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Empréstimos linguísticos no português e no kheuól falados pelo povo karipuna do amapá-brasil

Romário Duarte Sanches
Universidade do Estado do Amapá, Brasil

Revista de Lenguas y Literatura Indoamericanas

Universidad de La Frontera, Chile

ISSN-e: 2735-6612

Periodicidad: Anual

vol. 24, núm. 1, 2022

revista.indoamericana@ufrontera.cl

Recepción: 02 Noviembre 2022

Aprobación: 15 Febrero 2023



Resumen: O presente artigo tem por objetivo discutir empréstimos lexicais presentes no português e no kheuól, variedades faladas pelo povo indígena Karipuna do Amapá. Esta etnia vive no extremo norte do estado do Amapá, na fronteira entre Oiapoque-BR/Saint-Georges-FR, habitando as Terras Indígenas Uaçá, Galibi e Juminã. É possível identificar, entre os Karipuna, falantes de Português, Francês (Guiana francesa) e Kheuól (língua crioula de base francesa). É importante frisar que este estudo é um recorte da Tese de Doutorado de Sanches (2020), que utilizou como aporte teórico-metodológico a dialetologia pluridimensional e contatual (Thun e Altenhofen, 2016) e a geolinguística (Cardoso, 2010). Os parâmetros adotados para coleta de dados consistiram nos seguintes passos: i) seleção de nove aldeias Karipuna do Amapá (Manga, Santa Izabel, Espírito Santo, Açaizal, Curipi, Kariá, Ahumã, Ariramba e Kunanã); ii) identificação dos colaboradores (36 indígenas bilíngues, estratificados conforme a faixa etária e sexo); iii) aplicação de questionários para identificar o perfil linguístico do povo Karipuna; e iv) gestão de dados e cartografia linguística. Os resultados evidenciaram que é possível encontrar no repertório lexical dos informantes indígenas bilíngues empréstimos lexicais de dois tipos: pure loanwords (estrangeirismos puros) e loanblends (misturas de empréstimos).

Resumo: O presente artigo tem por objetivo discutir empréstimos lexicais presentes no português e no kheuól, variedades faladas pelo povo indígena Karipuna do Amapá. Esta etnia vive no extremo norte do estado do Amapá, na fronteira entre Oiapoque-BR/Saint-Georges-FR, habitando as Terras Indígenas Uaçá, Galibi e Juminã. É possível identificar, entre os Karipuna, falantes de Português, Francês (Guiana francesa) e Kheuól (língua crioula de base francesa). É importante frisar que este estudo é um recorte da Tese de Doutorado de Sanches (2020), que utilizou como aporte teórico-metodológico a dialetologia pluridimensional e contatual (Thun e Altenhofen, 2016) e a geolinguística (Cardoso, 2010). Os parâmetros adotados para coleta de dados consistiram nos seguintes passos: i) seleção de nove aldeias Karipuna do Amapá (Manga, Santa Izabel, Espírito Santo, Açaizal, Curipi, Kariá, Ahumã, Ariramba e Kunanã); ii) identificação dos colaboradores (36 indígenas bilíngues, estratificados conforme a faixa etária e sexo); iii) aplicação de questionários para identificar o perfil linguístico do povo Karipuna; e iv) gestão de dados e cartografia linguística. Os resultados evidenciaram que é possível encontrar no repertório lexical dos informantes indígenas bilíngues empréstimos lexicais de dois tipos: pure loanwords (estrangeirismos puros) e loanblends (misturas de empréstimos).

Palavras-chave: Contato linguístico, Empréstimos linguísticos, Português, Kheuól.

Abstract: This article aims to discuss lexical borrowings present in Portuguese and Kheuól, varieties spoken by the Karipuna indigenous people of Amapá. This ethnic group lives in the extreme north of the state of Amapá, on the border between Oiapoque-BR/Saint-Georges-FR, inhabiting the Uaçá, Galibi and Juminã Indigenous Lands. It is possible to identify Portuguese, French (French Guiana) and Kheuól (French-based Creole) speakers among the Karipuna. It is important to emphasize that this study is an excerpt from the Doctoral Thesis of Sanches (2020), which used pluridimensional and contact dialectology (Thun and Altenhofen, 2016) and geolinguistics (Cardoso, 2010) as a theoretical and methodological contribution. The parameters adopted for data collect consisted of the following steps:

i) selection of nine Karipuna villages in Amapá (Manga, Santa Izabel, Espírito Santo, Açaizal, Curipi, Kariá, Ahumã, Ariramba and Kunanã); ii) identification of collaborators (36 bilingual indigenous people, stratified according to age group and sex); iii) application of questionnaires to identify the linguistic profile of the Karipuna people; and iv) data management and linguistic mapping. The results showed that it is possible to find in the lexical repertoire of bilingual indigenous informants two types of lexical borrowings. pure loanwords and loanblends.

Keywords: Language contact, Linguistic borrowings, Portuguese, Kheuól.

1. Introdução

Em uma perspectiva macrolinguística da língua é quase impossível estudar empréstimos linguísticos sem relacioná-los ao processo histórico de colonização e de (i)migração de uma nação. Essas questões permeiam o processo de contato cultural e, sobretudo, linguístico entre diferentes povos que hoje integram o povo brasileiro.

Segundo Lucchesi (2009), no início do século XVI, quando os portugueses chegaram ao Brasil entraram em contato com diferentes sociedades indígenas que aqui coexistiam. Para que os portugueses pudessem se comunicar com os indígenas passaram a usar uma espécie de koiné, uma variedade da língua Tupinambá que funcionava como língua franca. Esta, posteriormente, segundo Rodrigues (1994), se intensificou e seu uso foi generalizado como uma língua comum entre os portugueses e seus descendentes, predominantemente, mestiços, escravos e indígenas (os Tupinambá e outros indígenas que foram incorporados às missões). Em geral toda população, não importava qual sua origem, utilizava a chamada Língua Geral da costa brasileira.

Diante de tal fato, parece convincente a assertiva de que a Língua Geral falada nos primeiros séculos de colonização foi constituída por meio do contato entre portugueses e indígenas e, nesse sentido, pressupõe-se que a partir do contato estabelecido e da necessidade de estabelecer comunicação podem ter resultado inúmeros empréstimos linguísticos, ora da língua portuguesa no Tupinambá, ora da língua Tubinambá na língua portuguesa.

Antes da colonização portuguesa, de acordo com Rodrigues (2005), estima-se que no Brasil coexistiam mais de 1,2 mil línguas diferentes faladas em nosso atual território pelos povos indígenas. Atualmente, Rodrigues (1994) e Moore (2011) avaliam a existência de 150 a 180 línguas nativas, em sua maioria concentradas na região Norte. Para Melo, Altenhofen e Raso (2011), essa drástica diminuição de línguas indígenas faladas no Brasil está relacionada diretamente ao genocídio dos povos indígenas instaurado pelo processo de colonização portuguesa, isto é, a morte de milhares de indígenas que resistiam à colonização, além da morte provocada pelas doenças trazidas pelo não índio. Esse cenário permite inferir que, com o passar dos séculos, o processo de colonização provocou conflitos entre europeus e ameríndios, resultando na morte de centenas de línguas, isto é, as línguas morreram porque desapareceram todos os seus falantes, seja em função das armas dos brancos, seja em função dos surtos epidêmicos.

Apesar do desaparecimento de inúmeras línguas indígenas, na segunda metade século XVIII, a presença da língua geral no Brasil era muito forte e o português colonial estava perdendo espaço. Com isso, segundo Freire (2004), Marquês de Pombal proibiu o uso da língua geral e oficializou o português como língua nacional a partir de 1757. Isso provocou a dispersão de muitos grupos indígenas e mestiços para áreas da Amazônia não ocupadas pelos portugueses, salvaguardando suas histórias, línguas e culturas. Em decorrência dessa situação, ainda é possível encontrar na Amazônia grupos falantes de língua geral, denominada de Nheegantú (Cruz, 2011), além de traços linguísticos dessa língua do século XVIII e XIX presentes no Português Brasileiro atual. No caso da Região Norte, destaca-se a forte presença de aspectos lexicais de origem indígena (Língua Geral Amazônica) no Português Amazônico e que merecem ser explorados e estudados minuciosamente.

A partir desse contexto, esta pesquisa busca apontar possíveis empréstimos lexicais do Português presente no Kheuól e vice-versa. Trata-se de um recorte da Tese de Doutorado de Sanches (2020) intitulada “Microatlas Linguístico (Português-Kheuól) da área indígena dos Karipuna do Amapá”.

Para o desenvolvimento da temática, o artigo encontra-se dividido em três partes: 1) inicialmente, abordam-se questões de ordem teórica sobre contato de línguas e empréstimo lexical; 2) posteriormente, apresentam-se o povo indígena Karipuna do Amapá e sua situação sociolinguística; e, 3) por último, descrevem-se os resultados da pesquisa, mostrando os possíveis empréstimos lexicais encontrados no Português e no Kheuól (variedade crioula de base francesa).

2. Contato de línguas e empréstimo lexical

O contato de línguas apresenta uma gama de processos e/ou fenômenos linguísticos que ora pode resultar apenas em empréstimos lexicais simples, ora pode levar à criação de novas palavras ou até mesmo de novas línguas. Entre estes dois extremos, os estudos atuais sobre línguas em contato mostram que há inúmeros resultados envolvendo diferentes graus de influência de uma variedade sobre a outra.

Calvet (2002) afirma que os fenômenos derivados do contato linguístico foram os primeiros objetos de estudo da Sociolinguística. Como um dos renomados estudiosos citados, tem-se o linguista polaco-americano Uriel Weinreich, autor do livro “Languages in contact: findings and problems”, publicado em 1953. Nesta obra, o autor acredita que o contato linguístico acontece quando duas ou mais línguas são usadas alternadamente pela mesma pessoa. Deste modo, os indivíduos que as usam são, portanto, o locus do contato1. Para essa prática de uso alternado de duas ou mais línguas, Weinreich (1953) classifica como bilinguismo2, já para as pessoas envolvidas no processo, ele denomina como indivíduos bilíngues.

O autor também comenta que os casos de desvios de norma3, para qualquer uma das línguas presentes na fala de bilíngues é resultado do contato linguístico, conhecido como fenômenos de interferência. Para ele, são esses fenômenos da fala que atraem o interesse dos linguistas.

Vale ressaltar, que as definições apontadas por Weinreich (1953) já foram reformuladas e aprimoradas. Atualmente, dispomos de outros autores que entendem o fenômeno do bilinguismo como o domínio de mais de uma língua materna, ou um grau razoável de competência que os falantes têm em uma ou mais línguas distintas de sua língua materna (Trudgill e Campoy, 2007).

Em relação à expressão contato linguístico esta pode ser compreendida da seguinte forma:

[...] termo usado para situações em que grupos de dois ou mais falantes que não têm a mesma língua materna em comum estão ou entram em contato social. Embora, a curto prazo, a comunicação entre os dois grupos possa ser difícil, a longo prazo pode ocorrer de ambas as línguas se influenciarem mutuamente como consequência do bilinguismo por parte dos falantes envolvidos. O contato de línguas pode dar origem ou implicar fenômenos como o empréstimo, mudança de código, mudança de língua, língua franca, multilinguismo ou pidginização (Trudgill e Campoy, 2007, p 75, tradução minha)4.

Assim, entende-se que o contato linguístico pode resultar em diferentes fenômenos, seja em decorrência do alto grau de contato, seja em decorrência do baixo grau de contato, tais como: o empréstimo lexical, a mudança de código, mudança linguística, a existência de línguas francas, o bi/multilinguismo, a pidginização ou o surgimento de línguas crioulas.

Destaca-se aqui o empréstimo lexical, tratado como um fenômeno linguístico coletivo e natural que deriva do contato ou da mistura de línguas. Entre os estudiosos da área, acredita- se que dificilmente existirá uma língua natural no mundo que não tenha palavras emprestadas de outras línguas em seu vocabulário.

Thomason e Kaufman (1988) defendem a existência de um contínuo de empréstimo, que se estende desde o empréstimo lexical simples - como um contato casual - ao empréstimo estrutural muito forte. Desta forma, existe uma escala com cinco estágios ou níveis de empréstimos, representando o aumento de intensidade do contato e o aumento de distância tipológica das línguas, conforme ilustra Winford (2003), a seguir:

Quadro 1. Escala de empréstimos de Thomason e Kaufman (1988)
Quadro 1. Escala de empréstimos de Thomason e Kaufman (1988)


Fonte: Extraído de Winford (2003, p.30), adaptado pelo autor.

Seguindo as ideias de Haugen (1950), Winford (2003) classifica os fenômenos de contato lexical em duas grandes categorias: i) empréstimos lexicais, que envolvem a reprodução de palavras da língua dominante, e as ii) criações lexicais, que são criações de palavras nativas para expressar conceitos de uma língua estrangeira ou dominante.

Nesta primeira categoria, os empréstimos lexicais podem ser subdivididos em duas subcategorias: a) palavras emprestadas (loanwords), na qual a totalidade ou parte da composição morfêmica do empréstimo deriva da língua-fonte externa; b) empréstimos por substituição (loanshifts), em que a composição do item emprestado é inteiramente nativa e o seu significado deriva, em parte, da língua doadora. Cada uma dessas categorias pode ser ainda subdividida, de acordo com os tipos de importação e substituição envolvidos.

No caso das palavras emprestadas (loanwords), foram divididas em estrangeirismos puros (pure loanwords) e misturas de empréstimos (loanblends). Os estrangeirismos puros (pure loanwords) consistem em palavras simples ou compostas que às vezes sofrem modificações semânticas. As misturas de empréstimos (loanblends), por sua vez, envolvem a transferência de partes do sistema da língua estrangeira e a reprodução de estruturas linguísticas que sobram da língua nativa (importação de um morfema estrangeiro combinado com um morfema nativo).

Já empréstimos por substituição (loanshifts) ou empréstimos de significados ocorrem quando uma palavra nativa sofre extensão do seu significado a partir do modelo da língua doadora. Esse tipo envolve uma composição lexical que permite ampla variedade de resultados, como os calques, que são as traduções literais (imitações) que se efetuam na transposição de uma língua-fonte para uma língua-alvo.

Na segunda categoria, a formação de novas palavras envolve a importação de palavras, sendo esta um subproduto do empréstimo lexical. Para Winford (2003), novas composições podem ser construídas inteiramente de materiais nativos para expressar novos conceitos, além de ser possível encontrar novas composições que estão sendo criadas inteiramente de materiais estrangeiros. Trata-se de inovações com base em padrões nativos ou extensões criativas de um padrão estrangeiro que não tem correspondência na língua-alvo. A seguir, apresenta-se a classificação dos fenômenos de contato lexical mencionada.



Quadro 2. Classificação do fenômeno de contato lexical
Quadro 2. Classificação do fenômeno de contato lexical
Fonte: Extraído de Winford (2003, p.45), adaptado pelo autor.

Com base na discussão acima, pode-se inferir que os fenômenos linguísticos derivados do contato linguístico ou do contato entre línguas não se restringem a uma análise puramente linguística, uma vez que podem ser entendidos a partir de aspectos sócio- históricos e sociopolíticos da língua, pois, quanto mais intenso o contato sociocultural entre os povos, falantes de línguas diferentes, mais elementos linguísticos serão transferidos de uma língua-fonte para uma língua-alvo. Esta situação atualmente vem se configurando, linguisticamente, entre o Português e o Kheuól, variedades faladas pelo povo indígena Karipuna do Amapá, como será apresentada na seção 4.

3. O povo indígena Karipuna do Amapá e sua situação sociolinguística

Nesta seção, apresentam-se os dados populacionais e sociolinguísticos da etnia indígena Karipuna do Amapá, na intenção de compreender o grau de bilinguismo entre os falantes de Português e de Kheuól.

O povo indígena Karipuna do Amapá reside no extremo norte do estado do Amapá/BR e possui um total de 2.991 indígenas. De modo recente, tem-se o registro de 22 aldeias da etnia Karipuna, localizadas na Terra Indígena Uaçá (ao longo Rio Curipi e da BR- 156, que liga a capital Macapá ao município de Oiapoque), na Terra Indígena Galibi (ao longo do Rio Oiapoque) e na Terra Indígena Juminã (no Igarapé Juminã5) (Sanches, 2020).

As aldeias Karipuna registradas6 são: Manga, Espírito Santo, Santa Izabel, Açaizal, Kunanã, Ariramba, Taminã, Estrela, Ahumã, Cutiti/Jõdef, Curipi, Japiim, Piquiá, Kariá, Txibidon, Paxiubal, Benoá, Zacarias, Bastion, Encruzo, Pakapuá e Igarapé da Onça. As aldeias Manga, Espírito Santo e Santa Izabel concentram o maior número de famílias, com destaque para a primeira que registra mais de 1.000 indígenas com residência fixa. Abaixo o quadro 03 sintetiza as informações supracitadas.

Quadro 3.
População
indígena Karipuna do Amapá
Quadro 3. População indígena Karipuna do Amapá
Fonte: Banco de dados da CRANP - FUNAI/Macapá (2017).

Para ilustrar a localização das aldeias Karipuna, tem-se a figura 1, apresentando quatro áreas de concentração das famílias desta etnia. A primeira (1) está localizada na Terra Indígna (TI) Uaçá, pelo Rio Curipi, somando 15 aldeias. A segunda (2), também na TI Uaçá, mas percorrendo a BR-156, com cinco aldeias. A terceira (3) diz respeito à TI Galibi, pelo Rio Oiapoque, com uma aldeia. E a última área (4), localizada na TI Juminã, no Igarapé Juminã, com uma aldeia.

Figura 1. Aldeias Karipuna
Figura 1. Aldeias Karipuna
Fonte: Elaborado pelo autor.

Entre os indígenas Karipuna do Amapá é possível encontrar falantes de Português, de Kheuól7 (crioulo de base francesa) e de Francês (variedade da Guiana Francesa). Em sua maioria, este povo usa o Português como L1 e o Kheuól como L2, exceto na aldeia Espírito Santo, onde há a predominância do Kheuól como L1.

Sobre a situação sociolinguística dos Karipuna do Amapá, em um estudo de base geolinguística e perceptual, Sanches (2019) mostra que o uso do Português é dominante na área indígena Karipuna quando comparado ao uso do Kheuól. O autor constatou que a maioria dos colaboradores indígenas entrevistados acredita falar, escrever, compreender e ler bem em Português. No entanto, quando se trata do Kheuól, os colaboradores consideram a compreensão desta língua como satisfatória em relação às outras habilidades e competências linguísticas, já que boa parte não sabe ler e escrever em Kheuól, além de falar pouco esta língua.

Outro fator interessante apontado por Sanches (2019) está relacionado à aquisição do Português e do Kheuól. Para o autor, a escola indígena parece priorizar o ensino e uso do Português em detrimento do Kheuól. No entanto, essa hegemonia do Português como primeira língua não se estende a todas as aldeias Karipuna. Como já mencionado, destaca- se, como exceção, a aldeia Espírito Santo que busca manter uma política linguística em prol do uso da língua Kheuól. Em outras palavras, tem-se na área indígena Karipuna o fenômeno de diglossia8 em que o Português é a variedade alta, e o Kheuól, a variedade baixa.

Essa forte presença do Português na área indígena Karipuna vem modificando linguisticamente o uso do Kheuól, já que é possível identificar a presença de lexias usadas no Português local e que até então não tinham sido registradas como pertencente ao repertório da língua Kheuól, mas que usualmente foram incorporadas à língua crioula falada por indígena, sobretudo por falantes jovens. Os dados a seguir apresentam esse cenário.

4. Empréstimos lexicais (loanwords e loanblends) na fala dos Karipuna do Amapá

Os resultados apresentados nesta seção fazem parte do corpus da Tese de Doutorado de Sanches (2020) que busca mapear a configuração da variação lexical presente tanto no Português como no Kheuól. O referido trabalho mapeou 106 itens lexicais e registrou cerca de 900 lexias em Português e em Kheuól.

Com base nisso, foram identificadas lexias de base Kheuól no vocabulário do Português e vice-versa. Essa identificação foi feita considerando os seguintes critérios: a) a base etimológica das lexias: com a utilização do dicionário etimológico de Cunha (1982), do dicionário de Nheengatu9 de Stradelli (2014) e atlas linguísticos regionais, como o de Cruz (2004), Razky, Ribeiro e Sanches (2017), Silva (2018), Maia (2018), Karlberg (2018) e Dias (2017), verificando a origem de lexias, quando esta tinha sua forma escrita registrada; b) a frequência de realização das lexias quando estas se apresentavam com predominância no Português e com baixa frequência no Kheuól; c) o estado sincrônico das variedades investigadas; considerou-se o uso linguístico ou o repertório linguístico atual dos entrevistados indígenas, jovens e idosos, tendo em vista que o Kheuól só foi registrado em sua forma escrita na década de 1980.

Por meio dos critérios elencados, foram identificadas lexias de base Portuguesa ou Língua Geral Amazônica10 na Língua Kheuól e lexias de base Kheuól ou de base híbrida (não identificada) no Português falado na área indígena Karipuna. Desta forma, foi organizado um quadro apontando a base lexical, o tipo de empréstimo e as lexias emprestadas.

Quadro 4. Tipos de empréstimos no Português e no Kheuól
Quadro 4. Tipos de empréstimos no Português e no Kheuól
Fonte: Elaboração do autor.

O quadro 4 sintetiza os tipos de empréstimos lexicais encontrados nas duas variedades investigadas. Assim, extraiu-se do corpus coletado para este estudo uma amostra de 34 lexias para exemplificar os empréstimos considerados aqui como pure loanwords (estrangeirismos puros) e o loanblends (misturas de empréstimos). Em relação ao primeiro tipo de empréstimo foram identificadas 13 lexias, sendo 10 palavras de base lexical Portuguesa, Francesa ou Língua Geral Amazônica (Nheengatu), que já estão incorporadas ao Português atual, e que fazem parte do vocabulário da Língua Kheuól, como: raio, carrinho de mão, baladeira, pata- cega, jiral, pó compacto, bar, tauari, blush e ruge. No caso das outras três lexias foram classificadas como de base crioula (Kheuól) e identificadas aqui como lexias incorporadas ao Português Karipuna, como: arukamã, butu e tek tek.

Para as lexias classificadas como loanblends (misturas de empréstimos) foram constatadas 21 palavras, a saber: sehẽn, tãjerin, mutõ, pikot, lãbik, petek, papagai, pip, balãse, vaz, privad, sutxiẽ, kuek, bikin, ẽvalid, traves, vizaj, tramel, cabine, baget e traves. Estas apresentam uma base lexical híbrida podendo ser de Língua Francesa (Guiana Francesa), Língua Portuguesa, Língua Kheuól ou outra fonte desconhecida. Como hipótese, acredita-se que o contato linguístico intenso entre o Francês, o Português e o Kheuól, sobretudo entre as duas últimas variedades, têm dado origem às variantes lexicais híbridas por meio de misturas de traços fonético-fonológicos, como mostra o quadro 5:

Quadro 5. Misturas de empréstimos
Quadro 5. Misturas de empréstimos



Fonte: Elaborado pelo autor.

Por ora, destaca-se que essa classificação de empréstimos lexicais apresentada acima é passível de adaptação e correção, tendo em vista que esta pesquisa é um experimento do arcabouço teórico da área de contato linguístico aplicado a dados geolinguísticos. Ela carece de certo aprofundamento, sobretudo em relação à etimologia de determinadas lexias em que não se sabe à qual língua pertence. Neste primeiro momento foram classificadas de forma preliminar com base em uma análise sincrônica das variedades investigadas.

5. Considerações finais

Os resultados apresentados aqui evidenciam que é possível encontrar no repertório lexical dos informantes indígenas bilíngues empréstimos lexicais de dois tipos: pure loanwords (estrangeirismos puros) e loanblends (misturas de empréstimos). Esses fenômenos foram identificados por meio da intercomparação de cartas lexicais em Português e em Kheuól, disponíveis no banco de dados da Tese intitulada “Microatlas Linguísticos (Português- Kheuól) da área indígena dos Karipuna do Amapá”, o qual possibilitou perceber certa predominância do léxico da Língua Portuguesa sobre o Kheuól, sustentando a hipótese de que o Português vem atuando como língua dominante na área indígena dos Karipuna do Amapá.

Por fim, acredita-se que esta pesquisa suscitará novos estudos no campo do contato linguístico na região do Oiapoque-Amapá-Brasil, uma vez que ainda é preciso verificar a influência do léxico da Língua Francesa e de outras variedades no Kheuól, tendo em vista que esta, por ser de base crioula, apresenta em sua gramática traços de variedades ainda não identificadas.

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Notas

Notas 1 Calvet (2002) acrescenta que o lugar desses contatos pode ser além do indivíduo bilíngue ou em aquisição a comunidade na qual o falante se insere.

2Para Weinreich (1953), todas as observações apontadas por ele sobre bilinguismo também se aplicam ao

multilinguismo, termo que pode ser usado como sinônimo.

3 Destaca-se que o conceito de norma empregado por Weinreich (1953) corresponde a uma perspectiva tradicional. Atualmente, já dispomos de um conceito mais elaborado, como a definição dada por Faraco e Zilles (2017, p. 12) que concebem dois tipos de normas, a norma normal e a norma normativa. A primeira está relacionada ao modo como se diz habitualmente numa comunidade de fala e a segunda está relacionada ao modo como se deve dizer em determinados contextos. Ou seja, a primeira acepção de norma é de cunho prescritivo e a segunda de cunho descritivo.

4 [...] término empleado para aquellas situaciones en las que grupos de dos o más hablantes que no tienen la misma lengua materna em común están o entran em contacto social. Si bien a corto plazo la comunicatión entre ambos grupos puede ser difícil, a largo plazo puede hacer que ambas lenguas se influyan mutuamente como consecuencia del bilinguismo de parte de los hablantes involucrados. El contacto de lenguas puede dar lugar o implicar fenômenos tales como el préstimo, cambio de código, cambio de lengua, línguas francas, multilinguismo o pidginiziacion (Trudgill e Campoy, 2007, p 75).

5 O Igarapé Juminã é um afluente do Rio Oiapoque.

6 Estas informações foram consultadas in loco e identificadas no sistema eletrônico da Coordenação Regional Amapá e Norte do Pará (CRANP) da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) (Sanches, 2020).

7 Alleyne e Ferreira (2007) concebem o Kheuól como uma variedade do Amazonian French Creole, interligado (em termos sócio-históricos e linguísticos) com o crioulo francês falado na Guiana Francesa.

8 Quando há diferenças de status sociopolítico entre as duas ou mais línguas ou variedades.

9 O Nheengatu também é conhecida como Língua Geral Amazônica – LGA.

10 Desataca-se a LGA por dois motivos, primeiro por ter sido a língua mais falada no século XVIII na Amazônia brasileira. Mesmo com a proibição dessa língua, o português amazônico tem apresentado inúmeras lexias de origem tupi ainda não dicionarizadas. E segundo, porque a LGA era a língua nativa falada por alguns indígenas que migraram para região do Rio Uaça no Oiapoque, no século XIX, em decorrência da Revolta da Cabanagem, que aconteceu na Província do Grão-Pará (Tassinari, 2003).

11 Alguns exemplos listados no quadro 5 podem ter origem a partir do Português local (falado na região do Oiapoque) ou do Francês guianense (falado na Guiana Francesa). Ainda não conseguimos afirmar com precisão qual das duas línguas seria a língua fonte de transferência. Para isso, precisaríamos recorrer a uma análise diacrônica para comprovar em que momento a palavra aparece na língua Kheuól. Por enquanto, nossa hipótese é de que a língua portuguesa é a língua dominante na região dos Karipuna do Amapá, logo nossos dados estão sendo analisados na perspectiva sincrônica, mas sem descartar possiblidades de transferências de elementos de outras línguas em que o contato seja menos frequente como o Francês guianense.

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