DOSSIÊ - MEMÓRIAS DE AULAS DE MATEMÁTICA

UMA NARRATIVA, UMA HISTÓRIA: um educar como “uma vida que se vive”

Lilian Oliveira Daniel
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul , Brasil
Carla Regina Mariano da Silva
Universidade Federal de Mato Groso do Sul , Brasil

Revista de História da Educação Matemática

Sociedade Brasileira de História da Matemática, Brasil

ISSN-e: 2447-6447

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 7, 2021

revista.histemat.sbhmat@gmail.com

Recepção: 30 Setembro 2021

Aprovação: 21 Outubro 2021



Resumo: Neste artigo, discute-se a produção de uma narrativa de vida de uma professora da Educação Básica, em um ambiente on-line, buscando produzir afetos na formação de professores e pesquisadores em Educação Matemática. Um encontro entre professores. Uma entrevista. Uma narrativa. Foi nesse espaço que se compôs uma narrativa de um viver a educação como formação. Uma aula em meio ao contexto de uma pandemia, em que novas formas de produzir conhecimento ganharam movimento e prática. O espaço da aula mediado pelo aplicativo Google Meet e, a partir dele, novas possibilidades, afinal: o que pode uma narrativa realizada em uma disciplina oferecida de forma on-line? Como produzir afetos, quando uma pandemia impõe distâncias? Baseado neste exercício, entende-se ser possível abrir caminhos para utilizar as ferramentas tecnológicas on-line para a produção de narrativas. Se o contato físico não se faz possível, cabe inventar outros modos de interagir e produzir conhecimento.

Palavras-chave: Experiência, Narrativa, Formação de Professores.

Abstract: In this article, we propose to discuss the production of a life narrative of a basic education teacher, in an on-line environment, seeking to affect the formation of teachers and researchers in Mathematics Education. A meeting between teachers. An interview. A narrative. It was in this space that a narrative of living education as training was composed. A class in the context of a pandemic, where new ways of producing knowledge gained movement and practice. The classroom space mediated by the Google Meet application and, from it, new possibilities, after all: what can a narrative carried out in a subject offered on-line can do? How to produce affects when a pandemic imposes distances? From this exercise, we understand that it is possible to open paths for the use of on-line technological tools for the production of narratives. If physical contact is not possible, then let us invent other ways of interacting and producing knowledge.

Keywords: Experience, Narrative, Teacher training.

INTRODUÇÃO

“Construir-se através do narrar-se é um processo incessante e eterno, talvez mais do que nunca. É um processo dialético, é um número de equilibrista. E apesar das resolutas homilias de que as pessoas nunca mudam, elas mudam sim.” JEROME BRUNER

A experiência da escola básica adentrou o espaço da universidade. Uma professora de matemática da Rede Estadual de Ensino de Mato Grosso do Sul, Carolina de Moraes Lino, aceitou o convite para narrar suas vivências de sala de aula, sua história de vida, para estudantes de pós-graduação em uma disciplina intitulada Universidade, Escola e Formação de Professores de Matemática. A disciplina tem como objetivo discutir aspectos da relação universidade e escola e as reverberações desses diálogos (ou da falta deles) na formação de professores de matemática. A turma, composta por estudantes de mestrado e doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática (PPGEduMat), da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), foi ouvinte dessa entrevista; e a professora regente da disciplina, segunda autora deste texto, a entrevistadora.

Com as aulas presenciais suspensas no ano de 2020, devido à pandemia causada pelo surgimento do vírus SARS-Cov-2, decidiu-se institucionalmente[3] que todas as atividades acadêmicas e de pós-graduação seriam realizadas de forma remota. A disciplina, que tomaremos aqui como o local no qual o relato que segue foi produzido, desenvolveu-se integralmente pela plataforma Google Meet, tendo como apoio um ambiente criado no Google sala de aula. Nesse ambiente, foram disponibilizados, durante sete semanas, textos que tinham, entre seus propósitos, trazer a escola para o interior da discussão acadêmica. Lidos os textos, os alunos deveriam produzir reflexões e postá-las no ambiente da disciplina como um modo de entender como as leituras ali realizadas tinham sido recebidas por eles. Como trabalho final, cada pós-graduando produziu um ensaio que englobava as discussões realizadas durante os encontros.

Em um dos momentos da disciplina, uma narrativa de vida se fez. Mas como produzir uma entrevista, uma conversa, sem o contato físico e sem o sentimento de presença? Como pensar no entre vistas e na interação em um ambiente até então pouco explorado[4] para esse fim? Em uma situação sem precedentes, em que o cuidado com o outro se impõe a qualquer necessidade formativa, parecia não haver alternativas a não ser inventar outros modos de se produzir conhecimento em prol do bem-estar e da saúde de todos. Buscando estabelecer a relação universidade e escola, trouxemos para o ensino remoto um relato de uma professora da Educação Básica. Este artigo tem como objetivo discutir a elaboração dessa narrativa de vida, desse relato de aula, em um ambiente on-line, buscando produzir afetos na formação de professores e pesquisadores em Educação Matemática. Mais do que uma aula em um programa de pós-graduação, acreditamos ter sido produzido um encontro a partir dos ecos da escola.

1. SUJEITOS DA EXPERIÊNCIA

Bem-vinda, professora convidada! Sua narrativa traz até nós a possibilidade de adentrarmos o mundo da Educação Básica. Ela entrou numa sala virtual onde todos a esperavam ansiosos por conhecê-la e ouvi-la. Ela chegou, contribuiu, narrou, contou sua história de vida, de como se tornou uma educadora e de como se fez sua prática de mais de 15 anos nas Redes Estadual e Municipal de Ensino de Mato Grosso do Sul (MS). Foi desenhando, para 28 professores ali presentes, suas vivências e suas experiências. Uma narrativa que trouxe lembranças das aulas de matemática para o espaço formativo de forma dialógica, e teve papel principal na construção do conhecimento de pós-graduandos. Criou-se ali um espaço fértil de contação de experiências, em um entrecruzamento entre universidade e escola, estimulado pela narrativa de vida da depoente, atravessando a vida dos professores que a escutavam.

O rememorar tem potencial de (re) construir as histórias dos que estavam ali “presentes” (mesmo que em um ambiente virtual), (re)fazendo laços, tecendo as teias docentes, permitindo a reconstrução de cada lugar. Trazer a experiência de vida de uma professora, configura-se um viver narrativamente uma aula. Juntamente com Contreras (2016), estabelecemos a ideia de que ensinar é ampliar a percepção sobre as vivências na escola, pensá-las, conversá-las e traduzi-las. Nesse envolvimento do vivido é que nascem múltiplas relações, formando e transformando o sujeito da experiência: uma professora como espaço onde têm lugar os acontecimentos, aberta à sua própria transformação (Larossa, 2020).

Encontramos nesse caminhar Jorge Larossa (2020), e com ele aceitamos sua inspiração de pensar a educação para além da teoria e prática, a partir do par experiência e sentido. A experiência como um provar, um atravessar, um acontecer que transforma. Como sujeitos da experiência, estamos expostos à nossa própria transformação. A experiência é singular, atuante na existência humana, um não fora; algo ímpar, próprio, que produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. Quando adquirimos um “saber experiência”, damos sentido ao “acontecer” do que nos passa.

Sendo a experiência individual, particular, subjetiva e um lugar onde cada sujeito tece o seu viver, ainda que enfrentando o mesmo acontecimento, o saber da experiência jamais poderá se separar do sujeito que o atravessa. Ela é intransferível. Refletimos também com Larossa (2020) que algumas barreiras contribuem para empobrecer a experiência nos dias atuais. O excesso de informação e de opinião, a falta de tempo e o acúmulo de trabalho provocam esse esgotamento dos sentidos, excessos gerados pelo mundo de hoje que tendem a impedir atravessamentos. Assim, ao nos assumir sujeitos da experiência, devemos nos permitir transformar, nos afetar de algum modo, sermos inscritos por marcas, num constante devir, desenhados por vestígios e efeitos; sujeitos que se permitem ser um lugar de acontecimentos, atravessados por um encontro.

A noção de experiência, discutida pelos autores supracitados, foi o conceito que embasou a leitura da narrativa produzida. O narrar diante do outro, nesse caso, diante de estudantes de pós-graduação, alguns desses também professores, evocou lembranças da escola, dos momentos formativos, da vida vivida por uma professora de matemática. Ao narrar uma existência no contexto escolar, tivemos acesso a experiências que não estão nos documentos. Esse narrar, no entanto, realizado de forma sistemática, a partir de um roteiro previamente enviado para a entrevistada, se constituiu no interior de uma entrevista. Mas como pensar em uma entrevista sem a presença física? Que implicações existem na inclusão do público para algo tão íntimo como o narrar de uma vida?

2. UMA ENTREVISTA, MÚLTIPLAS QUESTÕES

Entrevista! Ela pode ser vista de vários modos, como uma técnica a ser dominada, um momento de encontro, uma produção de fontes de uma investigação, ou até mesmo como uma forma interativa de oralidade. Portelli (1997) argumenta que as entrevistas sempre revelam eventos ou aspectos desconhecidos de acontecimentos que julgamos conhecer, e podem lançar luz sobre áreas inexploradas da vida diária de classes não hegemônicas.

A entrevista é em um dos principais meios de produção de dados na pesquisa acadêmica, mas são os adjetivos dados a ela – estruturada, semiestruturada, livre – que criam diferenças consideráveis no modo como ela é construída. Silveira (2002) conceitualiza entrevista como um jogo interlocutivo, uma arena de significados, um querer-saber algo, no qual “os/as entrevistados/as saberão ou tentarão se reinventar como personagens, mas não personagens sem autor, e sim personagens cujo autor coletivo sejam as experiências culturais, cotidianas, os discursos que os atravessaram e ressoam em suas vozes” (p. 137). Na experiência aqui relatada, essa arena de significados consistiu-se em um espaço habitado pelo personagem pesquisador, que produziu sentidos desde a elaboração do roteiro até o posterior processo de releitura e reconstrução dos dados com o seu olhar analítico, pelo entrevistado e pelo público.

A entrevista é elaborada desde o preparo do roteiro, a escolha do entrevistado, passando pelo momento de sua produção e, posteriormente, a análise, sendo tão importante discutir o momento em si quanto o seu desenlace. Mesmo depois de analisado, o registro da entrevista continua permitindo um ecoar de novas percepções, olhares e sensações. Para Silveira (2002), a entrevista é um evento discursivo complexo, uma ocorrência forjada “não só por entrevistador/entrevistado, mas também pelas imagens, representações, expectativas que circulam – de parte a parte – no momento e situação de realização das mesmas e, posteriormente, de sua escuta e análise” (p. 118). Nesse evento complexo, a imprevisibilidade é a única certeza.

A entrevista é um momento, em que narrativas são produzidas em direção a alguém, a um entrevistador, à academia.

Cury, Souza e Silva (2014) afirmam que

narrar é contar uma história, narrar-se é contar nossa história ou uma história da qual também somos, fomos ou nos sentimos personagens. Esse contar, é importante ressaltar, se dá sempre em direção a alguém. Desse modo, a narração prevê um posicionamento frente ao outro. (p. 915)

A construção desse interlocutor afeta diretamente as escolhas do modo e das histórias que serão narradas. Essa oralidade direcionada traz em sua concepção decisões sobre aquilo que pode vir a público e aquilo que não será compartilhado. Assim, não há uma única maneira de se contar uma história, ao contrário, “eu poderia contá-la de muitas maneiras, todas elas moldadas tanto pela minha vida desde então quanto pelas circunstâncias daquele antigo verão” (Bruner, 2014, p. 75).

No decorrer da vida, a entrevista nos é apresentada como algo natural, desde brincadeiras de infância até entrevistas em programas de TV, rádio, jornais e em canais virtuais. Nestes casos, a entrevista comumente assemelha-se a uma encenação construída e montada, preparada para ser exibida. Uma estrutura delineada para o convidado (neste caso o entrevistado) com perguntas direcionadas, treinadas e um clima aparentemente festivo, combinado, para mostrar o que o público deseja ver. Uma conversa idealizada que se transforma em um bate-papo descontraído: a cena perfeita esperada pelo espectador. Na TV tudo parece tão real e perfeito, e o entrevistador tão alegre, simpático. O entrevistado harmoniosamente contando o que lhe é perguntado. As regras para essa modalidade de entrevistas parecem estar postas, de modo que cada um saiba, de antemão, qual papel deve representar.

Fazendo uma analogia, uma entrevista televisiva seria como um jogo de Frescobol[5], em que cada jogador arremessa a bola para o outro de maneira leve, sutil, graciosa, harmoniosa. Para o sucesso do jogo, o segredo é manter a bola em movimento; uma forma de fazer o parceiro acertar o novo passe para que o jogo continue. Na entrevista como Frescobol, a função do entrevistador é fazer com que seu entrevistado se sinta à vontade, é que se estabeleça uma relação de confiança, a fim de gerar reciprocidade e fluidez na conversa. Quando o entrevistador “passa a bola” (perguntas/questionamentos) para o entrevistado, ele sente segurança para “rebater” (respondendo), para que o jogo continue.

Nesse modelo de entrevista, os jogadores (entrevistado e entrevistador) se empenham em manter um relacionamento harmonioso, jogando a bola (questões/respostas) cada vez mais suavemente para o outro acertar, manter a bola (conversa) em jogo e permanecer o bom clima. A entrevista de TV/rádio/webs nos parece, assim, uma forma de manter as aparências, a audiência, a simpatia e a boa imagem, sem “cortadas”. Sarlo (1995) observa que as entrevistas radiofônicas, na televisão ou na imprensa escrita, se apresentam como “figura de três vértices: entrevistador, entrevistado e público” (p.13). Para ela, é para o público que entrevistador e entrevistado se dirigem, se reportam. Na sua escrita esclarece que “A dinâmica da entrevista, que parece se fundir no hábito imemorial da conversa, se faz mais complexa ...por esse terceiro para quem falam os dois primeiros” (p.13). E diante dessa questão, o entrevistado e entrevistador procuram se mostrar ao público pelo melhor ângulo, com um virar para cá ou para lá proposital para melhorar a própria imagem, para se apresentar “bonito” ao cameraman e ao público.

Embora seja comum em entrevistas acadêmicas um encontro somente entre entrevistador e entrevistado, no exercício aqui descrito, incrementamos um terceiro elemento dessa relação, o público. A inclusão desse terceiro elemento nos leva para uma nova forma de olhar para a entrevista. Seria essa entrevista mais próxima daquela televisiva, discutida anteriormente? Para quem a entrevista vai ser divulgada pode ser uma questão muito relevante para o entrevistado, pois implica o para quem ela vai ser direcionada. Na entrevista aqui relatada, entrevistador, entrevistado e público se situavam no mesmo tempo, mas em espaço distintos. Cada um dos atores dessa tríade se encontrava em suas casas, em seus lares, em um momento em que a “não presença” era necessária.

Nesse tripé destacamos quem é quem nessa relação. De um lado, a entrevistadora com questões a serem discutidas, com dúvidas e uma preocupação de se fazer compreendida por seus questionamentos de gerar confiança na entrevistada para que a conversa corra solta e confortável. Mesmo com planejamento, o processo de entrevista é composto por movimentos fugidios, promove novas potências e novos diálogos. A entrevistadora busca encontrar o melhor momento, o melhor local, deixar a entrevistada à vontade para falar, confiante. Uma entrevista tem intencionalidades, uma relação potente entre pessoas e uma atmosfera de circunstâncias “do que pode ocorrer?”. Para a entrevistadora, o imprevisto é algo desejável. Algumas questões poderão se lançar ao “acaso”, de modo a adquirirem outros rumos, outras falas, outros rios, outras vertentes, outras bandas. Uma entrevista é uma conversa que poderá “sair do tom” e produzir outras coisas, outras formas de pensar, outros atravessamentos, outros outros.

Do outro lado está a entrevistada, que possui um saber da experiência produzido na escola, no cotidiano. Um sujeito que detém as informações do “querer-saber”; sabedor de que sua fala é o que o outro quer ouvir. Ela é a personagem que a entrevistadora quer “tocar”. Bruner (2014) nos ajuda a entender esse papel, ao dizer que, quando narramos, não dizemos qualquer coisa, mas sim, o que achamos que o outro espera de nós, ou seja, nossas narrativas são produzidas e direcionadas a um leitor, a um público.

Por último, o público. Uma entrevista sempre possui espectadores/ouvintes/leitores que determinam a direção na qual a entrevista vai ser contada, mesmo que cognitivos, um suposto leitor, nos diria Rômulo Lins em seus estudos. O que aconteceu no caso aqui específico é que esse público se fazia presente virtualmente. Estavam ali, olhares, ouvidos e corpos atentos a tudo o que se passava. Sem querer afirmar levianamente alguma intenção, imaginemos que a fala se destinou para todos os que ali a ouviam. Foi a situação imposta pela pandemia que tornou viável a presença do público. O entrevistado fez seleções e conexões diante do público específico: estudantes de pós-graduação.

Ao produzir uma narrativa em momento de entrevistas, escapamos de adjetivos como verdadeiro, rigoroso, válido, o que nos permitiu adentrar no mundo da educação pela experiência docente, pela memória de quem narra. A partir de uma outra fala, um outro lugar, do qual o discurso pode e deve ser produzido com o objetivo de ampliar nossa percepção em relação à escola. Um conceito interessante de se operar aqui, quando trazemos a narrativa de uma professora da Educação Básica para dentro da universidade, é o de Lugar de Fala. Recentemente esse conceito tem permeado discussões sobre quem pode falar e sobre o que se pode falar. Ribeiro (2019) nos ajuda a continuar no caminho do múltiplo e da não hierarquização dos saberes, ao dizer que devemos nos atentar ao lugar de onde se fala, o qual a autora chama de locus social. O lugar que ocupamos nos propicia experiências distintas, o que torna imprescindível ampliar a produção de narrativas daqueles que normalmente não têm espaço dentro da visão hegemonia de produção de conhecimento na qual nossas pesquisas são produzidas.

A escolha de quem entrevistar tem sido feita pelo grupo[6], ao qual as autoras deste texto estão vinculadas, pelo critério de seleção de rede, que consiste na indicação por um dos entrevistados de possíveis interlocutores. Algo parecido já acontecera nesse exercício. Em 2019, a profa. Carolina, professora da Educação Básica, fez um convite para a entrevistadora: Olá professora, você poderia conversar com meus alunos em uma de minhas aulas? A temática naquele momento era sobre mulheres negras nas ciências, e a fala foi realizada na escola, voltada para alunos do Ensino Médio. Quando, portanto, surgiu a ideia de trazer para o interior da academia o cotidiano escolar, nenhuma opção parecia mais adequada do que retribuir o convite.

Definida a entrevistada, partimos para a produção de um roteiro temático, por acreditarmos ser essa uma opção mais potente do que um roteiro com questões. As perguntas sempre diziam: há algo que você queira falar sobre isso? Ou Há algo que você gostaria de falar?, o que permitia que a entrevista fosse desenvolvida de forma livre, dando a entrevistada a oportunidade de inventar caminhos. O roteiro foi enviado previamente, via aplicativo de mensagem instantânea, e tinha como última questão: Há algum ponto que não foi destacado aqui que você queria falar?

Quadro 1 - Roteiro de Entrevista

Fonte: Elaborado pelas autoras

O roteiro tinha a função de iniciar o diálogo em um terreno para a produção de conhecimentos. Pouco nos prendemos a ele, mas ele estava ali, caso necessário. Em tempos de isolamento social, as fichas se tornaram palavras soltas, aglutinadas em temáticas da vida pessoal, da formação e do cotidiano escolar. Ainda que se tenha o cuidado de preparar um roteiro e de realizar estudos prévios de modo a produzir uma narrativa com potencial formativo, “não há, no limite, algo como a narrativa de algo já conhecido, pois toda narrativa é criação e, como criação, marcada pela singularidade e subjetividade do narrador” (Silva, 2015, p. 31).” O que vem a seguir é, portanto, um exercício de explicitar como essas subjetividades foram percebidas em um momento de entrevista e como elas produzem memórias de aulas de matemática.

3. TECENDO VIDAS: A CONSTRUÇÃO DE UMA NARRATIVA

Uma aula on-line com uma entrevista, 28 observadores, uma narrativa mediada pela professora regente da universidade, fichas, um roteiro elaborado e disponibilizado previamente para a entrevistada. Ao contar suas experiências, a entrevistada transforma aquilo que foi vivenciado em linguagem, dando sentido à sua vivência. Antônio Vicente Garnica (2010) enriquece nossa discussão, quando diz que

Narrar é contar uma história, e narrativas podem ser analisadas como um processo de atribuição de significado que permite a um ouvinte/leitor/apreciador do texto apropriar-se desse texto, através de uma trama interpretativa, e tecer, por meio dele, significados que podem ser incorporados em uma rede narrativa própria. Assim, estabelece-se um processo contínuo de ouvir/ler/ver, atribuir significado, incorporar, gerar textos que são ouvidos/lidos/vistos pelo outro, que atribui a eles significados e os incorpora, gerando textos que são ouvidos/lidos/ vistos... (p.36)

A professora construiu sua narrativa, revisitou o seu passado/presente em busca dos significados da sua prática escolar. Teceu uma trama, trazendo para nós, ouvintes, ali atentos e sedentos por escutar suas histórias, uma teia de significados, contribuindo para a aprendizagem dos sujeitos em formação. No decorrer da sua fala, a entrevistada ofertou elementos[8] da sua vida, o que acentuou nosso entendimento de que o ser professora se faz vivendo, nesse emaranhado de experiências vividas, repensadas e revisitadas. E em cada diálogo, estimulado pela entrevistadora, era apresentado um sujeito transpassado, um sujeito como um lugar atravessado por fluxos sociais, que se desmancha e se refaz com o movimento da sua prática. É assim o sujeito, constituído na e pela linguagem, como uma posição sujeito, no dizer foucaultiano, um atravessamento subjetivo que em si “é um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes” (Foucault, 2007, p. 107).

O início da conversa foi uma apresentação. A professora começou a mostrar a educação como vida. Contou sobre seus 15 anos de docência em sala de aula no ensino público. Na época, ela trabalhava em uma escola do estado de Mato Grosso do Sul como professora de matemática e de disciplinas da parte diversificada do Ensino Médio: Projeto de Vida, Eletivas, Acolhimento, Tutoria, Pesquisa e Autoria, Estudos Orientados.

A primeira temática escolhida para a fala (escolha das fichas feitas por palavras) foi sobre a família, infância, escola e rotina escolar e, assim, a narração começou a se compor. Iniciou narrando que nascera no interior de São Paulo e veio para o Mato Grosso do Sul com menos de 4 anos. Contou sobre suas boas lembranças, da doçura, acolhimento, amor ao educar e paciências da professora da infância – do pré II (fase da alfabetização). Disse que sempre foi uma aluna que tinha responsabilidade com os estudos; e que sempre fora muito cobrada por seus pais para ter compromisso com a escola. Logo de início, pontuou o que parecia ser a experiência que consolidou uma de suas características, o amor pela profissão e o cuidado com os estudantes que habitam sua sala de aula. Do Ensino Médio trouxe boas recordações na fala, citou dois professores (matemática e história) que influenciaram seus pensamentos na juventude e recordou com saudosismo a postura deles em sala de aula “sérios, humanos e amorosos”.

Quando falou sobre sua formação, disse que não trabalhou enquanto estudava, mesmo tendo passado algumas dificuldades como adolescente, pois nesse período – 1980, 1990 –, o Brasil vivia uma fase de transição econômica, um momento de muitas incertezas e de instabilidade política e econômica. Em determinado período da sua formação, os pais conseguiram uma vaga em uma escola particular, já que era muito difícil conseguir vagas nas melhores escolas do ensino público, naquela época. Sua luta diária era ir para a escola de ônibus e entender as dificuldades que tinha, mas passar por isso foi importante para seu crescimento e seu amadurecimento.

Graduou-se pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, curso Ciências Biológicas – licenciatura e bacharelado. Foi a primeira da família a fazer uma universidade pública; uma graduação em período integral. Na sua fala explicitou suas dificuldades de permanência na universidade. Estudar em tempo integral não foi fácil. Escolheu o curso de Ciências Biológicas, porque na infância dizia querer ser médica veterinária, e essa fala ecoou até seu momento de decisão para o vestibular, quando percebeu que estaria mais perto de alcançar o sucesso no acesso ao curso de Ciências Biológicas. A docência, hoje tão presente em sua vida, não foi a primeira opção.

Na sua fala, deixou clara a imaturidade do adolescente na escolha de sua profissão aos 16 anos. No seu fazer docente, por dar aula para essa faixa etária, percebe que precisa ajudá-los na escolha do que vão querer fazer depois do Ensino Médio. Nesta fala, mostrou que a sua experiência vivida contribuiu para seu fazer pedagógico em sala de aula. Ainda sobre a formação institucional, trouxe para a entrevista algumas fotos da sua vivência na universidade, de sua participação no Diretório de Estudantes, da sua iniciação científica e da estrutura física da instituição. As fotos, além de ajudarem a compor sua narrativa, resgatando suas memórias, revelou ter ela se preparado para a entrevista. Ela buscou materiais que pudessem ajudá-la a contar sua história.

Na transição da sua fala para a vida do trabalho, explicou que, inicialmente, não via a licenciatura como uma opção profissional, queria mesmo era trabalhar como bacharela. Fez os estágios de práticas pedagógicas na graduação, porque eram obrigatórios. Dar aula não era uma escolha naquele momento. Mas houve, e isso é perceptível em sua narrativa, um ponto de mudança, uma ruptura que a fez conceber a licenciatura como opção de trabalho. Assim que terminou a graduação, entendeu que o cenário econômico era favorável para o professor, pois havia muita oferta para o licenciado. Quando se viu desempregada, esse sentimento se afirmou, e a escola passou a ser uma opção de trabalho, fonte de renda, algo viável.

Começou a carreira, substituindo uma professora que estava de atestado de saúde. Logo nesse início, questionou sua formação como licenciada. Descobriu que a universidade não capacitava o professor para os desafios que iria encontrar em uma escola. Para ela, a formação na universidade a preparou para a Iniciação Científica, saber pesquisar e isto a ajudou muito na preparação das aulas de Projeto de Vida e Iniciação Científica na Escola da Autoria, mas não a habilitou para enfrentar uma sala de aula na periferia de uma cidade grande. A universidade não a preparou para enfrentar o dia a dia, o chão da escola, a linha de frente de uma escola pública.

Essa constatação da entrevistada corrobora o que a literatura sobre formação docente vem produzindo. Gatti (2016) nos lembra da importância de se levar em conta no processo formativo de futuros professores uma compreensão sobre o sistema escolar e a escola. Discute ainda que os licenciados precisam ser instrumentalizados para lidar com o que, segundo ela, é o foco de sua profissão: o ensino.

E que eles precisam ser instrumentalizados para lidar com o ensino, que é o foco de sua profissão, e o elemento definidor de sua profissionalização. Com isso, tentando promover incentivo ao espírito investigativo e o domínio teórico e prático relativo à didática e às práticas de ensino, em formas articuladas aos conhecimentos disciplinares e interdisciplinares. Como isto será factível nas estruturas institucionais que temos hoje formando professores? Superaremos os velhos esquemas formativos? O desafio é viabilizar essa complexa formação, e, mais, prover estágios adequados, decentes, orientados, coordenados, que possam realmente ajudar em sua formação profissional. (p.170)

Portanto, sugere a autora que cumpre operar com uma formação docente complexa, capaz de munir o professor com ferramentas que lhe possibilitem se adaptar aos desafios encontrados nos mais diversos contextos. Ainda que tendo dificuldades com o início de carreira, nossa entrevistada conseguiu superar os primeiros percalços, em parte pelos movimentos formativos vividos durante a formação continuada. Apesar de não ser a profissão que ela queria, em um primeiro momento, tentou tirar algo positivo daquele dilema. Assim que terminou a substituição dessa escola, foi convidada para dar aula de matemática, um novo desafio encarado com dedicação e seriedade. Explica que sabia que o domínio de conteúdo era essencial para dar aula e, como naquela escola sempre faltava professor de matemática, foi a oportunidade de reafirmar-se como professora. A Licenciatura em Matemática foi um caminho inevitável, já que essa era uma exigência da legislação para continuar a ocupar a vaga na escola.

Na sequência, fez questão de falar sobre os impactos que os cursos de formação continuada tiveram no seu fazer pedagógico. Para ela, continuar estudando e fazendo formações a transforma como docente a cada dia. Na sequência das falas, a entrevistadora solicitou que a professora narrasse sobre em qual momento ela se viu “diferente”, “transformada”. “— Fale para nós sobre o ano de 2017”, pediu a entrevistadora, instigando esse viver narrativamente uma história. Rolkouski (2006) aponta que “quando solicitamos a alguém que nos conte sua história de vida é o mesmo que solicitar a ela que se constitua a nós naquele momento. Narrando-se, o depoente constitui o seu ‘si mesmo’” [ênfase no original] (p. 205). Nesse tom, embarca-se aos idos do ano de 2017; ano em que a professora foi convidada a ser professora regente em uma disciplina chamada Projeto de Vida[9], iniciando seus trabalhos na Escola da Autoria[10]. Um momento, identificado como de ruptura. Na sua fala, a professora deixa claro que ministrar Projeto de Vida trouxe a ela uma mudança de postura como educadora. Ela repensou sua prática, a partir de capacitações que a induziam a focar o estudante, de forma mais humanizada, colocando-o como protagonista do seu processo de aprendizagem. Explicou que ela, como professora, é chamada a formar esse estudante para o mundo, e não somente ser responsável pelo cognitivo desse estudante. Ela tem a responsabilidade de formá-lo para a vida.

É uma paixão, é um amor” “o tempo que eu trabalho além não tem dinheiro que pague”. Essas falas da professora sinalizam que seu papel como transformadora daquele espaço educação vai além da sala de aula, pois envolve o ser humano como um todo. Não há separação entre a vida pessoal e a profissional. Uma professora que se construiu ao longo do seu percurso, da sua vivência, da sua relação com o mundo, com outro e com o contexto que a cerca. Para Rolkouski (2006) “compreender os indivíduos como professores, não pode estar dissociado de compreendê-los enquanto seres humanos em meio a outros seres humanos” (p. 221). Por assim entender, “a” professora tornou-se o que ela é hoje, porque experienciou várias situações e formações, no decorrer do seu percurso formativo; vivenciou rupturas; se reinventou e ainda continua sendo transformada em todos os dias de suas práticas em sala de aula.

REVERBERAÇÕES

O que pode uma narrativa realizada em um ambiente on-line? Como produzir afetos, quando uma pandemia impõe distâncias? Os processos educativos que permearam nossas práticas como alunos e professores no ano de 2020 tiveram que ser reinventados, remodelados para manter o isolamento social imposto, sem perder a qualidade de ensino. Diante do imprevisto, a criatividade e a capacidade de adaptação pareceram ser as melhores opções para o enfretamento das adversidades. Nesse reinventar, outros modos de produzir narrativas tomaram lugar de modelos já cristalizados. Outros públicos se fizeram presentes. Outros lugares foram criados: o virtual. Esse exercício nos mostrou ser possível abrir caminhos para utilizar ferramentas tecnológicas on-line para a produção de entrevistas. Essa parece ser a única opção para as pesquisas que se valem desse modo de produção de dados, durante um período em que o contato social deve ser evitado. Como uma postura, a favor da preservação da vida, do cuidado com o outro, não há motivo para uma paralisação diante do diferente. Se o contato físico não se faz possível, que inventemos outras maneiras de interagir e produzir conhecimento.

Relatamos aqui uma experiência realizada em uma disciplina da pós-graduação, em que uma História de Vida foi relatada em poucas horas, mas muito contou. Uma oralidade trouxe para o interior da academia o saber docente da Educação Básica, uma valorização da fala, da narração, da memória, da identidade, da subjetividade. Uma prática pedagógica feita com amor, com respeito ao educando. Dos afetos ali produzidos, ficam os desafios para a escolha da profissão docente e a paixão pelo seu fazer pedagógico, que requer estudo, dedicação, planejamento, preparo, organização. Tudo isso em um processo que produz um professor, a partir de sua experiência ao longo da sua vida.

Ao contar histórias de professores, esperamos afetar aquele que as ouve, que as lê; almejamos mobilizar nos professores o repensar suas práticas e o identificar-se com aquela história que também poderia ser dele. As próprias histórias justificam suas existências, o motivo de contá-las. São permeadas por gestos, cores, sons que parecem trazer à baila os resquícios das salas de aulas por onde ela passou. Quando a entrevistada nos contou seu movimento de escolha da profissão docente, quase que, ao acaso, trouxe para a discussão o status da profissão, que muitos dos que ali a ouviam escolheram. As histórias de vida são cheias de coisas intangíveis que possibilitam àqueles que a leem aprimorar suas capacidades imaginativa e sugestiva. Não sabemos ao certo o que são e o que significam as narrativas, mas, ao contá-las, oferecemos a quem as ouve ou as lê fazer a sua própria exploração, interrogação, investigação, criação de narrativas outras.

As memórias narradas nesse ambiente adquiriram uma missão formativa para estudantes de um programa de pós-graduação, professores que puderam refletir, a partir de uma narrativa que trazia muitas histórias de sala de aula.

Mas, afinal, o que pode uma narrativa de vida em uma disciplina? Apesar de essa metodologia ser pouco explorada, ela tem uma grande potência na educação, pois ela viabiliza ressignificar o processo educativo em momentos desafiadores, tais quais alguns aspectos do viver narrativamente a escola e das afetações que esse viver possibilita, expostos neste texto.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à professora Carolina Lino de Moraes que aceitou o convite para narrar sua história e suas experiências docentes em uma aula de um programa de pós-graduação. Por meio de uma carta de aceite, chamada Carta de Cessão, a docente nos cedeu a autorização para divulgar seu nome neste trabalho. A ela, todo crédito pelas discussões aqui levantadas.

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