ARTIGOS
ESTUDO DAS PERCEPÇÕES DE APRENDIZAGEM DA MATEMÁTICA NOS PRIMEIROS ANOS: UM OLHAR PARA OS PEDAGOGOS
STUDY OF THE MATH LEARNING PERCEPTIONS IN THE PRIMARY EDUCATION: A LOOK AT PEDAGOGUES
Revista de História da Educação Matemática
Sociedade Brasileira de História da Matemática, Brasil
ISSN-e: 2447-6447
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 8, 2022
Resumo: A área de pesquisa em formação de professores que ensinam Matemática tem produzido, nos últimos três decênios, muitos estudos sobre a prática pedagógica, dos conteúdos ensinados e suas especificidades, como também aspectos relacionados às questões de gênero e equidade na formação. Contudo, pouco se tem visto sobre metodologias para ensinar Matemática, de uma perspectiva epistemológica, nessa área de pesquisa. Nesse sentido, buscamos com este artigo apresentar um estudo em torno das percepções de aprendizagem da Matemática evidenciadas por um grupo de docentes pedagogos que atuam nos primeiros anos do ensino fundamental. Assim, a fonte de informação para o presente trabalho foi um curso de formação continuada desenvolvido ao longo do ano de 2020 com professores pedagogos, acerca das metodologias de ensinar Matemática nos anos iniciais. Como dados, foram selecionados os discursos enunciados por cinco dos professores participantes, tendo como procedimento de análise a interpretação das bases ideológicas que fundamentaram os referidos discursos, embasada pela perspectiva francesa de análise discursiva. Como resultados, percebemos que os docentes participantes do trabalho compreendiam a aprendizagem de seus alunos, no contexto selecionado, a partir das concepções de ensino construtivista e tradicionalista, associando aprendizagem com metodologia. Isso significa que os professores participantes não expressavam de modo claro o que compreendiam por aprendizagem, e sua distinção da metodologia de ensino.
Palavras-chave: Análise do discurso, Anos Iniciais, Metodologia, Educação Matemática, Pedagogos.
Abstract: In the last three decades, the area of research on teacher training that teaches Mathematics has produced many studies about pedagogical practice, the contents taught, and their specificities, as well as aspects related to issues of gender and equity in training. However, little has been seen about methodologies for Math teaching, from an epistemological perspective, in this research area. In this sense, we seek with this article to present a study about the perceptions of Math learning evidenced by a group of pedagogue teachers working in the primary education. Thus, the source of information for the present work was a continuing education course developed throughout 2020 with pedagogues about the methodologies of Math teaching in the basic education. As data, the speeches given by five of the participating teachers were selected, having as an analysis procedure the interpretation of the ideological bases that founded the referred speeches based on the French perspective of discursive analysis. As a result, we noticed that the teachers participating in the work understood the learning of their students in the selected context from the constructivist and traditionalist teaching conceptions, associating learning with methodology. This means that the participating teachers did not have a clear understanding of what they understood by learning and its distinction from the teaching methodology.
Keywords: Discursive Analyses, Primary Education, Methodology, Math Education, Pedagogues.
INTRODUÇÃO
O campo de estudo da formação do professor que ensina Matemática tem ganhado, nos últimos três decênios, importantes contribuições no que se refere a práticas pedagógicas e formas de se trabalhar determinados conteúdos. Todavia, poucas são as discussões que tratam das motivações metodológicas, bem como das compreensões de método, por parte do professor, especialmente do pedagogo atuante nos primeiros anos da educação básica conforme destacam os estudos de Julio e Silva (2018) e Oliveira e Oliveira (2013).
Dessa forma, buscamos com este artigo apresentar um estudo acerca das percepções de aprendizagem da Matemática por um grupo de docentes pedagogos, atuantes nos primeiros anos do ensino fundamental. Para tanto, utilizamo-nos de dados coletados em um curso de formação continuada de professores pedagogos, desenvolvido ao longo do ano de 2020, por meio da análise do discurso na perspectiva de Pêcheux (2015).
Assim, o presente trabalho está organizado em três partes, sendo a primeira destinada a uma breve apresentação da formação do professor pedagogo, considerando alguns aspectos relevantes, em termos legais, no Brasil; a segunda é destinada a uma discussão acerca da relação entre o professor pedagogo e a noção de método; e a terceira destina-se à apresentação dos dados e sua respectiva análise, no tocante ao objetivo.
1. APORTES TEÓRICOS
1.1. A formação da/do docente pedagogo no Brasil – breve discussão
O campo de pesquisa acerca da formação de professores que ensinam Matemática, especialmente nos anos iniciais do ensino fundamental, tem ganhado nos últimos três decênios maior atenção e excelentes contribuições de pesquisadores nacionais e internacionais. Tal fato justifica-se, dentre outros, pela crescente preocupação com o modo como a Matemática do chamado “ensino de base” é desenvolvida nas salas de aula, embora tal inquietação tenha como pano de fundo os resultados de avaliações externas, como a Prova Brasil e a avaliação PISA[2], os agentes responsáveis.
Ademais, para compreendermos os aspectos essenciais do modus operandi do docente que ensina Matemática nos anos iniciais do ensino fundamental precisamos recorrer aos aspectos histórico-culturais que participaram na evolução da sua formação, seja ela inicial e/ou continuada. Além disso, devemos nos ater, especialmente, ao docente pedagogo, oriundo dos cursos de Pedagogia, uma vez que são estes os profissionais responsáveis pelo trabalho pedagógico da Matemática nos primeiros anos da educação básica.
Contextualizando, pois, remetemo-nos aos primeiros cursos de Pedagogia que surgiram, no Brasil, a partir da década de 1939, especificamente a partir do Decreto-Lei n° 1.190 de 4 de abril de 1939. Nesse documento foi criada a Faculdade Nacional de Filosofia, Rio de Janeiro, naquele momento capital federal do país. Esse decreto-lei substitui outro documento, a Lei n° 452 de 5 de julho de 1937, o qual tratava da criação da Faculdade Nacional de Filosofia, Ciências e Letras[3]. O propósito dessa substituição foi o de dar para esta última um caráter mais generalista, criando assim os cursos de bacharelado em Pedagogia que, na perspectiva de Saviani (2008), formavam técnicos em educação.
Assim, no Decreto-Lei de 1939 organiza-se a Faculdade Nacional de Filosofia em quatro seções: Filosofia, Ciências, Letras e Pedagogia. Além destas, há uma seção especial chamada de Didática. Nesse momento histórico, os cursos de Pedagogia não eram compreendidos como cursos de formação de professores, mas sim como cursos que formavam os agentes da educação. Devido a isso Saviani (2008) compreende os bacharéis em Pedagogia, formados por esse sistema, como técnicos em educação e não professores.
Todavia, a separação entre Pedagogia e Didática constituiu um modelo de formação conhecido na literatura como modelo “3+1”, pois eram três anos correspondentes à formação específica do bacharelado mais um direcionado para preparação à docência. Cabe destacar que apenas com a complementação do chamado Período Didático se poderia assumir cargos de docência para atuar nos níveis elementares, os chamados níveis normais de ensino.
Desse modo, o modelo proposto para a formação do bacharelado em Pedagogia era constituído por três anos, no referido decreto-lei indicado por séries. Assim, de acordo com Brasil (1939, n/p), na primeira série as disciplinas cursadas pelo futuro pedagogo eram Complementos de Matemática, História da Filosofia, Sociologia, Fundamentos biológicos da Educação e Psicologia Educacional. Na segunda série as disciplinas se distribuíam em Estatística Educacional, História da Educação, Fundamentos Sociológicos da Educação, Psicologia Educacional e Administração Escolar. Finalmente, na terceira série, os estudantes aprendiam História da Educação, Psicologia Educacional, Administração Escolar, Educação comparada e Filosofia da Educação.
Nota-se, de acordo com as disciplinas enumeradas acima, que a presença daquelas direcionadas para o ensino da Matemática correspondia a pouco mais de 13% de toda a grade. Número baixo, considerando que os profissionais cursariam mais um ano de Didática para, então, tornarem-se professores do ensino primário.
No que se refere ao ano complementar oferecido pela seção de didática, as disciplinas a serem cursadas distribuíam-se em Didática Geral, Didática Especial, Psicologia Educacional, Administração Escolar, Fundamentos Biológicos da Educação e Fundamentos Sociológicos da Educação. Nota-se, ademais, que o ano direcionado para a complementação didática oferecia, de certa forma, mais ferramentas para o arcabouço do saber “administrativo” e “psicológico”, e menos para o específico, disciplinar.
Isso significa, e de acordo com Saviani (2008), que a formação do pedagogo se volta, necessariamente, para um tecnicismo fundamentado, uma vez que a preocupação se resguardava, sobretudo, em passar para os profissionais formados o “como lidar” com o indivíduo, e não quais conhecimentos específicos eles deveriam ter e/ou saber, como o caso da Matemática, por exemplo.
Tal fato segue o contexto econômico e político do período, uma vez que o Brasil se encontrava na chamada República “Café com Leite”, ou primeira república. Nesse contexto, a instalação de fábricas e indústrias, principalmente na região sudeste – São Paulo e Rio de Janeiro, em particular – iniciaram um movimento de êxodo rural e um processo de urbanização considerável, dando especial atenção para o processo de exportação do café brasileiro e sua demarcação como potência econômica do período.
Desta maneira, cidades como São Paulo tiveram um boom econômico e demográfico, e investimentos na área ferroviária, por exemplo, importantes para escoamento da produção até o porto de Santos, contribuíram para o estabelecimento de uma educação voltada para a produção, pois naquele período o Brasil já revelava fortes indícios de vir a assumir uma política econômica capitalista.
Essa estrutura de curso do modelo "3+1" perdurou até 1969, com a promulgação dos decretos estaduais e criação das faculdades de educação. Assim, nota-se dissociação dos cursos de Pedagogia das faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, conforme apontam Saviani (2008), Arantes e Gebran (2014) e Esteves e Araújo (2019).
Nesse sentido, em 1961 foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação por meio da Lei n° 4.024 de 20 de dezembro de 1961, a qual estabelece, no que tange à formação dos docentes pedagogos, a organização mínima do tempo de curso, bem como as tipologias das instituições que poderão oferecê-lo.
No artigo 54 da referida lei nota-se o uso dos termos “regente” e “professor” no que se refere ao magistério do ensino primário. Tal distinção se dava pois nem todos os estados contavam com universidades e institutos de educação para a formação de professores e, dessa forma, aqueles que detinham um grau correspondente ao que hoje conhecemos por ensino fundamental poderiam atuar como regentes. Já aqueles que desenvolviam seus estudos num grau secundário, na modalidade normal, teriam sua licença como professor.
Já em 1962, por meio do parecer de n° 251 do então Conselho Federal de Educação (CFE) - hoje denominado Conselho Nacional de Educação (CNE) - a grade curricular mínima dos cursos de pedagogia foi modificada e, com isso, algumas alterações foram realizadas, tais como a obrigatoriedade da realização do estágio curricular nas instituições de ensino.
Esse formato terá duração até 1971, quando da promulgação da lei n° 5.692 de 11 de agosto de 1971, que fixa as diretrizes e bases para o ensino de primeiro e segundo graus, e que ficou conhecida como a lei “revolucionária” do ensino, pois muda completamente a esquemática da organização da educação, deixando ainda mais forte sua visão tecnicista. De fato, o objetivo do governo militar era o de “desenvolver” o país economicamente e, para isso, fazia-se necessário a implantação de um sistema educativo “mais” técnico, direcionado para as fábricas e indústrias. Cabe-nos destacar que tal visão “desenvolvimentista” estava atrelada ao crescimento econômico e ao estabelecimento de um nacionalismo despótico no que se refere às instituições públicas.
Assim, a partir de uma perspectiva tecnicista as concepções didáticas passam a assumir um caráter técnico. Além disso, especificamente no artigo 31, a citada lei estabelece que “as licenciaturas de 1º grau e os estudos adicionais referidos no § 2º serão ministrados nas universidades e demais instituições que mantenham cursos de duração plena” (Brasil, 1971, n/p). Dessa forma, nota-se que passa a ser de responsabilidade da universidade a formação dos professores dos ensinos primários e secundários. De certo modo, isso equivale à ideia de que a formação do professor deve ser necessariamente norteada por um ensino superior, levando a aumento gradativo do nível de formação. Ademais, com as transformações políticas e o processo de redemocratização devido à decadência do governo militar, novas concepções educacionais foram estabelecidas, as quais resultaram na Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 20 de dezembro de 1996, sob o número 9.394.
Cabe destacar que após o processo de redemocratização, o país passou por uma séria crise inflacionária, bem como por um momento econômico e social que colocou a população em uma situação de risco. Desta forma, logo no início da década de 1990 temos a inserção do plano Real, que trocou a moeda e exigiu altos investimentos do governo na contenção de gastos e no controle da inflação (Furtado, 2005). Tal fato fez com que o Brasil recorresse ao Fundo Monetário Internacional (FMI), e ao Banco Mundial[4], para solicitar empréstimos e apoio financeiro.
Todavia, esse pedido de ajuda não foi gratuito, e como discutido por Freitas (2014) impactou de forma substancial e predominante as políticas públicas educacionais, dentre elas a formação dos professores pedagogos. Assim, um dos requisitos para o país era o de minimizar as altas taxas de analfabetismo e universalizar o acesso à educação. Desse modo, a década de 1990 e o início do século XXI foram marcados, sobremaneira, pela interferência de organizações internacionais na educação brasileira.
Ademais, no que se refere à Lei n° 9.394/1996 a formação de professores passa a ser realizada pelos cursos de licenciatura, ministrados por instituições de ensino superior, e para exercer o magistério na educação primária tem-se que, necessariamente, portar um diploma de licenciado em Pedagogia.
Alguns autores como Passos e Nacarato (2018) destacam que, por mais que tenha sido essencial estabelecer a obrigatoriedade do diploma de licenciatura, muitos cursos de Pedagogia pelo Brasil não focam na prática de ensino, mas apenas na administração escolar, deixando de lado a importância da formação inicial para o desenvolvimento da aprendizagem dos alunos. Dessa forma, as mesmas autoras enfatizam que mesmo na formação inicial os professores "raramente são ouvidos e aqueles que buscam por uma prática que promova aprendizagens discentes acabam por realizar um trabalho invisível, pouco valorizado" (Passos; Nacarato, 2018, p.119).
Outrossim, outros elementos previstos pela referida lei dizem respeito à criação de uma base nacional curricular para o país, bem como a normativas que orientem o processo de formação dos professores. O primeiro documento, a partir do ano de 2010 com um projeto de governo voltado para a educação, iniciou debates e discussões que, até os anos de 2015, englobou secretarias estaduais e municipais de educação, além da comunidade em geral. Foram, ao todo, realizadas duas versões daquilo que veio a se chamar Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e resultou de outro documento já publicado em 1998 que orientava, de certo modo, as matrizes curriculares, os chamados Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN).
Com o impeachment da presidenta Dilma Roussef ocorrido em 2016, toda a equipe técnica do Ministério da Educação foi trocada, e nos órgãos responsáveis pela elaboração e formulação de políticas públicas passaram a ocupar integrantes que tinham forte ligação com o setor econômico brasileiro, resultando na publicação da terceira versão em 2017, sem muitas discussões e adequações previstas pela comunidade científica, conforme destacam Passos e Nacarato (2018).
Já em 2019, diante de um governo neoliberal que inseriu na educação brasileira um projeto de desmonte, foi publicada a chamada Base Nacional Comum para a Formação Inicial e Continuada de professores da Educação Básica, por meio do parecer n° 2 do Conselho Nacional de Educação, em 20 de dezembro de 2019.
Tal documento estabelece que “[...] a construção de referenciais para a formação docente precisa dialogar com as dez competências gerais da BNCC” (Ministério da Educação, 2019, p.13). Isso significa que a normatização de um documento norteador para os currículos definirá, substancialmente, a formação do professor que atuará na educação básica. Tamanha é a confusão entre os conceitos, que o próprio documento estabelece como “engajamento” a dedicação, medida em quantidade, que o professor emprega para dar suas aulas. Isso também aparece como uma das competências necessárias para o desenvolvimento da prática pedagógica. Como poderíamos medir o engajamento de um professor, por meio de provas externas internacionais?
Concordamos com o fato de que, no caso da Educação Matemática, o exercício da prática aliada à teoria faz-se não apenas necessária, como também urgente. O conhecimento necessário para “saber dar aula” é obtido por meio de um conjunto de elementos, tal como discute Tardif (2012) em seu estudo, sendo eles a experiência vivenciada, a trajetória histórica do sujeito e os conhecimentos teóricos obtidos na universidade. A questão que se coloca é a seguinte: como a formação atual dos professores pedagogos trabalha as noções de metodologia para ensinar Matemática?
1.2. A Matemática nos primeiros anos da educação básica: a questão do método
Um dos discursos mais presentes na educação brasileira é o de “qualidade de ensino”. Discute-se, em diversos meios, acadêmicos e não acadêmicos, que “a educação brasileira é um fracasso”, “a culpa dos alunos não aprenderem Matemática é da formação do professor”, “o Brasil não investe recursos na escola pública” entre diversos outros.
O que torna mais grave a situação é o fato de estes discursos aparecerem em documentos oficiais, tal como o parecer n° 2 de Conselho Nacional de Educação, publicado em 20 de dezembro de 2019, que cita o seguinte, quando trata dos dados avaliativos da educação básica: “essa precariedade se reflete em alguns indicadores vinculados à formação do professor” (Ministério da Educação, 2019, p.5).
Nesse sentido, recai sobre o professor a responsabilização acerca do “fracasso” que um sistema educacional reflete nas avaliações externas mais recentes. Todavia, poder-nos-ia ser perguntado acerca dos inúmeros estudos que nas últimas décadas vêm sendo realizados sobre a prática docente e se refletem, ou não, em alguma mudança na práxis pedagógica.
A esse respeito concordamos com Passos e Nacarato (2018, p.119) quando salientam que "[...] as produções dos últimos anos não têm influenciado os elaboradores de políticas públicas, nem conseguido chegar às salas de aula, pois com tantas demandas e prazos a cumprir, os professores realizam aquilo que é possível, dentro de suas condições de trabalho". O que se tornou, para além de um fato, uma realidade constante na vida docente brasileira.
Além disso, concordamos com Carneiro e Passos (2014, p.980) quando afirmam, em sua argumentação sobre a necessidade de repensarmos os cursos de Pedagogia do Brasil, que "[...] as frustrações, as inseguranças e os medos, relacionados à matemática ensinada no processo de escolarização dessas futuras professoras, poderão repercutir na configuração de suas aulas para alunos dos anos iniciais de escolarização". Tal afirmação se coaduna com estudos que desenvolvemos durante os anos de 2019 e 2020 (Mometti, 2020) e refletem a mesma preocupação das autoras citadas.
Somam-se a isso os recursos didático-pedagógicos direcionados para os professores, os quais quase sempre são elaborados por empresas privadas e seguem normativas disponibilizadas pelo Ministério da Educação e que, conforme já citado, mudam conforme o governo e, consequentemente, as políticas públicas educacionais.
Dessa forma, o documento que propõe o direcionamento para o desenvolvimento dos currículos municipais e estaduais, no que se refere ao ensino da Matemática e das demais áreas do conhecimento, encontrou no momento de sua produção como, também, após sua promulgação em 2017, forte resistência da parte de um grupo de pesquisadores da Educação Matemática, pois segundo Passos e Nacarato (2018, p.120) a produção nessa área de pesquisa "[...] não tem sido levada em consideração pelos reformadores curriculares, até porque a maioria dos educadores matemáticos rejeita a ideia de um currículo por competências e habilidades, tal como propõe a BNCC, numa visível articulação com o mundo empresarial".
Assim, se julgamos a qualidade do ensino básico ruim ou aquém do esperado pelo setor econômico, e assumimos que o professor “não sabe” ensinar Matemática para a educação primária, então o problema recai em uma questão de natureza metodológica. Isso significa que percebemos, atualmente, uma transferência da responsabilidade de ensinar, que é de natureza própria do professor, para os materiais didáticos.
Aqui, é notória a participação do sistema capitalista, com os grandes cartéis de editoras que hoje reinam no país. Basta-nos abrir o recente resultado das editoras aprovadas para vendas de livros didáticos ao Ministério da Educação, em 2022, e veremos a quantidade das que estão ali: poucas, sendo algumas delas do mesmo agente mantenedor.
Exemplos dessa postura mercadológica operada por meio dos documentos oficiais podem ser encontrados observando-se as instituições que desempenham, malgrado consigam ou não, o papel que deveria ser dos gestores escolares, professores e comunidade.
Contudo, o livro didático não é assumido por nós como um vilão da prática pedagógica da Matemática nos anos iniciais; ao contrário disso, conforme nos mostra Valente (2015), é por meio dos materiais didáticos que conseguimos pistas para compreender os métodos utilizados durante um dado período histórico. Isso é de fundamental importância, pois a consciência histórica dessa disciplina auxilia-nos a pensar o presente para um projeto de formação docente.
Nesse sentido, considerando a educação primária, e de acordo com Valente (2015) discutindo acerca da noção de elementar - aquilo a partir do qual deve ser iniciado um dado estudo, ou de modo mais geral, uma formação - temos que o caminho escolhido a ser percorrido na educação primária brasileira foi aquele considerado uma trajetória linear, ou seja, partindo do mais básico para o avançado.
Assim, ao citar o pesquisador da primeira metade do século XX, Alcimar Terra, Valente (2015) coloca em questão o debate acerca da utilidade do conhecimento, considerando o que é ou não útil, numa perspectiva histórica. Tal fato se coaduna com o tratamento puramente tecnicista reservado à educação a partir dos anos de 1937, pois com a tomada do governo realizada pelo chamado Golpe de Estado Novo, Vargas assume uma postura nacional-desenvolvimentista para o país. Dessa forma, a perspectiva de utilidade deveria, sobremaneira, partir dos aparatos educacionais.
A Matemática prevista para ser ensinada nos primeiros anos da educação básica durante a primeira metade do século XX possui como fonte epistemológica as concepções iluministas do século XVIII. Juntam-se a isso as concepções acerca do que seria educação e do que seria uma instrução, como bem discute Valente (2015).
A superação da perspectiva iluminista e tecnicista do ensino da Matemática voltada para a educação primária dar-se-á com o pensamento pedagógico proposto pelo pedagogo suiço Johann Heinrich Pestalozzi, ainda no século XVIII. Em sua obra Legislação e Infanticídio, publicada originalmente em alemão em 1783, inaugura a sociologia da educação no que diz respeito aos estudos da criança. Sua pedagogia volta-se para a prática enquanto momento essencial de aprendizagem.
No que se refere à concepção de método de ensino da Matemática nos primeiros anos da educação básica, Valente (2015) aponta-nos uma evolução dos seguintes: (i) sintético, (ii) analítico, (iii) lógico-dedutivo e (iv) intuitivo. Segundo o autor, o (i) diz respeito à forma de ensinar que segue um caminho das partes para o todo, isto é, parte dos elementos considerados básicos (aqui diferencia-se da noção de rudimento) para chegar ao universal, ao mais geral. Possui como raiz epistemológica os fundamentos cartesianos da matemática. Traz a junção entre os métodos analítico e intuitivo.
O segundo, por sua vez, refere-se ao processo inverso do sintético, ou seja, parte-se do todo para compreender suas partes. O (iii) é a referência principal da matemática italiana e francesa, principalmente quando assumimos os trabalhos, por exemplo, de Lagrange. A partir de um conjunto de axiomas e pressupostos tem-se a estruturação de uma linguagem organizada, de modo que com a utilização dos conectivos lógicos chega-se a uma dedução, isto é, conclusão.
Finalmente, o (iv) nasce com a concepção de Pestalozzi acerca da apropriação dos objetos reais a partir daquilo que se presume. Isso significa que seria papel do ensino, por exemplo, tornar aquele determinado conhecimento factível por meio de uma aproximação com a realidade[5]. O método intuitivo pode ser considerado, de certa forma, como o gérmen do construtivismo.
Tais métodos caracterizaram o ensino da Matemática na educação primária até o limiar dos anos de 1970, período esse em que as concepções do construtivismo adentraram nas ideias pedagógicas brasileiras dos primeiros anos, assim como o Movimento da Matemática Moderna operou no ensino secundário (Valente, 2015).
Segundo Santos, Ortigão e Aguiar (2014), a discussão acerca do ensino da Matemática nos anos iniciais perpassa a compreensão daquilo que deve ou não ser ensinado, isto é, a escolha do conteúdo a ser ensinado reflete o que os professores compreendem acerca da Matemática. Tal concepção se coaduna, em partes, com a nossa defesa de que não é apenas a escolha dos conteúdos que evidencia o grau de complexidade de um determinado conteúdo por parte do professor, mas também o método por meio do qual ele escolhe para ensiná-lo. Dessa forma, podemos dizer que esta discussão para além do currículo recai no campo da Didática da Matemática e carece, ainda, de mais exploração por parte das pesquisas atuais.
Ainda de acordo com os autores, "[...] o sucesso da aprendizagem escolar depende essencialmente de se ter clareza do que deve e do que não deve ser ensinado em nossas salas de aula" Santos et al (2014, p.640).
Ademais, poderíamos complementar esta proposição dizendo que o sucesso da aprendizagem escolar depende, também, do método e de sua adequação para o conteúdo escolhido, a ser ensinado. E, para que isso aconteça, faz-se necessário que o professor conheça não apenas os conteúdos conceituais da disciplina, como também diferentes formas para abordá-la, em uma dada faixa etária de alunos.
Diante do exposto, chegamos à principal preocupação de pesquisa: o professor pedagogo compreende que sua aluna/seu aluno aprende quando percebe a reprodução de um exercício, ou quando sente segurança ao dominar, eficazmente, um determinado modo de ensinar? De modo a pensarmos acerca desta questão proposta, desenvolvemos um estudo no que se refere às compreensões de aprendizagem da Matemática dos professores pedagogos atuantes nos primeiros anos da educação básica. Nas próximas seções apresentamos o desenho metodológico bem como as análises obtidas.
2. APORTES METODOLÓGICOS: A PESQUISA
2.1. Contexto do estudo
Como primeira aproximação deste trabalho, tomamos o contexto da formação continuada de professores como espaço de interlocução e desenvolvimento das nossas ideias e reflexões acerca das metodologias do ensinar Matemática.
Tal espaço caracterizou-se por um curso de formação continuada desenvolvido, ao longo do ano de 2020, como parte das atividades da nossa pesquisa direcionada para o estudo das metodologias de ensino utilizadas para ensinar Matemática nos anos iniciais.
Dessa forma, num primeiro momento assumimos como formação continuada a perspectiva de Esteves e Araújo (2019, p.2), pela qual tal formação é “[...] compreendida como um processo que acontece após a formação inicial, de natureza contínua e que se realiza ao longo da carreira docente, amplia e intensifica um processo que se deseja permanente, com a inclusão de modelos diferenciados”.
O curso citado foi desenvolvido com um total de 153 professores pedagogos, atuantes tanto na educação infantil quanto nos anos iniciais do ensino fundamental de cinco redes públicas de ensino municipais de São Paulo e uma do estado do Espírito Santo, Brasil.
Além disso, cabe destacar que sendo parte de um projeto de pesquisa maior, o curso de formação continuada, proposto, compartilhava os seguintes objetivos: (i) estudar os procedimentos metodológicos utilizados por professores polivalentes no que se refere ao ensino da Matemática nos anos iniciais, (ii) compreender os aspectos culturais envolvidos na prática pedagógica do polivalente, (iii) construir atividades e mecanismos de formação do professor que ensina Matemática nos anos iniciais, (iv) desenvolver cursos de formação continuada para professores polivalentes das redes públicas e privadas de ensino e, finalmente, (v) produzir um conjunto de materiais e recursos didáticos para o ensino da Matemática nos anos iniciais.
Deste modo, o presente artigo traz os resultados oriundos de uma análise sobre os discursos proferidos por um grupo de professores pedagogos participantes e tomou por referência os objetivos (i) e (iv), conforme mencionado.
Ademais, acerca da disponibilização das vagas e matrículas para o referido curso, neste trabalho designado como edição 1, foi firmada uma parceria com cinco municípios localizados no estado de São Paulo, os quais, sob a responsabilidade das secretarias municipais de educação, disponibilizaram as horas destinadas à formação obrigatória para o desenvolvimento das atividades do curso. No ato de parceria constam os objetivos, distribuídos em social, pedagógico e científico, que foram aceitos pelos gestores municipais.
2.2. Fontes de informação e desenho metodológico
Conforme mencionado, o contexto de desenvolvimento do estudo em pauta deu-se num curso de formação continuada desenvolvido de modo remoto, durante o ano de 2020, com professores pedagogos das redes públicas municipais de cinco municípios do estado de São Paulo e, também, do Espírito Santo.
Dessa forma, selecionamos como fonte de informação para nossa análise as respostas enviadas por cinco professores ao ambiente virtual de aprendizagem (AVA) acerca de uma atividade sobre frações. Tais professores caracterizam-se como sujeitos da pesquisa[6] e neste trabalho estão indicados pelos nomes fictícios [Adriana], [Roberto], [Cláudia], [Diego], e [Edna].
A escolha destes professores como sujeitos da pesquisa levou em consideração os seguintes critérios: (1) presença e participação nos momentos síncronos acerca da temática desenvolvida, (2) frequência de envio das atividades solicitadas pelo AVA. Além disso, cabe salientar que cada um dos professores pertence a um município diferente, o que contribui para a análise e construção de um mapa acerca da atuação docente nos anos iniciais, assumindo aquele grupo em especial.
Assim, o processo de transformação da informação em dados para análise deu-se mediante a utilização da Análise do Discurso (AD) de acordo com a perspectiva de Pêcheux (2015). Nesta perspectiva, desenvolvem-se as seguintes etapas para análise: (1) realização de uma primeira leitura para tomar contato com o texto e selecionar o corpus da análise, (2) realização da segunda leitura para busca dos sentidos dos discurso e seleção das chamadas superfícies discursivas, (3) delimitação do conceito-análise (por meio de questões heurísticas que irão direcionar o desenvolvimento da interpretação), (4) seleção das marcas discursivas, (5) identificação do objeto discursivo, (6) processo de seleção daquilo que é ou não passível de ser enunciado pelo discurso (orientado pelas questões heurísticas iniciais), (7) identificação das formações discursivas e, finalmente, (8) intepretação das formações ideológicas.
Nesse sentido, aplicando as oito etapas supracitadas, de modo a esgotar os discursos selecionados para análise, chega-se ao objetivo da metodologia: entrada para o universo ideológico da enunciação ou, em outras palavras, os motivos pelos quais aquele discurso foi enunciado.
Desse modo, o conceito-análise que orientou nossa busca para análise das superfícies discursivas selecionadas foi: qual é a percepção de aprendizagem dos professores quando propõem uma metodologia para o de ensino de frações diante da situação-problema apresentada?
Tal questão orientou-nos nas superfícies discursivas, as quais foram extraídas dos enunciados das atividades submetidas ao AVA. Sobre esta atividade, ademais, tratava-se de uma situação problema envolvendo uma professora imaginária do 5° ano. Essa professora deveria organizar seu planejamento de modo a ensinar as frações para sua turma, mas como um complemento ela já sabia que esse conteúdo aparece na grade do no ano anterior. Assim, foi proposto para os professores pedagogos que desenvolvessem uma explicação, atividade e/ou qualquer outra forma de registro que expusesse de forma clara sua sugestão para a professora imaginária.
Finalmente, sobre a interpretação das formações ideológicas cabe salientar que a mesma só foi concebida mediante o esgotamento dos enunciados, isto é, a extração de todas as possibilidades possíveis para sua interpretação. Conforme enfatiza Pêcheux (2015, p.113) “a tentativa de analisar os processos de modificação no nível das formas discursivas e ideológicas, requer uma verificação do grau de dificuldade de privar-se, na reflexão, da parcialidade histórica das categorias, padrões de pensamento etc.”. Por isso faz-se essencial que na AD se desenvolva um processo de esgotamento de todas as interpretações possíveis, de modo a torná-lo o mais objetivo possível.
3. ANÁLISES E RESULTADOS
O quadro 1, a seguir, traz dez das vinte e seis superfícies discursivas selecionadas, e suas correspondentes análises de acordo com a perspectiva de Pêcheux (2015). Em seguida, apresentamos sua interpretação e cotejamento com os pontos discutidos anteriormente. Cabe-nos ressaltar que as transcrições dos discursos para o quadro 1 foram realizadas da forma ipsis litteris.
Superfície discursiva | Formação ideológica |
[Adriana] Se Clarissa levar um bolo para a escola, ela poderá perguntar aos alunos o que é aquilo, quantos têm, é grande ou pequeno, perguntar de qual sabor eles acham que é, explorar o bolo. Desta forma, as crianças perceberão que o bolo é um só, um inteiro. | Conteúdo complexo associado a difícil aprendizagem. Aprende-se quando se parte do lúdico, do brincar. |
[Adriana] A professora explicará que dividindo o bolo, e que comendo ou dando um pedaço para alguém ele não será mais inteiro e como podemos representar o bolo que ficou? | Trabalhar com objetos concretos e partindo da experiência possibilita o desenvolvimento da aprendizagem. |
[Adriana] Explicará o que é numerador e denominador, para que serve esses nomes e o porquê precisamos sempre colocar os números nos seus lugares. Acredito que assim, os alunos entenderão melhor a simbologia de fração e o motivo de sua simbologia. | Utilização de objetos reais e sua relação para a representação simbólica. Perspectiva construtivista de ensino. |
[Roberto] A fração como parte de um todo é comumente apresentada usando-se inicialmente representações contínuas, com exemplos como bolos, pizzas, barras de chocolate, para depois apresentar a fração como parte de um todo discreto, usando como exemplos balas, bolinhas, flores etc. Aqui são introduzidas as frações menores do que o inteiro (o todo que foi dividido em partes iguais) | Concepção de ensino conteudista e propedêutico. Foco na categorização do conteúdo e nas formas por meio das quais são apresentados. A aprendizagem se dá pela organização da exposição. |
[Cláudia] Como a fração é um número usado para representar uma parte de um valor inteiro que foi dividido, após fazer uma aula expositiva, aplicaria alguns exercícios em sala e posteriormente levaria a turma para uma aula prática no pátio. | Concepção tradicionalista de aula, ou seja, exposição - exercício reprodutível – prática. |
[Cláudia] Nesse local seriam distribuídos alguns números em frações, uma fita transparente (durex), bexigas e com o auxílio de uma fita métrica eles teriam que representar onde estariam os números de fração na reta. | |
[Diego] Roda da conversa: O que é fração? Valorizar os conhecimentos prévios. Mostrar para eles uma maçã e perguntar como ela está? Até que me respondam inteira. Eu quero dividi-la em dois pedaços? O que faço? | Concepção construtivista e emprego da perspectiva espiralada do processo de aprendizagem do aluno. |
[Diego] Até que me respondam: cortar ao meio E como eu poderia representar isso em fração? Quantas partes seria o inteiro? Responderiam 2 partes. E se eu pegar uma parte como representaríamos. Eu teria que montar a fração 1/2 (uma parte sobre o todo – 2 pedaços). | |
[Diego] Poderia ser outros recursos: pizza, bolo, chocolate e dinheirinho. O mais importante é partir do concreto e depois o registro. Nós professores precisamos constantemente mediar e fazer intervenções para o aluno avançar em sua aprendizagem | |
[Edna] Os alunos têm muita resistência quando se trabalha com frações, nesses primeiros contatos é recomendável que se trabalhe com bastante manipulação, elaborar uma modelagem para que os alunos construam e integrem o conhecimento. | Concepção construtivista do processo de aprendizagem. |
A professora [Adriana] traz como marcas discursivas as expressões "antes de mais nada" e "deveria entrar". Tais expressões indicam um sentido de método, isto é, orientação do processo, o qual pode se dar por etapas. Desse modo, por se tratar de um "conteúdo complexo" - que na formação discursiva do discurso analisado reflete relação explícita entre desenvolvimento biológico da criança com sua cognição - deve-se iniciar da ludicidade para, posteriormente, partir para o conteúdo.
A base ideológica aqui é nitidamente marcada pela perspectiva construtivista, uma vez que cabe ao próprio sujeito aprendente desenvolver sua aprendizagem mediante interação com seu meio e os recursos que ele oferece. Além disso, reflete uma confusão entre cognição e desenvolvimento, quando associa a ideia de aprendizagem ao lúdico e sua caracterização como fácil. Seguindo seu discurso, [Adriana] traz uma sequência de verbos: levar, perguntar, explorar e perceber. Tais verbos caracterizam a prática do professor, ou seja, o conjunto de ações que são tomadas para se desenvolver o processo de ensino e, consequentemente, a aprendizagem dos alunos. Assim, fica-nos evidente que a professora tomou contato com os documentos oficiais que destacam as habilidades como elementos essenciais para a aprendizagem dos alunos. Dessa forma, sua compreensão de aprendizagem passa, necessariamente, pela ação que o professor deve executar mediante um dado conhecimento matemático.
Ademais, deixa-nos materializado, num terceiro momento, a sua concepção construtivista do processo de ensino, quando associa a utilização do bolo (objeto real) com a construção simbólica do conceito a ser ensinado. A compreensão metodológica do processo aqui é manifestada pelo uso do objeto bolo e sua "exploração". Assim, leva-nos a conceber que sua compreensão de aprendizagem está associada com a experiência real e concreta do sujeito. Essa perspectiva é manifestada na visão construtivista difundida no Brasil na segunda metade do século XX, e ainda hoje presente na concepção pedagógica dos professores polivalentes.
Ademais, pode-se dizer que para a professora [Adriana] o conhecimento matemático deve ter uma utilidade, e sua aprendizagem está totalmente relacionada com a experiência real vivenciada. Aqui, vemos um diálogo forte com as perspectivas metodológicas discutidas por Valente (2015) acerca do desenvolvimento das ideias de Pestalozzi na Educação Matemática brasileira.
Já o professor [Roberto] demonstra possuir um tipo de conhecimento caracterizado por Tardif (2012) como um conhecimento burocrático-pedagógico, sem mencionar qualquer indício de compreensão metodológica e/ou do processo de como trabalhar o conteúdo destacado na situação dada pela professora imaginária e, muito menos, do que compreende por aprendizagem.
Desta maneira, podemos dizer que o mesmo professor tem, porém, conhecimento do currículo de Matemática para o ciclo tratado, além de saber em qual momento determinado conteúdo deve ser trabalhado. Isso endossa a interpretação anteriormente desenvolvida sobre o conhecimento burocrático-pedagógico.
No que se refere à professora [Cláudia], percebemos em seu discurso uma das concepções mais presentes na educação brasileira: o ensino dito tradicionalista. Essa discussão foi abordada por Passos e Nacarato (2018) e compreende todo modo de organização didático-pedagógica no qual a aula é estruturada no tempo exposição do conceito, realização de exercício reprodutível e execução de atividade demonstrativa. As autoras tratam esse ponto ao discutirem acerca do letramento matemático e suas concepções nos documentos oficiais no período de 1998 com o PCNEF até 2015 com a primeira versão da BNCC.
Um ponto que cabe destacar é que a perspectiva tradicionalista, geralmente embasado no conhecimento sui generis que o professor julga importante passar para o aluno, fornece ao primeiro um sentimento de segurança pedagógica, pois o foco central é no ensino dos conceitos propriamente ditos e a importância está no seu domínio e sequência dos tópicos previstos pelos livros. Por tal razão, o uso das expressões "após fazer uma aula expositiva", "aplicaria alguns exercícios" e "levaria a turma para" evidencia-nos que a professora [Cláudia] possui como concepção de aprendizagem de seus alunos aquela versada para um tradicionalismo.
O professor [Diego] desenvolve em sua enunciação os procedimentos esperados para o tema abordado pela situação da professora imaginária, juntamente com o que se espera que aconteça. A previsibilidade docente é um elemento de destaque quando assumimos o planejamento das aulas, pois é nesse momento que se coloca em evidência todas as possibilidades que a prática pedagógica a ser desenvolvida pode trazer à tona. Isso significa experiência de sala de aula e conhecimento técnico adquirido, conforme destaca a teoria de Tardif (2012).
Ademais, o uso das expressões "valorizar os conhecimentos prévios" e "até que me respondam" evidencia-nos a presença da concepção construtivista em seu discurso, uma vez que a última expressão citada demonstra um sentimento para além de uma expectativa do processo, como se sua ocorrência caracterizasse a aprendizagem do aluno, isto é, o sucesso do trabalho. Finalmente, podemos entender dessa mesma superfície discursiva que a concepção que engloba o processo é a do currículo espiralado, ou seja, retomar conhecimentos anteriores para desenvolver um conhecimento novo. Essa perspectiva foi muito presente no processo de formação docente no início do século XXI no Brasil e ainda hoje pode ser percebida no discurso docente.
No que tange à professora [Edna] percebemos em seu discurso uma preocupação que, num primeiro momento, parece-nos decorrente de sua experiência docente. Contudo, ao analisarmos os processos discursivos até o esgotamento, podemos perceber que não se trata apenas de uma preocupação, mas também de uma justificativa para a sequência de procedimentos utilizados para se ensinar o conteúdo abordado pela situação imaginária.
Nesse sentido, a experiência vivenciada orientou sua escolha metodológica do processo de ensino de frações. Tal interpretação fica justificada quando a mesma professora expressa "é recomendável que se trabalhe". O uso da expressão "bastante manipulação" leva-nos a perceber que a importância do processo metodológico está na sua concepção construtivista, em que o aluno parte do concreto e constrói suas próprias representações. Aqui fica-nos evidente, também, que o termo "modelagem" contribui para essa interpretação, uma vez que se modela sobre um padrão analisado, ou objeto observado, para que aquela possa ser reproduzida e aplicada em diversas situações.
Finalmente, a professora [Edna] compreende por aprendizagem o que está associado com o “fazer” do aluno, novamente, resultado das concepções construtivistas incorporadas ao longo de sua formação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste artigo apresentamos um conjunto de reflexões e argumentos acerca da formação do professor pedagogo no Brasil, bem como suas relações com as concepções de metodologia de ensino no que se refere à Matemática dos anos iniciais. Assim, num primeiro momento consideramos que a formação inicial, e a continuada, caracterizam-se como um importante e fundamental ponto de partida para estudarmos as formas pelas quais as crianças da educação básica aprendem Matemática.
Dessa forma, justificamos tal asserção considerando o que Passos e Nacarato (2018) mencionam como sendo um rompimento com o projeto nacional de educação, principalmente a partir de 2015, e que, considerando especialmente o que se refere à formação das/dos professores pedagogos, trouxe maiores confusões e dificuldades no estabelecimento de uma estrutura que possibilitasse àqueles desenvolver cada vez melhor o ensino da Matemática.
Isso colocou em xeque os primeiros anos de escolarização e, o que defendemos é não apenas um investimento em materiais didáticos e sistemas de ensino, mas em estudos que busquem compreender o que o professor pedagogo desenvolve, e como entende e escolhe suas metodologias para ensinar Matemática.
Nesse sentido, o presente estudo nos apontou que a partir de uma análise discursiva sob a perspectiva de Pêcheux (2015), com um grupo selecionado de professores pedagogos participantes de um curso de formação continuada desenvolvida ao longo do ano de 2020, que as concepções de aprendizagem dos alunos estão intimamente relacionadas com as concepções construtivistas e tradicionalistas de ensino, considerando como pano de fundo as tipologias de método de ensino da Matemática na educação primária discutidas por Valente (2015).
Não queremos, com esse resultado, mistificar o trabalho pedagógico dos professores participantes, aludindo a um sentido de qualidade, erro ou acerto; pretendemos, apenas, conhecer suas compreensões de aprendizagem por meio das bases ideológicas que fundamentam seus discursos pedagógicos. Tal procedimento possibilitar-nos-á elaborar projetos de formação continuada que prevejam análises comparativas de metodologias de ensino utilizadas para a Matemática, bem como possibilidades outras, quando selecionamos como contexto principal os anos iniciais do ensino fundamental.
Finalmente, encerramos esse artigo destacando a importância de se estudar as formas pelas quais a Matemática é ensinada nos primeiros anos da educação básica, contribuindo de modo significativo para a aprendizagem do aluno e, principalmente, para a formação do futuro professor.
REFERÊNCIAS
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Notas
Ligação alternative
https://histemat.com.br/index.php/HISTEMAT/article/view/512 (pdf)