que fala sobre a temática indígena conta com pouco mais de 50 páginas e retrata violações aos direitos humanos desses povos durante a ditadura militar. São vários exemplos, desde remoções forçadas a contaminações propositais, promovidas por agentes de Estado, via órgãos que deveriam oferecer proteção àqueles povos, como o Serviço de Proteção ao Índio – SPI e a Fundação Nacional do Índio – FUNAI.
Apesar de o próprio relatório assumir suas limitações em razão da grande possibilidade de se desconhecer inúmeros casos, seu conteúdo contém grande avanço para a temática indígena. A iniciativa faz parte de uma série de projetos de Justiça de Transição que buscam trazer visibilidade àqueles que foram vítimas das arbitrariedades cometidas em um período repleto de ilegalidades. A Justiça de Transição, que pode ser definida como um conjunto de ações e estudos que visam a superar momentos de conflito e de violação de direitos humanos contra determinado grupo social, tem como base a promoção dos direitos à memória e à verdade (VAN ZYL, 2009, p. 115).
O Conselho de Segurança da ONU designa que a Justiça de Transição pode ser definida como um complexo de medidas (judiciais ou não) para enfrentar o legado de violência em massa do passado, com o objetivo de atribuir responsabilidades e exigir a efetividade do direito à memória e à verdade, fortalecendo as instituições com valores democráticos, bem como garantir a não repetição das atrocidades (ONU, 2004).
O projeto de justiça transicional tem como objetivo trazer, com transparência, o que de fato ocorreu em determinado período, fazendo com que a sociedade conheça os diversos crimes cometidos, bem como as vítimas, os culpados e os danos causados. A Comissão Nacional da Verdade buscou, portanto, trazer à tona a verdade acerca dos acontecimentos do período militar, objetivando revelar fatos ocultados ou omitidos pelo governo da época.
A sentença proferida na Ação Civil Pública nº 0064483-95.2015.4.01.3800, ajuizada pelo Ministério Público Federal, menciona a Justiça de Transição como objeto da demanda, considerando a prática de violações aos direitos indígenas ocorridas no Estado de Minas Gerais, mais precisamente no Reformatório Agrícola Indígena Krenak. A ação judicial colocou que as reparações devem ser voltadas à realização de diversas medidas, como o pedido público de desculpas ao Povo Krenak, ações de reparação ambiental das terras degradadas, ações e iniciativas voltadas ao registro, transmissão e ensino da língua Krenak, como forma de resgatar e preservar sua memória e cultura (TRF1, 2021).
O próximo item, portanto, irá relatar o conteúdo da decisão judicial e seus possíveis reflexos para a Justiça de Transição.
2. AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 0064483-95.2015.4.01.3800
A Ação Civil Pública nº 0064483-95.2015.4.01.3800 foi ajuizada pelo Ministério Público Federal em face da União, Estado de Minas Gerais, Fundação Nacional do Índio – FUNAI, Fundação Rural Mineira – RURAL MINAS (posteriormente extinta e substituída pelo Estado de Minas Gerais) e Manoel dos Santos Pinheiro, e tem como objeto as violações aos direitos indígenas ocorridas durante o período da ditadura militar brasileira de 1964/1985 (TRF1, 2021).
O Ministério Público Federal apurou, no Inquérito Civil nº 1.22.000.000929/2013-49 (subsidiado pelo parecer técnico psicológico), diversas violações aos direitos indígenas ocorridas no interior do Estado de Minas Gerais, mais precisamente no Reformatório Agrícola Indígena Krenak, instalado no Município de Resplendor, no ano de 1969, sucedido pelo confinamento de diversos índios na Fazenda Guarani, em Carmésia, em 1972, bem como pela criação da Guarda Rural Indígena – GRIN, também no ano de 1969 (TRF1, 2021).
A decisão enumera quatro questões para a análise: a criação da Guarda Rural Indígena – GRIN em 25.09.69, conforme Portaria nº 231 – FUNAI; a instalação do Reformatório Agrícola Indígena Krenak, na antiga área do Posto Indígena Guido Marlière, na região de Resplendor/MG – 1969; a transferência dos índios Krenak da região de Resplendor para a Fazenda Guarani, em Carmésia/MG – 1972; e a responsabilização do Capitão Manoel dos Santos Pinheiro (TRF1, 2021).
Há, ainda, um relato dos argumentos de defesa dos réus. O Estado de Minas Gerais alegou: a existência de política educacional estadual voltada exclusivamente para a comunidade indígena Krenak; a impossibilidade de se compensar danos morais consumados em ordem constitucional anterior; a impossibilidade de decisão judicial determinar a restauração da sede da Fazenda Guarani, com a implantação de centro de memória, sob pena de ofensa à discricionariedade administrativa; a inadequação da imposição de multa diária à pessoa jurídica de direito público; e a inexistência de degradação ambiental passível de recuperação pelo Estado (TRF1, 2021).
A FUNAI requereu que fossem feitos esforços para que as ações ambientais promovidas pela Vale e Samarco, na região do Rio Doce, possam também contemplar as áreas ocupadas pelos Krenak e alegou a impossibili dade de se contratar profissional para traduzir os diplomas legais no prazo requerido, entendendo serem mais úteis ações de fortalecimento linguístico da língua Krenak. Quanto ao pedido para que seja feita a entrega de toda documentação referente ao povo Krenak, a autarquia requereu que sejam entregues apenas as cópias dos documentos, preservando-se os originais. Relativamente ao pedido de restauração da sede da Fazenda Guarani e à criação de um centro de memória, argui que se trata de pedido incerto e indeterminado, pois dependeria de consulta ao povo Pataxó, atualmente ocupante do mencionado imóvel rural. Aduziu que não há como concluir o processo administrativo para identificação e demarcação da terra indígena Krenak no prazo solicitado, em face da carência de recursos humanos e financeiros para custear procedimento dessa complexidade (TRF1, 2021).
A União Federal arguiu preliminarmente sua ilegitimidade para figurar como réu, a impossibilidade jurídica do pedido, bem como a inadequação da ação. Quanto ao mérito, adotou as razões já expostas pela FUNAI para que fosse julgado improcedente o pedido (TRF1, 2021).
A RURALMINAS, entidade estatal que realizava estudo sobre demarcação de terra indígenas, alegou, como preliminar, a carência de ação, pois não teriam sido identificadas as áreas por ela tituladas, bem como seria parte ilegítima para figurar no polo passivo, pois, no período indicado, apenas teria cumprido sua missão institucional (TRF1, 2021).
O Capitão Manoel dos Santos Pinheiro apresentou contestação, alegando sua ilegitimidade passiva e afirmando que os atos atribuídos decorreram do estrito cumprimento de dever legal, dentro de um complexo sistema estatal para tratar a questão indígena. Pugnou, como preliminar, a incompetência da Justiça Federal e, como prejudicial de mérito, a prescrição dos delitos a ele imputados. No mérito, requereu a improcedência do pedido (TRF1, 2021).
O próximo subitem irá abordar a criação da Guarda Rural Indígena – GRIN e sua relação com as violações aos direitos indígenas.
2.1 Criação da Guarda Rural Indígena – GRIN.
A Guarda Rural Indígena – GRIN foi criada com a edição da Portaria nº 231 da Presidência da FUNAI, em 25 de setembro de 1969, como um grupamento destinado a exercer o policiamento das terras indígenas. O principal objetivo da Guarda Rural Indígena seria impedir que os silvícolas abandonassem as suas áreas com o intuito de praticar assaltos e pilhagens nas povoações e propriedades rurais próximas dos aldeamentos. A GRIN era formada tanto por índios recrutados nas aldeias, quanto por índios “aculturados”, estando subordinada diretamente ao órgão regional da FUNAI, então comandada pelo réu Capitão Pinheiro (TRF1, 2021).
A primeira turma da Guarda Rural Indígena foi treinada pela Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) e era composta por 84 (oitenta e quatro) indígenas de diferentes etnias e regiões do país, entre elas as etnias Craós (Maranhão), Xerente (Goiás), Carajás (Pará), Maxakalí (Minas Gerais) e Gaviões (Tocantins).
A decisão destacou, conforme foto constante nos autos, a solenidade de formatura da 1ª turma da GRIN, realizada em Belo Horizonte, em 05/02/70, na qual há uma imagem de um índio dependurado em um “pau de arara”, instrumento utilizado para infligir castigos físicos aos prisioneiros, em especial no período ditatorial de 1964-1985 (TRF1, 2021).
A decisão judicial concluiu que a Guarda Rural Indígena – GRIN, criada pela Portaria FUNAI nº 231/69, se tratava, basicamente, de milícias armadas, integradas por índios de etnias variadas. Frisou que a estratégia estatal de destacar indígenas para comporem a guarda, que fiscalizaria suas próprias comunidades, era assaz maliciosa e visava, sobretudo, a instigar conflitos físicos e psicológicos entre os índios de uma mesma tribo, esfacelando sua integridade e identidade (TRF1, 2021).
O próximo subitem irá abordar a criação do Reformatório Agrícola Indígena Krenak em 1969.
2.2 Instalação do Reformatório Agrícola Indígena Krenak, na antiga área do Posto Indígena Guido Marlière, na região de Resplendor/MG
O Reformatório Agrícola Indígena Krenak foi instalado pela FUNAI e pela Polícia Militar de Minas Gerais em 1969, na área do Posto Indíge na Guido Marlière (PIGM), onde viviam os índios Krenak (hoje, a Terra Indígena Krenak), à margem esquerda do Rio Doce, no Município de Resplendor/MG. A área em que funcionou o referido reformatório foi doada pelo Estado de Minas Gerais à União, em 1920, conforme Lei nº 788, de 18/09/1920, e Decreto nº 5.462/20 (TRF1, 2021).
Posteriormente, o imóvel foi envolvido em permuta com a Fazenda Guarani, de propriedade do Estado de Minas Gerais, com a transferência forçada dos índios, por ação da Polícia Militar de Minas Gerais e da RURAL MINAS, que, na sequência, procedeu à indevida titulação das terras do citado reformatório em favor de posseiros que já haviam invadido parte do território indígena (TRF1, 2021).
Inúmeros documentos oficiais comprovaram a existência do estabelecimento prisional como o Ofício nº 02/PRES – FUNAI, no qual há a solicitação ao Juiz Corregedor dos Presídios e a Polícia Judiciária de São Paulo para detenção do índio Itamair Nambiquara e envio ao Reformatório Krenak. O Ofício FUNAI nº 103/70 lista uma relação dos índios confina dos no Reformatório Krenak e enviados para “prestar serviços” no Posto Indígena Engenheiro Mariano de Oliveira, em Maxakalí (TRF1, 2021).
Consta que o reformatório recebeu, no mínimo, 94 (noventa e qua tro) índios provenientes de mais de 15 (quinze) etnias (Karajá, Campa, Maxakalí, Fulni-Ô, Canela, Kaiowá, Pankararu, Kaingang, Pataxó, Xerente, Terena, Kadiwéu, Bororo, Urubu, Krahô, Guajajara), oriundos de ao menos 11 (onze) estados das 5 (cinco) regiões do país (TRF1, 2021).
Os índios chegavam ao Reformatório Krenak sem uma “pena” previamente definida a cumprir, de forma que o tempo de permanência na instituição dependeria de uma análise da autoridade responsável, no caso, o réu Manoel dos Santos Pinheiro, conhecido como “Capitão Pinheiro” (TRF1, 2021).
A decisão destacou, ainda, entrevista do Capitão Pinheiro ao Jornal do Brasil, em 27 de agosto de 1972:
Não aplicamos pena em crenaque. O índio, pelo seu comportamento, é quem vai determinar o seu tempo de permanência na colônia. Ali ele receberá toda a assistência possível e trabalhará. Se for arredio, violento, será posto sob vigilância contínua e trancafiado ao anoitecer. Senão, terá liberdade suficiente para locomover-se na colônia (TRF1, 2021).
A decisão deixa claro que havia enorme violência no reformatório e que a instituição mais se aproximava de um “campo de concentração”. Havia tortura, trabalhos forçados e precárias condições de confinamento sob prisão arbitrária.
O próximo subitem irá abordar o contexto da transferência forçada dos índios Krenak da região de seu aldeamento, em Resplendor, para a Fazenda Guarani.
2.3 Transferência dos índios Krenak da região de Resplendor para a Fazenda Guarani, em Carmésia/MG, em dezembro de 1972
A ocupação da Fazenda Guarani foi decorrente de permuta (efetivada por meio da Lei Estadual nº 5.875/72) realizada entre a RURALMINAS e a FUNAI. Os índios, incluindo os Krenak, que ocupavam o Posto Indígena Guido Łomas Marlière – Reformatório Krenak, na região de Resplendor/ MG, foram compulsoriamente transferidos para uma fazenda localizada na cidade de Carmésia/MG, havendo relatos de que diversos índios, contrários à transferência, foram amarrados e enviados à força (TRF1, 2021).
Com a transferência dos índios para a Fazenda Guarani, a RURAL MINAS conferiu títulos de propriedade a posseiros que ocuparam grande parte das terras do antigo posto indígena em Resplendor, sendo que, em 1993, essa transferência dos títulos de propriedade foi declarada inconstitucional pelo STF, nos autos da Ação Cível Originária 323-7-/MG (TRF1, 2021).
Cerca de 8 anos após sua remoção compulsória, e devido às precárias condições de sobrevivência na Fazenda Guarani, os Krenak decidiram voltar às suas terras em Resplendor. Documentos oficiais, como o Relatório IEPHA e o Plano de Desenvolvimento Comunitário Krenak, relativo à Fazenda Guarani, também comprovam a existência de trabalho indígena na agricultura. Foi constatada a coerção dos índios a trabalhos forçados (TRF1, 2021).
Além do confinamento e da exigência de trabalhos forçados, as condições ambientais da região da Fazenda Guarani eram totalmente diferentes das condições da área por eles habitada em Resplendor, na região do Rio Doce. Há laudo psicológico detalhado a respeito do impacto de toda a violência a que os índios foram submetidos, tanto no Reformatório Krenak, quanto no exílio forçado para a Fazenda Guarani (TRF1, 2021).
2.4 Da responsabilidade atribuída ao Capitão Manoel dos Santos Pinheiro
A decisão aponta o protagonismo de Manoel dos Santos Pinheiro, conhecido como “Capitão Pinheiro”, que, sendo capitão da Polícia Militar de Minas Gerais, foi nomeado chefe da Ajudância Minas-Bahia, órgão regional da FUNAI (Portaria nº 110, de 12/12/1968) para a coordenação e administração do Reformatório Krenak, tendo participação efetiva na transferência compulsória dos indígenas para a Fazenda Guarani, além de participar da criação da GRIN – Guarda Rural Indígena (TRF1, 2021).
Há diversas passagens sobre a atuação na chefia do órgão regional da FUNAI, inclusive ofício assinado, relatando a disponibilidade da área do Posto Krenak, em Resplendor, em virtude da permuta realizada com a Fazenda Guarani (TRF1, 2021).
Dentre as inúmeras provas coletadas, destacam-se as referências dos índios ao Capitão Pinheiro, tomadas em depoimentos colhidos pelo MPF, provas que demonstram o abusivo exercício de poder por parte do réu, cuja atuação extrapolou a já ilegal e arbitrária orientação estatal (TRF1, 2021).
Destaque para o trecho do depoimento de Douglas Krenak, constante na folha 527 dos autos:
depois foi construído o presídio (Reformatório Krenak), sob responsabilidade do Capitão Pinheiro...se um militar queria uma índia, ela tinha que dormir com ele e o marido ficava preso. E isso aconteceu muitas vezes. O próprio Capitão Pinheiro vinha de vez em quando na aldeia Krenak e praticava estes atos de violência sexual contra as mulheres (TRF1, 2021).
Relatados os temas centrais da decisão judicial, o próximo subitem irá abordar os limites da condenação.
2.5 Condenação
A sentença proferida entendeu que a União, a FUNAI e o Estado de Minas Gerais deverão realizar, no prazo de seis meses, após consulta prévia às lideranças indígenas Krenak, cerimônia pública, com a presença de representantes das entidades rés, em nível federal e estadual, na qual serão reconhecidas as graves violações de direitos dos povos indígenas, seguida de pedido público de desculpas ao povo Krenak, com ampla divulgação junto aos meios de comunicação e canais oficiais das entidades rés (TRF1, 2021).
Já a FUNAI deverá concluir o Processo Administrativo nº 08620-008622/2012-32, de identificação de delimitação da terra indígena Krenak de Sete Salões/MG, no prazo de 6 meses e, efetivada a delimitação territorial, estabelecer ações de reparação ambiental das terras degradadas pertencentes aos Krenak, sem prejuízo da participação em medidas reparatórias que constem do acordo da União com as empresas Vale e Samarco e que tenham atingido os limites do território indígena (TRF1, 2021).
Em conjunto, a FUNAI e o Estado de Minas Gerais deverão implementar a efetiva participação do povo Krenak, ações e iniciativas voltadas ao registro, transmissão e ensino da língua Krenak, de forma a resgatar e preservar a memória e cultura do referido povo indígena, com a implantação e ampliação do Programa de Educação Escolar Indígena, medida mais efetiva do que a simples tradução de documentos oficiais para a língua Krenak (TRF1, 2021).
A União foi condenada a reunir e sistematizar toda documentação relativa às graves violações dos direitos humanos contra os povos indígenas e que digam respeito à instalação do Reformatório Krenak, à transferência forçada para a Fazenda Guarani e ao funcionamento da Guarda Rural In dígena, disponibilizando-a na internet, no prazo de 6 meses, em endereço eletrônico específico, para livre acesso do público (TRF1, 2021).
A sentença declarou, ainda, a existência de relação jurídica entre o réu Manoel dos Santos Pinheiro e a União, a FUNAI e o Estado de Minas Gerais, que, como agente público responsável, praticou violações de direitos contra os povos indígenas, como a criação e instalação da Guarda Rural Indígena, a administração do Reformatório Krenak e a transferência compulsória dos índios para a Fazenda Guarani, em Carmésia/MG (TRF1, 2021). A decisão não acolheu pedido para retirada dos proventos de aposentadoria do réu, que é militar, considerando que tal pedido deverá ser objeto de ação específica na Justiça Estadual Militar (TRF1, 2021).
3. CONCLUSÕES
As políticas para povos indígenas do Estado brasileiro levaram a inúmeras violações. Os indígenas Krenak sofreram violações por parte do Estado desde a colonização portuguesa. Instituiu-se todo um sistema de repressão de divisões militares e quartéis, intensificado no século
XIX. No século XX, atos do regime militar (1964-1985) quase os levaram à extinção. O presente artigo, então, analisou as ações estatais da ditadura militar que causaram diversos danos ao povo Krenak, como também a outras etnias, quais sejam, a criação da Guarda Rural Indígena (GRIN), a instalação do presídio indígena em suas terras, chamado “Reformatório Krenak”, e o deslocamento forçado para outro centro de detenção indígena, chamado “Fazenda Guarani”. Esses três episódios estão presentes tanto no Relatório da Comissão Nacional da Verdade, Volume II (Textos temáticos), como na Ação Civil Pública nº 64483- 95.2015.4.01.3800 (14ª Vara da Justiça Federal em Minas Gerais), impetrada pelo Ministério Público Federal, em 16 de dezembro de 2015. A sentença proferida concedeu diversos pedidos, inclusive, alguns que poderão reparar possíveis danos à cultura dos Krenak e fazer a devolu ção de território ao povo Krenak. Há demonstração de que o povo Kre nak foi submetido a humilhação e desagregação social. Muitos foram os atos violadores, como privação de liberdade, trabalho forçado, violência sexual, tortura, remoção forçada etc. Os Krenak foram impedidos, ainda, de utilizarem seus nomes originais, de falarem sua língua e de realizarem seus cultos, danças e rituais.
A decisão judicial condenou a União, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Estado de Minas Gerais por violações aos direitos humanos e crimes cometidos contra os Krenak, respaldados em políticas públicas e instituições estatais criadas especificamente para essa finalidade, durante o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985).
Todas as medidas determinadas na decisão judicial têm como principal resultado a aplicação do modelo de reparação emoldurado pela Justiça de Transição, que lança o delicado desafio de romper com o passado autoritário. A justiça transicional está ligada aos processos históricos de luta em prol da transição de ditaduras para regimes democráticos e busca confrontar o abuso do passado e servir de apoio para a transformação política, reafirmando o respeito aos direitos humanos. O respeito à memória e à verdade é medida necessária para a construção de uma transição democrática e de reparação às violações perpetradas por agentes estatais.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Ministério do Interior. Relatório Figueiredo, 1968. Disponível em: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=museudoindio.
CABRAL, Rafael Lamera Giesta; MORAIS, Vitória Larissa Dantas. Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 11, n. 1, p. 106-122, jan./jun. 2020.
FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. (Org.). Memória do SPI: Textos, Imagens e Documentos sobre o Serviço de Proteção aos Índios (1910- 1967). Rio de Janeiro: Museu do Índio/FUNAI, 2011.
Mapa dos Conflitos. MG – Povo indígena Krenak segue lutando por reconhecimento e demarcação total de seu território tradicional. Disponível em: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/mg-povo-indigena-krenak-segue-lutando-por-reconhecimento-e-demarcacao-total-de-seu-territorio-tradicional/.
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TRF – Tribunal Regional Federal da 19 Região. Sentença da Ação Civil Pública – 0064483-95.2015.4.01.3800. Disponível em <https://portal.trf1.jus.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fileId=2C90825E7BE3C063017BE58D36CC08DE>
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflito. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, n. 1 (jan./jun. 2009). Brasília: Ministério da Justiça, 2009.