NOTAS ACERCA DA IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DE ALTO PADRÃO DE LUXO

Ronaldo Raemy Rangel
PUC-Minas, Brasil
Gabriel Dolabela Raemy Rangel
UCAM, Brasil

Direito em Movimento

Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

ISSN: 2179-8176

ISSN-e: 2238-7110

Periodicidade: Semestral

vol. 20, núm. 2, 2022

direitoemmovimento@tjrj.jus.br

Recepção: 11 Agosto 2022

Revised: 13 Agosto 2022

Aprovação: 26 Agosto 2022



Resumo: O direito fundamental à moradia tem como um dos elementos de proteção a impenhorabilidade do denominado “bem de família”. Contudo, a moradia de luxo não parece ser protegida por esse instituto. O presente trabalho discute os limites da proteção do bem de família, de modo a dar uma interpretação correta e proporcional ao instituto.

Palavras-chave: Bem de Família, Penhora, moradia de luxo.

Abstract: The fundamental right to housing has as one of the elements of protection the unseizability called homestead. However, luxury housing does not seem to be protected by this institute. The present work discusses the limits of the homestead in order to give a correct and proportional interpretation to the institute.

Keywords: homestead, Attachment, luxury residence.

INTRODUÇÃO

O principal efeito prático do instituto do bem de família esculpido na Lei 8.009/90 é impedir que uma pessoa e sua família sejam privadas de sua moradia digna para satisfação de suas dívidas. Trata-se da regra da impenhorabilidade, que, em última análise, visa a proteger o direito à moradia previsto no artigo 6° da Constituição da República. Há uma espécie de análise de custo/sacrifício no sentido de que mais importante é a proteção da moradia digna do que a satisfação do crédito. Vale dizer que não busca a lei do bem de família proteger o imóvel em si, mas sim a moradia compreendida como o local onde a família fincou seu asilo, seu porto seguro.

A responsabilidade patrimonial de um devedor sempre recai sobre o seu patrimônio, e não sobre a sua pessoa. Foi-se o tempo primitivo em que uma pessoa respondia pelas suas obrigações com o seu corpo, como ocorria em civilizações da antiguidade em que havia regras de imposição de castigos físicos, de trabalhos forçados, de hipoteca de crianças ou até mesmo de execução dos devedores. Em outras palavras, a responsabilidade deve ser patrimonial e, à luz de uma interpretação constitucional do direito, devem ser respeitados os aspectos existenciais. A proteção do bem de família vai justamente nesse sentido de proteger a família, a moradia e, como consequência, a dignidade.

Em outro giro, merece ser dito que não é a regra da impenhorabilidade do bem de família absoluta. Ao revés, a própria Lei 8.009/90 traz algumas exceções em que, mesmo com relação ao bem servido de moradia ao devedor e à sua família, poderá ocorrer a penhora, como é o caso do devedor de pensão alimentícia ou do fiador em locações. Trata-se de hipóteses excepcionais em que o próprio legislador entendeu que, em uma balança, seria desproporcional a proteção da moradia do devedor em detrimento de outros direitos em choque.

Sucede que o legislador foi omisso — ou não — em relação à possibilidade da penhora do bem de família luxuoso, ou seja, imóveis de elevado valor e que se revestem de excessivo requinte, com conforto desnecessário, exagerado, por vezes até chamativo e ostensivo. Isso tem gerado divergências na doutrina e na jurisprudência de nossos Tribunais. O assunto foi inclusive objeto de discussão no Superior Tribunal de Justiça em algumas oportunidades.

A grande discussão gira em torno do argumento de que a ratio da lei é a proteção do mínimo patrimonial indispensável a uma existência decente, com dignidade, o que não parece significar luxo nem ostentação. Soa injusto para alguns que um credor deixe de receber o seu crédito enquanto o devedor desfruta de uma moradia de alto padrão de luxo. Haveria uma desproporcionalidade na forma de proteção do devedor.

O presente trabalho, portanto, através de revisão bibliográfica e de análise da jurisprudência de nossos tribunais, propõe-se a enfrentar, à luz de modernos conceitos do direito civil constitucional contemporâneo, a questão ora posta. A pergunta central é: poderia ser penhorado o imóvel de família luxuoso?

NOÇÕES DO BEM DE FAMÍLIA E A REGRA DE IMPENHORABILIDADE

A família pode ser entendida como entidade de estrutura de conví vio. É a convivência humana estruturada a partir de cada uma das diversas células que compõem a comunidade social e política de um Estado. (MADALENO, 2013. p. 31). Advindas de casamento, de união estável1, de vínculos monoparentais2 ou de outros tipos de relações (DIAS, 2021, online), são múltiplas as formas de família reconhecidas em nosso ordenamento, merecendo todas proteção e respeito. A família tem uma função clara de socialização, pois é por meio dela que as pessoas criam seus hábitos, aprendem suas tradições, desenvolvem sua identidade e personalidade. O Estado, nesse aspecto, deposita na família alguns deveres e direitos ligados ao afeto e à segurança mútua, para que as pessoas possam se desenvolver individualmente e socialmente.

Foi conferida pelo nosso ordenamento jurídico especial atenção à família também pela legislação infraconstitucional, sendo objeto deste trabalho a figura do bem de família, que faz parte desse mosaico. Trata-se de um meio de se garantir um asilo à família, sendo protegida a sua moradia pela regra da impenhorabilidade. Merece ser feita a ressalva trazida por Eduardo Mingorance de Freitas Gouvêa de que “o bem de família é apenas um direito, e não pode ser confundido com o imóvel sobre o qual incide – dessa forma o bem de família seria algo acessório” (GOUVÊA, 2020, p. 43).

Fala-se que a origem do bem de família seria nos Estados Unidos, no Texas, no início do século XIX, em razão da forte migração de colonos para cultivar na região. Com incentivo ao desenvolvimento e como meio de convencer mais colonos a se estabelecerem na região, criou- se a regra de que as pessoas poderiam ser processadas, mas não seriam obrigadas a pagar dívidas com as suas terras. (GOUVÊA, 2020, p. 47). A vinda do instituto ao Brasil teve inspiração justamente na “homestead exemption” americana.

O projeto inicial do Código Civil de 1916 não previa a figura do bem de família, o que só foi inserido na lei pela Comissão Especial do Senado, presidida pelo Senador Feliciano Penna. Aquele código trouxe o instituto nos artigos 70 a 73 do aludido diploma, em sua Parte Geral. (GAMA E MARÇAL, 2016, p. 69-80). Foi a Lei 8.009/1990, no entanto, que estabeleceu o bem de família legal e involuntário, ficando a cargo dos artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil de 2003 regular a instituição do bem de família voluntário. Interessante notar que o Código Civil de 2003 deslocou o tratamento do bem de família da disciplina reservada aos bens para a disciplina do direito de família, demonstrando a perspectiva de visão da sociedade em relação à proteção pretendida e, ainda, a hierarquia dos valores sociais vigentes em cada período da história.

Há, como se pode ver, uma divisão entre o bem de família voluntário (ou convencional), que é aquele estabelecido por vontade de seus titulares por escritura pública ou testamento, e o bem de família involuntário (legal), emanado diretamente da própria lei. O que nos interessa para este trabalho é o legal.

A Lei 8.009/90 foi, sem dúvidas, fruto do momento econômico experimentado pelo país naqueles anos. Muitos acumulavam dívidas e suportavam intempéries em suas finanças em razão da hiperinflação e acúmulo de juros, fruto de uma série de planos econômicos malogrados.3A instabilidade econômica gerou uma sociedade endividada e, para que a moradia dessas pessoas fosse preservada, o legislador criou a regra da impenhorabilidade. Além disso, a entrada em vigor da lei deu-se poucos anos depois da promulgação da Constituição de 1988, que, no meio de seu farto rol de direitos funda mentais, trouxe especial atenção à dignidade humana, à família, e à moradia4.

O artigo 1° da aludida lei é esclarecedor:

Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

Nesse sentido, o próprio Estado, de modo vertical, impõe a proteção do imóvel destinado à família e dos inalienáveis direitos sociais ligados à moradia. Arnaldo Marmitt bem assevera que:

A nova lei implantou em nosso direito a impenhorabilidade coativa, sem reduzir a disponibilidade do proprietário, sem nada alterar em relação a ele, inobstante ter dado maior amplitude ao instituto do bem de família. Embora dispense a vontade do instituidor, não o despoja da livre disposição, por não impor a inalienabilidade da coisa. Sobrepôs, assim, o superior interesse da família a todos os demais interesses humanos, vez que a penhora de móveis e imóveis que se usufruem em comum, dentro do agrupamento familiar, em composse e em união de proveito, priva todos da utilidade, interferindo na esfera jurídica de todos. Quem não é parte passiva na execução por ela não pode ser afetado, a ponto de não mais poder se beneficiar de tais bens. A instituição do benefício ex lege dispensa a escritura pública, vez que é impositiva, sendo também irrelevante a circunstância de o beneficiário ser ou não devedor (MARMITT, 1995, p. 21)

É de se frisar que, consoante o parágrafo único do artigo 1 da Lei n. 8.009/90, o conceito de bem de família involuntário compreende, além do imóvel em si, no qual se fixa a família, também eventuais plantações, benfeitorias, todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional e móveis que guarnecem a residência, desde que quitados. Não se incluem, no entan to, nesse conceito, os veículos de transporte, as obras de arte e os adornos suntuosos, que poderão ser penhorados. (MARMITT, 1995, p. 21).

Requisito indispensável para configuração de um imóvel como bem de família é que ele sirva como real residência da entidade familiar, pois, diga-se novamente, o objetivo final é uma proteção à moradia. Frise-se que nossos tribunais estendem a proteção às pessoas solteiras, separadas e viúvas, na forma da Súmula 364 do Superior Tribunal de Justiça. Também parece ser extensível ao que a doutrina passou a inti tular de “novas famílias”.

A regra na qual se estrutura a lógica do bem de família é a da impenhorabilidade. Como já dito, é almejado com tal regra uma proteção da moradia da família e, por conseguinte, a preservação da dignidade humana. Frise-se que o direito de propriedade, desde a gênese dos direitos fundamentais, é protegido como conteúdo essencial da dignidade, alcançando, nos dias de hoje, ainda, um caráter extrapatrimonial, devendo inclusive cumprir a sua função social, na lida de se preservar interesses da coletividade. Muitos são os mitos acerca da ideia de função social da propriedade. Não raras as vezes, diante do conteúdo ideológico sugerido pela expressão, alguns enxergam uma ameaça de negação à propriedade privada ou ao próprio sistema capitalista. (SCHREIBER, 2000, p. 159-182). Mas o que se tem no conceito, em verdade, é o reconhecimento da existência de interesses supraindividuais, de caráter existencial, passíveis de serem ofendidos por um irresponsável exercício do domínio. Hoje, não há dúvida de que a propriedade privada não é absoluta e deve respeitar o meio-ambiente, o bem-estar de trabalhadores, os direitos da vizinhança, a saúde pública etc. (COMPARATO, 1986, .71-79).

De igual modo, a satisfação do crédito por via judicial deve conciliar a um só tempo a ideia de efetividade, dando ao credor tudo que lhe é devido, e o princípio da menor onerosidade da execução, que impõe seja realizada a execução da maneira menos gravosa possível ao executado. Trata-se, como afirma Fred Didier, de “cláusula geral que serve para impedir o abuso de direito do exequente”, (DIDIER, CUNHA E BRAGA, 2017, p.78), sendo feitas escolhas de adequação de meios de execução e não do resultado a ser alcançado, que sempre será a satisfação do crédito. Em um universo de diversos meios possíveis para satisfação do crédito, deve-se optar pelo menos gravoso, preservando os direitos do devedor e evitando execuções abusivas e desnecessariamente onerosas.

Na execução, o Estado, através da figura do juiz, mediante atos de constrição sobre bens, faz a captação destes e os reverte à satisfação do exequente. Tem-se por penhora o ato constritivo que incide sobre algum bem do obrigado e a entrega ao credor do dinheiro obtido mediante a alienação forçada do bem penhorado. Explicando de outro modo, a penhora é o meio de se forçar que um bem do patrimônio do devedor seja destinado à satisfação do crédito executado, o que é feito pelo órgão da justiça.

Quando se aventura a tratar de hipóteses de impenhorabilidade, o legislador acaba caminhando no terreno dos bens jurídicos em conflito. O legislador, ao separar determinados bens em seletas hipóteses e tê-los por impenhoráveis, faz uma ponderação sobre os valores e direitos em contraste, decidindo que mais vale a proteção daqueles bens e dos direitos a eles ligados do que simplesmente satisfazer o crédito com sua venda. Por exemplo, no rol do artigo 833, do Código de Processo Civil, o legislador traz várias hipóteses de impenhorabilidade, que não demandam muito esforço para se entender o porquê da proteção:

Art. 833. São impenhoráveis:

I - os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;

II - os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida;

III - os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor;

IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º;

V - os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado;

VI - o seguro de vida;

VII - os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas;

VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;

IX - os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social;

X - a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos;

XI - os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos termos da lei;

XII - os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra.

Em relação ao bem de família, há igualmente uma análise legislativa dos valores e direitos em choque. Não à toa, o próprio artigo 3° da Lei 8.009/90 traz algumas exceções em que o bem de família poderá ser penhorado. É o caso, por exemplo, do imóvel do fiador em locações. Nesse caso, entendeu o legislador que a pessoa que se sujeita a ser fiador deve sa ber do risco de ter seu bem atingido em caso de inadimplência. O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do TEMA 295 — em sede de repercussão geral —, firmou a tese de que é constitucional a penhora do bem de família pertencente ao fiador em contrato de locação, havendo, segundo a Corte, uma compatibilidade da exceção prevista no artigo 3°, VII, da Lei 8009/90 com o artigo 6° da Constituição da República. Esse mesmo assunto foi apreciado em 2019 pelo Superior Tribunal de Justiça no TEMA 708, cuja relatoria coube ao ministro Luis Felipe Salomão, tendo se chegado à mesma conclusão.

PROTEÇÃO DA MORADIA OU DO PADRÃO DE VIDA?

O ponto central do presente trabalho que se pretende fixar é que a proteção do bem de família visa a blindar os bens imprescindíveis à família, à moradia, atendendo-se ao que é determinado pela Constituição. Hoje, como é amplamente difundido, vige a metodologia de unidade do ordenamento jurídico que passou a ser chamada comumente de “direito civil constitucional”, incidindo em um caso concreto conjuntamente normas de diferentes origens e fontes, sendo atendidas nas relações privadas normas e princípios constitucionais, em um movimento de despatrimonialização e publicização do direito civil. Sobre o tema, ensina o profes sor Tepedino:

Por direito civil-constitucional entende-se a metodologia que, em busca da unidade do ordenamento jurídico, conforme acima longamente explicitado, propõe que a interpretação e a aplicação do direito ocorram mediante a incidência conjunta das normas infraconsti tucionais e das normas constitucionais, qualquer grau hierárquico ou setor que se localize, possa exprimir, de maneira uniforme diretrizes constitucionais. Tal procedimento potencializa as categorias do direito civil, permitindo que, para além da disciplina de cada caso singular, os modelos jurídicos cumpram o papel de promoção da tábua de valores da Constituição. (TEPEDINO, 2022, p. 54)

Nessa esteira, não parece a lei, ao criar a figura do bem de família impenhorável, querer proteger um modelo de padrão de vida ou o imóvel específico em si. O objetivo, repise-se, é salvaguardar a moradia da família, com a proteção de necessidades e de um mínimo existencial, em atendimento aos mandamentos constitucionais. Nesse sentido, Guilherme Calmon Gama:

A interpretação deste dispositivo deve levar em conta sua ratio, que é a de garantir apenas o mínimo necessário à sobrevivência digna do executado. Dignidade, conforme supra definido, não significa luxo nem ostentação, que, quando presentes, devem excluir o devedor do âmbito da incidência da proteção constante da norma. (GAMA; MARÇAL, 2016, p. 245).

Em uma análise sistemática da legislação, vê-se que o cobertor da impenhorabilidade almeja sempre a proteção do mínimo existencial, e não de um padrão de vida. Por exemplo, o artigo 833, VIII, do Código de Processo Civil, fala em impenhorabilidade da “pequena” propriedade rural. A própria Lei 8.009/1990 segue a mesma esteira no artigo 2°, ao reconhecer a impenhorabilidade dos bens móveis “suntuosos”. O Código Civil de 2002, por sua vez, no parágrafo único do artigo 1.715, ao tratar do bem de família convencional e da possibilidade de penhora por força de dívida de IPTU ou de condomínio, resguarda quantia suficiente para o sustento familiar. O que é luxuoso, o que ostenta, não parece ser protegido pelo legislador.

Hoje é amplamente reconhecido que houve uma guinada no direito civil brasileiro no sentido de se trazer a pessoa para o centro das preocupações das relações privadas. O patrimonialismo exacerbado que outrora orquestrava a nossa legislação civil passou a dar lugar a questões existenciais, considerando-se a dignidade da pessoa humana como um fim das relações sociais. A despatrimonialização sofrida ao longo dos anos e consolidada no Código Civil atual, com respaldo constitucional, coloca o ser humano como a grande condição essencial do universo de normas e traz o bem como fruto de utilização da pessoa para que exista uma vida valorosa e com dignidade.

Nesse caminhar, o professor Edson Fachin foi pioneiro na teoria que passou a ser conhecida como “patrimônio mínimo” (FACHIN, 2006, p. 114). É que a tutela do direito civil, em especial antes do Código Civil de 2002, voltava-se muito à proteção de questões primordialmente patrimoniais, isto é, a uma tutela do “ter”. A partir do movimento de constitucionalização do direito privado, da edição do novo código e de diversos outros diplomas, o direito civil promoveu uma guinada à proteção do “ser”, no sentido de trazer a tutela de dignidade humana como objeto central das preocupações também das relações privadas. A ideia de um “patrimônio mínimo” coloca em estudo que o “ser” volta-se para o “ter” de maneira a possuí-lo para desenvolver uma vida próspera e digna.

Essencialmente, a teoria do patrimônio mínimo busca preservar uma condição inviolável, inalienável de patrimônio, do qual a pessoa não pode ser privada para que tenha minimamente uma vida digna:

O valor da “pessoa” abarca a possibilidade de se lhe garantir um patrimônio mínimo, a fim de que seja resguardada a dignidade em razão da qual os indivíduos merecem proteção e amparo. A tutela desses valores não preserva apenas a individualidade, como também se projeta para a coletividade (FACHIN, 2006, p. 114).

Assim, a lei deve proteger essa condição patrimonial mínima. Por exemplo, o Código Civil, no artigo 548, proibe que uma pessoa doe todos os seus bens sem reservar parte para sua subsistência. Do mesmo modo, é certo que um credor, na lida de satisfazer o seu crédito, pode expropriar bens do devedor até certo ponto, pois chegará uma hora em que o patrimô nio do devedor não mais poderá estar à disposição, sob pena de prejudicar a sua subsistência e vida digna. Preservar-se-á sempre patrimônio suficiente ao mínimo existencial.

Maria Berenice Dias bem destaca que o conceito de bem de família visa a proteger a dignidade do devedor, com seu mínimo vital:

Os novos valores a serem protegidos pelo bem de família podem ser resumidos na noção de mínimo vital, que visa a preservar as bases de dignidade do devedor para que possa recomeçar a vida, mantendo íntegra a sua personalidade. O princípio da dignidade humana leva o estado a garantir o mínimo existencial para cada ser humano em seu território. A tendência é encontrar instrumentos hábeis que preservem o devedor e que, ao mesmo tempo, não frustrem a garantia do credor. (DIAS, 2016, p. 360).

Como consequência lógica, não parece o modelo atual de direito civil constitucional querer preservar um elevado padrão de vida, um padrão de luxo ou conforto exacerbado. Não soa razoável permitir que o devedor mantenha um alto padrão de vida, com moradia de alto conforto e luxo, em detrimento de seus credores, que podem vir a sofrer um comprometimento no seu próprio padrão de vida.

Vale destacar que a propriedade privada sofre a limitação da sua função social, o que decorre de previsão constitucional. De tal modo, não pode esse direito ser utilizado como subterfúgio para conservação de um padrão de vida luxuoso, impossibilitando a satisfação de uma responsabilidade patrimonial legitimamente cobrada em juízo. Parece estar inserida dentro da função social a ideia de que as dívidas devem ser satisfeitas na vida em comunidade. Somado a isso, o direito à moradia não pode ser entendido de modo amplificado a ponto de salvaguardar uma moradia luxuosa. A moradia precisa ser adequada à concepção de dignidade e de patrimônio mínimo.

O princípio da proporcionalidade, embora não tenha previsão expressa em nossa Constituição, é de ampla aceitação e importa em uma análise do respeito a três subprincípios, a saber: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (SARMENTO; NETO, 2014. p. 471). Assim, embora possa-se considerar que a impenhorabilidade seja uma medida adequada à proteção da moradia, ela não é proporcional se, no caso concreto, o bem protegido for luxuoso, pois há, nessa hipótese, uma alteração na balança e o sacrifício não é compensado por benefício entre o bem jurídico tutelado. Acaba que o direito a um patrimônio vasto, excedendo o limite do necessário a um padrão médio de vida digna é tutelado, com o sacrifício da pretensão legítima do credor.

Curioso notar que o projeto que resultou na Lei nº 11.382/2006 almejava inserir um parágrafo único no art. 650 do Código de Processo Civil, estabelecendo nova regra que limitava a impenhorabilidade ao bem de família que não excedesse 1.000 (um mil) salários-mínimos. No entanto, esse trecho do projeto foi vetado, com as seguintes razões:

(...) o Projeto de Lei quebrou o dogma da impenhorabilidade absoluta do bem de família, ao permitir que seja alienado o de valor superior a mil salários-mínimos, ‘caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será entregue ao executado, sob cláusula de impenhorabilidade’. Apesar de razoável, a proposta quebra a tradição surgida com a Lei no 8.009, de 1990, que ‘dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família’, no sentido da impenhorabilidade do bem de família independentemente do valor. Novamen te, avaliou-se que o vulto da controvérsia em torno da matéria torna conveniente a reabertura do debate a respeito mediante o veto ao dispositivo (...) (PLANALTO, 2022, online)

Como se vê, as razões do veto mostraram-se pouco elucidativas e extremamente ralas. O grande argumento para o veto parece ter sido uma “tradição jurídica” do Brasil de não limitar o valor do imóvel para fins de proteção. Teria sido um avanço a aprovação da aludida alteração.

A POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O Superior Tribunal de Justiça debruçou-se no tema em algumas oportunidades, tais como nos seguintes julgados: Agravo em Recurso Especial 1146607 – SP, Agravo em Recurso Especial 1656079 – RS, Agravo em Recurso Especial 1505028 – SP e Recurso Especial 1320370-RJ.

A posição firmada em todos esses casos foi no sentido de que o fato de o imóvel ser de alto padrão é irrelevante para fins de proteção do bem de família. Veja-se, por exemplo, a ementa do Recurso Especial 1320370-RJ, da Segunda Turma, relatado pelo ministro Castro Meira:

PROCESSUAL CIVIL. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. BEM DE FAMÍLIA. LEI Nº 8.009/09. IMÓVEL DE ELEVADO VALOR. RESTRIÇÕES À GARANTIA DA IMPENHORABILIDADE. INEXISTÊNCIA.

1. A tese desenvolvida com esteio no art. 274 do Código Civil não foi objeto de análise pela instância ordinária, o que configura falta de prequestionamento e impede o acesso da matéria a este Superior Tribunal de Justiça. Incidência da Súmula 211/STJ.

2. A recorrente pretende afastar o regime protetivo da Lei nº 8.009/90 sob a justificativa de que o único bem imóvel pertencente ao executado, e que serve de morada para sua família, possui valor bastante elevado, caracterizando-se como residência luxuosa de alto padrão - casa situada no bairro do Leblon, Município do Rio de Janeiro/RJ.

3. A Lei nº 8.009/90 não estabelece qualquer restrição à garantia do imóvel como bem de família no que toca a seu valor nem prevê regimes jurídicos diversos em relação à impenhorabilidade, descabendo ao intérprete fazer distinção onde a lei não o fez.

4. Independentemente do elevado valor atribuído ao imóvel pelo Fisco, essa variável não abala a razão preponderante que justifica a garantia de impenhorabilidade concebida pelo legislador: de modo inequívoco, o bem em referência serve à habitação da família. É o bastante para assegurar a incidência do regime da Lei nº 8.009/90.

5. Recurso especial conhecido em parte e não provido. (STJ, 2022, online)

A visão por que se optou no STJ é de que, não tendo sido feita ressalva na lei sobre o padrão do bem de família, para fins de impenhorabilidade, não caberia ao Judiciário impedir a penhora. Não poderia o intérprete estabelecer restrição que a lei não fez. Diz assim o ministro relator no aludido recurso especial:

a legislação de regência não estabelece qualquer restrição à garantia do imóvel como bem de família no que toca a seu valor nem prevê regimes jurídicos diversos em relação à impenhorabilidade, descabendo ao intérprete fazer distinção onde a lei não o fez. Assim é que não discriminou o imóvel bem de família em relação a seu valor nem, a partir desse discrímen, previu regimes jurídicos diversos em relação ao “grau” de impenhorabilidade do imóvel. Dessarte, elementar regra de hermenêutica, não cabe ao intérprete fazer distinção onde a lei não o fez. Ademais, independentemente do elevado valor atribuído ao imóvel pelo Fisco, não se pode perder de vista que essa variável de mercado não abala a circunstância preponderante que atrai a garantia concebida pelo legislador: no caso que se examina: de modo inequívoco, o bem é utilizado para habitação da família. A meu sentir, é o bastante para assegurar a garantia da Lei nº 8.009/90.

É verdade que o melhor caminho seria um esforço legislativo para resolver a questão, permitindo a penhora do bem luxuoso. Mas, na ausência de lei nesse sentido, não parece ser adequada uma aplicação legalista, formal e asséptica por parte do Judiciário, como fez o STJ. Isso legitima situações pouco razoáveis, em que o devedor mantém seu alto padrão de luxo em detrimento do credor, que tem frustrado o seu legítimo direito a receber o que lhe é devido. À luz dos princípios da proporcionalidade, da função social da propriedade, da dignidade humana, da igualdade e da segurança jurídica, a solução que parece adequada é a da penhora do bem luxuoso.

Questão tormentosa, é verdade, será a definição pelo intérprete do que é o luxo, isto é, até onde vai a impenhorabilidade do bem de família. Qual é o valor do imóvel para ele ser considerado luxuoso? Poderá ser o imóvel penhorado em uma fração de quanto? Tais perguntas decerto só poderão ser respondidas em um caso concreto, valendo-se o magistrado de diversos elementos que não podem ser determinados aprioristicamente. Como bem acentua Guilherme Calmon Nogueira Gama:

Somente em cada caso concreto será possível inferir qual é o padrão médio de cada pessoa, de modo a reconhecer se os seus bens são ou não de padrão médio. O fato de que um imóvel de R$300.000,00 (trezentos mil reais) pode ser considerado como luxuoso em uma área de seca nordestina, mas, nos padrões do Sudeste do país, atende aos padrões de vida média tendo como norte o princípio da propor cionalidade, 56 sendo certo que a determinação de qualquer critério pré-determinado de valoração revela-se incompatível com a realidade brasileira, que possui como traço marcante a diversidade social de cada pessoa. Um exemplo que pode ser citado é o fato de que um imóvel de R$300.000,00 (trezentos mil reais) pode ser considerado como luxuoso em uma área de seca nordestina, mas, nos padrões do Sudeste do país atende aos padrões de vida média. Desta forma, a análise do que é ou não luxuoso deve recair na análise casuística do magistrado, que, atentando para as situações do caso concreto, sempre pautado pelo princípio da proporcionalidade, logrará alcançar a sua determinação, concretizando os valores da jus tiça social. (GAMA; MARÇAL, 2016, 253).

O que se defende aqui é que as circunstâncias do caso concreto deveriam ser os ingredientes necessários, a fim de decidir o magistrado pela impenhorabilidade ou não. Deverá o magistrado identificar se há outros bens passíveis de constrição. Em não havendo, deverá analisar os padrões do bem revestido pela proteção de bem de família. Caso fuja dos padrões medianos da região, atingindo uma posição de conforto e luxo excessivo, poder-se-á realizar a constrição de, ao menos, uma fração, para satisfazer os credores.

CONCLUSÕES

O direito civil, hodiernamente, deve ser aplicado à luz da Constituição, escapando de um modelo meramente patrimonialista, que até pouco tempo vigia no Brasil, em especial sob a égide do Código Civil de 1916. O ser humano, que é um fim em si mesmo, passou a ser trazido como preocupação central nas relações privadas, respeitado em sua personalidade, liberdade, intimidade etc. Nessa esteira, em uma confusão saudável entre o direito público e o direito privado, leis cogentes são aplicadas nas relações entre particulares, sendo que a atenção ao “ser” impõe limites ao “ter”. Teorias como a do patrimônio mínimo atendem aos mandamentos constitucionais de preservação da dignidade e do mínimo existencial.

O instituto do bem de família, cujo marco legal mais relevante é a Lei 8.009/90, tem como objetivo a proteção da moradia digna da família, garantindo que, mesmo aquela pessoa que deve dinheiro, terá preservado o seu lugar para morar com dignidade. Ao tornar impenhorável a moradia, o legislador ponderou que deveria ser dada maior importância à moradia do que à satisfação do crédito, dando especial atenção à situação existencial daquela entidade familiar.

O que se defendeu neste trabalho, no entanto, é que esse instituto do bem de família não busca a proteção de um padrão de vida luxuoso. Ao revés, o que o bem de família deveria preservar é um patrimônio mínimo, garantidor do mínimo existencial, prevalecendo a satisfação de um crédito legitimamente cobrado judicialmente, e não a manutenção de um padrão de luxo. Como consequência, aquele imóvel que ultrapasse significativamente o médio padrão de vida não deveria ser preservado como impenhorável, sob pena de ofensa, a um só tempo, aos princípios da proporcionalidade, da função social da propriedade, da igualdade e da segurança jurídica.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em sentido oposto, tem sido firme no sentido de impedir a penhora do bem de família independentemente do seu valor ou padrão econômico. Trata-se de uma interpretação engessada da lei, que não atende aos mandamentos constitucionais e que legitima situações pouco razoáveis em que um devedor desfrutará de confortável imóvel de luxo, enquanto, ao mesmo tempo, deve quantia a um credor e não paga.

O ideal seria o surgimento de legislação atenta a essas situações, es- tabelecendo um teto de valor para fins da impenhorabilidade do bem de família. Mas, na sua ausência, parece coerente que o Poder Judiciário atenda à Constituição e, valorando as circunstâncias do caso concreto, permita ex- cepcionalmente a penhora do bem de família.

Sites consultados:

PLANALTO, Mensagem de Veto nº 1.047/2006, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ato2004-2006/2006/msg/vep/vep-1047- 06.htm, acessado em 02/07/2022

STJ Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201200335560&dtpublicacao=14/06/2012 , acessado em 04/07/22

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Notas

1 Diz a Constituição no artigo 226, § 3º “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
2 Diz a Constituição no artigo 226, § 4º “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”
3 Em 1986, foi criado o Plano Cruzado no Brasil, com o intuito de estabilizar a economia. Mas, como a sua principal estratégia era o congelamento de preços, embora tenha ocorrido um controle inicial da inflação, aquilo foi insustentável e, rapidamente, houve escassez de produtos, as importações aumentaram e degringolou a economia.
4 A redação atual do artigo 6° da Constituição da República foi estabelecida pela Emenda Constitucional n° 90, de 2015.
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