Artigos Científicos
Formação Continuada e Permanente de Professores: Emancipação Coletiva das Práticas Pedagógicas Alienantes
Continuing and Permanent Teacher Education: Collective Emancipation of Alienating Pedagogical Practices
Formación docente continuada y permanente: emancipación colectiva de prácticas pedagógicas alienantes
Revista de Matemática, Ensino e Cultura
Grupo de Pesquisa sobre Práticas Socioculturais e Educação Matemática, Brasil
ISSN: 1980-3141
ISSN-e: 1980-3141
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 39, 2021
Recepção: 01 Agosto 2021
Aprovação: 15 Outubro 2021
Publicado: 02 Dezembro 2021
Resumo: O objetivo deste trabalho é oferecer uma reflexão sobre o processo de emancipação coletiva das práticas pedagógicas alienantes de um grupo de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental de uma escola pública. Trata-se de recorte de uma pesquisa-formação de base materialista dialética, fundamentada na Teoria da Objetivação (TO). Os resultados foram obtidos a partir das análises das interações e ações de seis professoras que apresentaram, no início da pesquisa-formação, uma prática pedagógica com foco na transmissão de informação e no individualismo, identificadas como práticas alienantes, de acordo com a TO. As análises evidenciaram a produção de novas subjetividades, materializadas nas reflexões críticas realizadas pelas professoras sobre suas práticas pedagógicas e indícios de um processo de mudança na consciência dessas professoras. Tais análises sugerem que a proposta formativa realizada, com base nos pressupostos da TO, possibilitou o desencadeamento do processo de emancipação coletiva dessas práticas pedagógicas alienantes.
Palavras-chave: Formação de professores, Ensino de Ciências, Teoria da Objetivação.
Abstract: This paper aims to offer a reflection on the process of collective emancipation from alienating pedagogical practices within a group of early-education teachers at a primary public school. It is an excerpt from dialectical materialist-based training research grounded on the Theory of Objectification. The results were obtained by analyzing the interaction and actions of six teachers who showed, at the beginning of the training research, a pedagogical practice focused on knowledge transmission and individualism, identified as alienating practices, according to Theory of Objectification. The analyses showed the production of new subjectivities, materialized by the teachers' critical reflections on their pedagogical practices and evidence of a shift in their consciousness. The studies suggest that the process of collective emancipation from said alienating pedagogical practices was made possible by the constructive proposal, based on the Theory of Objectification.
Keywords: Teacher training, Science teaching, Theory of Objectification.
Resumen: El objetivo de este trabajo es ofrecer una reflexión sobre el proceso de emancipación colectiva de las prácticas pedagógicas alienantes de un grupo de docentes desde los primeros años de la escuela primaria en una escuela pública. Este es un extracto de una investigación-formación basada en el materialismo dialéctico, basada en la Teoría de la Objetivación (TO). Los resultados se obtuvieron del análisis de interacciones y acciones de seis docentes que presentaron, al inicio de la investigación-formación, una práctica pedagógica enfocada en la transmisión de información y el individualismo, identificadas como prácticas alienantes, según el TO. Los análisis evidenciaron la producción de nuevas subjetividades, materializadas en las reflexiones críticas realizadas por los docentes sobre sus prácticas pedagógicas y evidencias de un proceso de cambio en la conciencia de estos docentes. Dichos análisis sugieren que la propuesta formativa realizada, a partir de los supuestos de la TO, permitió desencadenar el proceso de emancipación colectiva de estas prácticas pedagógicas alienantes.
Palabras clave: Formación de profesores, Enseñanza de las ciencias, Teoría de la objetivación.
INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea caracteriza-se pela presença constante de conhecimentos científicos e tecnológicos no cotidiano das pessoas, os quais contribuem para o exercício da cidadania. Na atual conjuntura, em meio à pandemia provocada pela corona vírus, o ensino de Ciências deve favorecer o encontro com esses saberes científicos e a formação de sujeitos críticos e reflexivos, que ajam e pensem a partir de uma perspectiva coletiva e ética (RADFORD, 2016).
Esse cenário impõe demandas à profissão docente e exige reflexões sobre o papel dos educadores, de forma a contribuir para transformar a realidade, e a si mesmos, para que o ensino e a aprendizagem propiciem o cumprimento do papel da escola (LIBÂNEO, 2007) na formação de sujeitos críticos, na busca por soluções coletivas dos problemas sociais e para a emancipação das práticas pedagógicas alienantes, recorrentes na escola contemporânea (RADFORD, 2016). Nesse contexto, é imprescindível que tanto a formação inicial quanto a formação continuada e permanente de professores propiciem reflexões sobre essas práticas para a efetivação de mudanças na prática pedagógica dos professores (CAMILOTTI; GOBARA, 2018).
O foco deste artigo é a prática pedagógica dos professores que ministram aulas de Ciências nos anos iniciais (1° ao 5° ano) do Ensino Fundamental (EF), e que, em sua maioria, são pedagogos. Entretanto, no que diz respeito à formação do pedagogo, as pesquisas na área de formação de professores indicam que esta não é suficiente para preparar o professor para o ensino de Ciências crítico e reflexivo (DELIZOICOV; ANGOTTI, 2000; ROCHA, 2015; SOARES et. al., 2013; CAMILOTTI; GOBARA, 2018). Segundo Rocha (2015) e Soares et. al. (2013), esse professor geralmente termina sua formação inicial sem o preparo adequado para ensinar Ciências, pois os cursos de graduação de pedagogia enfatizam a alfabetização e o ensino de matemática, em detrimento dos saberes de outras áreas.
As formações, tanto inicial quanto a continuada, desses professores são frequentemente baseadas no racionalismo técnico, que orientam para uma prática pedagógica voltada à execução de tarefas planejadas por especialistas das secretarias educacionais e dos programas de formação institucionais (CONTRERAS, 2002). São modelos de formação, com um formato pré-definido (modelo de formação fechada), voltados para a aquisição de competências técnicas e, em geral, não estimulam a reflexão crítica sobre a prática pedagógica do professor (DINIZ-PEREIRA, 2014). Portanto, elas não têm sido suficientes para preparar os professores para uma prática pedagógica voltada para o ensino de saberes científicos e para a formação de sujeitos críticos e éticos que atuem a partir de uma perspectiva coletiva (AUGUSTO; AMARAL, 2015; CAMILOTTI; GOBARA, 2017). Nesse viés, Freire (2001) chama a atenção para a necessidade de preparar a docência a partir da reflexão crítica acerca da prática pedagógica. Ele considera também o caráter permanente da formação docente, fundamentando-se na ideia de que somos sujeitos inacabados e incompletos, e que necessitamos de formações constante e permanente para exercer a função de educador-educando (FREIRE, 1996; 2001).
Entretanto, uma proposta de formação continuada e permanente, com o objetivo apenas de promover a superação da racionalidade técnica presente nas práticas pedagógicas dos professores não é suficiente. É necessário propor uma formação que contribua para a emancipação dos professores de práticas individualistas e alienantes (RADFORD, 2012). Com relação à emancipação, o que se almeja é a superação dos professores de suas práticas pedagógicas individualistas, entendidas como aquelas práticas que privilegiam o sucesso acadêmico individual, desenvolvidas sob o enfoque de um paradigma educacional tradicional, baseado na transmissão de informações e em uma visão da aprendizagem como assimilação reprodutivista de conceitos (RADFORD, 2016). Segundo a TO, essas práticas pedagógicas reproduzem o modelo de sociedade capitalista e são consideradas alienantes, pois, ao desenvolvê-las, tanto os alunos quanto os professores discutem ideias que, elaboradas por outros, não exprimem suas opiniões e anseios (RADFORD, 2020). De acordo com essa teoria, a emancipação dessas práticas somente pode ocorrer em uma perspectiva coletiva (RADFORD, 2012). Aprofundaremos essas ideias na seção sobre o referencial teórico: a teoria da objetivação
A formação continuada e permanente, com vistas à emancipação coletiva do professor, requer metodologias que propiciem o encontro com saberes científicos e a formação de professores críticos reflexivos a partir de uma perspectiva coletiva, alicerçada por uma ética comunitária baseada na responsabilidade, no compromisso e no cuidado com o outro (RADFORD, 2017b). De acordo com a TO, é a atividade humana, também identificada como labor conjunto entre professores e formadores, regido pelos princípios da ética comunitária, que possibilita esse encontro e a transformação e formação de sujeitos críticos e, também, conscientes de sua realidade. E a metodologia de ensino e aprendizagem baseada no labor conjunto favorece a criação de ambientes formativos propícios à emancipação coletiva do professor de suas práticas pedagógicas alienantes.
A partir da problemática exposta, o objetivo deste trabalho é oferecer uma reflexão sobre o processo de emancipação coletiva das práticas pedagógicas alienantes de um grupo de seis professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental de uma escola pública. Para atingir esse objetivo, são apresentadas as análises das interações dessas professoras durante a realização de uma das atividades desenvolvidas na formação oferecida. Trata-se do recorte de uma pesquisa de doutorado em que se investigou a emancipação coletiva desses professores no contexto de uma pesquisa-formação (VOSGERAU, 2012). Nessa pesquisa, foi desenvolvida uma formação continuada e permanente de professores para introduzir e desenvolver uma proposta metodológica para o ensino de Ciências, por meio de atividades baseadas no labor conjunto, conforme orientações teóricas e metodológica da TO (RADFORD, 2015; 2020).
Dessa forma, este artigo apresenta inicialmente a Teoria da Objetivação, por se tratar do referencial teórico que embasou a formação e que também foi a metodologia de ensino e aprendizagem que possibilitou a reflexão e análise sobre as práticas pedagógicas dos professores. Na sequência, serão descritas a metodologia utilizada na análise, bem como o dispositivo de análise; e para finalizar, serão apresentadas as análises das interações das professoras, que evidenciam o processo de emancipação coletiva por meio do encontro com o saber e a reflexão crítica, em uma perspectiva comunitária.
REFERENCIAL TEÓRICO: A TEORIA DA OBJETIVAÇÃO
A Teoria da Objetivação (TO) é uma teoria de aprendizagem que concebe o projeto educacional como um empreendimento político, social, histórico e cultural voltado para a criação dialética de sujeitos reflexivos, éticos e críticos, que ponderam novas forma de pensamento e ação (Radford, 2015). É uma teoria contemporânea, elaborada por Luis Radford, inspirada na escola de pensamento de Vygotsky e no materialismo dialético (Radford, 2020). À luz da TO, há uma ressignificação dos conceitos de saber, de conhecimento e aprendizagem e de superação da visão individualista dos processos educativos. (RADFORD, 2014; 2020).
1. Conceitos Fundamentais da TO
Para a TO, o ensino e a aprendizagem são concebidos como um processo único, que compreendem a dimensão do saber (o conhecer) e do sujeito (o vir a ser) e supera a compreensão individualista dos processos educativos. O saber histórico e cultural está presente na cultura e é concebido como possibilidades de pensar, agir e resolver problemas; é uma possibilidade que emerge da atividade humana para se materializar e se expressar em conhecimento (Radford, 2020). O conhecimento é o encontro com este saber, que ocorre por meio de uma atividade mediadora (Radford, 2019; 2020), a qual, realizada em sala de aula, é entendida como o processo que possibilita o encontro do sujeito com o saber, que se revela à consciência dos sujeitos por meio da materialização do conhecimento. Os signos e os artefatos tecnológicos fazem parte dessa atividade (Radford, 2019; 2020).
Assim, a aprendizagem ocorre somente no contexto de uma atividade mediadora, em que ocorrem os processos de objetivação e subjetivação, que envolvem a dimensão do saber e do ser, respectivamente. Nesse contexto, os processos de objetivação são definidos como aqueles “processos sociais de tornar-se, progressiva e criticamente, conscientes de uma forma codificada de pensar e agir” (RADFORD, 2017a, p. 121, tradução nossa). É durante esse processo que se forma e transforma a consciência. Os processos de subjetivação estão relacionados com a formação do sujeito crítico, reflexivo e ético, sendo definidos como “os processos em que, coproduzindo-se contra o pano de fundo da cultura e da história, professores e alunos entram em presença [...] vêm ocupar um espaço no mundo social e ser uma perspectiva nele” (RADFORD, 2019, p. 5, tradução nossa), posicionando-se e afirmando-se (RADFORD, 2020).
A atividade na TO “[...] refere-se a um sistema dinâmico destinado a satisfazer necessidades coletivas” (RADFORD, 2020, p. 23, tradução nossa). Neste sentido, “[...] é uma forma social de esforço conjunto, através do qual os indivíduos produzem seus meios de subsistência enquanto se produzem como seres humanos” (RADFORD, 2020, p. 23, tradução nossa) e é chamada, também, de labor conjunto. Assim, no labor conjunto, em sala de aula, professores e alunos trabalham juntos como iguais, “na mesma direção, ombro a ombro” (RADFORD, 2017b, p. 138, tradução nossa). Essa concepção supõe que o labor conjunto vai além da interação entre os envolvidos, e da interação com artefatos; busca atingir um objetivo comum, que, em geral, na sala de aula é a solução de um problema proposto pelo professor. E essa busca não visa somente o desenvolvimento cognitivo, mas também a formação do sujeito consciente, crítico, emocional e ético. E, de acordo com a TO, é a partir de uma perspectiva coletiva que o sujeito, ao encontrar-se com o saber, também deve se transformar em um ser que reflete, age e atua crítica e eticamente no seu contexto social e político, com potencial para transformar sua realidade (RADFORD, 2017b; 2020).
A partir dessa perspectiva, a TO propõe uma metodologia de ensino e aprendizagem com base na proposição de atividades de ensino e aprendizagem (AEA) estruturada em objeto, objetivo (meta) e tarefa, as quais são organizadas a partir de dois eixos: as formas de produção de saberes e as formas de colaboração humana (RADFORD, 2020). A AEA é desenvolvida em sala de aula por meio do labor conjunto (ou atividade) dos alunos e professor. Ela é planejada e elaborada pelo professor com base no seu projeto didático, e é realizada em diferentes fases: o professor apresenta aos alunos o que deve ser feito (tarefa proposta por meio de problemas ou ações); os alunos trabalham em pequenos grupos para realizar a tarefa; nos pequenos grupos, o professor e os alunos discutem a realização da tarefa; ocorre a socialização entre os grupos quando o professor promove uma discussão geral, em que os grupos apresentam para os outros como chegaram à solução dos problemas (RADFORD, 2017a; 2020).
Durante o labor conjunto, professores e alunos buscam a solução de problemas a partir da ética comunitária, baseada na responsabilidade, no compromisso e no cuidado com o outro (RADFORD, 2017b; 2020), posicionando-se como indivíduo, no esforço para entender o outro e assumindo a responsabilidade junto ao grupo perante as críticas, e para atingir os objetivos comuns. A partir dessas atitudes éticas que orientam a relação com os outros no labor conjunto, a TO defende uma educação focada na formação de sujeitos reflexivos e críticos, capazes de agir e pensar a partir de uma perspectiva coletiva e ética (RADFORD, 2015). Nesse contexto, o ensino de Ciências, baseado no labor conjunto, deverá voltar-se para a superação do individualismo, característica do sistema capitalista, e das práticas alienantes presentes na escola contemporânea (RADFORD, 2012).
Radford (2016), baseando-se nas ideias marxistas sobre a alienação, considera que as práticas pedagógicas no modelo tradicional de educação e no modelo progressista (individualista) de educação caracterizam a escola como produtora da alienação no sistema capitalista. A alienação produzida pela escola é discutida a partir do conceito antropológico do indivíduo, do trabalho e na relação entre os indivíduos e os objetos que eles produzem nesse trabalho (RADFORD, 2016). Para Marx (1988), os seres humanos são seres naturais e objetivos que satisfazem as suas necessidades em objetos fora de si mesmos, ou seja, são seres de necessidades dotados de impulsos vitais para satisfazê-las.
O trabalho tem um significado fundamental na filosofia marxista, pois é o modo de vida e de expressão dos seres humanos, e é por meio do trabalho para satisfazer suas necessidades, que os seres produzem, enquanto produzem a própria existência humana.
Em seus Manuscritos Econômicos Filosóficos, Marx (1988) trata de diferentes tipos de alienação, a partir da ideia de que a alienação está relacionada com os estranhamentos e contradições dos trabalhadores em relação ao objeto do seu trabalho. Essa alienação pode ocorrer de diferentes formas, e aqui destacamos apenas três: a) o indivíduo é separado do seu objeto de trabalho, visto que um outro toma posse desse objeto, ocorrendo a alienação do objeto; b) o objeto produzido pelo indivíduo perde-se em meio ao mercado e não é reconhecido por seu criador, ocorrendo um estranhamento entre o produtor e o seu produto e, neste aspecto, o homem é alienado de si; e c) o homem trabalha apenas como meio para sobreviver, não se expressando ou encontrando-se no seu trabalho, que se torna uma forma de sofrimento – o que caracteriza a alienação do trabalho.
A partir dessas ideias, Radford (2016) afirma que as práticas pedagógicas, com base no modelo tradicional e no modelo progressista (individualista) de educação, caracterizam a escola como produtora da alienação dos indivíduos que a frequenta. No modelo tradicional de educação, os alunos não se reconhecem nos objetos que produzem, porque eles não se identificam com esses produtos, isso leva à alienação do produto do seu trabalho e do seu trabalho, pois as produções realizadas pelo aluno, por meio das atividades em sala de aula, não têm a marca da sua identificação, são meras reproduções. No modelo individualista de educação, os sujeitos são alienados porque a produção dos alunos e professores é subjetiva e não pode ser compartilhada entre eles. As atividades didáticas, por sua vez, não colocam os indivíduos em contato com o mundo objetivo, tornando-os alienados da espécie humana e de outros indivíduos.
Nesse sentido, as atividades educativas, voltadas para a promoção do sucesso acadêmico e a realização individual (modelo tradicional) ou para a subjetividade e crescimento intelectual individual (modelo progressista/individualista), são alienantes, assim como a prática pedagógica do professor (RADFORD, 2020). Ou seja, “[...] atividades alienantes produzem sujeitos alienados” (RADFORD, 2017b, p. 149, tradução nossa). Esta alienação pode ser superada com a realização de atividades, ou labor conjunto, centradas na ética e na colaboração humana. Portanto, uma proposta de formação continuada e permanente baseada na TO tem potencial para promover a emancipação dessas práticas pedagógicas alienantes, pois ela visa provocar mudança de consciência por meio do encontro com novas formas de pensar e agir, e contribuir para transformar os professores em educadores críticos e atuantes no seu contexto social, ao agir a partir de uma ética que visa ao bem comum e aos interesses coletivos. Esse tipo de formação compreende uma proposta formativa que supera as práticas pedagógicas consideradas alienantes, que reproduzem e mantêm as relações sociais típicas da sociedade capitalista (RADFORD, 2016; 2020).
2. Emancipação das práticas pedagógicas alienantes
Para realizar a reflexão sobre as práticas pedagógicas alienantes, buscou-se caracterizar as práticas dos professores segundo as ideias de Contreras (2002), autor que discute a profissionalidade docente associando-a a modelos de racionalidade pedagógica. Ele identifica e direciona a prática do professor, a partir de três diferentes modelos de professores, cuja prática está baseada: na “racionalidade técnica”, característica do professor especialista técnico; na “racionalidade prática”, como base na prática do profissional reflexivo, e na “racionalidade crítica”, como aporte da prática do professor intelectual crítico. A prática orientada pelos valores de racionalidade, justiça e satisfação, que é a do professor intelectual crítico, segundo esse autor, é capaz de romper com a racionalidade prática e técnica. Assim, considera-se que uma formação de professores baseada na TO poderá formar professores intelectuais críticos e resultar na emancipação das práticas pedagógicas caracterizadas como alienantes de acordo com Radford (2016, 2020).
Nesse cenário, Radford (2012) traz a visão de emancipação dessas práticas alienantes a partir de um projeto que se concretiza por meio de ações coletiva e éticas, baseadas na solidariedade, confiança, compartilhamento e compromisso. Portanto, na perspectiva da TO, a emancipação não é um esforço individual de um indivíduo autônomo, mas um projeto social, visto que:
[...] aprender é sobre tanto o conhecer como tornar-se [...]. Para ser (ou melhor, tornar-se) é tornar-se-com-outros – isto é, ir além do meu interior e receber dos outros o que eu não posso obter de dentro: eu como relacionamento, eu como ser dialógico – em suma, eu como sujeito da práxis. Nesta abordagem, a emancipação só pode fazer sentido e é investigada através da práxis ou do trabalho. É somente por meio do trabalho concreto com outras pessoas que a emancipação pode ocorrer. Para reiterar, a emancipação só pode ocorrer no mundo comum, onde nos reconhecemos como seres históricos e políticos, onde trabalhamos criticamente juntos para tornar o mundo comum um lugar melhor para todos. A emancipação não é um esforço individual destinado a emancipar-se. Emancipação é um projeto social (RADFORD, 2012, p. 116, tradução nossa).
A partir dessa ideia, para referir-se à emancipação dos professores das práticas pedagógicas alienantes, será utilizado o termo “emancipação coletiva” associado ao modelo de professor intelectual crítico. Assim, de acordo com a TO, a emancipação coletiva somente poderá ocorrer por meio do labor conjunto, nas ações baseadas na ética comunitária, com vistas à formação de um professor crítico, reflexivo e ético, consciente de sua capacidade de se transformar e transformar a realidade na qual está inserido.
A TO associa-se à perspectiva transformadora da educação de Freire, que é feita por meio do diálogo, para promover a reflexão crítica de professores e alunos, resultando em um olhar crítico e na tomada de consciência (ou conscientização) sobre sua realidade (FREIRE, 1979). A pedagogia freiriana corrobora com a ideia da conscientização como condição para a emancipação do sujeito das condições que o oprimem e para a transformação do contexto em que vive (FREIRE, 1979; 2010). Nesse processo de tomada de consciência, professores e alunos posicionam-se criticamente diante da realidade tornando-se “presença no mundo” (FREIRE, 2004, p. 98), intervindo e transformando a sua realidade, ou seja, emancipando-se da condição de oprimido (FREIRE, 1979; 2010).
Dessa forma, é somente no contexto formativo de uma prática coletiva, que possibilita o diálogo, a ação e a reflexão crítica, que os professores se formam e se configuram como sujeitos críticos, e tomam consciência da alienação presente em suas práticas, emancipando-se delas. É nessa prática coletiva, durante o labor conjunto, que se desenvolvem as “subjetividades reflexivas, solidárias e responsáveis” (RADFORD, 2014, p. 136, tradução nossa), que será alcançada a emancipação coletiva pelos professores.
No contexto da formação de professores com finalidade emancipatória, o uso da terminologia “formação continuada” vem sofrendo críticas de autores como Freire (2001), Gatti e Barreto (2009) e Castro e Amorim (2015), devido ao caráter tecnicista das formações associadas a esse termo. Freire formulou e implementou a concepção de “formação permanente”, fundamentando-se na premissa de “inacabamento” (FREIRE, 1996, p. 55) e “incompletude nos seres humanos” (FREIRE, 2001, p. 65). Segundo ele, a responsabilidade ética, política e profissional do professor exige a sua constante preparação para a docência, porque “[...] na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática [...]” (FREIRE, 2001 p. 43).
A TO possibilita o planejamento e desenvolvimento de formações continuadas e permanentes, nas quais os professores poderão expressar-se, reconhecer-se e posicionar-se criticamente diante de suas práticas.
A seguir, apresentam-se o referencial metodológico e o dispositivo utilizados para as análises das interações dos professores durante a formação.
METODOLOGIA
Os fenômenos investigados no âmbito da formação de professores foram analisados em uma perspectiva dialética e interpretados a partir da teoria materialista em conformidade à metodologia de pesquisa associada à TO (RADFORD, 2015). Nesse sentido, o contexto da investigação é o da pesquisa-formação, na modalidade pesquisa-ação educacional, e compreende um processo de formação vivenciado pelos professores (modelo de formação aberto), e que visa a aproximação dos polos da pesquisa e da formação, em que ambos norteiam, simultaneamente, a formação oferecendo suporte à pesquisa, e a pesquisa regulando a formação (ALVARADO-PRADA, 2007; VOSGERAU, 2012).
Neste artigo, será apresentada a análise de alguns episódios das interações de um grupo de seis professoras pedagogas. A pesquisa-formação foi realizada em uma escola pública, teve duração de dois anos (novembro/2017 a novembro/2019) e compreendeu três etapas, identificadas como: diagnóstica, de labor conjunto e de emancipação coletiva.
De acordo com a metodologia proposta pela TO, a atividade (labor conjunto) é considerada a unidade de análise, pois é por meio do labor conjunto que ocorre a aprendizagem, ou seja, o encontro com o saber e a produção de novas subjetividades (RADFORD, 2015). Dessa forma, é somente por meio da análise das atividades ocorridas durante a formação que os processos de objetivação e subjetivação podem ser interpretados.
As interações analisadas neste trabalho ocorreram durante as atividades realizadas na etapa de labor conjunto e de emancipação coletiva, bem como nas reuniões desta última etapa. O desenvolvimento das atividades e as interações nas reuniões foram gravadas (em vídeo e áudio) e as interações foram analisadas por meio de um dispositivo de análise adaptado com base nas ideias de Radford (2015), Veneu (2012) e Piccinini e Martins (2004), que consideram o enunciado a partir de diferentes modos semióticos (verbal, gestual/ação e visual). Esse dispositivo compreende quatro etapas: identificação e seleção do enunciado; análise preliminar do enunciado; descrição do contexto extra verbal; e análise do enunciado (CAMILOTTI, 2020).
Nas análises apresentadas neste artigo, em um primeiro momento, foi realizada a identificação, a seleção e a descrição dos enunciados dos episódios relevantes (ER). Os ER compreendem momentos da interação em que há indícios de processos de objetivação e/ou subjetivação e de reflexões críticas acerca da prática pedagógica. A análise dos enunciados foi feita em um segundo momento, articulando as informações do contexto extra verbal e as ideias da TO, a fim de verificar indícios dos processos de objetivação e subjetivação durante as interações das professoras e da emancipação coletiva.
ANÁLISES E RESULTADOS
Os indícios do desencadeamento do processo de emancipação coletiva das práticas pedagógicas alienantes apresentadas neste artigo, são resultados das análises das interações das seis professoras (PA, PB, PC, PD, PE, e PG) e a professora formadora (PF) realizadas durante a formação. Essas professoras são formadas em pedagogia e ministram aulas nos anos iniciais do E.F. As professoras PC e PG são professoras de apoio das turmas do 2° ano do E.F.
A formação continuada e permanente (FCP) compreendeu três etapas: diagnóstica, de labor conjunto e de emancipação coletiva. A formação foi desenvolvida a partir dos preceitos da pesquisa-formação (VOSGERAU, 2012), modelo aberto, em que os resultados de uma etapa determinaram o planejamento das ações para a etapa seguinte, a fim de atender às necessidades dos professores (Figura 1). Na primeira etapa, foram desenvolvidas ações diagnósticas com a finalidade de traçar o perfil dos professores participantes da formação e conhecer suas necessidades formativas. Na etapa de labor conjunto foram realizadas ações formativas, baseadas no labor conjunto (atividade), a fim de explorar os principais conceitos da TO, que fundamentam o processo de ensino e aprendizagem, com base na ética comunitária, e o planejamento de atividades de ensino aprendizagem (AEA) para as aulas de Ciências. Na etapa de emancipação coletiva, foram realizados reuniões e planejamentos de AEA para acompanhamentos da prática dos professores, a fim de verificar indícios de mudanças na prática pedagógica e no desenvolvimento da autonomia coletiva emancipatória.
Os resultados da etapa diagnóstica (M1), obtidos a partir das análises das entrevistas diagnósticas e ações formativas diagnósticas, evidenciaram que as professoras tinham um perfil de professor especialista técnico com práticas pedagógicas baseadas na transmissão de informação e no individualismo (CAMILOTTI; GOBARA, 2018). Os resultaram evidenciaram também que as formações continuadas que as professoras participaram, antes da pesquisa-formação, eram formações fechadas, as quais foram ofertadas com o percurso definido, baseadas na racionalidade técnica. Formações com essas características não favorecem uma reflexão crítica que poderia resultar na tomada de consciência sobre práticas pedagógicas alienantes.
As análises apresentadas neste artigo, buscam evidenciar o processo de tomada de consciência das professoras sobre suas práticas pedagógicas alienantes (diagnosticadas no início da formação) e da emancipação coletiva dessas práticas. Para o escopo deste artigo, o episódio relevante e enunciados analisados foram registrados nas segunda e terceira etapas da formação continuada e permanente, em três momentos distintos: durante a socialização de uma atividade (labor conjunto) em que foi discutido o conceito de alienação na etapa de labor conjunto (segunda etapa); nas reuniões realizadas no início da etapa de emancipação coletiva (terceira etapa); e no final dessa etapa, em que as professoras apresentaram os relatos da aplicação das AEA realizadas com os alunos.
Na segunda etapa (etapa de labor conjunto) da formação, foram realizadas cinco AEA com os professores a fim de discutir os conceitos básicos da TO, o planejamento e o desenvolvimento de AEA de Ciências. As análises realizadas neste artigo, referem-se a uma dessas cinco AEA, cujo objetivo foi promover o encontro com os conceitos de “objetivação, subjetivação e alienação”, e realizar a reflexão sobre a aprendizagem em atividades baseadas no trabalho conjunto e o papel dos alunos e professor nesse contexto. Os momentos de interação e socialização dessa atividade estão descritos no Quadro 1, nos enunciados 1 a 3. Esses enunciados, para efeito de análise, não foram registrados sequencialmente e, por essa razão, não compreendem um episódio relevante. Eles serão identificados com o número do enunciado.
Nos enunciados 1 e 2, professoras e formadora (Quadro 1) fazem reflexões importantes sobre a superação da prática pedagógica baseada no racionalismo técnico e no individualismo durante a discussão sobre a alienação na perspectiva da TO.
Enun- ciado | Professora/Transcrição |
1 | PG: Então, os nossos alunos... a maioria, são ALIENADOS. Até todos, não sei. Nós também professores, como professores. |
2 | PB: É difícil acontecer isso que acontece aqui nessa formação, da gente sentar-se e aprender junto. É raro. Na verdade, a gente está vendo que hoje a gente consegue perceber a diferença, né? De estar aqui no grupo aprendendo, e de estar em casa sozinho. |
PB: Movimenta a mão direita para cima e para baixo enquanto fala, olhando para o grupo das colegas e sendo observada pela PF. | |
3 | PF: E do ponto de vista da formação, a gente também traz essa crítica da formação baseada na transmissão de informação ou na formação que propõe a construção do conhecimento pelo professor; a gente traz essa crítica de que esse sujeito está alienado. Agora eu posso falar isso (risos) porque a PG atualizou (risos), atualizou e percebeu isso. |
A professora PG, foi a primeira a reconhecer as características das práticas alienantes tanto em suas práticas quanto as dos alunos (Quadro 1; enunciado 1). A sua fala ocorreu durante a discussão sobre as tarefas realizadas pelos alunos, nas aulas de Ciências, em que a PG observou que eles não se reconhecem no trabalho escolar porque são atividades baseadas na transmissão de informações. A professora fez essa reflexão com base nos estudos de Radford (2016), em que esse autor identifica, ao discutir o modelo tradicional de educação, que o aluno ao reproduzir as informações que lhes são transmitidas, não se reconhece no seu trabalho, portanto, é alienado do seu trabalho (escolar) e do produto desse trabalho.
A professora PB, por sua vez, fez uma reflexão crítica sobre as formações continuadas que participaram ao concluir que eram baseadas no modelo educacional individualista (Quadro 1; enunciado 2). Ao observar a diferença entre aprender com o grupo e aprender sozinha, evidencia a sua compreensão sobre a metodologia do labor conjunto e as ações formativas individuais, respectivamente.
Quanto ao papel do formador no contexto de uma formação realizada por meio do labor conjunto, de acordo com a TO, as interações da PF foram baseadas em uma relação de igualdade com as professoras, o que proporcionou um ambiente de reflexão com uma visão crítica de suas práticas pedagógicas. Isso ainda favoreceu para a reflexão e a crítica sobre a relação de poder que existe nas formações tradicionais, em que o formador detém o saber acerca de técnicas e metodologias de ensino e aprendizagem e que, do mesmo modo, ao serem transmitidas como modelos pedagógicos, direcionam para a reprodução de práticas pedagógicas nas quais os professores não se reconhecem (RADFORD, 2016).
Outro aspecto que foi considerado como elemento fundamental para o processo de superação da alienação presente na escola, é a tomada de consciência das professoras ao identificarem as características das práticas alienantes presentes nas suas atuações na sala de aula. Elas posicionaram-se criticamente diante das suas práticas pedagógicas e reconheceram que estavam voltadas apenas para a dimensão do saber e que o individualismo permeava as suas ações em sala de aula.
A terceira etapa da formação continuada e permanente (etapa de emancipação coletiva) teve o objetivo de verificar, após a realização da segunda etapa (de labor conjunto) das professoras, possíveis mudanças nas suas práticas pedagógicas que pudessem evidenciar os indícios da tomada de consciência e a superação das práticas caracterizadas como alienantes, que foram observadas na primeira etapa da formação (etapa diagnóstica). Para atingir esse objetivo foram realizadas reuniões em que as professoras relataram as suas práticas pedagógicas, após o término da segunda etapa da formação.
Durante a terceira etapa, após o término da segunda etapa da formação em dezembro/2018, não foram desenvolvidas ações formativas com a participação da PF até o 2º bimestre/2019 (abril/2019). Nesse período, foram também realizados planejamentos coletivos de AEA de Ciências, a fim de observar como seria a prática das professoras sem a presença e participação da professora-formadora. Essas atividades foram posteriormente desenvolvidas com os alunos nas aulas de Ciências e foram objeto de relatos no encontro presencial de finalização da formação (terceira etapa).
Durante as duas primeiras reuniões dessa terceira etapa (emancipação coletiva), em que as professoras relataram as suas práticas pedagógicas, foram registrados os enunciados 4 a 7 (Quadro 2), em que se buscou evidenciar a compreensão das professoras sobre os processos de subjetivação e labor conjunto. Inicialmente, ao retomarem esses conceitos relacionados à aprendizagem, enunciados 4 e 5, as manifestações dessas professoras sugerem a materialização desses saberes.
Enun-ciado | Professora/Transcrição |
4 | PA: Mas ele passa também a ver os problemas coletivamente, quando a gente trabalhou a vacinação... a partir do momento que ele percebeu que o não tomar a vacina afeta o outro também, ajuda a transmissão da doença, aí ele também atualizou o ser, ele passa a pensar no coletivo. |
5 | PD: É esse encontro com o saber, quando a gente atualiza o saber em conhecimento e usa pra resolver os problemas. E aí vem a questão do saber não ser do professor, que chega e ensina, mas está aí, igual a gente falou. |
6 | PC: Mas é mais do que isso, né? Não é só colocar pra trabalhar junto. Tem que ver a questão do olhar que o aluno tem para o colega, o fazer mesmo junto, um explicar para aquele que não entende, que está atrasado. Não é só fazer junto. |
7 | PA: Eu sempre trabalho em grupo, tanto é que meus alunos já sabem. A professora PC sabe... mas aí eu percebi que era individualista, não tinha o trabalho conjunto, porque uns faziam a atividade, queriam fazer sozinhos, outros não faziam... e eu não tinha esse olhar de observar como ele agia no coletivo, e muito menos esse olhar de considerar isso na avaliação, como eu faço hoje. |
A fala da professora PA (enunciado 4) evidencia a sua compreensão sobre o processo de subjetivação, ao descrever a mudança de percepção do aluno que manifestou a preocupação com o outro, referindo-se à produção de novas subjetividades, pois o aluno passou a agir com ênfase na coletividade, ou seja, com atitudes éticas em que prevalecem o cuidado, o respeito e a solidariedade para com o outro. (RADFORD, 2017b; 2020).
No enunciado 5 (verbal), a expressão “está aí” apresenta a ideia implícita de que o saber está presente na cultura e não na figura do professor. Para essa professora, há uma nova compreensão na visão do papel do professor. Ou seja, o professor não é mais visto como o detentor do saber e responsável pela transmissão aos alunos, em uma relação de poder que reproduz as relações da sociedade capitalista (RADFORD, 2016; 2020), mas como aquele que, ao trabalhar lado a lado com os alunos, em uma atividade mediadora, participa com eles do encontro com um saber constituído histórica e culturalmente (RADFORD, 2019; 2020).
Durante a discussão sobre atividade de acordo com a TO, a professora PC mostrou a sua compreensão sobre o labor conjunto, de acordo com o enunciado 6 (Quadro 2). Da mesma forma, a manifestação da professora PA (enunciado 7) corroborou com a ideia da PC (Quadro 2). Essas interações reflexivas são indícios da tomada de consciência das professoras sobre suas práticas alienantes (RADFORD, 2020), sobre suas realidades, constituindo-se, conforme Freire (1979), em um elemento importante para o desenvolvimento da consciência crítica. Tais manifestações reflexivas foram possíveis pela atividade mediadora (labor conjunto) que desencadeou o processo para a emancipação coletiva das práticas pedagógicas alienantes, observadas nos relatos das professoras durante o último encontro da Formação.
Nesse último encontro presencial (etapa de emancipação coletiva), as professoras socializaram os relatos das atividades (labor conjunto) desenvolvidas com os alunos a partir das AEA de Ciências. Neste caso, temos um episódio relevante 1 (ER 1), apresentado no Quadro 3, que trata do relato realizada pelo grupo das professoras PC, PD e PE, que desenvolveram uma AEA sobre “segmentação de palavras e de frases, aglutinação de palavras, tipos e características das aves” nas disciplinas de Língua Portuguesa e Ciências. O objeto da atividade, desenvolvida com uma turma do 2º ano do E.F., foi o encontro com os saberes sobre segmentação e aglutinação de palavras e características das aves. Foi também objeto dessa atividade a produção de novas subjetividades (atualização do ser), de acordo com a ética comunitária desenvolvendo compromisso, solidariedade, respeito e ajuda mútua entre os alunos.
O ER 1 é composto de quatro enunciados (Quadros 3). A referência ao enunciado foi feita pelo número do enunciado, seguido de um ponto e o número do episódio relevante.
Enun-ciado | Professora/Transcrição |
1.1 | PF: Mas você falou, eles resolveram a atividade em grupo, então foi em conjunto. E aí eu pergunto, sempre é assim, sempre que teus alunos estão em grupo, a gente poderia concluir que houve trabalho conjunto? |
2.1 | PE: Não... nem sempre eles aceitam, né? É a opinião um, do outro. Até, lá na hora, a gente teve que fazer intervenções, porque aquele que já tem uma leitura, [...] igual o A3 mesmo, [...] a gente teve que intervir que não era só ele, que tinha o grupo pra responder junto. Aí, peguei a folhinha dele pra passar para o outro colega. Vamos todo mundo tentar. Mas depois, quem visualizou pra ir pro computador fazer a segmentação correta, foi ele. |
3.1 | PC: Eu falo assim: – calma, A4, vocês têm que entrar num consenso, vocês têm que ouvir seu colega, deixa seu colega falar também, né... Pra vocês entrar, não é... se unir? E nós vimos assim, que é nítido: eles estão acostumados a trabalhar em grupo, mas em conjunto, eles não estão. Então, há uma briga entre eles, porque você esperar o outro, respeitar o que o outro está pensando, o que vai falar... Porque eles tomam pra si – o que eu estou falando é certo. [...]! É de costume, é uma cultura, na verdade, né?! PC bate no peito por quatro vezes ao dizer “porque eles tomam pra si – o que eu estou falando é certo’. |
4.1 | PD: Não era porque o A5 estava digitando que a A6 não participava, até na forma de correção, aí ela falou assim é... tem que por vírgula pra não ficar sem sentido o texto. |
A professora PF questionou as professoras sobre a forma de interação no trabalho conjunto mencionado por elas (Quadro 3; enunciado 1.1). A professora PE, ao responder por meio do exemplo das ações do aluno A3, evidenciou a sua compreensão sobre o labor conjunto, e justificou a dificuldade de romper com o individualismo desse aluno conforme o enunciado 2.1, do Quadro 3. As professoras se mostraram cientes do individualismo presente nas ações dos seus alunos, que estão habituados com o trabalho em grupo, influenciados pela modelo educacional transmissivo e individualista. Suas manifestações evidenciam que elas tomaram iniciativas para romper com essa prática individualista, e buscaram introduzir uma nova forma de ação, ao enfatizar a cooperação humana, em que o grupo deve “responder junto”, “entrar num consenso”, “ouvir seu colega” e deixar o “colega falar também” (Quadro 3; enunciados 3.1 e 4.1), mostrando e aprendendo formas de interagir baseadas na solidariedade, respeito e compreensão em relação aos seus alunos (RADFORD, 2017b; 2020). As ações das professoras PE e PC, durante a aplicação da AEA, evidenciam compreensão sobre o labor conjunto conforme foi devidamente diferenciado da ideia geral de trabalho em grupo, comparando-o com o trabalho que reúne os alunos para fazer algo, conforme afirma a TO (RADFORD, 2017b). O labor conjunto envolve professores e alunos que sentem, transformam, sonham, sofrem, pensam e aprendem juntos (RADFORD, 2017b; 2016).
A compreensão de que a atividade compreende o labor conjunto entre alunos e professores (RADFORD, 2020) foi essencial para que as professoras reconhecessem que a AEA deve ser planejada para que os alunos encontrem os saberes de forma coletiva, por meio da interação dos alunos entre si e com o professor, regidos pela ética comunitária (RADFORD, 2017b; 2020).
Esse entendimento desencadeou a tomada de consciência das professoras sobre a realidade do trabalho realizado por elas e seus alunos em sala de aula, cujo processo iniciou na implementação do planejamento e nas reflexões conjuntas realizadas na socialização da experiência (relatos das atividades), em que, ao compartilhar as suas práticas, elas refletiram criticamente sobre as suas formas de atuação. Essas reflexões contribuíram para evidenciar mudanças em relação às suas práticas (antes da formação), pautadas no individualismo e no racionalismo técnico. É a partir dessa tomada de consciência da realidade, que pôde se desenvolver a consciência crítica (FREIRE, 1979), que poderá levar à emancipação dessa prática alienante.
A partir dessa ideia, pode-se dizer que, por meio da formação baseada na TO e do labor conjunto na formação, parece ter ocorrido a tomada de consciência das professoras. (RADFORD, 2020). A tomada de consciência, portanto, propiciou às professoras uma nova visão acerca do trabalho em grupo que realizavam com seus alunos, e uma nova forma de agir junto a eles, considerando o desenvolvimento de ações em que prevalecem o cuidado, o respeito e a solidariedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As análises apresentadas neste artigo evidenciam o desencadeamento do processo de emancipação coletiva das professoras de suas práticas pedagógicas alienantes, no contexto da formação continuada e permanente realizada para o ensino de Ciências com base na TO. Tais análises sugerem mudanças nas práticas pedagógicas dessas professoras quando comparadas com a prática individualista e fundamentada na busca e transmissão de informação, registrada no início da formação, na etapa diagnóstica (primeira etapa). De maneira geral, as interações e relatos analisados evidenciam que as professoras desenvolveram com seus alunos atividades baseadas em formas de colaboração humana por meio de ações pautadas na solidariedade, no respeito e cuidado.
Nos discursos analisados, podem ser observados elementos que caracterizam um posicionamento crítico das professoras diante de suas reflexões sobre a atividade desenvolvida com os alunos. Essa forma de posicionar-se denota uma tomada de consciência sobre a prática pedagógica alienante que essas professoras desenvolviam antes da formação e sugerem indícios de um processo de superação. Indica também um processo de emancipação coletiva, quando, após as ações formativas, as professoras pensam na aprendizagem nas aulas de Ciências a partir de uma dimensão social, coletiva, ética e crítica.
Neste sentido, o processo de tomada de consciência das professoras foi possibilitado e ocorreu no labor conjunto, durante os processos de objetivação e subjetivação (RADFORD, 2017b; 2019; 2020), proporcionados pela formação desenvolvida em momentos compartilhados em que elas sofreram, sentiram e pensaram juntas, encontrando-se com uma nova concepção do ensino de Ciências baseado na ideia de uma educação mais democrática e transformadora. A partir das ideias de Freire (1979), por meio da tomada de consciência da sua realidade, as professoras puderam desenvolver uma consciência crítica acerca de sua prática pedagógica, com possibilidades de modificá-la.
Foi no contexto da formação continuada e permanente, que a tomada de consciência foi desencadeada e propiciou o encontro com novas formas de pensar, agir e ensinar Ciências a partir de uma perspectiva coletiva. De forma simultânea a esse encontro, foram produzidas novas subjetividades que resultaram no processo de emancipação coletiva das práticas alienantes registradas no início da formação. As análises apresentadas evidenciam que a proposta formativa realizada, com base nos pressupostos da TO e na metodologia de formação aberta e permanente, possibilitou o desencadeamento do processo de emancipação coletiva dessas práticas pedagógicas alienantes.
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